Jce 15 16 sobre aniki 3 ª sessão (1)

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Juventude – Cinema – Escola 2015-2016 SOBRE Aniki Bóbó, Manuel de Oliveira (1942)

Objetivos Gerais da sessão: • • • • • •

Promover a construção de uma memória coletiva Conhecer um autor e uma obra fundamental na história do Cinema Português Analisar um filme Encontrar influências e aproximações Alargar o âmbito do filme a outras aproximações artísticas Debater questões estéticas e éticas

Objetivos específicos: • • • • • • • • •

Identificar elementos da narrativa Comparar conto e Guião Problematizar questões éticas: Bem/Mal/Culpa/Livre arbítrio Reconhecer aspetos da linguagem cinematográfica – planos: grande plano/plano médio/ plano de conjunto/ ; angulação: picado/contrapicado, movimentos de câmara: travelling Compreender a utilização da linguagem cinematográfica na construção fílmica Ver excertos de filmes que possam ser influências ou aproximações Ler textos que se aproximem tematicamente Ver obras pictóricas que se interliguem Contextualizar aspetos históricos (por exemplo, o tipo de ensino e o tipo de brincadeiras)

Sobre Manoel de Oliveira (nascido em 1908) Biografia de Oliveira http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Oliveira Explicar aos alunos que o realizador assinava os seus filmes como Manuel de Oliveira, até Amor de Perdição (1974). A partir desse filme passou a grafar: Manoel de Oliveira. Questionado sobre essa mudança o realizador disse que no tempo dele era indiferente escrever de uma ou de outra forma. (Há uma tese de Fausto Cruchinho sobre o tema, que indicia uma mudança estética na obra de Oliveira. É de notar também que é a partir desse filme que Oliveira inicia uma longa colaboração com o produtor Paulo Branco.)

Sobre o filme Ficha técnica (Dossiê do aluno) Conto – Meninos Milionários, José Rodrigues de Freitas (Revista Presença volumes n.º 28, 1930 e nº44, 1935) (anexo 1 – conto)

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Planificação das cenas relativas ao conto Meninos Milionários (A Escola/ O Jogo dos Polícias e Ladrões) (anexo 2) Planificação da cena da Varanda (anexo 3) O filme Aniki Bóbó, baseado no conto Meninos Milionários (que aparece na Ficha Técnica, como poema), vai essencialmente buscar ao conto o ambiente físico e psicológico quer da Escola, quer do jogo dos polícias e ladrões, isto é da infância de meninos pobres. No conto não há localização, protagonistas, intriga. Mas existem muitos elementos que depois irão surgir no filme: a referência à sacola, o menino que queria fugir, o jogo, os medos infantis (o diabo), o diálogo “ filosófico”, um retrato de meninos pobres que sonhavam ser ladrões para poderem “ comer bifes todos os dias” ou “ mandar fechar a escola”. O filme foi produzido por António Lopes Ribeiro * e essa marca é visível nas cenas de comédia. No filme apesar de os elementos da narrativa respeitarem o cânone, eles são também polissémicos: as personagens, não são apenas personagens-tipo e a ação tem duplos sentidos. Sendo um filme, assumido pelo autor, como uma metáfora da condição humana e daí o desenlace moral (não esquecer que foi realizado em plena II Guerra Mundial), não deixa de ser um retrato lírico sobre a infância. De notar, o lado circular do filme: começa e acaba no céu, apontando para a cosmogonia e, como diz, Manuel António Pina: Céu e terra, transcendência e realidade quotidiana, interligam-se intimamente (PINA, 2012). O filme que começou por se chamar Meninos Milionários como o conto, foi alterado pois quando Oliveira estava a fazer casting, na Ribeira do Porto, ouviu os miúdos cantar uma lengalenga, precisamente: “ Aniki Bóbó, Aniki Bébé/ Passarinho tótó/ Berimbau,cavaquinho/ salomão,sacristão/ Polícia,ladrão!” Eu não quero ser ladrão Berimbau, tótó Tenho medo da prisão Aniki Bébé, Aniki Bóbó”. Esta lengalenga reforçava o sentido lírico do filme e ecoava nos ouvidos/olhos dos espetadores. * António Lopes Ribeiro – Escreveu críticas de cinema no Sempre Fixe e no Diário de Lisboa. Em 1928 funda a Revista Imagem com Chianca de Garcia. Mais tarde funda outras duas revistas sobre cinema: Kino (1930) e Animatógrafo (1933). Em 1929 visita os principais estúdios europeus. Em 1934 é convidado por António Ferro para realizar um filme comemorativo do regime que viria a chamar-se Revolução de Maio (1937) – considerado o filme de propaganda do Regime e, na mesma linha, realizou O Feitiço do Império (1940), mas também a comédia O Pai Tirano (1941). Em 1940 funda a sua própria produtora “ Produções Lopes Ribeiro” que produz O Pátio das Cantigas, Francisco Ribeiro (1942) e no mesmo ano Aniki Bóbó (ele tinha visto Douro, faina fluvial e admirava muito Oliveira).

