Por dentro do filme sessão documentario (1)

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Ação de Formação Graça Lobo Isa Catarina Mateus

Por dentro do Filme Sessão 2 | Documentário

2015-2016


Ação de Formação | Por Dentro do Filme | Sessão 2 | Documentário

Título Por dentro do filme Subtítulo Ação de formação Número Sessão 2 Documentário Autoria Graça Lobo Isa Catarina Mateus Edição Data da última revisão Fevereiro 2016

Índice 1 Cronologia dos antecedentes do Cinema ........................................................... 3 2 Os primórdios ou o cinema de tomada de vistas................................................... 8 2.1 Thomas Alva Edison ....................................................................... 8 2.2 Auguste e Louis Lumière .................................................................. 9 2.3 Filmografia .............................................................................. 10

3 Os primórdios do Cinema Português ................................................................ 10 2

3.1 Aurélio da Paz dos Reis .................................................................. 10 3.2 Os passos incertos dos «primitivos» ................................................... 11 3.3 O espelho da nação ..................................................................... 14 3.4 Filmografia Portuguesa até ao sonoro ................................................. 16

4 O Documentário ....................................................................................... 17 4.1 O filme documentário em debate: John Grierson e o movimento documentarista britânico

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4.2 O Documentarismo no cinema ......................................................... 24 4.3 O ponto de vista no filme documentário ............................................... 33 4.4 Os Primeiros Documentários ........................................................... 39 4.5 Outros Documentários da História do Cinema ........................................ 39

5 Documentário em Portugal .......................................................................... 40 5.1 Propaganda e cinema no estado Novo – O Documentário ........................... 40 5.2 Documentaristas Portugueses ........................................................ 41 O caso de António Campos ........................................................... 41 5.4 Documentário Português Contemporâneo ........................................... 45 5.5 Outros Documentários Portugueses ................................................... 46

6 VER AINDA.............................................................................................. 46 Bibliografia ............................................................................................... 46


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1 Cronologia dos antecedentes do Cinema 1666

Isaac Newton (1642-1727) descobre a decomposição da luz branca num prisma ótico. Observa sete cores fundamentais: Violeta, indigo, azul, verde, amarelo, laranja e vermelho

1671

Athanase Kircher descreve, pela primeira vez, o princípio da lanterna mágica

1722

Jean Christophe Le Blon, gravador, realiza uma impressão a sete cores e algum tempo depois com três cores: vermelho, amarelo e azul

1727

J.H. Schulze descobre a sensibilidade dos sais de prata à luz

1750

Aesthetica, Alexander Gottlieb Baumgarten (1.º livro sobre a teoria do Belo)

1777

K. W. Scheele observa o enegrecimento do cloreto de prata no violeta e no azul do espectro luminoso James Watt (1736-1819) cria o motor a vapor

1789

Revolução Francesa

1790

Crítica da faculdade do juízo, Immanuel Kant

1793

Museu do Louvre, Paris

1795

A educação estética do Homem, Friedrich Schiller

1802

Thomas Young expõe na Royal Society de Londres a teoria da tricromia

1806

William H. Wollaston inventa a Camera Lucida

1816

Início das experiências de Niépce

1819

Herchell descobre os tiossulfatos

1826-27

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N. Niépce consegue as primeiras provas fotoquímicas sobre estanho e vidro É descoberto o processo da litografia a cores Associação entre Daguerre e Niépce

1829

Daguerre descobre a fotosensibilidade do iodeto de prata

1830

Josef Petzval, matemático húngaro, fabricou uma lente fotográfica dupla (acromática), que era cerca de 30 vezes mais rápida que as lentes Chevalier normalmente usadas. Os tempos de exposição tiveram uma redução drástica

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Ação de Formação | Por Dentro do Filme | Sessão 2 | Documentário 1832

1833

Joseph Plateau inventa o fenaciscópio Início das experiências de Fox Talbot, que culminaram em 1839 com a apresentação na British Royal Academy, de uma técnica que permitia o registo de uma imagem sobre papel sensibilizado por acção da luz Sistema de leitura Braille para cegos Talbot patenteia o processo do Calotipo

1834

1837

William George Horner inventa o zootrope Descoberta da projeção estereos - cópica por Charles Wheatstone Telégrafo magnético de Morse Daguerre anuncia o sucesso do seu processo de reprodução de imagens através da acção da luz numa placa de couro coberta de uma camada de prata

1839

Hyppolyte Bayard mostra imagens positivas diretas, obtidas pela acção da luz sobre um papel sensibilizado colocado no interior de um aparelho de "tomada de vistas" Fox Talbot anuncia o seu processo de impressão de uma imagem sobre papel por acção da luz

1840

Nos Estados Unidos, Draper conseguiu fazer alguns clichés da lua aplicando o método de Daguerre

1841

Fox Talbot elabora o processo do Calotipo (negativo).

1845

Langenheim fotografa as cataratas do Niagara através do processo panorâmico

1846

Carl Zeiss funda em Jena, Alemanha a sua fábrica de instrumentos de óptica

1847

Louis Blanquart-Évrard modifica e melhora o Calotipo de Fox Talbot

1848

A. Edmond Becquerel obtém, sem a poder fixar,uma imagem a cores do espetro luminoso

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Em Lisboa, W. Cifka instala um estúdio de retrato por daguerreotipia 1849

David Brewster inventa o estereoscópio Aparecimento do "Bico de Bunsen" e da máquina de costura Singer

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Frederick Scott Archer usa o processo da placa húmida (colódio húmido) em fotografia

1850-51

Louis Blanquart-Évrard realiza provas fotográficas sobre papel revestido com albumina Fox Talbot realiza as primeiras fotografias iluminadas com luz artificial (elétrica) Fox Talbot propõe a aplicação do processo da fotogravura

1852

Em Londres realiza-se a primeira exposição fotográfica 1853

Niepce de Saint-Victor e Lemaître inventam a heliogravura

1854-55

A guerra da Crimeia é fotografada por Roger Fenton, James Robertson e Carl Popp

1855

Nadar recebe a Patente para a ideia de utilizar a fotografia aérea na cartografia

1858

Primeiras fotografias aéreas tiradas por Nadar a bordo de um balão

1860

Carlos Relvas, grande fotógrafo Português inicia-se na fotografia

1861

Primeiras fotografias subterrâneas de Nadar, feitas nas catacumbas de Paris, com iluminação eléctrica. A energia era fornecida por “baterias” de acumuladores

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James Maxwell consegue realizar uma imagem a cores através da projeção de luz branca em três filtros de cor diferente 1861-65

Esta é considerada a primeira fotografia a cores. Na realidade são 3 fotografias, cada uma realizada com um filtro colorido diferente.

Ducos du Hauron descreve uma técnica de produção de imagens a cores 1862

Primeiro nº da "Revista Pittoresca e Descriptiva de Portugal" onde se retrata fotograficamente o património arquitectónico

1863

É exposto em Paris no "Salão dos recusados" o quadro impressionista de Manet - Déjeuner sur l´herbe Em Paris, o quadro de Manet - Olympia provoca escândalo, pelo tema

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Nadar publica o Manifeste de l'autolocomotion aérienne 1863-75

Julia Cameron realiza uma série de fotografias da sua família e de amigos num estilo próximo dos pintores pré-rafaelitas

Emile Reynaud inventa o Praxinoscópio 1877

1864

Na Escola do Exército, em Lisboa, é criada uma cadeira de fotografia. Ducos du Hauron e Charles Cros tornam públicos os processos de realização de imagens fotográficas a cores

1869

Forma-se em Lisboa o primeiro clube fotográfico do país 1871

Apresentação por Richard Leach Maddox, da placa seca de brometo de prata, que só estará funcional em 1878

1872-88

Primeiras fotografias de um cavalo a galope por Eadweard Muybridge Comercialização do celulóide nos EUA

1872

Impression, Soleil Levant, Monet Hermann Vogel junta corantes à emulsão fotográfica para a tornar mais sensível às radiações do espectro eletromagnético 6 1873

James Maxwell demonstra a possibilidade de projetar imagens a cores Emílio Biel funda a casa Fritz, um dos primeiros estabelecimentos fotográficos do Porto

1874

Em Paris um grupo de pintores (Edgar Degas, Claude Monet, Auguste Renoir, Camille Pissarro, Paul Cézanne, Sysley, Boudin e Berthe Morisot) apresenta no estúdio de Nadar (pseudónimo do fotógrafo e jornalista Gaspard-Félix Tournachon) a exposição intitulada Société Anonyme des Artistes Peintres, Sculpteurs, Graveurs Louis Leroy, crítico de arte, usa pela primeira vez a expressão impressionistas para negativamente se referir a eles

1875

Emilio Biel e Carlos Relvas introduzem a fototipia em Portugal

1877

Bell inventa o telefone e Edison o fonógrafo e o microfone

1879

Karl Klic melhora o processo da fotogravura

1880

Primeiras reproduções de fotografias, em jornais americanos

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1881

Frederick Ives inventa uma base tricromática para a reprodução a cores

1882

Daimler inventa o motor de combustão interna

1883-90

Introdução de aparelhos fotográficos de pequeno formato utilizando placas secas e rolos de filme pela firma Kodak de George Eastman e consequente separação das operações de tomada de vistas e de revelação

1884

Nos EUA, G. Eastman produz papel fotográfico negativo

1885

Os Comedores de Batatas, Vincent Van Gogh

1886

Daimler comercializa aquele que é considerado o primeiro automóvel de produção com motor de combustão interna

1887

E. Bausch apresenta o diafragma central de lâminas para objetivas No Pond, Paul Gaugin

1888

George Eastman produz a sua primeira câmara fotográfica Kodak

1889

A Kodak coloca no mercado o primeiro filme fotográfico de película transparente 7

A noite estrelada, Vicent Van Gogh Apresentação da Protar f/7,5, primeira objetiva anastigmática, pela fábrica Zeiss 1889-90

Na imprensa a fotografia substitui progressivamente a ilustração manual Construção da Torre Eiffel em Paris

Henri de Toulouse-Lautrec

1891

Thomas Rudolf Dallmeyer regista a patente da primeira teleobjetiva. Femmes de Tahiti (Sur la plage), Paul Gaugin

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1892

Frederick Ives desenvolve o primeiro sistema de fotografia a cores Nasce o Kinetoscópio de Thomas Edison

1893

Película de 35 mm para cinema

Os irmãos Lumière fazem uma demonstração pública do primeiro cinematógrafo Apresentação da Pocket Kodak 1895

Descoberta dos Raios-X Marconi desenvolve a telegrafia sem fios Descoberta da radioactividade

