2016 – vol. 7 – n.2 – Setembro
Expediente Organização: Alana Regina Designer: Silvia Fonseca Colunista: Matheus Medeiros Capa: Bian Fotógrafa: Larissa Dare Contato: revistamaisdeum@ outlook.com Site: alanaregina.com.br/ revistamaisdeum
Apresentação
A cada três meses tenho a grata missão de apresentar a Mais de Um. É sempre uma grande correria. Todo mundo que trabalha aqui tem uma vida atribulada, universidade, trabalho, aquilo tudo que você também deve conhecer. Mas as mãos dadas aqui pela Mais de Um não se soltam, apesar de. A gente arruma uma madrugada, uma vaguinha na agenda, corre atrás de uma boa entrevista, de uma boa capa, de uma boa estética e de excelentes textos. E a gente não paga nem recebe dinheiro por isso. E ficamos contentes como dinheiro não é importante para ninguém que coloca sua arte nestas páginas. Literalmente, é amor à arte. Começo apresentando assim, porque nenhuma gratidão é exagero. Em um mundo onde todo mundo só quer ganhar, onde todo interesse é pecuniário, a Mais de Um tem o privilégio de reunir artistas natos: os que têm fome de mudança, de movimento, de reunião, de evolução, de democracia, de educação, de paz. Vocês entendem a felicidade em apresentar mais uma edição desta revista? De poder contar com uma designer talentosa, um colunista sensível, poetas, contistas e cronistas de todo o país (e muitas vezes de fora dele), cantoras disponíveis, acessíveis, simpáticas e conscientes, tudo isso, toda essa gente só na base do ímã da afinidade de ideais. Todo mundo que está aqui está muito a fim de ver esse país crescer mais saudável. Está querendo muito ver menos notícias de violência, morte, discriminação, humilhação, segregação. A gente se reuniu para dar para você um conteúdo de qualidade, de graça e de fácil acesso, com uma única motivação: a gente quer que você nos ajude a sacudir esse mundo. Convido você a, mais uma vez, partilhar conosco dessas nossas linhas, cores, disposição, somando cada vez mais nessa luta. Alana Regina
“Tá na hora e é urgente”: A representatividade lésbica no som envolvente da cantora Bian
Bian é carioca e canta desde os 4 anos. Segundo ela, “a música sempre foi o que eu mais amei fazer da minha vida”. Há 1 ano começou a produzir, quando trancou a faculdade de Psicologia e começou sua graduação de produção musical na Berklee online: “Foi um divisor de águas para começar a entender, ouvir e criar música de outra forma. Estou muito imersa no processo de produção”.
Dessa imersão surgiu para o público Move on, composição da própria Bian, canção que brilha em um clipe cheio de sensibilidade, cuidado e delicadeza, lançado agora em setembro.
são para todos. Acredito que a música, assim como qualquer tipo de arte e qualquer forma de educação, tem um poder transformador profundo. Estarei sempre do lado dos que acreditam que a educação tem mais a oferecer para a democracia do que uma mentalidade punitivista.”
Segudo Bian, “a música é sobre sentir algo inexplicável por alguém, algo que vai além do racional, mas não saber se Move on é um som envolvocês vão ou não ficar juntas”. vente, moderníssimo e sobre representatividade lésbica, emNo clipe, o amor entre poderamento feminino e amor. duas mulheres se dá de maneiVisceral, a canção diz muito ra cativante, sensível e natural. sobre o que significa poder se Move On, conta Bian, é sobre expressar em um espaço deencontros profundos. mocrático como o da arte. Bian Empolgada com o novo sabe bem o que isso significa. trabalho, Bian fala sobre a pro“Quando eu era criança, dução da música: “O estúdio da eu não entendia quem eu era Gomus (selo com quem trabae o que eu sentia. Eu sentia lho) tem uma coletânea de sinuma culpa imensa e horrível tetizadores, pedais e baterias por sentir atração por meninas eletrônicas incríveis. Explorei e isso foi desde os 8 anos de muito isso com o Guto Guerra, idade. Eu queria me expressar: produtor musical com quem trajogar futebol, correr, pular, anbalho. A música tem muita coidava com os meninos e queria sa boa de analógico e tem um me vestir (como a sociedade toque meio “nerd” em termos impõe) de maneira masculina. de produção musical. Nossas Eu guardava esse medo para referências foram The XX, mas mim e lembro de vomitar umas botamos um toque a mais de 4 vezes durante a infância de distorções e sensualidade para desespero por ser algo que eu a música”. não poderia fugir. Era algo que Quando perguntamos estava dentro de mim e eu não o que Bian, enquanto artista, podia simplesmente eliminar. pensa com relação aos avan- Meus pais não tinham o mesços sociais, percebemos uma mo entendimento que têm hoje, cantora ciente da função da sua então, eu me senti muitas vezes arte: “Infelizmente, sinto que no reprimida, tolhida, mas como Brasil não vivemos uma demo- sempre fui muito comunicativa cracia em termos de educação. e tive muitos amigos, de alguAs oportunidades ainda não ma forma, isso não me parali-
sava tanto e ninguém sonhava que eu tinha algum problema. Minhas notas sempre altas, muitos amigos, representante de turma... Quando fiz 15 anos, obviamente ficou insustentável ignorar os meus sentimentos e minha sexualidade e me assumi para meus amigos. Aos 17, convidei meus pais para uma conversa na terapia e eles não demoraram muito para entender e me apoiar. Eles são muito meus amigos. Se eu tivesse tido referências de mulheres lésbicas, principalmente, eu não teria sofrido durante minha infância. Muitos não teriam se suicidado, sido expulsos de casa, sofrido assédios diários na rua ou injustiças no emprego. Não podemos viver no armário com vergonha. Não podem mais ignorar a nossa existência.” A receptividade do público tem sido mais que positiva. Bian vem recebendo agradecimentos, especialmente, de meninas que se sentem gratas pela representação orgulhosa da sexualidade no clipe, livre do comum olhar machista de hipersexualização. Ao ser questionada sobre representatividade de cantoras lésbicas no cenário musical brasileiro, a carioca é categórica: “Acho que precisamos crescer. Tá na hora e é urgente”. Por Alana Regina
Para ver o clipe: youtube.com/watch?v=LNhJddg0ddc Página da Bian: facebook.com/bianmusic
FLORES LIBERTAS
Cultivo jardins de amores-perfeitos. Amores, flores em carĂcias no claro dia nĂŁo de desejos ocultos como pecados na noite. Jardins onde cores se entrelacem em luzes difusas flores se abracem, partilhem polens com leveza com a beleza dos sentimentos sentidos, vividos. Amores, cores e flores libertas em bem-querer intenso ignorando os olhares das almas prisioneiras.
