Persépolis análise sequência descrição dos planos

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Análise de uma sequência Sequência 37: Marji sai de uma deceção amorosa com Fernando que se revelou bruscamente homossexual… 1º Plano - Depois de ter concluído que o “amor é um sentimento pequeno-burguês” mas que “Life is life”, Marji mergulhou na sua tristeza, aparentemente indiferente ao mundo e absorvendo-se na leitura do seu livro. O seu isolamento é agravado pela silhueta negra que ela forma (casaco e cabelos), sobre um banco sombrio, destacando-se de um fundo claro esfumado, evocando as brumas outonais. Levanta os olhos tristes mas atentos a uma outra presença: uma forma negra, esbatida, que vem fechar o quadro.

2º Plano - Em contra plano, do ponto de vista de Marji, o rosto claro, os cabelos louros, sorridente sobre um fundo de céu quase branco, contrastando com o presságio sombrio do plano anterior. Uma música romântica reforça esta visão idílica e uma sobreposição de imagens reforça esta visão subjetiva, substituindo o rosto de Marcus por uma bola refletindo a luz através de múltiplas facetas, sobre um céu estrelado… Evoca a festa, o prazer, mas também o cosmos (com raios que fazem pensar num satélite planetário): o destino tocou à porta do seu imaginário…

3º e 4º Planos - É a ideia de festa que predomina com uma dança sobre um fundo de estrelas em movimento. A harmonia do casal, a importância do momento são indicadas pelo perfeito ajustamento no movimento entre este plano 3 e o 4 (não reproduzido), que encerra o quadro sobre o casal, permitindo captar melhor o prazer que eles sentem e os olhares amorosos que trocam entre si. No entanto, a cor negra e o caráter completamente artificial do cenário (discoteca reduzida à noite e às estrelas de pacotilha) deixam antever um mau presságio.

5 e 6º Planos - Um novo plano, seguindo a proposta de Marcus (“Posso acompanhar-te?”), conduz a um grande plano composto de sobreposições desajustadas de uma grande rua, evocando uma cidade mais parecida com uma cidade oriental do que com Viena, levando o espetador ocidental aos clichés dos contos orientais, aos quais pertence este carro de sonho evoluindo nos ares tal com um tapete de lenda. O movimento do carro encaixa-se em dois planos (plano 6, sobre o carro mais próximo da câmara, não reproduzido), levando a uma sensação de ligeireza, de esvoaçar, de turbilhão.

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7º Plano - No interior do carro, grande plano de Marji olhando amorosamente Marcus, mas com uma certa reserva, marcada ainda pelo seu fracasso anterior: olhos muito abertos e incrédulos, boca desenhada com um traço minimalista. As estrelas em fundo prolongam o efeito do maravilhoso e da ilusão dos planos anteriores (3 a 6). Marji está nas nuvens. Quase…

8º Plano - Contra plano banal sobre Marcus olhando Marji. A banalidade do processo conduz evidentemente à da situação, vivida como excecional pela jovem, mas muito cliché para o espetador (reforçada pelas estrelas em plano de fundo). Mais do que no plano 7, a personagem parece fixar diretamente Marji (e o espetador). Somos convidados a partilhar o fascínio dela por esta aparição, esta brancura (cabelos, rosto) sobre um fundo negro, e sobretudo pelos olhos claros e profundos, necessariamente sinceros.

9º Plano – Não reproduzido. Contracampo, retoma do 7º plano. 10º Plano - Depois de um plano 9 que retoma o plano 7, encontramos o eixo do plano 6, de frente, o casal, beijando-se, através do para-brisas. Mas desta vez, a carroçaria e as personagens estão em sombra chinesa. Regresso à fórmula da lanterna mágica que contribui também para o efeito cliché. Estas sombras dissolvem as personagens e a sua personalidade: Marji perde a consciência e torna-se num fantasma, mas um fantasma sombrio. Desta escuridão surge uma ameaça…

11º Plano - Introduzido por um céu estrelado, o casal aparece em sombras chinesas, prolongando o efeito do plano anterior, mas desta vez num movimento de uma dança que transporta os corpos numa espécie de paraíso: a árvore, o lago, flores… Os dois patos fazem pensar nos cisnes em miolo de pão deslizando sobre a água depois da morte do tio Anouche. A frágil arquitetura decorativa submete-se à composição vegetal. Mas os reflexos sombrios sobre o lago continuam ameaçadores…

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12º Plano - Plano sobre Marcus que conduz Marji no seu «voo», com uma leveza que contraria as leis da gravidade. As duas silhuetas parecem idênticas, o corpo, a posição de Marji repetem os de Marcus, as echarpes brancas sobre fundo preto formam os mesmos ângulos. O acordo perfeito realiza-se fisicamente.

13º Plano - Ao acordo físico junta-se o acordo intelectual, artístico através de um novo plano. Um cenário exterior romântico de sonho, como num filme de Douglas Sirk, com a passagem de nuvens diáfanas e folhas que caem sobre o efeito do vento outonal… O caixilho da janela põe em relevo o casal: Marcus trabalhando na sua máquina de escrever, Marji observando-o atrás dele. Ele cria, ela é a musa inspiradora do grande escritor… O bug talvez esteja na própria janela que estraga a perfeição desta composição idílica.

