Semelhança pode mudar o sentido das palavras O jogador lamentou a derrota da sua equipe, mas explicou que não era tanto pela perda dos pontos: “Logo agora que o time vinha num crescente...”. Este é um exemplo expressivo de como a semelhança transfere para uma palavra o sentido de outra. Entre os diversos significados de crescente, não existe nenhum que se aproxime desse, muito comum no mundo do futebol. A confusão se deu por causa de um termo da música, crescendo, que indica o aumento progressivo da sonoridade. Por extensão, a palavra tornou-se sinônima de progressão, de gradação: O time vinha num crescendo (e não “crescente”). / O presidente renunciou quando a indignação popular atingiu um crescendo (Houaiss). Da mesma forma: crescendo emocional, crescendo dramático. Fenômeno idêntico ocorreu com mitificar e mistificar e seus derivados, desmitificar e desmistificar. Pela semelhança de grafia (e de sentido, é forçoso reconhecer), dificilmente se encontram esses verbos empregados segundo seu significado original. Assim, se mistificar quer dizer enganar, iludir, seu derivado com des só pode exprimir o contrário. Ou seja, desmistificar é desmascarar, desfazer o engano: O discurso do político tentou mistificar a realidade. / O adversário desmistificou os reais objetivos do seu discurso. / A polícia desmistificou o intuito beneficente da associação. Mitificar e desmitificar, por sua vez, têm relação com mito: A população mitificou a figura do presidente (deu o caráter de mito a). / O historiador pretendeu desmitificar o papel do ditador (tirar o caráter de mito de). Essa identidade transferida a outro vocábulo às vezes leva a situações inusitadas. Por isso,
cabe a pergunta: você acharia errado um texto explicar que o carro patinhou na lama? Se não errado, pelo menos estranho, não? Pois é, mas a língua tem suas surpresas. Na verdade, patinhar quer dizer, segundo o Aurélio, agitar a água à maneira dos patos, bater com os pés ou as mãos na água, andar, mover-se, pisando (em água, neve, lama, etc.). O gramático Napoleão Mendes de Almeida desenvolve esse sentido: “Fazer como o pato, que movimenta os pés sem movimentar o corpo.” Isto é, o carro patinha na lama quando suas rodas giram em falso, sem que o veículo saia do lugar. Era natural que a proximidade de grafia e sentido sepultasse o verbo original, patinhar, transformando-o em patinar. Afinal, o carro, quando derrapa na lama, não patina, isto é, não escorrega, da mesma forma que a pessoa desliza sobre patins? Fiquemos todos tranqüilos: os dicionários já aceitam patinar como patinhar. Ainda bem. Imagine estes títulos de jornal, nos quais figurou a grafia patina, se fossem escritos com o verbo na forma primitiva: Agroindústria registra expansão recorde, mas setor de grãos patinha. / Programa Primeiro Emprego patinha na falta de eficiência. Seria difícil convencer alguém de que não continham um erro de digitação. Eduardo Martins, jornalista, é autor do Manual de Redação e Estilo, de O Estado de S. Paulo, do livro Com Todas as Letras – O Português Simplificado e dos Resumões de Língua Portuguesa. FONTE: LIVRARIACULTURA news. Junho-2005, nº132 (Contribuição da aluna Lucyara Allievi – 4º ano vespertino)
Ilustrações: Beth Kok
Desenvolvimento: Estúdio Girassol