2 Os primórdios ou o cinema de tomada de vistas 8

2.1 Thomas Alva Edison Commercial motion pictures were invented at the Edison Laboratory between 1888 and 1893. They were actually a system of inventions: a camera, a viewing machine (the peep-hole kinetoscope), and equipment for printing, sprocket punching, and the developing of long strands of film. Perhaps none of these component parts was strictly new, but the ability of Edison and his staff to reorganize them for a specific purpose was an extraordinary technological and cultural achievement. Within a year, Edison had launched motion pictures as a commercial enterprise, remaining in the business until 1918––a 30 year involvement in motion pictures. During that period, the technical system underwent alteration and improvement: the development of the “Latham loop,” which enabled the system to handle large quantities of film; the introduction of projection; a reframing device for projectors so the film could be kept in frame; and the three-blade shutter, which reduced flicker during projection. Arguably more important was the cultural transformation of motion picture production: the shift in editorial control from exhibitor to production company and the concomitant creation of the filmmaker, the development of story films, the proliferation of specialized motion picture theaters (often called nickelodeons), and the eventual emergence and dominance of feature-length films. In 1894, Edison was the sole producer of motion pictures in the world. By 1918, the contributions of his company to film culture had become marginal, both financially and in terms of its overall place in the American industry. The film industry underwent tumultuous development and change over these three decades. During this period, the filmmaking achievements and fortunes of the Graça Lobo |Isa Catarina Mateus

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Edison Manufacturing Company fluctuated widely. By the end of 1895, motion pictures had ceased to be profitable, perceived by many to be a passing novelty or fad. Then, projection renewed interest and expanded income; even so, the following years continued to be ones of boom and bust. Edison almost left the business in 1900, coming close to selling his motion picture interests to the rival American Mutoscope and Biograph Company. When the deal faltered, he opened a Manhattan studio and his company once again became America’s preeminent film producer—in part because his legal team put many rivals out of business. The business faltered again in 1908 and1909, but by 1911-1912, Edison films were once again considered among the best. Many Edison films continued to impress critics and audiences alike as the company employed such accomplished directors as John Collins (who died in the 1919 flu epidemic) and the young Alan Crosland (who later directed The Jazz Singer, 1929). http://www.kinolorber.com/edison/d1.html

Black Maria (Estúdio mandado fazer por Edison, 1893)

2.2 Auguste e Louis Lumière 9

Concernant le cinéma, il faut retenir une chose essentielle : (Louis) Lumière est le dernier des inventeurs mais aussi le premier des cinéastes. Cela permet de redire qu’il est ridicule de laisser croire qu’il serait le créateur, solitaire et unique, d’une pratique qui à l’aube du 20esiècle va révolutionner la vie des hommes, car animer les images était un projet sur lequel, à la fin du 19e siècle, des dizaines de scientifiques et d’inventeurs du monde entier fondaient leurs recherches. Le redire et faire mémoire à leurs noms (Etienne-Jules Marey, Eadweard Muybridge, Georges Demeny, Emile Reynaud, etc.) permet aussi de leur rendre justice et d’ôter à Lumière un poids symbolique et scientifique qui fut souvent lourd à porter. En revanche, il faut évoquer la postérité artistique de Lumière et en dire tout l’importance et qu’importe si luimême aura fait assaut de modestie pour en minimiser la valeur et attribuer de nombreux mérites à ses contemporains Méliès, Pathé ou Gaumont. Car Lumière, seul puis accompagné de ses opérateurs, fut un cinéaste total et offrit d’emblée à son Cinématographe une quantité infinie de possibilités créatrices en se posant des questions de cinéaste. Il y a dans la filmographie Lumière un nombre impressionnant de chefs d’œuvre qui, s’ils n’avaient pas été réalisés par celui qui a inventé le cinéma, seraient considérés comme tels par les historiens. L’histoire du cinéma l’avait laissé au bord de la route. Se faire l’inlassable défenseur d’un « Lumière cinéaste » est donc un combat important à mener. Il existe un style, une technique et une esthétique Lumière. Une vision du monde, même. En cinéma, mais aussi en photographie. Thierry Frémaux http://www.institut-lumiere.org/lecture-zen/un-style-lumiere-une-vision-du-monde.html

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2.3 Filmografia Auguste e Louis Lumière Arrivée d´un train en gare à la Ciotat, 1895. FR. 1’ Démolition d`un mur, 1895. FR. 1’ Le jardinier et le petit espiègle, 1895. FR. 1’ Repas de bébé, 1895. FR. 1’ Sortie d`usine, 1895. FR. 1’ Le village de Namo (Gabriel Veyre), 1900. FR. 1’

Thomas Alva Edison Sandow, The Strong Man, 1894. US. https://www.youtube.com/watch?v=agvQxm_nPIw The Kiss (The May-Irwin Kiss), 1896. US. https://www.youtube.com/watch?v=IUyTcpvTPu0 Thomas Edison e Lubin, Rescaldo do Terramoto de S. Francisco,1906. US. 8`

3 Os primórdios do Cinema Português 3.1 Aurélio da Paz dos Reis Aurélio da Paz dos Reis (1863-1931) foi, ao que tudo indica, o primeiro realizador português. O cinema, porém, foi uma paixão passageira motivada pelo seu interesse mais profundo, e muito mais duradouro, pela fotografia. As imagens que este portuense registou da sua cidade natal são hoje um dos mais preciosos arquivos gráficos da vida portuguesa na viragem para o século XX, retratando os lazeres da burguesia do Porto e os eventos mundanos da época, assim como os principais acontecimentos políticos e sociais. As suas fotografias não se destinavam a publicação, mas Paz dos Reis corria a todos os naufrágios, festas populares ou comícios republicanos com um verdadeiro espírito de repórter fotográfico. Mas também por convicção política a” vontade de documentar os costumes do povo” tinha muito que ver com as suas convicções políticas, que chegaram a valer-Ihe a cadeia durante a revolta republicana de 31 de janeiro de 1891. Salvou-o além da inocência, a respeitabilidade ganha como floricultor, actividade em que se distinguiu com vários prémios em certames nacionais e internacionais. O interesse pelo cinema veio depois das primeiras sessões apresentadas no Porto por projeccionistas itinerantes estrangeiros. Tal como em muitos outros casos, a curiosidade de Paz dos Reis pelo cinema era a de um fotógrafo por um novo aparelho que, apesar de ter características radicalmente diferentes das câmaras fotográficas, partilhava com elas os mesmos princípios elementares de funcionamento. Financiado pelo seu cunhado, proprietário da famosa Camisaria Confiança, na Rua de Santa Catarina, no Porto, Paz dos Reis rumou a Paris, onde compraria, em 1896, um aparelho cinematográfico a um dos inúmeros fabricantes concorrentes dos irmãos Lumière. Achando, com alguma razão, que a projecção das imagens animadas já não era novidade absoluta em Portugal, Paz dos Reis e o seu cunhado planearam uma digressão brasileira, onde esperavam encontrar plateias que ainda não conhecessem o novo espectáculo. Tiago Baptista, A Invenção do Cinema Português, Edições Tinta da China, Lisboa, 2008

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3.2 Os passos incertos dos «primitivos» O FLORESCIMENTO DO ESPECTÁCULO CINEMATOGRÁFICO EM PORTUGAL Tudo quanto se fez em Portugal, em matéria de cinema, desde 1896 até 1912, não vai muito além do que já havia sido feito por Aurélio da Paz dos Reis, uns anos antes. Assim, quando, em 1899, Manuel da Costa Veiga funda, com o operador Bobone, a primeira empresa produtora e distribuidora de filmes: a Portugal-Film, limita-se à realização de alguns documentários (Praia de Cascais, Parada de bombeiros, Exercícios de artilharia em Belém, etc.) e reportagens das visitas a Portugal de Afonso XIII, Guilherme II, o Presidente Loubet e o Príncipe de Gales. Será preciso esperar mais uns anos para encontrarmos (em 1908) o fotógrafo João Freire Correia e Manuel Cardoso (que já tinha montado um laboratório cinematográfico) à frente de uma nova empresa, a Portugália Film, igualmente produtora de documentários e de algumas reportagens (das quais ficou famosa a do terramoto de Benavente, de que se venderam mais de vinte cópias para o estrangeiro.) Cardoso e Correia chegaram a iniciar as filmagens de uma fita de enredo, Os crimes de Diogo Alves, que não conseguiram concluir. Seria um dos intérpretes, João Tavares, quem, em 1910, levaria o projecto até ao fim. Esta segunda versão de Os crimes de Diogo Alves (de que existe uma cópia na Cinemateca Nacional.) marca o início da produção de filmes de enredo em Portugal, mas não terá imediata continuidade. Em 1911, o actor Carlos Santos filma uma Inês de Castro, cuja cópia se perdeu; e, oito anos mais tarde, Emídio R. Pratas realiza Pratas conquistador, filme medíocre de imitação dos filmes cómicos italianos e primeira farsa do cinema português. Foi outra tentativa isolada. Com ela encerra-se, por assim dizer, o «período dos primitivos» do cinema português, cerca de catorze anos mais ricos de frustrações do que de experiências e iniciativas criadoras. 2. Entretanto, o cinema, como espectáculo, assentara arraiais em Portugal. E desde logo conquistou não só um público popular, que no animatógrafo encontrava entretenimento barato, variado e acessível, mas também a burguesia e certos sectores intelectuais, que não desdenharam da novidade, quando em 1904 abriu, em Lisboa, o primeiro «animatógrafo»: o Salão Ideal, a que outros imediatamente se seguiram. No Porto, foi em 1906 que se inaugurou o primeiro cinema: o Salão HighLife. Era um grande barracão de madeira, integrado na Feira de S. Miguel, na Boavista. Dado o êxito do empreendimento, que se deve ao espírito de iniciativa de Manuel Neves, associado ao francês Edmond Pascaud, recentemente chegado ao Porto com um projector e algumas fitas da Casa Pathé, este barracão transferiu-se, nesse mesmo ano, para o Jardim da Cordoaria e, um pouco mais tarde, tomaria assento definitivo na Praça da Batalha, de que viria, anos volvidos, a tomar o nome. Por esses e outros «animatógrafos», que por volta de 1910 funcionavam em cheio, iria passar a torrencial produção dos estúdios de Vincennes e da Casa Gaumont, a par dos filmes dinamarqueses de «Nordisk», dos dramas e fitas históricas vindos de Itália, dos burlescos de Mac Sennett, dos filmes de aventuras americanos, dos primeiros «Charlots». O cinema tinha andado muito depressa, não só em França e nos Estados Unidos mas também em países que começaram a fazer filmes depois de Paz dos Reis. Portugal estava largamente ultrapassado quando, em 1918, se fundou no Porto a Invicta Film, primeira tentativa de criação, entre nós, de uma indústria cinematográfica. Em 1910 tinha-se implantado a República em Portugal. Aos novos governantes, diga-se de passagem, não escapou totalmente a importância do cinema. Infelizmente foi letra morta o decreto que introduzia o filme na Escola como instrumento auxiliar do ensino. E quando Portugal entrou na Primeira Grande Guerra Mundial, logo foi criado um serviço cinematográfico, junto do Exército, que realizou uma série de documentários. Só não apareceu um cineasta capaz de empunhar uma câmara de filmar para retratar ou exaltar a grande transformação socio-política por que o país tinha passado... Cabe aqui referir que foi Graça Lobo |Isa Catarina Mateus