(Luciano de Carvalho)
Com 65 anos, professor em Juiz de Fora, MG, poeta amador com alguns trabalhos classificados em concursos e publicados em coletâneas.
Visita Jurei que nunca mais ia abrir a porta para ninguém. Por isso, apaguei a luz quando a campainha tocou. Fingi que não tinha ninguém em casa e esperei você ir embora. Você não foi, é claro. Insistiu, como sempre. Cansada e curiosa, decidi que não fazia mal olhar por uma fresta na cortina entreaberta. De repente, a janela estava escancarada e você estava rindo. Eu não. Ainda usava aparelho e achava horrível sorrir, então, só ficava observando as covinhas nas suas bochechas, enquanto gargalhava por dentro. Um dia, o riso finalmente escapou, e ambas sabíamos que você tinha vencido. Te enxotei. Seu corpo não se moveu, e precisei perguntar o que você tanto via em mim. Ouvi um monte de adjetivos que eu não era. O motivo disso, pensei, era óbvio: a vidraça estava embaçada. Se eu quisesse que você caísse em si e partisse, precisava te deixar entrar e ver o interior da casa. Para ser honesta, foi por isso que não deixei. Quando dei por mim, entretanto, você já estava na sala de estar. Entrei em pânico, porque estava tudo bagunçado e ainda havia alguns vestígios da visita
anterior. Você nem ligou. Tivemos alguns problemas quando você não sabia o lugar das coisas, ou quando até sabia, mas queria reorganizá-las. Brigamos pelo sofá em diagonal e a mesa de centro no canto do quarto. Gritamos algumas vezes. Nunca chorei, mas você sim. Uma vez, ou duas, ou dez. Percebi que amava o jeito como a tatuagem no seu braço parecia ter vida própria quando você gesticulava, com raiva; em contrapartida, detestava causar a você qualquer pequeno espectro de infelicidade. O sofá não valia tudo aquilo. Sofri, mas não disse. Enquanto você enxugava as lágrimas com as costas da mão direita, apenas ri e jurei, pela primeira de muitas vezes, que não ia contar para ninguém. Nos levantamos e arrumamos tudo juntas, de um jeito que me fez admitir que a casa nunca ficou tão limpa. Então, aconteceu. De uma hora para outra, a sua roupa era a minha, e o meu perfume era o seu, e o meu coração era nosso, e a sua risada era tudo. Comecei a sentir medo no momento em que foi impossível lembrar que a casa tinha, um dia, vivido histórias em que você não era a protagonista, porque é sempre nessa hora que as visitas vão embora. Detestava ser aquela pessoa que acorda de sobressalto para ver se a outra ainda
Victoria Tuler é curitibana, nascida em 1995. É redatora e procrastinadora profissional. Quando crescer, quer escrever um livro, plantar uma árvore, fazer um filme e ter uma rede na sala de estar - não necessariamente nessa ordem. Ultimamente, tem evitado visitas.
está por aqui, mas, por meses, fui mesmo assim. Todas as manhãs em que você ficou foram pequenas surpresas, embrulhadas em inseguranças trêmulas. A noite em que você partiu, por outro lado, foi o alívio de não ter que me preocupar mais com a certeza que tive desde o primeiro dia: as visitas sempre vão embora no fim das férias de verão. Foi difícil juntar suas coisas, porque você estava em todo lugar. Sugeriu que passaria por aqui uma hora dessas. Fingi que fiquei indignada com a proposta, mas botei a cópia da chave no bolso da sua mochila. Assisti pacientemente enquanto você atravessava o quintal, sem olhar para trás. Continuei na soleira da porta um bom tempo, e, só confesso que chorei se você jurar, pela última de muitas vezes, que não vai contar para ninguém. De qualquer forma, nada disso terá importância desse texto em diante, porque agora tranquei a casa, e jurei que nunca mais vou abrir a porta para ninguém.
METAMORFOSE
Em um mundo de lagartas, é preciso muito para ser uma borboleta Para a Rússia, que precisa de amor “Nós não reprimimos ninguém, nós não aprisionamos ninguém. Nenhuma relação é criminalizada, diferentemente de outros países. Pode se sentir livre, mas deixem as crianças em paz, por favor.” (Vladimir Putin)
(Enquanto escrevo este texto no Word, o documento sublinha em vermelho a palavra “transgênero”, como se ousasse me dizer que ela não existe. Valha-me Cristo, ainda me propõe uma correção: “transgênico”).
To Russia With Love (tradução livre: Para a Rússia, com Amor) é um filme-documentário dirigido por Noam Gonick durante as Olimpíadas de Inverno de 2014, sediada em Sochi, na Rússia. O contexto para a população LGBT+ é de intolerância e perda de direitos: um ano antes, a Duma — que equivale a nossa Câmara dos Deputados — aprovava uma lei criminalizando a “propaganda de relações não-tradicionais”, posteriormente sancionada pelo presidente Putin. Na esteira do preconceito, a lei compara a homossexualidade à pedofilia em um país onde 50% da população não acredita que gays, bissexuais e lésbicas devam ter os mesmos direitos que a população heterossexual.
É nesse contexto aterrador para a nossa luta de direitos que o documentário, por meio de entrevistas com jovens competidores internacionais abertamente fora do armário, retrata o impasse dos atletas entre se fazer ouvir ou se calar, dar voz a oprimidos e muito provavelmente ser preso ou aceitar. Se por um lado existia a repressão e a rigidez das leis russas, as Olímpiadas eram o momento ideal para um protesto, uma vez que o mundo todo estaria com os olhos voltados para o país. A delegação suíça pediu à atleta Simona Meiler que não se expusesse, a fim de evitar conflitos com as leis russas. O COI (Comitê Olímpico Internacional) proibiu a realização de manifestação políticas — exatamente como aqui no Brasil, embora nada tenha impedido as vaias ao nosso pouco querido presidente interino — tudo contribuindo para o aumento do medo e das tensões e servindo de um balde de água fria em uma manifestação que se fazia cada vez mais necessária.
