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513 anos de despejos

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Atualidade em foco

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Vinícius Mauricio de Lima Jornalista e mestrando do Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz E-mail: vmlima9@gmail.com

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Introdução

A pintura a óleo Desembarque de Cabral em Porto Seguro em 1500, de Oscar Pereira da Silva, de 1902, exposta no Museu Paulista, é frequentemente reproduzida em livros didáticos de história. Na imagem, os portugueses vêm até os índios na praia, e não o contrário, ou seja, os índios não teriam nadado até as naus. Com mais de cem anos, ela colabora com o imaginário social da chegada da escolta de Portugal ao país, afinal, naquela época, não havia máquinas fotográficas para registrar o momento. Assim, dissemina-se a ideia de que o Brasil foi “descoberto”.

O momento histórico retratado por Pereira da Silva também chama a atenção para aquilo que foi o início da apropriação de terras. Ou seria o começo das desapropriações? No século XVI, e durante os séculos seguintes, os europeus foram responsáveis pela ocupação do território americano. Atualmente, os índios e os outros grupos continuam sendo alvo da ganância pelo capital. O sentido de desapropriar é de retirar algo de seu possuidor, ainda que, muitas vezes, entendamos (ou nos façam entender) o termo às avessas, com o desapropriador como real dono.

É preciso, também, diferenciar apropriação de reintegração de posse. Esta é a retomada por quem é seu dono por lei. Entretanto, podemos considerar a reintegração como uma desapropriação. Afinal, apesar de o território ter um possuidor legal, o direito deve privilegiar uma análise do contexto, das consequências sociais e uma discussão estrutural envolvendo reforma agrária, habitação, direitos humanos etc. Aqui, vamos levar em consideração, portanto, a projeção social dessas ações, usando o termo genérico “despejo”.

Um ano de Pinheirinho

Em janeiro de 2013 completou um ano que cerca de 6 mil pessoas foram desalojadas, aproximadamente 1.500 famílias inteiras. Uma ordem judicial autorizou a reintegração de 1,3 milhão de metros quadrados de Pinheirinho, em São José dos Campos (97 quilômetros de São Paulo). A área que foi tomada pelas famílias sem-teto há mais de sete anos pertencia à massa falida da empresa Selecta S/A, holding que englobava 27 empresas pertencentes a Naji Nahas des-

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de 1981. O nome de Naji Nahas remete à operação Satiagraha, da polícia federal brasileira, iniciada em 2008. A operação tem como objetivo abrir esquemas de desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro, em que foram investigados banqueiros, diretores de banco, investidores e especuladores.

Depois de 13 ações judiciais, entre mandados, decisões e recursos, os ex-moradores de Pinheirinho ainda não possuem casa e recebem um auxílioaluguel de R$ 500. Muitas dessas famílias deixaram para trás o investimento que fizeram em casas, eletrodomésticos, além de que documentos e exames médicos ficaram perdidos. Mais de mil ações são movidas por danos morais. Há a ideia de se fazer um conjunto habitacional, para receber essas pessoas, que ainda não saiu do papel.

O país do futebol

Pinheirinho não é exceção em um país cada vez mais tomado pelos interesses privados. Na região de Americana (126 quilômetros de São Paulo), 70 famílias de agricultores da comunidade Milton Santos vêm sendo pressionadas a desocupar um terreno, onde moram há sete anos, cedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva. As terras pertenciam à família Abdalla, dona de grupos de comunicação na região, um banco e uma companhia de energia, e foi confiscada na década de 1970 para pagar dívidas ao Estado. Os moradores lutam na justiça para terem o direito à terra.

Já a comunidade Metrô-Mangueira, na região do bairro Maracanã, no Rio de Janeiro, sofre com as intervenções do Estado e do setor privado. Há 34 anos no local, onde tinham casas e comércio, mais de 800 famílias foram notificadas pela Prefeitura para o desocuparem, com a alegação de “limpar” a área para o governo estadual investir em infraestrutura para os eventos esportivos que o Brasil recebe nesta década: a Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e as Olimpía das, em 2016.

A maioria das famílias foi realocada em três condomínios na cidade, dois deles na própria comunidade da Mangueira, como exigência dos moradores. Porém, o restante terá de esperar pela construção de outro conjunto residencial. Ao passar pela região, há faixas pedindo justiça social.

Os eventos esportivos trazem diversos problemas sociais e econômicos, como a especulação imobiliária, que eleva os preços dos imóveis, principalmente nas capitais. No Rio de Janeiro, diversas comunidades foram impactadas. Também ganhou destaque a Aldeia Maracanã, o lugar foi o primeiro endereço do Museu do Índio, fundado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, onde mais de 40 famílias indígenas de diferentes etnias moravam desde 2006. O governo estadual pretende demolir o museu para construir um estacionamento para o estádio do Maracanã.