Um poema cinematográfico Quando realiza Aniki-Bóbó, Manoel de Oliveira é, no essencial, um documentarista. Como vimos, tal designação não pode ser tomada à letra; não pode, pelo menos, ser reduzida à noção corrente de alguém que se limita a filmar aquilo que a realidade lhe dá a ver, para depois o apresentar de forma mais ou menos organizada e “descritiva». Seja como for, através de títulos como Douro, Faina Fluvial ou Famalicão, respectivamente de 1931 e 1940, Oliveira tinha-se mostrado como retratista de realidades muito palpáveis: a zona ribeirinha do Porto, a vida quotidiana e uma feira em Famalicão.

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Nesse sentido, podemos considerar que Aniki-Bóbó parte de uma atitude documental. Basta sublinhar o partido que o cineasta sabe extrair dos cenários portuenses e, de novo, dos lugares das margens do Douro. Mas é também por aí que Aniki-Bóbó começa a ser diferente de um simples testemunho documental. Por aí, e não apenas pelo facto de naqueles cenários surgir inserida uma história típica de confronto de um grupo de crianças com o mundo dos adultos. De facto, Oliveira filma o Porto não tanto para produzir o seu «retrato», mas mais para inventar uma cidade imaginária que, como por acaso, tem como matérias principais as pedras e as ruas do Porto. A história do Carlitos e da Teresinha é assim algo mais do que uma fábula que se vem inscrever em paisagens conhecidas e facilmente reconhecíveis. Essa sua dimensão de fábula contamina todos os elementos do filme, justificando o epíteto que, historicamente, o tem acompanhado: «realismo poético». Talvez que a designação se preste a equívocos, em especial porque surge também associada a outros contextos (franceses, por exemplo) e outros autores (Marcel Carné) bem diversos e distantes do mundo de Oliveira. Seja como for, ela tem, pelo menos, um mérito: o de sublinhar que os modos de relação do cinema de Oliveira com a realidade estão longe de corresponder a uma qualquer «espontaneidade» do olhar ou das coisas olhadas. Ele é um cineasta de transfiguração da realidade, alguém que acredita no poder mágico do cinema face a essa mesma realidade. No contexto português da altura, semelhante atitude estava longe de ser indiferente. Basta recordar que Aniki-Bóbó foi feito na mesma época de grandes sucessos populares como O Pai Tirano (1941), de António Lopes Ribeiro, ou O Pátio das Cantigas (1942), de Francisco Ribeiro. Perante tais títulos, é óbvio que Aniki-Bóbó instala uma diferença importante: em vez do humor directamente ligado ao teatro de revista e às suas caricaturas sociais, o filme de Oliveira propõe, por assim dizer, uma «evasão» para um domínio em que prevalece o anti-naturalismo, e até mesmo algum apelo fantástico. Basta recordar sequências como o pesadelo de Carlitos ou da viagem que este faz pelos telhados para entregar a Teresinha a tão ambicionada boneca. São situações em que o irrealismo do tratamento dos cenários e objectos vai a par de um clima ambíguo, dir-se-ia puramente onírico. Curiosamente, estas características de