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nessa altura que apareceu a primeira censura a filmes, o que veio provocar um insólito incidente: Em 1914 começava a grande conflagração mundial. Em 1917, com a Europa em fogo, já Portugal tinha entrado na Guerra, ao lado das Nações Aliadas, para cumprir os compromissos assumidos pelo tratado de aliança com a Inglaterra e salvar as colónias da cobiça das grandes potências. Este estado de emergência obrigou a medidas de excepção. E, assim, o «Diário do Governo» n.º 155, 1.ª série, de 10 de Setembro daquele ano, publicava o Decreto n.º 3354 com o seguinte teor: 1.º ― Nenhuma fita cinematográfica, de qualquer natureza ou procedência, que contenha assuntos militares ou directa ou indirectamente ou faça alusão aos exércitos beligerantes ou à Grande Guerra, poderá ser exibida nos territórios da República sem previamente ser sujeita à censura militar; 2.º ― Os importadores ou proprietários das referidas fitas devem solicitar o seu exame prévio e o competente documento de livre exibição, no Ministério da Guerra, por intermédio da 4.ª Repartição da 1.ª Direcção-Geral da Secretaria da Guerra; 3.º ― As fitas que forem encontradas em contravenção das disposições acima serão apreendidas e os seus proprietários ou empresários autuados por desobediência. Assinam este Decreto: Bernardino Machado (Presidente da República) e José Mendes Ribeiro Norton de Matos (Ministro da Guerra). Foi assim, pela primeira vez em Portugal e apenas para um caso particular, instituída a censura aos filmes. Ora, por causa desta medida, deu-se, passados poucos dias, um inesperado incidente: No dia 20 de Setembro de 1917 estreava-se no cinema Polyteama, de Lisboa, o filme Civilização, monumental película americana realizada em 1915, para a «Triangle», por Thomas Ince, tendo a empresa exploradora daquela casa de espectáculos requerido o respectivo exame prévio e, para o efeito, convidado o próprio ministro da Guerra, general Norton de Matos, a ver o filme, ao que ele acedeu, tendo sido passada, subsequentemente, pelo Ministério da Guerra, a devida autorização para o filme ser exibido livremente em público. Civilização era um filme de guerra discretamente inspirado no sangrento conflito europeu. Mas era um filme pacifista, por tendência que possivelmente teria sido incutida em Thomas Ince pelos interesses que dominavam a «Triangle». O pacifismo e a defesa da neutralidade americana caracterizavam quase todos os filmes de Hollywood, durante os dois primeiros anos das hostilidades, o que correspondia à posição da opinião pública. Em boa verdade, o filme tinha sido feito no fito de ganhar dinheiro com o pretexto de apoiar as ideias neutralistas em que assentava a campanha eleitoral do Presidente Wilson. E, de facto, tendo custado à roda de 100 000 dólares, rendeu 800 000. Não obstante, Civilização foi um dos filmes mais notáveis da sua época. Influenciado, em parte, pela tradição dinamarquesa e italiana, exerceu, por sua vez, uma grande influência sobre o cinema americano e sobre muitos realizadores europeus (entre os quais se aponta Abel Gance com o seu filme J’accuse). Tematicamente, o filme era um requisitório contra as desgraças ocasionadas pelas guerras. No decorrer da intriga, o espírito de Cristo vem à Terra (a fita tinha como subtítulo: «Aquele que regressa») para se encarnar num dos personagens. Este personagem era insultado e perseguido por ter querido restaurar a paz no mundo, mas acabava por triunfar das forças do mal. Todo o filme (realizado em décors monumentais, com uma mise-en-scène que exigiu a actuação de 40 000 figurantes) era de uma ingénua grandiloquência, carregada de pesados simbolismos, e sublinhava as consequências da guerra: privações, separação, destruição, tragédias, etc. O argumento tinha sido escrita por Gardner Sullivan e totalmente realizado por Thomas Ince, desde a «planificação», a escolha dos exteriores e a selecção dos intérpretes, até à encenação e montagem. Na Europa, em plena guerra, houve quem pensasse que o filme não era favorável à causa dos Aliados. Assim, foi manipulada uma versão, que lhe alterava um tanto o sentido, para ser exibida na Inglaterra e na França. Não sei se a cópia que veio para Portugal era ou não a versão original. Civilização foi exibido seis noites consecutivas no écran do Polyteama, sempre com grande Graça Lobo |Isa Catarina Mateus

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interesse do público. Ao sétimo dia, com grande surpresa, o cinema recebeu uma contra-fé da polícia intimando-o a retirar imediatamente o filme de exibição. Pareceu, porém, à empresa do Polyteama que a autorização passada pelo Ministério da Guerra não podia ser anulada por uma simples ordem da polícia e, assim, nesse sétimo dia decidiu cumprir o programa anunciado exibindo o filme. Sabido isto, saiu um piquete do Governo Civil para impedir que se realizasse o espectáculo, logo seguido por uma força de cavalaria da Guarda Republicana para cercar o cinema. Mais papistas do que o Papa, e de acordo com ordens recebidas, os polícias prenderam o secretário da empresa e os projeccionistas. Surdos a todas as razões, confiscaram o filme e puseram os assombrados espectadores na rua... onde tamanho aparato já fizera juntar gente. No dia seguinte, a empresa publicava um veemente protesto contra aquela ocorrência que nada justificava. E o que é verdade é que, remetidos os presos ao Tribunal, ali foram absolvidos e mandados em paz por se provar não ter havido a desobediência invocada ao abrigo do n.º 3 do citado decreto. E a fita foi restituída aos seus donos. Mas... (e aqui está o mais curioso do incidente) a polícia manteve a proibição de exibição da fita, segundo ordem do Governo Civil, sem que o Ministério da Guerra tivesse feito valer a autoridade da licença que tinha passado. «Tudo isto não faz sentido ― comenta a «Cine-Revista» no seu número 8, de 15 de Outubro de 1917 ― e perante a eloquência de tão estranhos factos fica-se sem saber como proceder em circunstâncias semelhantes, pois que, para já, não se sabe qual é a verdadeira e suprema autoridade.» Este gostinho pelas proibições prepotentes e arbitrárias viria a ser prato do dia ― e não acidente ocasional ― quando, alguns anos mais tarde, o governo de Salazar generalizou a censura a todo o género de filmes, o que não deixaria de acarretar nefastas consequências para o cinema português e para a cultura cinematográfica em Portugal. Aos cineastas portugueses iria ser negada a liberdade de expressão e de abordagem de determinados temas, e, ao filme estrangeiro, a tesoura seria aplicada com particular ferocidade. Por sorte, num período de transição para a ditadura absoluta, ainda o público português pôde ver algumas fitas (como A Mãe, de Pudovkine, A Linha Geral, de Eisenstein, A Tempestade na Ásia, de Pudovkine) que não tardariam a ser consideradas «perigosas»... mesmo com alguns cortes. Mas em 1918, quando se abria um novo capítulo na história do cinema português, com a criação da InvictaFilm, no Porto, o cinema ainda era relativamente livre. Simplesmente, o cinema português, entre 1917 e 1925, volta-se para o passado, é feito por estrangeiros e passa ao lado das transformações que se tinham dado, dos problemas que o país enfrentava, das lutas políticas que se desencadeavam, da realidade circundante que parece ignorar. E essa realidade estava nos primeiros e difíceis passos da jovem República, nas reivindicações da classe operária, no movimento revolucionário de Sidónio Pais, na entrada de Portugal na Grande Guerra, nas novas correntes intelectuais, na progressiva transformação da sociedade portuguesa. Com esta observação, eu não quero tirar o mérito (nem ensombrar a homenagem que se lhe deve) ao homem de iniciativa que foi Alfredo Nunes de Matos, o obreiro perseverante e consciente dessa organização perfeita que foi a Invicta-Film, primeira tentativa a sério de montar em Portugal uma grande empresa produtora de filmes. Na realidade, e apesar de tudo, a Invicta-Film marcou um ponto alto na história da nossa cinematografia. Se Alfredo Nunes de Matos e os seus mais directos colaboradores tivessem pensado (e ainda hoje isso se esquece) que a produção depende da exibição, assegurando o largo escoamento e expansão dos filmes produzidos pela Invicta-Film com o mesmo cuidado que foi posto na montagem da nova indústria, talvez a empresa tivesse dominado as suas crises e resistido à concorrência tentacular das cinematografias estrangeiras, nomeadamente a americana. Assim, ultrapassada rapidamente, na qualidade, por uma boa parte da produção que nos chegava de fora e abafada pela torrencial entrada de filmes estrangeiros, a Invicta-Film, chama ateada no Porto com tanta decisão e entusiasmo, apagar-se-ia em 1925. O seu nascimento, o seu apogeu e o seu declínio merecem um capítulo à parte. Henrique Alves Costa, Breve História do Cinema Português (1896-1962). Lisboa: Ministério da Educação e Investigação Científica/Secretaria de Estado da Investigação Científica/Instituto de Cultura Portuguesa, 1978.