14º Plano - Um novo plano produz uma rápida mudança de local. A estátua de Mozart - Áustria obriga -, separa de forma estranha o casal. Um movimento de câmara descendente levanos ao solo (ou melhor, à neve), o jovem futuro prodígio atingiu a glória sonhada, mas Marji é mais fútil e infantil, preferindo uma banal batalha de bolas de neve. De repente, ao receber uma bola de neve nas costas, Marcus volta-se com o rosto transfigurado, furioso, o seu êxtase narcísico interrompido. Marji fica com medo, Marcus lança-se sobre ela…

15º Plano - De um momento para o outro, Marcus acalma-se, o sonho amoroso restabelece-se, desequilibrando novamente o equilíbrio do mundo físico. O casal desce na horizontal em direção à água que poderia ser a do lago do plano 11, mas estão, no entanto, fora do tempo e do espaço, num mundo e num tempo que só pertence ao casal amoroso.

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16º Plano - Um movimento de câmara rápido para baixo prolonga este paraíso psicológico em direção a outras espécies de paraíso. Deitados de perfil sobre a relva, os olhos fechados, fumam, o que não é manifestamente, um simples cigarro. A erva, a natureza, as flores evocam os movimentos dos anos 70 que defendiam o amor, a paz, misturando a natureza e paraísos artificiais. Marji encontrou o amor e inseriu-se ao mesmo tempo na sua época e no modo de vida da juventude ocidental.

17º Plano - A câmara sobrevoa o casal a 180º. Anima-se de um movimento circular. Os rostos de Marji e de Marcus respiram calma, a satisfação, o prazer de estarem num mundo sem gravidade, físico, social, moral… As estrelas dos planos 2 a 10 foram substituídas por pequenas flores e borboletas. Mas no fim da espiral descrita pelo movimento da câmara, os rebordos do quadro ornamentam-se de folhas escuras anunciadoras de um amanhã sombrio.

18º Plano - Do delírio quase psicadélico à comédia musical. Não se sabe se se deve evocar West Side Story ou o universo de Minelli, mas Marji passou dos efeitos do ecstasy aos da MGM. A silhueta de Marji evolui sobre um fundo de cenário estilizado, de telas pintadas, tal Cyd Charisse precipitando-se com uma ligeireza dionisíaca em direção a um Gene Kelly fora de campo…

19º Plano - Numa escadaria estilizada, de formas e curvas instáveis, Marji sobe ao sétimo céu, onde a espera o seu novo amante, com um saco misterioso na mão… Um primeiro movimento esquerda-direita mostra-a galgando com alegria, em imagem real, se assim se pode dizer, as cores do negro e do branco respeitadas. Uma vez passado o patamar, num movimento inverso, a sua silhueta passa para sombra chinesa; a escadaria escureceu, no entanto, a alegria da jovem permanece inalterável…

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20º Plano - O que é que há de mais ameaçador do que o puxador de uma porta fechada? Sobretudo quando esta porta está nas trevas da escadaria de um prédio impreciso, desconhecido do espetador? Que ameaça se perfila atrás deste obstáculo? Que drama vai provocar a mão que se estende para o puxador?

21º Plano - Não! Nenhum drama no horizonte. Pelo menos, aparentemente. Marji surge do outro lado da porta em plano médio, simplesmente descritivo, estendendo o misterioso pacote, que se deduz estar cheio de croissants e de biscoitos. Mas o quadro não chega a equilibrar-se. Porta e caixilho estão inclinados como num clássico filme expressionista. O universo maravilhoso da jovem, invadido pela negrura das paredes e da porta, está prestes a ruir.

22º Plano- Contra plano: o horror visto por Marji! Em oposição violenta e radical com a obscuridade alarmante do plano anterior, aparece a brancura do rosto, da cabeleira e do olhar de Marcus, agravado pelos elementos da sua companheira… Um lençol negro em baixo do quadro sublinha a negrura da alma de Marcus, cujo olhar apenas exprime o medo da reação de Marji e não o sentimento de culpa, de sofrimento ou de amor…

23º Plano- Enquadrado pela porta aberta (com uma geometria, desta vez, completamente desequilibrada), o rosto de Marji encerra a sequência. A boca está completamente aberta, em total oposição ao plano 1, os olhos esbugalhados de horror, o braço estendido. Adivinhamos que agarra inutilmente o pacote de guloseimas dos tempos felizes, ilusões perdidas… Um grito que se adivinha ser tão angustiado como o do célebre quadro de Munch… O horror não é só psicológico, toma a dimensão metafísica, o que acentua e aumenta o fracasso precedente de Marji…

In «Persépolis» Collège au Cinéma, Dossier 169 Por Carole Wrona Edição - Centre National de la Cinématographie Dezembro de 2008 Tradução: cortesia de Emília Barata

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