Aniki-Bóbó acabariam por transformá-lo num filme premonitório (ou como tal considerado) do neo-realismo italiano. Compreende-se que assim tenha acontecido. Tal como nas obras determinantes do neo-realismo – por exemplo, Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, e Ladrão de Bicicletas (1948), de Vitorio De Sica – existe em Aniki-Bóbó um gosto especial pela exploração dos cenários naturais e também pela utilização de actores cuja presença se confunde com a do homem da rua. Não será até deslocado considerar que todos eles são filmes que se ligam através de um «sentimento estético» de atenção á vida das classes mais pobres que marcava muito cinema da época. Para além disso, porém, importa lembrar que a origem de Aniki-Bóbó não tem nada a ver com as determinações históricas do neo-realismo italiano: isto é, a preocupação – aliada ao imperativo moral – de dar conta das feridas sociais e individuais da guerra. Neste aspecto, poderemos dizer apenas que AnikiBóbó contém uma mensagem linear e ingénua de alguém que filmava na mesma altura em que grande parte da Europa sofria os efeitos dramáticos da Segunda Guerra Mundial: as crianças são, neste caso, a imagem cândida de uma pureza que o mundo dos adultos não ostentava. Porque, afinal, talvez que a força vital que faz mover estas personagens, mesmo quando a sua acção parece situar-se num clima mais ou menos idílico, seja esse medo a que se refere João Bénard da Costa a propósito de vários filmes de Oliveira: “O medo cresce na noite, na solidão, nos espaços fechados. O Porto policiado do Douro está cercado pela barra (...). O mesmo cerco espreita o pintor na cidade, tentando fechar no espaço da tela a vida que a tela destrói. Entre algumas ruas, a escola, a loja das tentações e o molhe onde brincam, estão cercados os miúdos do Aniki-Bóbó que no escuro encenam a morte e aprendem que não há fugas possíveis para os ladrões doutro espaço» (in “Manoel de Oliveira», Cineasta Portuguesa, Lisboa, Outubro 1981). Daí que valha a pena sublinhar a importância do conflito entre o Indivíduo e a Lei em todo o cinema de Oliveira. Poder-se-á considerar que Aniki-Bóbó não tem nem a maturidade nem a qualidade de elaboração formal e técnica de alguns dos filmes mais recentes de Oliveira como, por exemplo, Benilde ou a Virgem Mãe (1974) ou Francisca (1980). De qualquer modo, não será abusivo ver em Aniki-Bóbó uma espécie de ultrapassagem fabulosa (entenda-se: em forma de fábula) das limitações do quotidiano por parte do indivíduo. Oliveira filma como evidente ternura as crianças de Aniki-Bóbó porque nelas reconhece uma força criativa cuja «irracionalidade» escapa ao mundo de razões (e de Razão) dos adultos. Não será que, quase quatro décadas passadas, ele encontrou a mesma força em Teresa e Simão, os protagonistas do Amor de Perdição que o cineasta foi buscar a Camilo Castelo Branco? Se há filmes que, no interior da história do cinema português, podem ostentar a classificação de clássicos, Aniki-Bóbó é, por tudo isso, certamente um deles. Não que a sua importância se possa medir em termos