O prefeito de Sochi anunciava que não havia gays morando na cidade, o que provavelmente serviu de inspiração para o título da nova canção da Lady Gaga, Perfect Illusion. A mídia é responsável por incitar ódio contra a população LGBT+, propagando desinformações que serviam para culpar os ditos “desviantes” de todos os males da Rússia. Menores de dezoito anos eram expressamente proibidos de ser informados sobre as diferentes sexualidades. Ficaria pior: em 2015, outra lei classificou travestis e transgêneros de “doentes mentais”, justificando, assim, a decisão de proibi-los de tirar carteira de motorista.
Afinal, como se calar em um país onde sequestravam LGBTs+ com o objetivo de humilhá-los — banho de urina é uma prática comum — quando ainda não os estupravam; onde as autoridades se recusavam a oferecer a proteção adequada, atletas poderiam ser presos só por apareceram na televisão e grupos neonazistas cometiam crimes de ódio enquanto vociferavam “Heil, Hitler”? (Muito
irônico, visto que o ditador alemão foi desafeto de Stalin durante a II Guerra Mundial). Contando com a participação de nomes famosos como Jason Collins, o primeiro jogador de NBA abertamente gay; Billie Jean King e Martina Navrátilová, ambas ex-tenistas abertamente lésbicas; o ex-patinador artístico Johnny Weir, entre outros; o documentário é essencial para aqueles que desejam compreender a questão do preconceito na Rússia, além de observar como a influência da mídia e de leis institucionalizando o preconceito atuam na direção de gerar ódio contra os oprimidos, em vias de calar as nossas lutas e nos tornar invisíveis. Quanto a Putin, nós devolvemos a ele o próprio pedido: deixem nossas crianças em paz. Porque muitas delas vão crescer cheias de dúvidas em uma sociedade repleta de ódio, pronta para atirar-lhes a primeira pedra e machucá-las quando elas nem ao menos terão maturidade e informação suficiente para entender o porquê. Felizmente, um dia o presidente será apenas uma mancha nas páginas da História, e não vamos deixar que se esqueçam daquele que, nos Jogos Olímpicos e depois deles, foi ouro em homofobia.
Por Matheus Medeiros
O GOSTO DA CHUVA NA MANHÃ DE DOMINGO A estiagem de inverno deixava tudo seco. O chão, meu nariz. Os pêssegos da plantação estavam bem menores do que o normal. Minha mãe preocupada com a festa de casamento de meu irmão. Meu pai nervoso com a possibilidade de prejuízo. Eu estava apaixonada. Meu corpo queimou quando esbarrei meu braço na mão dela. Eu tinha dezoito anos e um desejo muito mais forte do que qualquer novena pedindo pela chuva. Minha casa estava cheia por causa do casório. Durante dez dias teríamos hóspedes no sítio. Parentes da noiva que moravam longe. Carolina, prima da minha futura cunhada. Trabalhou como modelo na Itália e no Japão. Falava rápido, bebia muito vinho. Gostava de fumar e culpava a Europa pelo mau hábito. Minha tia Bárbara não aprovava o modo expansivo da moça. Havia um boato na cidade que ela tinha levado a Suzana, filha da Dona Isabel, para o caminho da perdição. Perdição, danação no inferno. Tudo isso era contra a natureza humana, meus colegas de colégio falavam, os conhecidos de minha Igreja também. Queria fugir daquele lugar, mal podia esperar para passar logo em alguma universidade. Não esperava nada. Na boleia do caminhão do Carlinhos. Foi ali mesmo. Não foi tão bom quanto eu sonhava. Ele reclamava. Era necessário relaxar, por isso doía. Virgens davam muito trabalho
Tarsila de Carvalho Fonseca nasceu na Baixada Fluminense em 1981. Graduada em Radialismo pela UFRJ, trabalha como assistente de produção audiovisual na cidade do Rio de Janeiro Participou das coletâneas “1º Concurso Nacional Sul Info de Minicontos”, pela Editora Sul Info Publicações e “Contos de São João Marcos”, pela Editora Cidade Viva.
mesmo. Pareciam secas. Carolina reclamou da secura do ar, enquanto eu limpava o chão da cozinha. Perguntou onde estava todo mundo. Na Igreja. Pedindo pela chuva e pela felicidade da futura união dos noivos. Depois passariam no salão para ajustar os últimos retoques da festa de sexta-feira. Ela lamentou, pois perdeu a hora. Achava chato casamentos, mas adorava ajudar a prima. Eu também tinha perdido a hora. Mentira, enrolei minha mãe, inventei a desculpa das lembrancinhas inacabadas. Eu queria ficar perto dela. Era só isso que eu dizia para a diretora do colégio. Ela puxou meu braço com força quando viu a gente se beijando no banheiro. Nunca ninguém soube disso, pois Marina era filha dela. Um escândalo desses nenhuma família dali seria capaz de suportar. Eu suportei a saída dela do colégio. Suportei o Carlinhos durante alguns meses para minha mãe largar do meu pé e parar de cobrar por namorados. Mas, desde a chegada de Carolina, eu já não me sentia mais tão paciente. Uma ansiedade só. Logo ela iria embora dali. Muita sede. Toda hora ela ia na cozinha. Perguntou se eu precisava de ajuda. Não, não precisava. Disse que minhas mãos eram muito bonitas, para eu tomar cuidado com o produto de limpeza. Ele poderia estragar minhas unhas. As dela eram vermelhas. Eu tinha acabado de
limpar tudo. Será que não queria dar uma volta? Pela plantação de pêssegos. Ouvimos uma trovoada. Avisei para ela não se animar. Outras vezes foi assim também e nenhuma gota nos últimos meses. Carolina falou que ali era bonito, mas a beleza e a calma do campo enganavam. A crueldade de algumas pessoas fez ela apagar aquela região da memória. Pediu para arrancar uma fruta. Estavam até mais doces. O primeiro pingo d’água do céu. Ela disse que era pé quente, ia chover. Um calor no meu rosto. Pediu para arrancar mais. Podia pegar o quanto ela quisesse! O que não faltava era pêssego! Pena que não tínhamos levado um cesto. Ela começou a segurá-los pela blusa. Depois brincou e colocou alguns dentro do sutiã. A chuva ficou um pouco mais forte, mas eu ainda sentia uma quentura. Carolina pegou uma fruta bem miúda e riu. Comparou: tão pequena quanto os seus peitos. Eu falei que não era assim. Eles eram lindos. Ela perguntou se eu não queria um pedaço. Eu disse que sim. Doce, tão doce. Chupei com força. Chuva, gosto bom, peitos, unhas vermelhas, gemidos, tudo tão intenso. Eu não queria parar. Ela não queria parar. Voltamos quando o temporal passou. Na minha casa, todos felizes pelo fim da seca. Eu também estava feliz. Molhada como a terra. Molhada por dentro. Molhada de pêssego.
