Anexo 4 intertextualidades com a literatura aniki bóbó

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Intertextualidades com a literatura José Régio (1901-1969)

Onomatopeia Menino franzino, Quase pequenino, Pequenino, triste, Neste mundo só..., Menino, desiste De que tenham dó! Desiste, menino, Que o mundo é cretino... Deixa o teu violino, Toca o sol-e-dó. Cada teu suspiro Cai ao chão no pó... Canta o tiro-liro Tiro-liro-ló. Deixa o teu violino, Que não te é destino. Desiste, menino, De que tenham dó! Menino franzino, Triste e pequenino, Pequenino, triste, Neste mundo só..., Menino, desiste! Toca o sol-e-dó. Canta o tiro-liro, repipiro-piro, Canta o repipiro, tiro-liro-ló.


Adão e Eva Olhámo-nos um dia, E cada um de nós sonhou que achara O par que a alma e a cara lhe pedia. – E cada um de nós sonhou que o achara... E entre nós dois Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente, ... Se deu, e se dará continuamente: Na palma da tua mão, Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado. – Meu nome é Adão... E em que furor sagrado Os nossos corpos nus e desejosos Como serpentes brancas se enroscaram, Tentando ser um só! Ó beijos angustiados e raivosos Que as nossas pobres bocas se atiraram Sobre um leito de terra, cinza e pó! Ó abraços que os braços apertaram, Dedos que se misturaram! Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri, Sede que nada mata, ânsia sem fim! – Tu de entrar em mim, Eu de entrar em ti. Assim toda te deste, E assim todo me dei: Sobre o teu longo corpo agonizante, Meu inferno celeste, Cem vezes morri, prostrado... Cem vezes ressuscitei Para uma dor mais vibrante E um prazer mais torturado. E enquanto as nossas bocas se esmagavam, E as doces curvas do teu corpo se ajustavam Às linhas fortes do meu, Os nossos olhos muito perto, imensos, No desespero desse abraço mudo, Confessaram-se tudo!


... Enquanto nós pairávamos, suspensos Entre a terra e o céu. Assim as almas se entregaram, Como os corpos se tinham entregado, Assim duas metades se amoldaram Ante as barbas, que tremeram, Do velho Pai desprezado! E assim Eva e Adão se conheceram: Tu conheceste a força dos meus pulsos, A miséria do meu ser, Os recantos da minha humanidade, A grandeza do meu amor cruel, Os veios de oiro que o meu barro trouxe... Eu, os teus nervos convulsos, O teu poder, A tua fragilidade Os sinais da tua pele, O gosto do teu sangue doce... Depois... Depois o quê, amor? Depois, mais nada, – Que Jeová não sabe perdoar! O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada... Continuamos a ser dois, E nunca nos pudemos penetrar!


Almada Negreiros (1893-1970)

A Verdade Eu tinha chegado tarde á escola. O mestre quiz, por força, saber porquê. E eu tive de dizer: Mestre! Quando sahi de casa tomei um carro para vir mais depressa mas, por infelicidade, deante do carro cahiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo. O mestre zangou-se comigo: Não minta! Diga a verdade! E eu tive de dizer: Mestre! Quando sahi de casa... minha mãe tinha um irmão no extrangeiro e, por infelicidade, morreu hontem de repente e nós ficámos de lucto carregado. O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! Diga a verdade!! E eu tive de dizer: Mestre! Quando sahi de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos annos sem escrever. Ora isto ainda é peor do que se elle tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de lucto carregado ou não. Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? Diga a verdade, já lh’o disse! Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria effectivamente que lhe dissesse a verdade. E, creança como era, puz todo o pezo do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração á solta confessei a verdade: Mestre! Antes de chegar á Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de côr-de-rosa! A boneca tinha a pele de cêra. Como as meninas! A boneca tinha olhos de vidro. Como as meninas! A boneca tinha tranças cahidas. Como as meninas! A boneca tinha dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...


Saul Dias (1902-1983)

Sofro de não te ver, de perder os teus gestos leves, lestos, a tua fala que o sorriso embala, a tua alma límpida, tão calma... Sofro de te perder, durante dias que parecem meses, durante meses que parecem anos... Quem vem regar o meu jardim de enganos, tratar das árvores de tenrinhos ramos?


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