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de descendência. Quantos filmes portugueses retomaram a herança de Aniki-Bóbó? Talvez nenhum, tanto mais que o seu autor foi o primeiro a romper com as suas características. O valor clássico de Aniki-Bóbó mede-se na sua própria solidão e singularidade: um «poema cinematográfico” que assinala um marco na evolução de um dos mais importantes criadores do cinema português. In: João Lopes, Aniki Bóbó, Nº 18, Algueirão, Secretaria de Estado da Reforma Educativa, M. E., SD, 24 pp.

Preto, António (Ed.), Manoel de Oliveira: O Cinema Inventado à Letra. Público e Fundação de Serralves, Lisboa, 2008

Aniki Bóbó – Análise fílmica (narrativa e técnica) Para o 2.º ciclo selecionar alguns dos itens presentes nesta análise. Para o Ensino Secundário abordar alguns dos aspetos temáticos presentes nesta análise. Em termos de linguagem cinematográfica, dar relevo à análise da sequência da Varanda da Teresinha. Podem mesmo ler a planificação desta sequência (anexo 3). Indicação da minutagem das cenas a vermelho em cada item. Filme disponível em https://www.youtube.com/watch?v=j6niuUvJ2NU

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1. Apresentação do universo do Herói . do céu à terra (0 – 1:49) O filme começa com um flashforward que funciona como uma espécie de trailer, ao enfocar o comboio a avançar, o momento dramático da queda de Eduardito e o grito de Teresinha. Depois a câmara filma o céu durante todo o genérico, até “cair” na terra, no tempo do real, marcado pelo relógio. Esta cena não constava da planificação original do filme. . a mãe (1:50 - 2:37) (grande plano do Boneco; semi- grande plano da mão da mãe; plano médio da mãe à porta de casa com Carlitos e grande plano da sacola; plano médio da mãe a dar-lhe uma sapatada). Nunca é mostrado o rosto da mãe. Apesar de ser uma personagem que castiga, há também um lado de ternura no “piparote” que lhe dá quando ele vai para a Escola. Neste excerto destacar também a divisa moral inscrita na sacola “ Segue sempre por bom caminho”. (Esta indicação também aparece no conto). .o polícia (2:50 - 3:10) (panorâmica da figura do polícia; contra-picado; grande plano picado) Nesta cena a figura do polícia é dada com uma dimensão muto grande. Há a noção do medo da autoridade. É também curioso que Carlitos, que logo definimos como distraído, choca depois com um candeeiro. Choque com o Polícia e o candeeiro, num tom muito à Chaplin. . a paternidade/o dono da loja (3:15 - 3:45) Através da janela, em câmara subjetiva, o dono da loja mostra desejo de ser pai dos garotos que vão para a Escola. Esta personagem é a única presença paterna no filme e vai aqui iniciar uma relação de acompanhamento dos miúdos. Vai ter um papel de cuidador e moralizador. De notar ainda que entre o ângulo de visão do espetador (através do olhar do lojista) e os miúdos, se encontra a Boneca, que tem um papel tão importante no filme. Curiosamente esta personagem é, como quase todas no filme, binómica, pois tanto se enternece com os garotos, como, enquanto dono da loja, maltrata o seu empregado adolescente.

. os rivais e a Teresinha (3:50 - 4:35) Nesta cena, que tudo deve ao cinema mudo, a câmara mostra em triangulação planos de Carlitos, Eduardito e Teresinha. Não são necessárias palavras para compreendermos: Eduardito e Carlitos gostam de Teresinha, são rivais. Quanto a Teresinha, filmada na varanda em contrapicado, está num pedestal e tem reações contraditórias - ora se condói com a queda de Carlitos, ora se ri da situação. . o professor (4:38 - 6:40) Nesta sequência o Professor, no contexto da sala de aula é filmado em plano médio sentado à secretária. E quando se zanga há um travelling que o torna mais ameaçador. É de realçar também aspetos como a câmara estar à altura das crianças, quando elas colocam os bonés no cabide; O grande plano do cabide, com os bonés suspensos; a personagem do Pistarim. O Pistarim é o miúdo irreverente, que tem dificuldade em usar sapatos. Alguns viram nesta personagem, uma aproximação à personagem do Dunga, o anãozinho de A Branca de Neve e os Sete Anões, Walt Disney (1937).

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. o bom aluno (7:10 - 8:43) Outra sequência da Escola. Destaca-se a diferença de atitudes dos miúdos. O bom aluno, Pompeu, lê monocordicamente; Eduardito não sabe, nem quer saber; Carlitos distrai-se; Pistarim continua de castigo. Numa panorâmica, vemos pelos olhos de Carlitos, os elementos da sala de aula: o estrado, o ponteiro, o quadro de ardósia, o mapa, o globo terrestre, o canto dos castigos, a degradação das paredes. (De notar que Oliveira suprimiu o Crucifixo e o Retrato de Salazar, que eram símbolos presentes nas Escolas). Curiosamente há um ponto de fuga: a janela da sala: Para lá está a liberdade (filmada como uma paisagem pictórica) e aparece um gato. Este é o polo de interesse de todos os alunos e, quando se assusta e foge, todos se entristecem. . a rua (8:45 – 10:12) Em oposição ao espaço fechado da Escola, a rua é o espaço de liberdade. De notar toda a mise- en- scène do espetáculo de rua, com o cantor a cantar “ Abre-se a porta da Escola/ Sai o pardal da gaiola” e as pessoas reunidas para o ouvir. Há um friso de pessoas enquadradas como se de um quadro se tratasse. Ainda aspetos “documentais”, como a mulher na janela. Aqui curiosamente a janela tem um sentido oposto à janela da Escola, quando a mãe se zanga com o filho e fecha a janela, esta tornase um espaço de clausura. Por fim notar a alegria das crianças que atiram as sacolas ao ar. . o rio (12:55 - 14) Outro espaço de liberdade. O salto do Eduardito e a sua exibição é dado em panorâmica e plano de sequência. Comparando com a planificação, que não especifica tempo para os planos, ressalta a duração dos mesmos. É essa duração que faz sobressair a destreza de Eduardito e o prazer de nadar livremente.