Em frente ao escuro Elas tinham um pouco de aventura Um pouco de proibido Seu beijo não era apenas um prazer Era uma rebelião não escrita Elas tinham a aventura O romper de parâmetros Não era um beijo Era um grito de língua E um sorriso arteiro sai de seus lábios Uma disjunção do que esperam Um desejar indiscreto Para o dessentir prescrito E assim, com os braços entrelaçados Com a cabeça em seus ombros Elas mostram mais de si Em si mesmas e em todas Mais do que se pode sentir e ver Um sentir rebelado Um beijo amado No escuro teatro do desaparecer
Thulio Phelipe é pernambucano, 27 anos. Escritor por paixão (e por insistência) desde 2003, com cinco livros publicados de forma independente.
Era uma vez Ace. “Ace todo branco fosse assim?” Não. Ace mesmo, lido “eice”, em inglês, sabe? Vamos fingir que esse é o nome dela por agora. Ace, jovem garota, com seus vinte e poucos anos era tratada como “doente” por uns, como “rebelde” por outros, mas era quase absoluta a crença de que só lhe faltava achar “a pessoa certa” pra que entrasse nos eixos, ficasse em plena conformidade com os padrões sociais. Mas Ace, na verdade, não era uma garota. Ace era uma comunidade, também (des)conhecida como comunidade assexual, repleta de indivíduos profundamente diversos que começaram a se articular em um movimento lá pelos anos 1990, inicialmente através de um grupo de e-mails chamado Haven for the Human Amoebas (HHA, Refúgio para as Amebas Humanas). De fato, muitos ainda pensam que Ace seja uma ameba, já que insistem em dizer que é “assexuada”. Não, amiguinhos, Ace não se reproduz por fissão binária; Ace é apenas assexual. Foi só depois de uma década que Ace adotou para si uma definição de certo modo universal, apesar de ainda controversa. Hoje, no site da rede mais conhecida de toda a comunidade assexual, AVEN (Asexual Visibility and Education Network), encontra-se em letras garrafais a definição: “assexual é uma pessoa que não experimenta atração sexual”. Parece simples, porém é incrível quantas perguntas e, sobretudo, quantos estereótipos são direcionados a Ace. “Ah, mas você não é frígida... é?” Não, Ace não é frígida. A frigidez se configura como um transtorno sexual, um “problema a ser resolvido”. Já Ace... Ace é apenas assexual. Sabe como a pessoa que só se atrai pelo mesmo gênero é chamada de homossexual? E como a pessoa que se atrai por dois gêneros é chamada de bissexual? A pessoa que não se atrai por nenhum deles é
Ace
chamada assexual. E se não sentir atração por um certo grupo de pessoas (um certo gênero, por exemplo) não é doença, por que é tão absurdo imaginar uma orientação sexual que consista em não sentir atração sexual por nenhum grupo? “Espera aí... Então você é virgem?” Ace pode ou não ser virgem, e isso não faz dela mais ou menos assexual. A orientação sexual de uma pessoa é aqui definida pelos grupos a quem sua atração sexual se direciona... Agora, se uma pessoa homossexual fizer sexo com uma pessoa de outro gênero, ela deixa de ser homossexual? Quantas pessoas, antes de terem coragem de se assumir, não se envolveram em relacionamentos heterossexuais e nem por isso deixaram de ser homossexuais? E quantas pessoas sabem que são hétero mesmo sendo virgens? “Mas então você não gosta de sexo, certo?” Ace pode ou não gostar de sexo, assim como pode ou não gostar de se masturbar. É só pensar que as pessoas têm necessidades biológicas a satisfazer, apesar de algumas viverem muito bem sem isso. Há quem sinta repulsa por sexo e/ou atividades sexuais, quem veja como algo neutro e quem tenha uma atitude positiva quando se trata do famigerado coito; vai depender da pessoa. Inclusive, é possível a pessoa gostar de beijar e não gostar de sexo... ou vice-versa. “Você só não encontrou a pessoa certa.” É, porque lésbicas só não encontraram o homem certo pra fazer elas virarem hétero, assim como homens gays não encontraram a mulher certa e, é claro, pessoas hétero só não encontraram a pessoa certa do mesmo gênero pra que sejam convertidas à homossexualidade. Como diria uma famosa filósofa pós moderna: “ah pelo amor de Deus, cai na realidade” (BAHLS, Nicole, 2012) “Então você não se relaciona com ninguém, né?” E sexo por acaso é sinônimo de amor? Ser assexual não quer dizer ser nec-
essariamente arromântico. (Arromântico? Aromático? Anel de benzeno? Quê? Não, monamu, arromântica é a pessoa que não se atrai romanticamente por nenhum gênero.) A pessoa assexual pode muito bem se apaixonar, amar, ter atração romântica... Mas também pode não ter. De– o quê? Depende. Então recapitulando... Ace pode transar? Pode, mas não é obrigada. Pode se masturbar? Pode, mas não é obrigada. Pode gostar de sexo? Pode, mas não é obrigada. Pode gostar de beijo? Pode, mas não é obrigada. Pode se apaixonar? Pode, mas não é obrigada. Isso porque já dizia o art 5º, II da Constituição da República “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Ou, nas palavras de MC Trans (2015), “eu não sou obrigada a nada, a nada”. Inclusive, Ace nem é obrigada a ser do extremo do espectro. A comunidade assexual também abarca as pessoas ditas pertencentes à “zona cinza”, que sentem alguma – porém limitada – atração sexual. Existem, por exemplo, os grey-assexuais (ou cinza-assexuais), cuja atração sexual por outros, por ser tão limitada, afeta suas experiências e percepção de mundo de modo a separá-los dos alossexuais (os “sexuais”). Há também os demissexuais, que, contrariamente à lenda, não se atraem exclusivamente pela Demi Lovato. A menos que tenham formado um laço (não necessariamente romântico) com ela, porque é isso que define a demissexualidade: a atração sexual por pessoas apenas após o estabelecimento de um laço. A verdade é que a comunidade assexual é extremamente plural e só quer uma coisa – e não cito aqui MC Pikachu –: respeito. Respeito este que vem do reconhecimento de sua existência e diversidade.