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3.3 O espelho da nação No início dos anos vinte, o tempo do «cinema português feito por estrangeiros», várias produtoras portuenses e lisboetas, entre as quais a célebre Invicta Film, contrataram realizadores franceses e italianos, construíram estúdios e chamaram os actores de teatro mais conhecidos da época para interpretar adaptações dos grandes romances portugueses do século XIX. Nesse período, que durou apenas meia dúzia de anos (1918-1924), o objectivo do cinema português era chegar ao mundo inteiro. O mercado interno estava cheio de filmes estrangeiros, mas os casos de sucesso de algumas pequenas cinematografias europeias (sueca, dinamarquesa), não passavam despercebidos. Para competir com os serials americanos e com os melodramas franceses que inundavam os mercados nacionais de todo o mundo os produtores da Invicta Film jogaram então a cartada do exótico e do regional. Esperava-se que a estratégia resultasse não só junto dos espectadores estrangeiros em busca de um pouco de pitoresco do sul da Europa, mas também junto das colónias de emigrantes portugueses espalhadas um pouco por toda a parte e no Brasil em particular. Os filmes portugueses seriam assim uma espécie de «cartão de visita» do país, instrumentos da sua afirmação internacional como mais uma nação moderna entre as outras. Paradoxalmente, o meio de comunicação que encarnava a própria modernidade seria usado para apresentar um país arcaico, rural, soterrado sob a sua história e as suas tradições. Neste início da história do cinema em Portugal, a arte que mais parecia pertencer ao seu tempo seria, assim, praticada de olhos postos no passado. A contradição é apenas aparente porque esta utilização do cinema estava em absoluta sintonia com o que se passava em vários outros países europeus. Não havia então ideia mais actual, nem mais internacional, do que usar as ferramentas mais modernas para inventar a antiguidade das nações. Foram estes filmes mudos que fundaram o cinema português enquanto cinema nacional, acrescentando-o às várias outras tentativas do seu tempo (nas artes plásticas, na literatura, no teatro, na arquitectura, na música e até na ópera) de inventar uma nação assente sobre um conjunto de ícones patrimoniais reconhecidos e partilhados por todos. Todas aquelas aldeias minhotas, serras e conventos pareciam querer tornar materialmente visíveis os laços culturais que se pretendia unirem os portugueses uns aos outros enquanto membros da mesma nação. O cinema replicava e fazia chegar a mais pessoas que nunca o ar dos tempos. E o ar dos tempos exsudava nacionalismo. Durante as décadas seguintes, o cinema sonoro não faria mais do que continuar e actualizar esta construção cinematográfica baseada fundamentalmente nas ideias fortes da ruralidade, da tradição e da história enquanto traços constitutivos da nacionalidade. Já no cinema mudo, tanto os dramas regionalistas sem situação temporal definida como as adaptações literárias e os filmes de reconstituição histórica davam a primazia ao mundo rural, às suas sociabilidades, tradições, costumes e superstições. Este universo era tomado da literatura e das artes plásticas que aqueles filmes adaptaram tantas vezes, mas que no cinema serviram para levar um pouco mais além uma das estratégias mais operativas daquele nacionalismo cultural: a oposição entre o campo e a cidade. Com efeito, na esmagadora maioria do cinema mudo português, anos vinte adentro, é notória uma ausência sistemática da cidade ou uma utilização pontual muito depreciativa da mesma. Espécie de «fora de campo moral», a cidade não é tanto um espaço físico delimitado como uma ideia difusa que aglomera todos os vícios e todos os males. A figuração da cidade tinha como principal objectivo, assim, por à prova o campo para melhor sublinhar a superioridade das virtudes morais do modo de vida a ele associado. Em certa medida, esta oposição campo-cidade persiste nas comédias sonoras dos anos trinta e quarenta. A figuração agora omnipresente do espaço urbano nestes filmes não deve iludir-

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nos. É verdade que, se no tempo do mudo a cidade era um espaço que valia pelo que representava (sendo supérfluo apresentá-la como um espaço concreto e real), a cidade das comédias passará a ser quase sempre uma Lisboa urbanisticamente reconhecível enquanto tal. É aliás por isso que alguns autores preferem a expressão «comédias de Lisboa» em vez de «comédias à portuguesa» para designar estes filmes. O facto de os cinemas da capital fazerem de Lisboa o mais importante mercado cinematográfico interno tem que ser levado em conta para perceber a quantidade de vezes que a cidade é representada no cinema, bem como os vários sucessos de bilheteira alcançados por estes filmes. Mas a Lisboa destes filmes é uma cidade muito especial e que tem muito pouco que ver com a realidade urbana e sociológica da capital, ou de qualquer outra cidade portuguesa do mesmo período. Esta «cidade» está organizada como um conjunto de bairros que, na verdade, funcionam como aldeias. E, tal como naquelas, todas as relações entre as personagens são tuteladas por alguém (um patrão, um familiar, um vizinho) dinamitando assim a liberdade que normalmente associamos (e que o cinema mudo associava, de facto) à vida numa grande cidade cheia de pessoas que não se conhecem e que não se querem conhecer. Os citadinos das «comédias de Lisboa» vivem, trabalham e amam como os camponeses dos filmes mudos da Invicta. Muitos destes filmes foram enormes êxitos de bilheteira e, nos últimos trinta anos, tiveram uma segunda vida importante através de repetidas exibições na televisão e de várias edições em vídeo e dvd. Esta segunda vida atribuiu-lhes, retrospectivamente e numa altura em que a reputação dos filmes portugueses atravessava o seu período mais baixo, o estatuto de contraprova de que podia existir um «cinema português popular». Com tudo o que essa retrovalorização possa ter de revanchista, não deixa de ser decepcionante que tenha sido já em democracia que filmes social e politicamente tão conservadores tenham logrado reunir tamanho consenso cultural. Mas, ironia das ironias, apesar de muitos deles terem sido, com toda a certeza, ideologicamente muito mais eficazes do que os poucos filmes de propaganda que o regime salazarista produziu, não era nada disto que o director do Secretariado da Propaganda Nacional tinha em mente quando pensava em «cinema português». A citação tem barbas: para António Ferro, as comédias dos anos trinta e quarenta eram o «cancro do cinema nacional». O que o regime pretendia era, como aliás muitos cinéfilos e intelectuais modernistas que defendiam o cinema como arte, mais adaptações literárias e reconstituições históricas que pudessem propagandear o país nos festivais de cinema estrangeiros. Para apoiar este tipo de filmes, o regime criaria, logo em 1948, o primeiro sistema de apoio à produção cinematográfica. O Fundo do Cinema Nacional era financiado através de uma taxa lançada sobre os lucros da exibição, razão pela qual se revelaria muito dependente das flutuações do mercado (as receitas dependiam do número de filmes estreados cada ano). Pensado como uma solução integrada para a decadência progressiva do cinema português do final dos anos quarenta e cinquenta, o «Fundo» atribuiu a vários realizadores bolsas de estudo no estrangeiro e criou ainda uma Cinemateca Nacional, destinada a fomentar o gosto pelos filmes portugueses. Entre os anos trinta e quarenta, co-existiram assim duas correntes no catálogo das ideias, temas e formas do cinema português. De um lado, as comédias populares assentes no star system importado do teatro de revista e da música ligeira, instâncias repetidoras, por excelência, da ordem social conservadora vigente. António Lopes Ribeiro, o produtor-realizador oficioso do regime, foi o principal responsável por aquele tipo de filmes, de que O Pátio das Cantigas (1941) é um dos principais exemplos. Do outro lado, os filmes histórico- literários de prestígio, encorajados, às vezes financiados e depois activamente promovidos pelo regime, em que Leitão de Barros se especializou e de que Camões, de 1946, é o paradigma. Tiago Baptista

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3.4 Filmografia Portuguesa até ao sonoro 1896 ― Aurélio da Paz dos Reis realiza os primeiros filmes portugueses 1907 ― O Rapto duma Actriz (curta-metragem de ficção) de Lino Ferreira 1911 ― Inez de Castro, de Carlos Santos 1911 ― Os Crimes de Diogo Alves, de João Tavares 1917 ― Pratas Conquistador, de Emídio Pratas 1918 ― As Aventuras de Frei Bonifácio, de George Pallu (Invicta Film) ― Malmequer, de Leitão de Barros (curta-metragem de ficção) ― Mal de Espanha, de Leitão de Barros (curtametragem de ficção) 1919 ― A Rosa do Adro, de George Pallu (Invicta Film) ― O Comissário de Polícia, de George Pallu (Invicta Film) ― O Mais Forte, de George Pallu (Invicta Film) 1920 ― Os Fidalgos da Casa Mourisca, de George Pallu (Invicta Film) (Nascimento Fernandes e Amélia Pereira fundam uma companhia que produzirá três filmes em Barcelona, interpretados por Nascimento: Vida Nova, Nascimento Sapateiro e Nascimento Músico) ― Barbanegra, de George Pallu (Invicta Film) ― Amor Fatal, de George Pallu (Invicta Film) 1921 ― Amor de Perdição, de George Pallu (Invicta Film) ― Quando o Amor Fala, de George Pallu (Invicta Film) ― Mulheres da Beira, de Rino Lupo (Invicta Film) 1922 ― Os Faroleiros, de Maurice Mariaud (Caldevilla Films) 1922 ― As Pupilas do Sr. Reitor, de Maurice Mariaud (Caldevilla Films) ― O Destino, de George Pallu (Invicta Film) 1922 ― O Primo Basílio, de George Pallu (Invicta Film) ― Tinoco em Bolandas, de António Pinheiro (Invicta Film) ― Tempestades da Vida, de Augusto de Lacerda (Invicta Film) ― O Glorioso Raid Lisboa-Rio de Janeiro (reportagem por A. Costa Macedo sobre a travessia aérea do Atlântico por Gago Coutinho e Sacadura Cabral) (Invicta Film) 1922 ― O Centenário, de Lino Ferreira ― O Rei à Força, de Ernesto de Albuquerque ― A Sereia de Pedra, de Roger Lion 1923 ― Claudia, de George Pallu (Invicta Film) 1923 ― Lucros Ilícitos (Gold & C.ª), de George Pallu (Invicta Film) ― Os Lobos, de Rino Lupo ― O Fado, de Maurice Mariaud 1923 ― Os Olhos da Alma, de Roger Lion ― O Suicida da Boca do Inferno, de Ernesto de Albuquerque ― Aventuras de Agapito, de Roger Lion 1923 ― O Groom do Ritz, de Reinaldo Ferreira 1924 ― A Tormenta, de George Pallu (Invicta Film) ― Tragédia de Amor, de António Pinheiro (Invicta Film) 1926 ― A Calúnia, de Manuel Luís Vieira 1927 ― Vigário Futebol Club, de Reinaldo Ferreira, (Reporter X-Films) ― Rito ou Rita?, de Reinaldo Ferreira (Reporter XFilms) ― O Táxi 9297, de Reinaldo Ferreira (Reporter XFilms) ― Nazaré Praia de Pescadores, de Leitão de Barros 1928 ― Fátima Milagrosa, de Rino Lupo 1929 ― José do Telhado, de Rino Lupo 1930 ― Lisboa, Crónica de Uma Capital, de Leitão de Barros ― Douro, Faina Fluvial, de Manuel de Oliveira ― Maria do Mar, de Leitão de Barros ― Ver e Amar, de Chianca de Garcia 1930 ― Alfama (curta-metragem), de João de Almeida e Sá ― A Castelã das Berlengas, de António Leitão ― Vida de Um Soldado, de Aníbal Contreiras 1931 ― Nua, de Maurice Mariaud 1931 ― A Portuguesa de Nápoles, de Henrique Costa 1931 ― Lenda de Miragaia, filme de animação, de Raul Faria da Fonseca e António da Cunha ― A Severa, de Leitão de Barros 1932 ― Campinos do Ribatejo, de António Luís Lopes 1933 ― Inauguração do Estúdio da «Tobis Portuguesa» ― A Canção de Lisboa, de Cottinelli Telmo In ALVES COSTA Breve história do cinema português (1896-1962) Instituto de Cultura Portuguesa Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica,Fevereiro de 1978