2. Ação Encontro: A maçã (10:12- 12:54) Teresinha e Carlitos encontram-se “ no mesmo nível”. Carlitos quer oferecer uma maçã. Há aqui um simbolismo que remete para o Mito da criação. No entanto, Invertido: é o rapaz que oferece a maçã da tentação. (O tema do mito da criação aparece noutra obra de Oliveira: A Divina Comédia, 1991). a Teresinha (16:44 – 17:14) Esta personagem tem uma grande textura psicológica. Encarna o Feminino, mas como se pode ver nesta cena é atrevida e controladora, embora também sedutora e maternal noutras situações. É uma verdadeira personagem do Universo de Oliveira: o feminino perverso. a Boneca (17:35 - 19:30) Primeiro, os meninos ficam em êxtase perante a Boneca na montra. Depois, em plano subjetivo, a Boneca olha os meninos. A Boneca que mora na Loja das Tentações. E pela 2.ª vez, a câmara sobe ao céu, mostrando o desejo e o lado de sonho que a Boneca proporciona. O Céu que contem também o Inferno. O Bem e o Mal. Há ainda neste excerto o início de outra cena, que faz Raccord com a anterior: Carlitos desenha na sua lousa, a Teresinha. Boneca e Teresinha são a mesma entidade.

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Peripécia: o roubo (24:27 – 26:38) É o momento de transgressão do Herói. De notar todo o suspense desta sequência e o paralelismo entre Carlitos e o manequim. Carlitos que já não é senhor dos seus impulsos, como se de um boneco se tratasse. o medo (29:40 – 29:49) O medo de Carlitos de ser descoberto numa cena em que, mais uma vez temos aspetos documentais: os bois que atravessam calmamente a rua, em oposição ao bater descompassado do coração de Carlitos. o jogo (32:20 – 35:27) Numa sequência muito influenciada pelo expressionismo cinematográfico, Carlitos experimenta o medo e a culpa. A iluminação e os contrapicados ampliam as sombras, que assustam o Herói. Há mesmo uma sobreposição de imagem que transforma o Eduardito num agente da autoridade. a oferenda (35:50 – 40:50) Nesta sequência Carlitos transfigura-se na demanda do amor, ao atravessar os telhados na noite, para ir ter à trapeira de Teresinha, num paralelismo com Romeu e Julieta. O relógio bate horas, de um tempo interdito e Carlitos replica o som das badaladas, numa onomatopeia. Os telhados e a cidade são filmados com uma luz não naturalista, que reforçam o sentimento e o tempo interior do amor. Teresinha aceita a oferta e embala a Boneca como se de um bebé se tratasse. Esta sequência tem uma durée longa, eminentemente poética, pois trata da passagem de menino, Carlitos, a verdadeiro Herói que alcança o seu objetivo.

Desgraça: a acusação (48:30-48:50) Carlitos é condenado não pelo que fez, mas por algo que não fez: ter empurrado o rival. Nesta sequência trágica, a acusação é feita por um coro em silêncio. Obviamente, como no cinema mudo. o sofrimento (52:11 – 54:18) Diálogo “ filosófico” sobre as grandes questões humanas: o Medo, o Mal e a Morte. Questões colocadas pelas crianças de uma forma verdadeiramente inocente, verosímil, Constituindo assim um momento de catarse de grupo. o pesadelo (54:30- 56:00) Carlitos autopune-se através do pesadelo. Numa sequência expressionista convoca os fantasmas e os medos: o comboio (que representa a acusação e o afastamento dos amigos), o professor (a moral), a boneca que se torna um pêndulo ameaçador (a transgressão), o fogo (o Inferno) e a água em remoinho (medo da perdição), o lojista que encanta com o realejo os meninos para a sua Loja das Tentações (o encanto do pecado) e Teresinha transformada em boneca (o desejo de que ela o volte a amar). o isolamento (1:00:53-1:02:50) Acossado pelo seu próprio medo e pela incompreensão do grupo, Carlitos quer partir. Nesta cena há um lado documental forte na forma de filmar o barco e o capitão.