Ana Flavia Vital
Existencialismo “Pensas por ti mesmo” Rodeia-te deles e tenta pensar por ti. Rodeia-te de ti e pense por eles!
Thayllany Mattos (Thatá Mattos, mas de nomes vários). Escritora desde o primeiro momento em que entendi o sentido da vida, às vezes com os olhos noutras palavras. Estudante de Psicologia, curso o 6º semestre, mas o que quero é desvendar o caminho do mundo, seja com os pés ou rodeada dessa filosofia existencialista que me gela a alma e me conforta o peito. Vivo no caos e isso me mantém viva.
Descomplica a dor do mundo. Ignora a tua dor. Entrega-te ao teu vazio existencial. Abre as tuas pernas e deixe cair em tentação: o que nunca te livrou do mal. E não digas amém em vão nem na hora da tua morte. Assim seja. Morre com honra no ventre da tua mãe gentil, da pátria que nunca te serve. Eis que tu serves a ela: tua amada, idolatrada. Mesmo sem saber o que isso significa. Eleva a tua mão direita em direção ao céu e profana o nome sagrado de um deus forjado pela tua religião já morta. Não permitas mais que o peito da terra querida, escravize teu corpo, tua vida.
(Luciano de Carvalho)
Grita a tua verdade como única verdade. Pelo teu direito de amar! Constrói o novo de novo. E joga na cara dos ímpios que o amor não é escravo do homem, amando sem distinguir gêneros, só assim se pode amar. Vive a tua vida sem as amarras, desamarra o teu desconforto e conforma o outro com teu direito. Luta pelo direito, grita o teu direito. Deita-te com homem ou mulher. Deita-te com quem quiseres. Decida por ti quem tu serás. Seja apenas aquilo que és.
Literatura contra o heterossexismo compulsório Recente estudo publicado na Revista Signo, pela pesquisadora Dra. Luana Porto, revela como a literatura do século XX lidou com a homossexualidade em seus textos
Diferentes escritores da literatura brasileira, ao longo do século XX, passaram a apresentar narrativas que tematizam de forma direta ou velada a homoafetividade. Recente pesquisa, publicada este ano, pela professora Dra. Luana Teixeira Porto, intitulada “Literatura e sociedade: uma leitura da representação da Homoafetividade em contos brasileiros do século XX”, identifica o perfil de personagens homoafetivos em contos brasileiros e sua presença e participação nos enredos dos contos. Segundo a pesquisadora, no século XX, na tentativa de representar com veracidade a rejeição da homossexualidade no Brasil, contistas brasileiros criaram histórias sobre homoafetividade. No entanto, o assunto não era tratado abertamente por todos os autores. Para Luana: “Ao observarmos contos publicados ao longo do século XX no Brasil, mesmo que não tenhamos um registro quantitativo preciso das narrativas nem um mapeamento
exato de obras e autores que abordam a homoafetividade, é possível encontrar pelo menos três tendências de abordagem da homossexualidade: homoafetividade sugerida, homoafetividade revelada, homoafetividade reprimida/condenada”. Em seu estudo, a pesquisadora cita o conto “Frederico Paciência”, de Mário de Andrade, no qual o protagonista, Juca, manifesta “ter havido entre ele e Frederico Paciência um envolvimento afetivo que não passou despercebido pelos outros, embora os dois nunca mastassem abertamente seus amores e encontros”. Assevera a estudiosa: “O conto de Mário de Andrade explora a dificuldade de concretização amorosa e sexual de dois sujeitos do mesmo sexo em uma sociedade discriminatória e conservadora”. O estudo aponta, ainda, o conto “Anotações sobre um amor urbano”, do festejado Caio Fernando Abreu, no qual um homem faz declarações de amor a outro homem, convidando-o para um romance. A homossex-
ualidade é revelada desde o início, o que leva a pesquisadora a concluir que: “A revelação da voz de personagens homossexuais, no conto, mostra que há um interesse do escritor em tratar de forma livre e sem rodeios a homoafetividade, fugindo de uma caracterização estereotipada de gays e de uma negação da homossexualidade”. Já em outro conto de Caio Fernando (“Terça-feira gorda”), a pesquisadora aponta que existe uma forte denúncia e questionamento do heterossexismo compulsório que caracteriza sociedades patriarcais em sua essência. Na opinião de Luana: “A prática do heterossexismo compulsório que resulta em práticas de repressão sexual sinaliza a existência de uma sociedade homofóbica, não preparada para a liberdade sexual e ainda afeita a regras fixas de identidade sexual”. O texto, na íntegra, pode ser encontrado neste link: https:// online.unisc.br/seer/index.php/ signo/article/view/7329.