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4 O Documentário 4.1 O filme documentário em debate: John Grierson e o movimento documentarista britânico “Documentary is a clumsy description, but let it stand.” (John Grierson, “First Principles of documentary”, 1932-34) Este texto foi construído tendo em conta a nossa experiência pessoal enquanto espectadores de cinema. Corremos o risco de esta ser apenas uma abordagem limitada. Mas, este risco pode, também, ser uma vantagem, pois tratando-se de uma experiência pessoal podemos partilhá-la e discuti-la. O visionamento de filmes, sejam eles documentário, ficção, animação, experimental ou outra, lançam sobre nós uma perturbação: surpreendem-nos pela sua semelhança com o mundo em que vivemos e o enquadramento, composição e articulação entre as imagens faz parte de um outro mundo, o mundo do cinema. Entendemos pois que o cinema não é ``uma janela aberta'' para o mundo. Esta posição não é tanto um descrédito sobre as imagens, mas uma suspeita saudável que não impede as ligações possíveis entre esses dois mundos. O filme documentário é o objecto de estudo que nos ocupa. Ao longo deste texto não pretendemos discutir as suas diferentes definições, nem propor nenhuma nova definição. Pretendemos provar que propor uma definição para o filme documentário é pensá-lo enquanto género e esta classificação de género é uma abordagem que é necessário ultrapassar. Assim, a questão essencial que nos preocupa é o modo como podemos pensar o filme documentário. Que lugar ocupa no cinema? Ou, onde o podemos colocar dentro do vasto conjunto de filmes e de diferentes concepções de cinema? Entendemos que o documentário não é tanto um género, mas mais um projecto de cinema. Os filmes que se designam de documentário conterão em si um projecto de cinema que permite pensá-los em relação aos restantes filmes e em relação ao mundo em que vivemos. Na edição de 8 de Fevereiro de 1926 de The New York Sun, John Grierson (1898-1972), fundador do movimento documentarista britânico dos anos 30, publicou um texto sobre o filme Moana (1926), de Robert Flaherty intitulado “Flaherty's Poetic Moana”. Foi neste texto que, pela primeira vez, usou o termo “documentário”: “Of course Moana, being a visual account of events in the daily life of a Polynesian youth and his family, has documentary value.'' (Grierson, 1926:25) Esse valor documental resulta da relação que a imagem estabelece com o que tem existência fora dela. “Documentário” é aqui usado enquanto adjectivo, só mais tarde, foi utilizado enquanto nome. Logo a seguir Grierson escreve: “But that, I believe, is secondary to its value as a soft breath from a sunlit island washed by a marvelous sea as warm as the balmy air. Moana is first of all beautiful as nature is beautiful. (...) And, therefore, I think Moana achieves greatness primarily through its poetic feeling for natural elements.” (ibid.) Para Grierson, Moana não é apenas um registo ou uma descrição da vida de uma família polinésia. Esse seu “valor documental” ou (dizemos nós) o “valor fotográfico” é secundário em relação à sua poética, à sua capacidade em transmitir a beleza e harmonia da relação que o homem estabelece com a natureza circundante. Essa sua capacidade só é possível pelo manuseamento das técnicas cinematográficas:

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“Moana, which was photographed over a period of some twenty months, reveals a far greater mastery of cinema technique than Mr. Flaherty's previous photoplay, Nanook of the North. In the first place, it follows a better natural outline - that of Moana's daily pursuits, which culminate in the tattooing episode, and, in the second, its camera angle, its composition, the design of almost every scene, are superb. The new panchromatic film used gives tonal values, lights and shadings that have never been equaled.” Em 1922, data do filme Nanook, o esquimó, Flaherty tinha já ido muito para além da mera descrição de modos de vida ou apresentação de hábitos estranhos, que eram as marcas dos “filmes de viagem”. Ao contrário destes, Flaherty coloca a ênfase em quem é filmado mostrando que o "Eu'' não é assim tão diferente do ``Outro'', ainda que esse ``Outro'' viva num local distante e quase inacessível. O “Outro” é apresentado na sua condição condição humana, condição que é a mesma do “Eu”. Ainda propósito de Moana escreve Grierson: “And if we regard the tatooing as a cruel procedure to which the Polynesians subject their young men - before they may take their place beside manhood - let us reflect that perhaps it summons a bravery that is healthful for the race.” A capacidade fotográfica do medium é, pois, para Grierson secundária, o que facilmente se percebe se tivermos em conta o trabalho que desenvolveu nas diferentes Film Units. Grierson colocou a estética ao serviço de uma educação nacional, o seu interesse era o papel que o cinema podia desempenhar na sociedade. “It is worth recalling that the British documentary group began not so much in affection for film per se as in affection for national education. If I am to be counted as the founder and leader of the movement, its origins certainly lay in sociological rather than aesthetic aims.”(Grierson,1937:207). Em entrevista a Ian Aitken, Basil Wright (1907-1987) - um dos realizadores da Escola de Grierson deixa clara a ideia de que estética e educação são partes interligadas nos filmes que faziam: “...I don't quite understand the distinction you are making between aesthetics and didactic films. A film must be made well in order to tell a story or express a message, and I think that the aesthetic and educational parts of the documentaries are integrated. Some of the documentary films were more aesthetic than others, but I don't accept the distinction you are trying to make.”(Ian Aitken,1998:246). Para Grierson, ao contrário de Flaherty, o documentário deve abordar os problemas sociais e económicos e a solução para esses mesmos problemas. Embora admirador de Flaherty, Grierson questiona os seus filmes por não apresentarem soluções para os problemas dos povos que filma. Grierson encontrou no documentário princípios que lhe permitiram explorá-lo como instrumento de utilidade pública. No texto “First principles of documentary”, a partir de onde se tornou famosa a definição de documentário como o “ tratamento criativo da realidade” pode ler-se: “First Principles. (1) We believe that the cinema's capacity for getting around, for observing and selecting from life itself, can be exploited in a new and vital art form. The studio films largely ignore this possibility of opening up the screen on the real world. They photograph acted stories against artificial backgrounds. Documentary would photograph the living scene and the living story. (2) We believe that the original (or native) actor, and the original (or native) scene, are better guides to a screen interpretation of the modern world. They give cinema a greater fund of material. They give it power over a million and one images. They

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give it power of interpretation over more complex and astonishing happenings in the real world than the studio mind can conjure or the studio machanician recreate. (3) We believe that the materials and the stories thus taken from the raw can be finer (more real in the philosophic sense) than the acted article. Spontaneous gesture has a special value on the screen. Cinema has a sensational capacity for enhancing the movement which tradition has formed or time worn smooth. Its arbitrary rectangle specially reveals movement; it gives it maximum pattern in space and time. Add to this that documentary can achieve an intimacy of knowledge and effect impossible to the shimsham mechanics of the studio, and the lilyfingered interpretations of the metropolitan actors. (...).” (Grierson, 1932:146-7). O documentário assume-se não apenas como uma arte nova, mas, também, vital. A capacidade do cinema em se movimentar e fazer selecções a partir da própria vida tem sido esquecida pelos estúdios; interpretar o mundo através do ecrã só poderá ser feito a partir dos gestos do actor original ou nativo e, finalmente, as histórias desta arte nova, denominada documentário, são mais reais que as representadas e criadas em estúdio, pelo que assumem um valor especial e insubstituível, intimamente ligadas que estão com o conhecimento e capazes de provocarem um efeito que as histórias dos estúdios nunca poderão atingir. Em suma, Grierson enfatisa a capacidade do documentário em captar a vida mas, o que mais ressalta desses seus princípios é a tónica colocada na capacidade do documentário agir sobre a sociedade, de ser um instrumento ao serviço de ideais, no caso, de educação nacional numa Grã-Bretanha em recuperação e transformação. Para que o documentário se assuma verdadeiramente como a melhor forma de interpelar o mundo, Grierson defende que um cineasta não pode dedicar-se simultaneamente ao documentário e ao filme de estúdio. “ (...) the young director cannot, in nature, go documentary and go studio both.'' (Grierson,1932:147) E, como já vimos acima (com Basil Wright), o documentarista tem a possibilidade - à semelhança dos filmes de estúdio (de ficção) - de exercer um trabalho criativo, ainda que ligado a um tom didáctico. Drifters (1929), que julgamos ser o único filme realizado e montado por Grierson - a partir dessa data foi sempre produtor - tem como tema a pesca do arenque no Mar do Norte. Uma pequena vila em Shetlands é o local de onde as suas personagens partem para a pesca. Não podemos dizer que se trata de um filme apenas sobre os pescadores o seu trabalho é, também, um filme sobre o mar. Neste filme que podemos dividir em 3 partes (ou sequências): partida para o mar; pesca e tempestade no mar; regresso e venda do peixe, a maior parte dos seus planos são grandes planos ou planos aproximados, esta intimididade com o trabalho dos pescadores (apenas alguns planos de rosto surgem em todo o filme, em especial quando se aproxima a tempestade e na venda de peixe) não serve apenas para mostrar as dificuldades e a dureza da pescaria, consegue colocar o trabalho enquanto valor maior desses homens. Depois de lançarem as redes, cai a noite. O que em muitos filmes seria a simples passagem da noite para o dia, aqui, enquanto os pescadores descansam, vemos o que se passa debaixo de água. Os peixes-cão e congros rondam as redes para caçar outros peixes. Ao longo desta cena, Grierson dá especial destaque às redes, o recurso a um plano anterior é sintomático: à superfície da água a rede tem um comprimento que se confunde com o próprio horizonte, as redes serão pois quase infinitas, pelo que se garante boa pescaria, para além disso fomos informados anteriormente que foram lançadas ao mar 2 milhas de rede. A sobreposição de imagens é um recurso que se destaca. Logo no início, ao sobrepor planos das máquinas do navio com o homem que lança carvão na fornalha, interligados com planos do navio a avançar em direcção ao mar alto, fica claro que o esforço e a determinação (e o uso da maquinaria, da “industrialização'”) conseguem romper a força do mar. Num outro momento, quase no final do filme é tocante a sobreposição das ondas do mar com as pessoas que circulam no Porto de Yarmouth para comprar peixe. Apesar da força das ondas, o mercado de venda de peixe faz a sua função enviando a mercadoria para o resto do mundo. Uma montagem a vários ritmos (planos mais longos no início e planos de menor duração no momento da tempestade; muito em consonância com o ritmo da montagem soviética dos anos 20) e inter-títulos que informam sobre a pesca em curso salientando os principais momentos desse trabalho ou pormenores relacionados com a pesca (por exemplo, após o inter-título 12 surge um plano em