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Resolução: a resolução (1:03:34 – 1:06:22) Por fim, é a figura paternal do Dono da Loja das Tentações que assegura a reposição da ordem. Com um discurso moralizante adverte os meninos para que não vale a pena brigar. No que é reforçado pelo “burro” do seu empregado. A cena tem também um tom divertido, pelas frases de duplo sentido do Lojista. da Terra ao Céu (1:06 - 1:07:09) Nesta última cena do filme, o par Carlitos/Teresinha sobe ao céu segurando a boneca entre eles. Este final feliz representa a assunção da família convencional. No início a câmara descia à Terra, agora sobe às Nuvens. Há uma circularidade no filme. Um sentido de Felicidade e Redenção.

3. Ligações/aproximações e influências fílmicas Neste capítulo existem excertos de filmes anteriores a Aniki Bóbó, que podem considerar-se influências. Sobretudo o caso de Chaplin, que o próprio Oliveira assume como muito importante na sua formação cinéfila, mas também há filmes posteriores cujas aproximações podem ser interessantes para trabalhar com os alunos.

Antecedentes fílmicos Douro, faina fluvial (1931) (episódio dos bois) Na primeira obra, Oliveira realiza um Documentário (ver aula em DVD sobre Documentário). O que é interessante é que no Documentário, Oliveira tem um lado narrativo, como se pode ver neste episódio dos Bois. E, por oposição, em Aniki Bóbó há uma forte vertente documental. (Comparar com o excerto o medo ou o rio ou o isolamento).

Ligações a outros universos fílmicos anteriores ao filme: M (Matou!), Fritz Lang (1931) https://www.youtube.com/watch?v=ihDwCKWdt0c (do início a 4:15) Nesta poderosa obra-prima, primeiro filme sonoro de Fritz Lang, mais do que a descrição de um “caso autêntico” (o “vampiro” de Dusseldorf, um assassino de crianças), Lang fez o retrato de uma Alemanha mergulhada na depressão económica e nas vésperas da chegada dos nazis ao poder (…) “Com M, o som, misturando-se com a imagem, recuperou o mundo das paixões para o espaço privilegiado delas que é a mudez. O primeiro grande filme sonoro é o primeiro filme do total silêncio” (João Bénard da Costa). http://www.cinemateca.pt/CinematecaSite/media/Documentos/lang_2013.pdf Esta sequência, Expressionista, é comparável em termos visuais ao pesadelo de Carlitos (o pesadelo) ou ao Jogo dos Polícias e Ladrões (o jogo). No entanto a lengalenga cantada pelas crianças é motivo de agoiro, em oposição com a lengalenga Aniki Bóbó que se relaciona com a liberdade dos miúdos.

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Zéro de Conduite (Zero em Comportamento), Jean Vigo (1933) ZÉRO DE CONDUITE, um dos filmes mais célebres de Jean Vigo, permanece insuperável de graça e juventude: a poesia “anarquista” de Vigo num filme sobre a insurreição e a irreverência de um grupo de alunos num internato onde estão – as penas ao ralenti – alguns dos momentos mais lembrados da sua curta obra. Esteve proibido em França durante mais de uma década, e só já depois da II Guerra a proibição foi levantada . http://www.pumpkin.pt/agenda/musica-teatro-e-filmes/cinemateca-junior_zero-de- conduitee-les-mistons_2 Podem ver esse excerto em: https://pt-br.facebook.com/cinemateca.portuguesa/posts/284255241702014 Esta poderosa sequência de forte componente libertária tem relação com o gesto de atirar as sacolas ao ar em Aniki Bóbó (a rua). Notar que Manoel de Oliveira muito admirava a obra de Jean Vigo, tendo realizado Nice, à propôs de Jean Vigo (1983), em que joga com o título do filme À propôs de Nice, Jean Vigo (1930).