Luana Porto, doutora em Letras
O GRITO PELA IGUALDADE NO FUNK DE MC GLENDHA A Mais de Um conversou com Mc Glendha sobre funk, militância e preconceito
Por Alana Regina
Ela nasceu em Uberaba (MG), onde mora atualmente, conciliando a música com seu salão de beleza, no qual atua como cabeleireira e maquiadora. Muito simpática, educada e consciente, Mc Glendha foi uma grata surpresa para este número da Mais de Um. Eu explico o porquê. Foi a primeira vez que entrevistei uma
Mc. A primeira vez que entrevistei uma funkeira transexual. Ao ouvir a música da Mc Glendha, eu fiquei curiosíssima sobre uma série de coisas. A Revista Mais de Um surgiu com o objetivo de apresentar a arte feita à margem, para dar espaço àqueles que não o tem. E a música de uma Mc trans era perfeita para o objetivo desta revista. Afinal, estaríamos lidando de uma
vez só com dois preconceitos muito fortes na sociedade hegemônica: o funk e a transexualidade. Apesar de se considerar transexual, Mc Glendha compõe uma canção chamada Poder Travesti, chamando a atenção para o preconceito e a violência que atingem esse grupo: “Desde quando
comecei a me apresentar em lugares diversos, percebi que o preconceito, muita das vezes, é falta de conhecimento. Temos uma imagem muito negativa perante a sociedade, tenho muito cuidado quando vou compor e acredito que minha arte pode, de alguma forma, mostrar que somos seres humanos e só queremos respeito”, explicou
Glendha. O papo com a Glendha se tornou ainda mais importante quando ela me revelou que a ideia da música Poder Travesti veio exatamente depois de uma situação discriminatória no âmbito da própria comunidade LGBT: “Fui convidada a me retirar de um ambiente LGBT pelo simples fato de ser transexual. Lidar com o preconceito não é nada fácil, quando ele vem de dentro da comunidade, fica ainda mais doloroso”. Mc Glendha tem 31 anos e muita convicção do que está dizendo na sua música, a letra não deixa dúvidas: “Se manca, preconceituoso, sua ofensa não vai me atingir”. Poder Travesti é uma música de letra simples, na tradicional batida do funk: a percussão marcante, conhecida como boom. Se é verdade que o funk chega ao Rio de Janeiro no início dos anos 70, essencialmente nas co-
munidades negras e de baixa renda da cidade, Glendha se mostra informada do impacto cultural do estilo musical que adotou: “Es-
colhi o funk por ser um estilo do gueto e por me identificar com o ritmo. O funk também é um estilo que sofre bastante preconceito, me identifico muito”. Nas palavras dos pesquisadores José Geraldo Rocha e Rodrigo Corrêa Cardoso, em pesquisa publicada no Almanaque Multidisciplinar de Pesquisa (2016): “A aceitação do funk como cultura ainda é uma questão que começou a ser bastante discutida a partir dos anos 2000”. E acrescentam: “O funk não é apenas um estilo musical, o funk é uma mistura de coisas. A música é o que aparece de frente, mas existe um mundo muito mais amplo relacionado ao funk, como: vestimentas, gírias, atitudes, letras, comportamentos, entre outros”. De fato, atitude é o que não falta na música de Mc Glendha, bem como no clipe da canção, que já começa trazendo um amargo dado para quem lhe assiste: o Brasil é o país que mais mata travestis no mundo. A esse respeito, Glendha desabafou: “O preconceito ainda é muito grande. Existem pessoas de mentes pequenas, existem líderes religiosos e políticos que incentivam o ódio entre as pessoas e despertam essa abominação pelo desconhecido, dizendo saber o que é certo para a sociedade. Muitos fazem piadas, agridem e até matam e, mesmo com esse índice absurdo, ainda nos são negados inúmeros direitos”. Mc Glendha, que já trabalhou 13 anos como Drag Queen, vem se surpreendendo com a resposta positiva do público com seu trabalho: “Por incrível que pareça, hoje, meu público maior são crianças de várias idades. Isso me deixa muito feliz pelo fato de saber que eu estou conseguindo mostrar a elas desde cedo que preconceito é coisa de gente pequena e que, acima de tudo, existe o respeito,
todos nós somos iguais”. Glendha não se sente sozinha nessa luta, “tenho amigos que acreditam e apostam nessa mensagem de igualdade que quero passar e dividem a cena comigo” e, ainda, observa: “Cada vez mais vêm surgindo travestis e transexuais na música. Aos poucos, muitas vêm perdendo o medo e mostrando seus talentos escondidos pelo preconceito”. Quanto aos olhares preconceituosos que podem se direcionar ao seu trabalho, a Mc considera que o mercado, embora bastante alternativo, requer cuidado com o uso da imagem – “Nem todo mundo enxerga o que você quer passar”. Mas, ao mesmo tempo, Glendha traz a lucidez da importância do seu trabalho no rompimento de barreiras, no grito pela igualdade e na caminhada para um mundo livre de preconceito, violência e crueldade: “Quando se coloca verdade naquilo que você faz, não tem como dar errado”.
Confira Vale a pena conferir na íntegra, também, o trabalho dos pesquisadores José Geraldo Rocha e Rodrigo Corrêa Cardoso, que citamos na entrevista (A aceitação do funk carioca como cultura): http://publicacoes.unigranrio. edu.br/index.php/amp/article/ view/3437/2105.
Para seguir a Mc Glendha: facebook.com/McGlendha Para ver o clipe de Poder Travesti: youtu.be/-sPShezE6jU Para acompanhar os cliques: @mc_glendha
Medo Haverá flores nos caules da noite. No intenso frio, o dia vai surgir. Antipétalas vermelhas. Agora (elas), cinzas a congelar Margaridas chorosas no púlpito do fenecer, Aplaudem o ódio com medo de apanhar. O medo ressurgente constante vai doer, Enquanto você insistir que é proibido amar.
Davyd Vinicius (Curitiba - 1995) é escritor/poeta e blogueiro. Publicado em diversas antologias poéticas, revistas nacionais e internacionais, é dono dos blogs Faroeste Literário, Stand Books, idealizador do projeto Tinteiro de Pixels e membro da Academia Virtual de Letras (AVL).
Ela morreu
Depois do primeiro encontro, ela morreu. Faz tempo e nos conhecemos em um site lésbico de encontros. Fomos ao Café com Letras à tarde beber alguma coisa. Trocamos comentários automáticos sobre pedalar em Belo Horizonte e os primeiros 10 minutos da conversa não passaram disso, do primeiro jorro de constrangimento. Ao fundo, Sea Above, Sky Below do Dirty Three e o chuvisco se aquietava silenciosamente. Ela, inumanamente linda, não se preocupava com o cabelo úmido. Começamos a falar das nossas rotinas e, depois de alguns minutos estávamos rindo tão alto que incomodamos alguns clientes do café. Fingiam estudar ou trabalhar, se distraíam de seus notebooks e livros para testemunhar um primeiro encontro que ia perfeitamente bem. Descobri que ela morava com um conhecido meu, que trabalhava em um bar que eu costumava frequentar. Ela ria grande, estreitando os olhos quando as risadas jogavam as bochechas quase para cima. Os dentes enfileirados com perfeição, exceto por um incisivo lateral rebelde que me fazia dizer qualquer “sim” sem pensar muito no assunto. Rodamos nossas bicicletas até a Quixote. Um amigo dela lançava um livro naquela tarde e passamos para dar um alô. Ela ia na frente, pedalando ágil, os cabelos agitados. Continuamos nosso tagarelar desmiolado do lado de fora da livraria. Depois, esperei que ela abraçasse o colega e conversasse um pouco. Enquanto isso, enviei um sms – na época, o sms era o depósito de juventude – para uma amiga: “Maíra parece não ter fim de coisas boas”. Quando fomos destrancar as bicicletas, ela disse que também escrevia. Sentamos no meio fio e começamos a falar sobre nossos sonhos, ali mesmo.