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que a linha da rede balança à superfície da água serpenteando o seu caminho em direcção ao horizonte), não poderão deixar o espectador indiferente. O espectador é guiado pelas imagens e, em especial, pelos inter- títulos, desde uma pequena vila até ao resto do mundo. O trabalho de uma pequena vila, a pesca de arenque, é colocada numa posição de superioridade ficando implícitos os benefícios de ser produtora e o resto do mundo necessitar dessa sua produção. A partir desse seu filme, Grierson defendeu duplamente o documentário: enquanto produtor e impulsionador do chamado “movimento documentarista britânico” e através de textos em que proclamava as potencialidades do documentário. Com estas duas frentes, Grierson criou um conjunto de pressupostos estáveis. Ainda assim, este movimento teve o mérito de não ter promovido um certo desleixo estético para daí reclamar uma maior proximidade com a realidade. O conjunto de normas estéticas (no caso, nos filmes deste movimento o uso da voz off ou voice over é um dos recursos marcantes) têm uma ligação directa com o modo como cada autor entende a função das suas obras. O movimento documentarista britânico pretendia registar o presente e não o passado e dirigir-se directamente ao espectador. A Escola de Grierson sentia que a história estava a acontecer “aqui e agora” e os seus filmes faziam parte da situação social, económica, cultural e política da época. Por outro lado, as características que Grierson exaltou em Flaherty, no seu texto “Flaherty's Poetic Moana”: a consciência artística (“a man with artistic conscience”) e intenso sentimento poético (“and an intense poetic feeling”) são, de algum modo, as características que Grierson refere como necessárias para o documentarista, num dos seus textos mais citados: “First principles of documentar”(Grierson, 1932) O documentarista não deve limitarse ao registo da vida das pessoas, ele é responsável pela diferença entre os ``filmes de actualidade'' (e outras formas que utilizam o registo in loco), e o filme documentário, este será um filme superior. Os outros filmes são apenas um relato de acontecimentos; ao documentário (e documentarista) compete ser mais que isso, compete-lhe fazer um “tratamento criativo da realidade'”, o que em Grierson é o mesmo que construir um filme apresentando determinado problema e a solução governamental para esse mesmo problema. Se necessário, esse “tratamento criativo” inclui a re-construção de determinado acontecimento, uma vez que estava em causa um ideal maior de educação nacional. Em Grierson a preocupação estética ia a par da função social e pedagógica dos filmes. A ênfase colocada na instrumentalidade dos filmes cujas temáticas são os problemas sócioeconómicos da Grã-Bretanha dos anos 30, assenta numa estética em que predomina a voz off e, de um ponto de vista narrativo, a estrutura do “problem-moment” (cada um dos problemas socio-económicos é apresentado como apenas um momento de dificuldade que será superado pela intervenção governamental permitindo que a Grã-Bretanha regresse ao seu glorioso caminho em direcção ao pleno desenvolvimento). O movimento documentarista britânico é um movimento coerente e consistente nas suas propostas onde a ideia de documentário é inseparável da de género. A teoria de géneros inclui nas suas definições aspectos temáticos, narrativos e estéticos. O projecto de Grierson não descurou nenhuma dessas virtudes. A obrigatoriedade em repetir-se é o garante da sobrevivência de um género. E foi neste ponto que Grierson mais incidiu o seu trabalho, promovendo a produção de documentários. E essa produção não podia ser feita sem a definição do género que coloca cineastas e espectadores num território diferente do restante cinema. Grierson teve a capacidade de estabilizar um conjunto de pressupostos de produção, conseguiu financiamento regular para essa produção o que levou, inevitavelmente, à constituição de uma comunidade de espectadores que reconhecem e, ao mesmo tempo, garantem a sobrevivência (a manutenção) dos filmes. Toda esta organização permite

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considerar este período como a constituição do documentário enquanto género e um período marcante na história do filme documentário. “Genre'”, palavra francesa que significa ``categoria'', é um termo utilizado para uma classificação (muito eficaz) que facilita a produção, distribuição e exibição de filmes. Na teoria de géneros, impera mais a permanência de determinados pressupostos que o carácter único dos filmes e o estilo exemplar do seu autor. Francesco Casetti refere “ un acuerdo de fondo” que une quem realiza um filme e quem o contempla, o primeiro utiliza formas comunicativas estabelecidas e, o segundo, um sistema próprio de expectativas. (Cf. Casetti,1993: 304). A constituição de qualquer género é (como em Grierson) mais autoritária que libertadora, pois implica que os filmes partilhem características. “Pegar num genre com o `Western', analisá-lo e listar as suas características é supor que temos de isolar o conjunto de filmes que são `Westerns'. Mas eles só podem ser isolados com base nas `características principais' que só podem ser descobertas a partir dos próprios filmes depois de terem sido isolados. Isto é, estamos apanhados num círculo que exige primeiro que os filmes sejam isolados, para o que é necessário um critério, mas por sua vez supõe-se que o critério deve emergir das características comuns dos filmes estabelecidos empiricamente. Este `dilema empírico' tem duas soluções. Uma é classificar os filmes segundo critérios escolhidos a priori dependendo das finalidades críticas. Isto leva de novo à posição anterior em que o genre especial é redundante. A segunda é apoiar-se num consenso cultural comum sobre aquilo que constitui um `Western' e depois analisá-lo detalhadamente. Esta última é sem dúvida a raiz da maioria das utilizações degenre. É esta utilização que leva, por exemplo, à noção de convenções num genre. (...) falar de `Westerns' é (definições arbitrárias à parte) apelar a um conjunto comum de significados na nossa cultura.” (Andrew Tudor, 1973:142/143). No mínimo, para preservar a sanidade mental é necessário ultrapassar o “círculo”referido no texto, ou dito de outro modo, ultrapassar o ciclo vicioso; ciclo esse que implica pensar o cinema separado por géneros. Embora os géneros não sejam um registo absolutamente estável, se deixarmos de lado essa concepção podemos encontrar para o documentário um outro lugar dentro do cinema, liberto das amarras de pressupostos a seguir e de ideias dependentes de financiamento. A concepção de género traz consigo exclusões. Uma informação relevante é-nos dada na entrevista de Ian Aitken a Basil Wright quando este último se refere a Alberto Cavalcanti (1897-1982) - que realizou filmes na GPO Film Unit. Cavalcanti tinha um entendimento com Grierson, no mínimo, conturbado, em especial no que dizia respeito ao desenvolvimento do documentário: “B.W. - Cavalcanti believed that the documentary should become more integrated into feature film, so that the distinction between the two became less clear cut. But I don't think that Grierson really understood feature films, and so he argued the two should remain quite separate.” (Ian Aitken, 1998:252) A separação que Grierson propõe é coerente com as suas ideias. Embora reconhecesse que o termo documentário pudesse abarcar diferentes filmes, Grierson prefere separar, o que implica pensar em termos de géneros. Estabilizar uma práxis foi o maior contributo de Grierson com a evidente vantagem de, também, estabilizar uma comunidade de espectadores. Em Claiming the real (1995) Brian Winston critica severamente Grierson e a sua Escola. Entende que é necessário abandonar de vez a herança griersoniana que apenas contribuiu para que o documentário fosse considerado um filme sério com responsabilidades sociais na educação de todos; em resumo, filmes aborrecidos que ninguém está interessado em ver. À data da sua publicação (e talvez ainda hoje) o livro de Winston foi uma “lufada de ar fresco” no estudo do documentário.

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Da nossa parte, entendemos que a abordagem de Grierson permite-nos concluir que procurar ou divulgar uma definição para o filme documentário ou estabilizar-lhe pressupostos implica entendê-lo como um género, implica que perante a diversidade temática, estética, narrativa (ou não- narrativa) se procurem traços comuns que o demarquem da restante produção de imagens em movimento. Michael Renov (1993) considera a tentativa do documentário em representar a realidade altamente improvável, se não mesmo inviável, Renov entende o documentário como uma ficção. Por seu lado, a definição griersoniana de documentário (“tratamento criativo da realidade”) é considerada por Carl R. Plantinga (1997) demasiado alargada - Plantinga prefere o termo não-ficção; e considerada por Noël Carroll (1997) demasiado restrita, por não incluir registos como, por exemplo, o famoso “videotape of the Rodney King beating”. O trabalho destes autores que aqui não aprofundamos, mantém a postura de uma procura da sua definição, o que implica separar, incluir ou excluir registos. Em entrevista, no filme Cinema verité, Defining the moment, de Peter Wintonick (1999), Jean Rouch (1917-2004), disse ter visto pela primeira vez Nanook, o esquimó quando tinha 5 ou 6 anos de idade e perguntou ao seu pai se era verdade, o pai respondeu-lhe que sim, “ mas que tinha sido representado diante de uma câmara”. Desde esse dia, percebeu a diferença entre documentário e ficção. Jean Rouch, entre um registo e outro escolheu os dois (como já firmou em entrevista). Dito de outro modo, escolheu o cinema. Hélio Godoy, no seu livro Documentário, Realidade e Semiose: os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento (2002) recusa o discurso “deconstrutivista'” (que defende a impossibilidade do documentário ser um instrumento de conhecimento da realidade) e constrói uma fundamentação para uma teoria realista do documentário. A Semiótica de Peirce, a Teoria do Umwelt de Jacob von Uexküll e a Teoria da amostragem, no âmbito da Teoria Matemática da Comunicação de Shannon e Weaver são a sua base de apoio para defender que “ o documentário contribui para o conhecimento da realidade, principalmente por abordar a Realidade através da existência concreta das coisas no mundo”. Este livro inspira-nos a definir melhor e com clareza a seguinte questão: há a possibilidade de uma teoria realista do cinema construída a partir do filme documentário? Há cada vez mais produção de filmes onde as convenções de género se misturam o que remete o trabalho científico sobre o filme documentário, para uma outra questão que não a sua definição. Definir o objecto de estudo que se está a trabalhar é o primeiro passo de uma investigação, mas a investigação também se faz colocando outras questões. A constante interferência entre ficção e documentário, contrária ao desenvolvimento pretendido por Grierson, levanta outra questão, não menos importante que a sua definição, a saber, que lugar ocupa o documentário no cinema? Documentário e ficção têm a mesma natureza, ambos são cinema, entre eles poderá haver uma diferença de grau. O estudo sobre o filme documentário necessita de uma abordagem que esclareça melhor a posição/lugar que ocupa no cinema, para a partir daí fazermos investigação específica sobre determinados filmes ou movimentos, que existem um pouco por todo o mundo e para os quais o registo da realidade o registo in loco - é um elemento aglutinador e absolutamente essencial. O que pretendemos é, então, ir além de uma história do impacto e utilidade social do cinema griersoniana; interrogar o cinema a partir do filme documentário de modo a procurar se não respostas, indicações que nos permitam transcender o registo de género. Os filmes que ultrapassam o registo de género são filmes que nos mostram que o documentário não é um género, é um projecto de cinema. Entrar no cinema “pela mão” do documentário, tendo em conta que este é tão cinema como a ficção e tendo, também, em conta que o espectador reserva-se o direito de lhe exigir um compromisso com a realidade, então poderemos pensar na possibilidade de, a partir do filme documentário, ser possível uma