Relações com o cinema Português da época: O Pátio das Cantigas, Francisco Ribeiro (1942) https://www.youtube.com/watch?v=tZEWhzdWIZY (29:36- 32:10) Comparar um dos diálogos na Loja das Tentações (ver, por exemplo, o dono da loja) com esta sequência. Em ambas há cómico verbal através de trocadilhos. Há grande semelhança também por ambas as cenas se passarem em lojas. Este tipo de humor, típico da Comédia Portuguesa, não se coaduna com a obra de Oliveira. Alguns investigadores, vêem aqui a influência do Produtor António Lopes Ribeiro, que como já vimos produziu no mesmo ano O Pátio das Cantigas.

Relações com outros universos fílmicos: Ladri di biciclette (Os Ladrões de Bicicletas), Vittorio de Sica (1948) (cena final - 4.42”) Filme do neorealismo Italiano, movimento cinematográfico com preocupações humanistas e sociais, que nasceu do anti-fascismo do pós II Guerra Mundial em Itália e que, muito embora o seu curto período de existência (1943-1952), marcou indelevelmente o cinema. O neorealismo caraterizavase por filmagens ao ar livre, com atores não profissionais, com um estilo próximo do Documentário e com preocupações de crítica social. Alguns críticos vêem em Aniki, um filme precursor deste movimento estético. Há na realidade questões de proximidade, ao nível do modo de filmar e à utilização de atores não profissionais. No entanto, Oliveira não quer aqui fazer um retrato social, crítico, mas sim falar de um mundo onde o lirismo impera.

A Escola As sequências dos filmes seguintes, apresentam semelhanças com a Escola em Aniki Bóbó, quer nos elementos físicos, quer nas personagens. Les 400 coups (Os 400 Golpes), François Truffaut (1959) (sequência da sala de aula) Filme marco da Nouvelle Vague Francesa, realizado em 1959 François Truffaut, antigo crítico de cinema dos "Cahiers du Cinéma , 400Golpes" foi estreado no Festival de Cannes desse ano, onde conquistou o Prémio de Melhor Realizador.

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As características mais marcantes da Nouvelle Vague são a intransigência com os moldes narrativos do cinema estabelecido, filmando uma nova geração rebelde, através de diálogos e de uma montagem inesperada, original, sem concessões à linearidade narrativa. Este excerto mostra Antoine Doinel (alter ego de Truffaut), numa situação de sala de aula e logo nos apercebemos de como esta personagem era um rebelde. Amarcord , Frederico Fellini (1973) (sequência da sala de aula) Frederico Fellini iniciou a sua carreira com filmes próximos do neorrealismo Italiano, mas rapidamente se distanciou desta corrente, realizando uma obra com pendor autobiográfico e construindo um universo autoral muito próprio. El espíritu de la colmena (O espírito da Colmeia), Víctor Erice (1973) (sequência da sala de aula) Um filme que filma a poesia da infância, construído à volta do mito de Frankenstein, recriado no espírito de uma criança depois de ver o filme de James Whale num cinema ambulante. Este filme desenrola-se na atmosfera deprimente e opressiva de uma província espanhola nos anos que se seguiram ao fim da Guerra Civil e ao mesmo tempo num clima algo irreal.

O ecrã Comparar a cena do pesadelo de Carlitos em Aniki Bóbó , a cena do pesadelo de Dorothy em o Feiticeiro de Oz e a cena dos miúdos escondidos no celeiro em A Noite do Caçador. Em todos estes momentos fílmicos, projeta-se num ecrã os medos (seja a figura do lojista e a sua sombra, seja a janela onde Dorothy transfigura as personagens do real, seja a janela do celeiro onde os miúdos se escondem e se projeta a sombra ameaçadora do caçador que os persegue). o pesadelo (1.46”) The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz), Victor Fleming (1939) (cena inicial do furacão) The Night of the Hunter (A Sombra do caçador), Charles Laughton (1955) (cena do celeiro)

Influências fílmicas de Oliveira – Chaplin: The Kid (O Garoto de Charlot), Charles Chaplin (1921) (cena em que Charlot corre pelos telhados) Comparar a sequência em que Charlot atravessa os telhados para ir buscar o garoto que tinha sido levado para o orfanato com a sequência em que Carlitos atravessa os telhados. Em ambas as personagens transcendem-se em prole do amor. Modern Times (Tempos Modernos), Charles Chaplin (1936) (cena final do filme) Comparar o final que pode ser comparável ao final de Aniki Bóbó. Ambos mostram as personagens a caminhar para o céu, reforçando um lado idílico e de esperança. Lisbon Story (Viagem a Lisboa), Wim Wenders (1994) (cena em que Oliveira imita Charlot) Por fim Wim Wenders homenageia Manoel de Oliveira, que homenageia Chaplin. É interessante para os alunos ficarem com a imagem de Oliveira e deste momento de “gag”. Propor uma Reflexão sobre o que que Oliveira diz sobre o Cinema, a criação artística, a memória cinematográfica e o lado fantasmático da imagem cinematográfica.