Ela gostaria de se mudar para Helsinque um dia. Eu fiz algo que tenho mania quando conheço alguém novo, que é pintar mentalmente a aparência daquela pessoa para 30 anos depois. Para onde vão as curvas que seu rosto faz quando gargalha? Fomos para a minha casa e fizemos amor no meu sofá. ... “O que acha de nos vermos de novo?”, ela perguntou. Isso foi o que mais gostei em Maíra. A maioria das pessoas está ocupada demais se protegendo de serem diretas. Maíra faz contato visual firme e impassível quando fala. Nunca nenhuma mulher me deu esses tiros gratuitamente, logo depois de conhecê-la. A congruência entre seu mundo externo e interno me causou cobiça. Eu me mudaria de apartamento dentro de alguns dias, então resolvemos esperar um pouco. Trocamos mensagens de texto por algumas semanas, adiando nosso segundo encontro por pequenos inconvenientes e incompatibilidade de agendas. Então, Maíra parou de responder. Fui, constrangida, ver Thiago, seu colega de casa. Lutei contra a reserva de pensar que ele sabia que coisa ruim eu poderia ter feito ou dito, alguma escolha ruim de roupa ou deformidade física que eu talvez tivesse para tê-la feito parar de me responder. Antes de me servir uma cerveja no balcão, Thiago congelou e disse fantasmagoricamente: “Você soube da Maíra?”. Eu mal conhecia aquela mulher, mas visitei seu atormentado e celeste mundo de uma forma que seus amigos mais próximos com certeza não tinham feito ainda. Normalmente, quando alguém com quem você se importa e gosta morre, vocês têm amigos ou familiares em comum para se solidarizar. Eu não tinha esses estabelecimentos com Maíra ainda. O funeral já havia ocorrido.
Parecia perverso tentar falar com Thiago como se ele estivesse pedalando com ela durante o acidente. É egoísta buscar consolo de uma pessoa estranha, mas conhecida, experimentar a tragédia de forma tão misteriosamente próxima. Desliguei-me para tentar organizar a confusão de imagens cinematográficas que agitavam caoticamente minha cabeça ao pensar em um acidente. Eu raramente usava o Facebook e, na minha nova casa, eu lia, com um copo de whisky, as lamentações de alguns colegas em comum que eu sequer sabia que tínhamos. Peito em calamidade. Enviei um e-mail para o site em que nos conhecemos, para que eles soubessem o que havia acontecido. Em alguns dias, seu perfil desapareceu. Imaginei outras mulheres que podem ser decepcionar ao não a encontrar mais. Quando as pessoas se tratam com insensatez, como itens, como aquele panfleto que entregam nas ruas do centro, convidando a um orçamento sem compromisso no dentista, que você pega só para garantir que fez um bem, mas joga na próxima lixeira em que passar, eu sinto que elas deviam aprender o que Maíra me ensinou: sempre que estou prestes a esquecer a humanidade de alguém ou me afastar de conexões reais, eu me lembro dos olhos negros herméticos de Maíra, trancados com paciência aos meus, esperando meu sms. Jessica de Almeida é repórter, escritora, estudante de Comunicação, autora de Cifose (em andamento). Colabora com o site Vá de Bike.
Londrina, 23 de novembro de 2015 Cara mãe, Já faz tanto tempo, não? Três anos? Quatro anos? Sua ausência passou a ser tão habitual na minha vida que passei a nem senti-la com o passar do tempo. Apesar de necessitar profundamente da sua aprovação, passei a ignorar sua existência por ser mais fácil que admitir que a pessoa a qual me desse à vida disse-me que se arrepende disso. Nesses anos todos, consegui me completar como ser humano, sinto-me bem comigo mesma, mas é como se a senhora fosse uma parte em aberto em minha vida que ficou para trás, e eu gostaria muitíssimo de ao menos dizer tudo o que sinto e, assim, poder ir em frente com a minha vida. Sei que o nome que consta na minha certidão de nascimento é Bruno de Oliveira, mas me seria de grande importância que você se refira a mim como Isadora de Oliveira. Sabe, foram precisos todos esses anos para eu finalmente me sentir como eu realmente deveria ser. Dezessete cirurgias mais uma – a qual gosto de destacar – de mudança de sexo, para que meu exterior representasse o meu interior, uma mulher. A infância perdida sendo repreendida por simplesmente ser diferente e não ter os mesmos costumes, as ofensas proferidas a mim pelos meus próprios progenitores, amores que não conseguiam me entender e me deixaram desolada, isso tudo nenhuma cirurgia irá resolver. Fiz tudo isso apenas para chamar atenção, queria me destacar na vida. Acho o máximo quando alguém na rua reconhece minha sexualidade biológica e me profere as mais odiosas palavras, quando se recusam a me servirem m determinados restaurantes em pleno século vinte e um. Foi também extremamente gratificante quando meu ex-namorado me espancou após eu ter contado meu segredo para ele, pois achei que nosso amor superaria os empecilhos. É isso que você pensa de mim não é, querida mãe? Eu me odiei, me odiei por muito tempo. Considerava-me uma aberração: eu não estava nos padrões a que meus amigos pertenciam, eu era estranha, uma menina com fisionomia de menino. Pensei inúmeras vezes em me suicidar, de que adianta ter uma vida terrena incompleta vivendo em um corpo o qual não me pertence? Fui ter com a senhora e buscar seu conforto, quem melhor que um parente para dizer que tudo ficará bem, independentemente se isso é verossímil ou não? Não me bastando o ódio, a repulsa que sentia por mim mesma, agora teria que conviver com o seu ódio e sua repulsa. Anormal. Você nasceu para ter filhos. Isso é errado. ABERRAÇÃO. Falhei como mãe. Preferia que você não tivesse nascido. Todos têm uma consciência moral fundamentada em valores próprios que nos auxilia a ter discernimento do que é certo e errado. A minha voz só me dizia que eu era errada. Minhas colegas de classe mantinham distância de mim, afinal eu era diferente: o que queriam elas com alguém que não se enquadre nos padrões da sociedade, que possua pensamentos divergentes aos delas? É aí que se enganaram. Meu exterior podia aparentar algo, mas por dentro eu gostava de brincar de boneca e trançar meus cabelos da mesma forma que elas faziam, elas apenas tiveram a oportunidade de nascer com uma aparência que expresse isso tudo, femininas. A assiduidade com que implicavam comigo, os constantes olhares de repreensão quando me vestia de uma forma ou de outra, sua falta de apoio; tudo isso de início implicou minha resignação com minha convivência terrena. Decidi reprimir os meus sentimentos e tentar viver minha vida como um garoto que queriam que eu fosse. Nunca fora tão infeliz em toda a minha vida. Não que tenha durado mais do que um ou dois meses essa minha tentativa errônea, mas fora suficientemente esclarecedora para eu me auto-afirmar como mulher. Estava na hora de me libertar da casca que me impedia de viver plenamente nesse mundo. Nesse período de transformação, no qual já estávamos separadas, sofri demasiadamente. Já com vinte e nove anos, quatorze anos de psiquiatria impostos nas costas, a autorização do meu psiquiatra e quarenta mil reais juntados a vida inteira, iniciei este processo libertador. Claro que foi extremamente doloroso, mas nada doía mais do que sentir-me uma intrusa no meu próprio corpo. A palavra chave aqui parece ser corpo, não? Mas esse não seria apenas o exterior, o que chama atenção e atrai os demais seres humanos para que possam conhecer seu interior? Não havia nada de errado com o meu interior, mas isso ninguém se interessava. Parecia-me inerente ao próprio ser humano enxergar o pior em mim antes de querer conhecer o que eu tenho de melhor a oferecer.