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teoria realista para o cinema que seja capaz de dar conta do universo fílmico. A primeira ou uma das primeiras tarefas para verificar essa hipótese será discutir aprofundadamente e com rigor as ligações entre as teorias realistas do cinema de Kracauer e Bazin e o documentário. Assim, o tema em questão é a relação mundo-cinema. O filme que imediatamente chama a atenção a respeito desta questão e que enquanto espectadores nos interroga sobre as relações complexas entre o cinema e o nosso mundo é O homem da câmara de filmar (1929) de Dziga Vertov. “Man with the movie camera is the only documentary film I know that is an explanation of a theory.” Jay Ruby, 2000:xi) Para Vertov não só o conteúdo, mas a organização e ritmo das imagens projectadas no ecrã podem constituir uma genuína visão cinematográfica da realidade; ou seja, o mundo mostrado no ecrã será mais que um mero documento fotográfico. Petric diz que este filme representa uma brilhante transposição cinematográfica dos ``factos da vida'' (“life facts”) por dar prioridade à expressividade estética sobre o registo fotográfico da realidade; ainda que tenha características formais evidentes, cada plano per se é visto como ``a vida tal qual'' (“life-asit-is”). Para Vertov, o objectivo mais importante do filme documentário seria unir o autêntico com o abstracto. (Cf. Petric, 1996:271/2). Ainda para Vertov, o cineasta tem como função revelar a verdadeira realidade. Essa realidade encontra-se nos planos e só através de um uso criativo da linguagem cinematográfica, mesmo no momento de registar, é possível revelar a verdadeira realidade. Por um lado, Vertov não pretendia interferir na realidade a registar (de preferência as pessoas não deviam aperceber-se que estavam a ser filmadas) e o cineasta (o kinok, para usar o termo de Vertov) devia ter presente a estrutura de todo o filme sempre que registava um plano; por outro lado, a relação entre os planos a diversos níveis é absolutamente necessária para que a realidade seja revelada. Em O homem da câmara de filmar, inspirado no Construtivismo que não separa forma de conteúdo (a forma é também conteúdo), a autenticidade ontológica de cada plano não é comprometida. Como consequência, os filmes causam impacto no espectador, afectando a percepção convencional que têm do mundo. O cinema permite-nos aceder a aspectos da realidade aos quais não teríamos acesso sem a câmara de filmar. Um dos últimos planos de O homem da câmara de filmar mostra uma multidão e acima dessa multidão encontram-se duas câmaras de filmar, uma delas com o operador de câmara. Este plano é exemplar por tornar clara a ideia de que a câmara de filmar faz parte do nosso mundo, mas ao mesmo tempo tem a capacidade de o transcender. Permite-nos ver mais e melhor. Há uma realidade fílmica e uma realidade mais real, se assim a podemos chamar. O cinema não tem a capacidade de nos dar a ver o nosso mundo “tal qual”, mas de um modo que só o cinema, com a sua capacidade de enquadrar, compor, interligar, o pode fazer. Duas alternativas. 1) todo o filme é um documentário - todo e qualquer filme documenta algo; 2) todo o filme é uma ficção por ser uma representação e não a própria realidade, por representar ideias e por todos os filmes partilharem dos mesmos recursos cinematográficos. Uma posição mais equilibrada e (talvez) mais ajustada seria considerar que em todo o filme é, ao mesmo tempo, ficção e documentário. Mas, isso implicaria ter bem claras as definições de ficção e de documentário, o que não é possível. Definimos assim a nossa posição: ficção e documentário são formas de documentarismo, um filme não é um documentário, mas possui um carácter documental. Em alguns filmes esse grau de “carácter documental” é menos problemáticos que noutros. Deixamos o termo documentário para os movimentos fílmicos que assumem que este mesmo termo é o ideal para designá-los, há que compreender o porquê e de que modos o utilizam. O carácter

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documental que entendemos que todos os filmes possuem resulta da nossa certeza de que todo o filme é uma construção de pessoas cultural, social e politicamente situadas. Por isso, o documentário não ocupa um lugar específico dentro do cinema. Está presente, em diferentes graus, em todo o cinema. Um termo que já utilizámos, o de “documentarismo”, realça as variações de maior ou menor proximidade, entre o que vemos no cinema e no mundo. Enquanto teoria, o documentarismo só poderá afirmar-se se for capaz de compreender o cinema a partir do filme documentário, dando conta da sua natureza cinematográfica e das variações que os espectadores experimentam ao visionar filmes como En construcción (2000), do espanhol José Luís Guerín ou, no caso português, filmes paradigmáticos como Jaime (1974) de António Reis e Trás-osMontes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro, ou ainda o filme Histórias selvagens (1978) de António Campos. Há filmes que não são problemáticos quanto a designarem-se de documentários, mas outros, impelem-nos a pensá-los como mais que um género, são um projecto de cinema. O projecto de cinema dos filmes será documentar algo, são modos de ser no mundo.

4.2 O Documentarismo no cinema Resumo O presente texto é uma breve descrição das possíveis consequências para a seguinte hipótese: entre documentário e ficção não existe uma diferença de natureza, existe uma diferença de grau. O Documentarismo será apresentado como uma teoria que interroga o cinema a partir do filme documentário. Para a pergunta “O que é o documentário?” a única resposta é a pergunta de André Bazin “O que é o cinema?” 24

Introdução A afirmação de Jean-Louis Comolli “Para a pergunta: “O que é o documentário?”, a única resposta é a pergunta de André Bazin “O que é o cinema?”, induz a questionar qual a natureza da relação do cinema designado por filme documentário, com o restante cinema. Substituindo a pergunta “O que é o documentário?” por “Onde está o documentário?”, a resposta seria não uma nova pergunta, mas a afirmação: “O documentário está no cinema.” Esta afirmação não é, contudo, esclarecedora da especificidade do filme documentário. Embora não possuindo uma definição consensual a procura da sua especificidade conduz-nos imediatamente à sua constituição enquanto género. O cinema iniciou-se com o registo em imagens de momentos da vida quotidiana. O registo in loco dos acontecimentos do mundo e da vida das pessoas é a matéria base de um filme documentário. No entanto, nos inícios do cinema (em 1895) ainda estávamos longe da constituição do filme documentário enquanto género, o que veio a ter lugar nos anos 30 na Grã-Bretanha, com John Grierson (1898-1972). A partir do seu filme Drifters (1929) Grierson defendeu duplamente o documentário: como produtor e impulsionador do chamado “movimento documentarista britânico” e através de textos em que proclamava as potencialidades do documentário. Um dos seus textos mais citados é “First principles of documentary” a partir de onde se tornou famosa a sua definição de documentário como o “tratamento criativo da realidade”. O movimento documentarista britânico dos anos 30 foi um momento importante para a demarcação, para um estatuto autónomo de género, a partir da especificidade das suas

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temáticas e da sua forma cinematográfica. Enquanto alternativa ao filme de ficção e aos filmes de actualidade, o filme documentário facilitava uma tomada de consciência social para problemas que a todos diziam respeito. Os filmes deste movimento eram concebidos tendo como suporte uma ideia de utilidade pública. A escola de Grierson contribuiu para a divulgação das medidas governamentais para a resolução dos problemas da Grande Depressão dos anos 30. Um conjunto de técnicas específicas identifica esses filmes e, ao mesmo tempo, adequam-nos aos propósitos de divulgação governamental, nomeadamente, uso de voz off (locução) e a chamada “problem structure” (os problemas da Grã-Bretanha eram apresentados como um momento menos bom na evolução desse grande país, esses problemas seriam facilmente ultrapassados pois o Governo estava a implementar medidas concretas). O material recolhido in loco funciona como prova, como garante da autenticidade (“eu estava lá e filmei isto.”). Sair para fora do estúdio com uma câmara de filmar era o primeiro passo para se fazer um documentário. No entanto (e este é um ponto importante) se a câmara, por qualquer motivo, não esteve presente em determinados momentos, faz-se uso de imagens de arquivo que carregam consigo a verdade da representação ou recorre-se à re-construção (recriar uma determinada situação – de preferência com os próprios intervenientes – caso não seja possível filmá-la). A re-construção não é exemplar na sua relação de “verdade “ para com a realidade, mas serve o propósito de mostrar situações importantes para o espectador. A escola de Grierson legitimou o uso da re-cronstrução, desde que o mesmo fosse sincero. No filme Night Mail (1935) de Basil Wright e Harry Watt recorreu-se à re-construção em estúdio do interior de uma carruagem de correio. No entanto, as pessoas filmadas trabalhavam efectivamente na distribuição de correio. O “movimento documentarista britânico” não se constituiu propriamente como um projecto de cinema, uma vez que a sua ideia essencial assentava na função e utilidade social dos filmes. Contudo, convém salientar que Grierson percebeu que o importante é o tratamento dado ao material e não apenas o seu uso. De igual modo, o importante não é a autenticidade do material mas a autenticidade do resultado, ou seja, o efeito provocado pelo filme. Ataques à escola de Grierson não são difíceis de encontrar, quer ao nível da prática fílmica, quer ao nível teórico. Os anos que se seguiram ao “movimento documentarista britânico” foram marcados pelo uso de câ maras portáteis e som síncrono que, embora mantendo as principais técnicas próprias do género acrescentou-lhe, entre outras, as entrevistas de rua e o uso do plano-sequência, o que permitiu a este novo movimento designado por “cinema directo” reclamar uma efectiva proximidade com a realidade. Para além da evidente selecção de enquadramentos, composição dos planos, etc., se constituírem como uma escolha e por tal, com um elevado grau de subjectividade, acrescentese que a ideia essencial deste movimento consistia em não interferir nos acontecimentos que registava. Ora, esta não interferência dános acesso a comportamentos e gestos do objecto filmado, o que, em muitos casos, se torna apenas voyeurismo sem qualquer interesse. Neste sentido, entendemos que a tal proximidade com a realidade é meramente superficial. Quando em Bowling for Columbine (2003) dizem a Michael Moore que no Canadá as pessoas deixam as portas abertas, ele vai confirmar essa informação. No documentário há que ir aos locais, confirmar as informações, interferir, para poder compreender. No que diz respeito ao estudo sobre o filme documentário, a tendência mais recente é a rejeição da definição de Grierson ou por ser demasiado restrita (Noël Carroll, 1997) ou por ser demasiado alargada (Carl Plantinga, 1997). Carroll vai mais longe ao propor mesmo alterar o nome ao filme documentário para “filmes de asserção pressuposta” (films of presumptive