Aniki e intertextualidades com outras artes Intertextualidades com a literatura Textos (anexo 4) A Verdade, Almada Negreiros Adão e Eva, Miguel Torga Poema de Saul Dias

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Intertextualidades com as artes plásticas (anexos 5 e 6) Os desenhos de Júlio (irmão de Torga) Outras obras da pintura portuguesa do século XX : Milly Possoz e Jorge Pinheiro

Algumas propostas de trabalho • • • • • •

Debate sobre valores morais: o bem e o mal. O livre arbítrio. A culpa. Os brinquedos/brincadeiras do tempo dos pais e avós versus os brinquedos/brincadeiras de hoje. A Escola antes do 25 de Abril e agora. O Rio e a sua diversidade. A população ribeirinha. A Cidade e a vida na cidade à época versus tempo presente. O movimento Presencista.

Bibliografia sobre Oliveira e Aniki Bóbó Andrade, Sérgio C., Ao Correr do Tempo - Duas Décadas com Manoel de Oliveira, Portugália Editora. Lisboa, 2008. Baecque, Antoine de e Parsi, Jacques, Conversas com Manoel de Oliveira. Campo das Letras. Porto, 1999 Bénard da Costa, João. Histórias do Cinema; Sínteses da Cultura Portuguesa. Comissariado para a Europália 91 – Portugal. INCM. 1991 Goulet, Pierre-Marie (Coord), O Olhar de Ulisses: o som e a fúria. Porto 2001/Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema. Porto, 2000. Johnson, Randal, Manoel de Oliveira, University of Illinois Press. Illinois, 2007. Lévy, Denis (Dir.), L’Art du Cinéma, n. º 21/22/23 - Manoel de Oliveira. Association Cinéma Art Nouveau. Paris, 1998. Lemière, Jacques (Org.), 5 Journées de Cinéma Portugais. Cinéluso. Rouen, 1995. (Org.), Semaine de Cinéma Portugais. Cinéluso. Rouen, 1990. Machado, Álvaro (Org.), Manoel de Oliveira. Cosac Naify. São Paulo, 2005. Matos-Cruz, José de, O Cais do Olhar: fonocinema português. Instituto Português do Cinema. Lisboa, 1981. O Cais do Olhar: o cinema português de longametragem e ficção muda. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Lisboa, 1999. Neves, Jorge (Org.), Aniki-Bóbó 50 Anos. Delegação Regional da Cultura do Norte e Outros. Porto, 1992. Parsi, Jacques, Manoel de Oliveira, Cinéaste Portugais XXe Siècle. Arts du Spetacle. Centre Culturel Caloust Gulbenkian. 2002 Pina, Luís de, Panorama do Cinema Português (das origens à actualidade). Breviários da Cultura. Terra Livre, 1978 Pina, Manuel António, Aniki-Bóbó. Assírio & Alvim. Porto, 2012. Preto, António (Ed.), Manoel de Oliveira: O Cinema Inventado à Letra. Público e Fundação Serralves. Lisboa, 2008. Oliveira, Manuel de, Aniki – Bóbó. Cine- Clube do Porto. Porto, 1963. Ribeiro, M. Félix, Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949. Cinemateca Portuguesa. 1983 Silva, Manuel Costa e (Pesquisa de Textos), Do Animatógrafo Lusitano ao Cinema Português. Câmara Municipal de Lisboa - Pelouro do Turismo. Lisboa, 1996. Torgal, Luís Reis (coord.), O cinema sob o olhar de Salazar. Temas & Debates. Lisboa, 2001. Torres, Mário Jorge, Manoel de Oliveira. Cahiers du Cinéma / Público. Paris, 2008.

JCE 15-16

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