O transtorno de identidade de gênero é um transtorno de condição neurológica e não uma anomalia ou um transtorno mental ou psicológico. Portanto, não há como ser “revertido”, não é algo que o indivíduo escolhe para si, é uma condição própria do ser. Causas prováveis podem ser peculiaridades genéticas, banho hormonal do feto durante a gestação (excesso de algum hormônio que proporcione características do sexo oposto) e até transtorno provocado por estresse pós-traumático (quando sofrido abusos sexuais muito graves). Eu mesma possuí todos os “sintomas” que me rotulam como uma pessoa com transtorno de identidade de gênero: identificação com o gênero oposto, desconforto persistente com o próprio sexo, sentimento de inadequação ao gênero que pertence. Todos esses confrontos internos podem provocar prejuízo no sistema ocupacional ou social do indivíduo. Fizeram-me sentir como um erro, como se eu tivesse nascido deformada e ninguém me quisesse mais. No momento em que a pessoa é diagnosticada com esse transtorno por um período maior que dois anos, o que pode ser feito é auxiliá-la por tratamentos hormonais, cirurgias estéticas e a própria cirurgia de mudança de sexo. Forçá-la a aceitar sua condição de desconforto em seu próprio corpo através de tratamento psiquiátrico (exatamente o que a senhora tentou fazer comigo, não?) seria uma ação totalmente inapropriada e só acarretaria em danos emocionais para essa pessoa que já está passando por uma situação extremamente delicada. Formar um novo exterior para mim mesma, trocar de sexo, não foi uma escolha, foi uma necessidade. Nunca quis prejudicar a sua vida e a de ninguém, só queria sentir-me bem e tornar-me quem eu deveria ser esse tempo todo! Por qual motivo eu iria querer ver a senhora chorando? Você realmente achou que fiz tudo isso e passei por todo esse sofrimento por ser rebelde e ingrata? Não é culpa sua nem minha, apenas um infortúnio do destino que me designou a nascer na condição errada, o que fiz foi corrigir isso. Por mais que tudo seja uma situação muito difícil, para todos nós que passamos por ela, eu não queria ter nascido diferente. Aprendi a amar a pessoa a qual me tornei e só queria ser aceita pela senhora e por todos os outros que me olham com repulsa. Afinal, não é o que todos no fundo realmente procuramos? Aceitação de nós mesmos e alheia? Uma delas eu já consegui, a outra está me parecendo muito improvável no contexto social em que vivemos. Se alguém lhe dissesse que há algo de muito errado com a senhora, que seu psicológico é extremamente danificado, que você é nada mais do que um erro da natureza e que jamais deveria ter nascido, iria gostar? Iria lhe fazer algum bem? Então por qual motivo a senhora disse tudo isso a mim? Não me venha dizer que foi por amor, porque uma mãe que ama, apóia, entende ou pelo menos tenta entender, você só quis fechar os olhos para toda essa situação e fingir que não estava acontecendo. Você virou as costas para mim. Desde pequena você não me ensinava que preconceito étnico não tinha fundamentos e que devíamos respeitar uns aos outros independentemente de nossa cor ou origem étnica, mãe? Se discriminar uma pessoa por ter um tom de pele diferente do seu ou possuir uma origem étnica diferente da sua é um absurdo, então por que discriminar alguém simplesmente por ter nascido em um corpo errado não é um absurdo? Julgar alguém pelas suas diferenças em alguns aspectos é errado, porém em outros é certo? Só espero que um dia você e a sociedade reconheçam essa hipocrisia. Eu não preciso do seu amor, aprendi a conviver sem ele há muito tempo. Quero que saiba que, não obstante todos seus esforços para que nada disso se tornasse possível, hoje pertenço ao corpo ao qual sempre deveria ter pertencido. Sou a mulher que sempre fui, a única diferença é que minha aparência agora demonstra isso. Seria perfeito viver em um mundo onde todos se respeitam e não julgam simplesmente pelo superficial, mas enquanto a ideologia alheia não se aprimora, vivo um dia de cada vez, sempre me lembrando que o diferente me torna única, sou especial e, ao mesmo tempo, igual a todos. Seja homem, mulher, heterossexual, homossexual, transgênero, branco, negro, verde, o que importa é sentir-se bem consigo mesmo. Henrique Gabriel Barroso, 21 anos, estudante do curso de Direito na Universidade Estadual de Londrina, homossexual, militante, trabalha no escritório de Advocacia SLBARROSO. Ganhador do 8º prêmio de igualdade de gênero, feito pela CNPQ e 1º Lugar no Concurso de Contos Icoense, chamado ICOZEIRO, em 2013.