Índios e militantes resistiram por meses à invasão da polícia. Porém, contrariando a opinião de intelectuais, políticos e da sociedade civil, os índios foram retirados do museu, em março de 2013, em uma ação truculenta do batalhão de choque da polícia militar. O caso também foi denunciado em órgãos de direitos humanos. Cerca de 20 índios foram para a antiga colônia Curupaiti, na zona Oeste do Rio de Janeiro, construída para portadores de hanseníase.

O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) se pronunciou em nota oficial dizendo que não é contra a chegada dos índios, porém, pediu a reflexão da sociedade para as populações historicamente excluídas.

Em 1997, Darcy Ribeiro discursou contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, dizendo que estava tão sentimental que ouvia o Hino Nacional e sentia vontade de chorar. O Brasil que fazia o antropólogo se emocionar, certamente, não é apenas o país do futebol. Assim, não basta “homenagear” os índios na abertura desses eventos esportivos. Entretanto, essa temática merece uma reflexão mais ampla...

A questão indígena

Os índios, de Pedro Álvares Cabral a Sérgio Cabral, têm suas culturas exterminadas por uma série de fatores. A desapropriação, como fator-chave, faz com que diversas etnias percam suas raízes e as terras em que criaram laços históricos. A política indigenista no Brasil é falha desde os primórdios.

Evidente, a ganância sempre fala mais alto que as culturas de origem, não apenas as dos índios, mas das populações quilombolas e de outros grupos de importância histórica. A influência das multinacionais do agronegócio tem, diria o geógrafo Milton Santos, um discurso “alienígena e alienado” em relação a esses povos. São essas empresas que dominam o mercado e influenciam o Estado, o setor privado e a sociedade civil.

No Mato Grosso do Sul, os índios da etnia Guarani-Kaiowá ganharam destaque após divulgarem carta na internet, em que denunciam a invasão de suas terras por fazendeiros e a morte de jovens e adultos – alguns por agropecuaristas da região, outros, mais de 500, de 2000 a 2011, cometeram suicídio por falta de recursos para sobrevivência ou por pressão do desenvolvimento predatório.

A etnia Mundurukú, residente na aldeia Sawré Muybú, território de Mundurukánia, no Pará, também por meio de carta, divulgada em março de 2013, conta o drama em que vive. A ligação desses índios com o rio Tapajós é histórica, porém, vêm sendo ameaçados por forças militares para desocuparem a região por conta da construção de hidrelétricas. Os índios alegam estarem sendo impedidos de pescar, trabalhar, tomar banho e caçar. Segundo a carta: “O governo está em nossas terras como bandidos (...) para destruir o rio Tapajós e explorar nossas riquezas.” Além dos Guarani-Kaiowás e dos Mundurukús, outras etnias lutam por seus direitos à terra, como os Tupinambás, no sul da Bahia.

Ciberativismo

Um ponto de convergência interessante entre todos esses casos de despejos descritos é a questão do ativismo e do ciberativismo. Este surge para somar com o ativismo tradicional, penso. É na internet em que os grupos excluídos ganham força e voz, e encontram respaldo social, com mobilizações para reivindicar os direitos dessas populações, compartilhamento de informações sobre a situação em que vivem, troca de experiências, afirmação de suas culturas e divulgação de seus ideais.

Os despejos não ocorrem somente hoje, como sabemos. Atualmente, porém, vemos abertamente como ainda é injusto nosso sistema de habitação, apesar das conquistas com programas sociais. Além disso, observamos como nossas políticas agropecuárias atendem a interesses de uma pequena parcela da população – que não é a dos mais pobres e das culturas tradicionais.

Há, acredito, uma tendência para que os despejos se tornem mais comuns. Seja com os índios que habitam terras demarcadas ou com os moradores das cidades, os interesses mesquinhos devem vitimar mais brasileiros. A internet, como dito, deve ser um meio importante para que tomemos conhecimento e nos apropriemos dessas causas.

Retomando o pensamento de Milton Santos, certamente, o Estado e os empresários brasileiros que patrocinam e realizam essas ações são manipulados por interesses maiores, dos “macroatores”. Mas, concordando com o geógrafo, haverá um momento em que não aceitaremos mais nos submeter a essas atrocidades. Assim, olharemos para nossas reais demandas sociais, econômicas e culturais e promoveremos uma revolução. 513 anos de despejos

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