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assertion) (Carroll, 1997, p. 173), ainda que com a ressalva de que se trata de uma reforma teórica.4 No seu entender, o termo documentário excede em ambiguidade o que lhe falta em clareza. Por isso há que alterar essa denominação aos documentários e estudar os filmes tendo em conta que é possível representar a realidade a partir de proposições lógicas. Neste sentido, ficam de fora questões (éticas e de legitimidade em representar o Outro) que podem ser colocadas ao sujeito que representa, ao autor do filme. A nossa posição é que o documentário deve ser estudado por conceitos cinematográficos e não por termos que lhe são exteriores e que as teorias sobre o filme documentário não devem encontrar nos filmes um exemplo, como se estes fossem meras ilustrações. As teorias devem partir dos filmes, encontrando neles os conceitos a trabalhar. Ou, dito de outro modo, o que aqui se pretende é redimensionar os problemas que se colocam ao cinema a partir de conceitos que possam ser retirados dos filmes que tomam a designação de documentário. Esta será a função do Documentarismo. Outro conceito introduzido por Carroll é o de “indexação” que permite legitimar a leitura segundo pressupostos lógicos. A “indexação” refere-se ao saber prévio que o espectador tem, antes de assistir a um filme. Cada filme é distribuído com um “rótulo” pelos distribuidores, exibidores, etc., o que permite ao espectador ter acesso às intenções, às “asserções” do seu autor. Ora, o filme JFK (1991) de Oliver Stone é catalogado de ficção, muito embora troços desse filme nos apresentem imagens documentais, no sentido clássico – filmadas in loco. A construção deste filme baseia-se em factos reais, sendo o plano-sequência de Zapruder (que mostra o momento do assassinato do presidente Kennedy) o elemento central de JFK. A revista francesa Première entrevistou Oliver Stone e perante a pergunta: “Qual a parte de ficção no filme?” Stone começa por afirmar de modo bastante categórico: “Praticamente zero.” Ainda que possamos entender esta resposta como mais argumento para a sua versão dos acontecimentos, não podemos negar que o panorama cinematográfico tem vindo a transformarse no sentido de colocar os filmes numa zona de fronteira entre ficção e realidade e que, muito provavelmente, Oliver Stone gostaria que o seu filme fosse catalogado de documentário e não de ficção. Por outro lado, a definição de documentário de Grierson (acima citada) é segundo Carroll demasiado restrita (Carroll, 1997) porque dela se excluem registos como as “actualidades” ou outros registos como, por exemplo, o famoso “videotape of the Rodney King beating”6. De facto, a definição griersoniana exclui estes registos, por falta de um tratamento cinematográfico. Mas, isso não implica que a sua definição não é actual, nem que há necessidade de lhe alterar a designação. O que hoje chamamos de documentário abarca um largo número de filmes muito distantes dos que a escola de Grierson realizou e produziu. Propor uma alteração ou alternativa ao termo documentário não é o nosso objectivo. O termo tem sofrido alterações semânticas a que Grierson (já em 1932-34) fez referência, logo no início do seu texto: “First principles of documentary”. Ainda que não simpatizemos em demasiada com abordagem griersoniana, não podemos deixar de verificar que a sua definição de documentário ainda é actual. Filmes como Las Hurdes, terra sem pão (1932) de Luís Buñuel ou En construcción (2000) de José Luís Guerín fazem um tratamento criativo da realidade. Ambos são catalogados de documentário, embora levantem polémicas quanto ao tratamento que deram ao material registado in loco, ou dito de outro modo, a ficção nesses filmes parece ser demasiado evidente. No primeiro, entre outras questões, a morte por uma arma de fogo (cujo fumo se vê no lado esquerdo do plano) de uma cabra. O segundo, pela sua construção (demasiado) próxima do filme de ficção (esse aspecto de ficção resulta do uso de mais de uma câmara no registo de grande parte das cenas).

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Mas, a questão essencial é, parafraseando Brian Winston (1995): que “realidade” consegue sobreviver ao “tratamento criativo”? Muitos dos filmes incluem registos de ficção (desde os realizados no âmbito do “movimento documentarista britânico” até (e sobretudo) aos realizados hoje em dia). Mas, essas partes ficcionadas, em vez de lhe retirarem o estatuto de documentário, aprofundam a representação cinematográfica de determinado tema. O filme The thin blue line (1988) de Errol Morris faz um uso interessante da re-construção. Ao re-construir o assassinato do polícia de Dallas Robert Wood, variando a re-construção consoante os diferentes testemunhos, Morris mostra claramente que cada sequência de imagens (cada reconstrução) é tão verdade ou mentira como a anterior (este filme valeu a fama a Morris de ter contribuído para a libertação de Randall Adams, injustamente acusado de ter assassinado Robert Wood). Se Grierson deixou uma herança pesada ao documentário, o “cinema verdade” (que imediatamente se seguiu ao “movimento documentarista britânico”), também não ajudou. Supostamente, o documentário estaria mais próximo da realidade que qualquer outro filme. Hoje em dia, é clara a vertente – aliás, muito em consonância com a cultura contemporênea nas suas diferentes áreas – em que troços documentais coabitam com troços ficcionados. Embaralhar fronteiras não é apenas um modo criativo de fazer filmes, é um modo de representar a realidade. São estes filmes de fronteira que circulam pelas salas. Quando os mesmos têm como ponto de partida a “realidade” são denominados de documentário, quando o seu ponto de partida é um argumento escrito são denominados de ficção. Mas, porque não podem esses documentários reclamar que são uma representação fiel da realidade? A realidade é complexa e exige o uso de recursos cinematográficos variados. Na diversidade, a comunidade documentarista (que inclui os próprios cineastas, os espectadores e todos os que de algum modo se interessam/ trabalham o género) encontra-se ligada pela ideia (mesmo que mal definida) de que é possível representar a realidade. Essa representação não obedece, obrigatoriamente, a regras de géneros. O que é consensual é que o seu material de trabalho são as imagens ou os sons recolhidos in loco. Para a comunidade documentarista o importante é a vida das pessoas e os acontecimentos do mundo (as imagens/sons que nos apresenta dizem respeito ao que é exterior a elas). O registo do mundo e a reflexão desse mundo têm no documentário um lugar privilegiado. Ainda que para tal se usem recursos que à partida não lhe estão destinados. No nosso entender, a zona de fronteira a que o filme documentário parece estar votado é também uma zona de confluência e, por isso, reveste se de uma riqueza, não só de conteúdos mas, também, de formas fílmicas. Assim, a nossa proposta é que a principal questão que se coloca ao filme documentário, a sua diferença com a ficção, poderá ser equacionada do seguinte modo: entre documentário e ficção não há uma diferença de natureza, mas uma diferença de grau. Do mesmo modo que entre documentário e ficção há uma diferença de grau, entre os diferentes registos documentais há uma diferença de grau (da intenção dos autores, da utilização televisiva desses registos ou mesmo do seu uso em tribunal, de tratamento cinematográfico, da sua recepção pelo espectador, etc.). Esta diferença de grau dentro do registo documental é uma resposta à crítica de Carroll de que a definição griersoniana exclui registos como o “Rodney King beating”. Todo o filme é documental no sentido em que documenta algo, quanto mais não seja, aquilo que nos mostra, que dá a ver, independentemente dessa realidade ter existência (física) fora dessas imagens ou de ter sido construída propositadamente para as filmagens. Nos filmes de autor, os planos mais “documentais” são os que nos mostram que estamos perante um filme de

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um e não de outro autor. Há um estilo próprio na utilização dos meios técnicos. É através deles que se estabelece uma relação entre obra, autor e espectador. Não é por acaso que se diz que cada filme é um olhar, uma visão sobre determinado assunto. Nos filmes de ficção, cada universo cinematográfico remete para um modo particular de ver o mundo, um modo que o autor revela através das suas escolhas (ângulo, composição, enquadramento dos planos, história que conta, etc.), através do estilo pessoal que advém da utilização dos meios técnicos. Ou seja, nos filmes de autor são, como referimos, os planos mais “documentais” que nos mostram que estamos perante um filme de determinado autor. Não são apenas as escolhas cinematográficas mas, também, as escolhas temáticas que permitem ao espectador verificar a autoria do filme, a visão do realizador. O cinema reflecte a concepção que o seu autor tem do mundo (ou de uma determinada parte do mundo). Em todo e qualquer filme e, em especial, no cinema de autor, é inevitável verificar um conjunto de ideias e pressupostos que constituem o universo mental, cultural e social do seu autor e da sua época. Um autor não vive isolado, é ele mais a sua época, poderá ser muito ou pouco visionário/genial, mas não poderá nunca ser desligado da sua época. As imagens que melhor nos permitem (a nós espectadores) reconhecer a presença ou a visão deste ou daquele autor são, precisamente, as imagens de carácter documental. A “imagem-documental” será toda a imagem que num filme nos permite verificar que se trata de um filme de um determinado realizador. O caracter documental da imagem é algo que sempre existiu, se lhe damos aqui realce é porque nos parece que a atitude de registar/de documentar está presente em todo o cinema, independentemente do género a que determinado filme pertence. Entendemos que não será o documentário propriamente dito, mas o registo documental – que denominamos de Documentarismo – que une a diversidade de registos cinematográficos. O Documentarismo está presente em toda a produção de imagens em movimento, uma vez que um qualquer filme é uma manifestação/visão do realizador sobre um assunto, que de um modo mais próximo ou mais distante, diz respeito às nossas vidas, às nossas memórias, ou seja, ao universo humano. Existem produções mais especificamente caracterizadas por esse registo documental e que visam consagrá-lo, denominadas por filme documentário. Se todo o filme é, em certa medida, documental, é importante definirmos melhor o que o cinema documenta. O ponto seguinte refere-se precisamente a esta questão. Percepção cinematográfica Este ponto deveria à partida tratar a questão da representação da realidade e intitular-se “Cinema e realidade” (ou algo semelhante). No entanto, optámos pelo título “Percepção cinematográfica” porque o problema da percepção refere-se à relação existente entre as nossas experiências interiores e o mundo exterior. A esta relação pode responder-se de diversos modos: que para além do mundo físico existe o mundo da percepção (realismo crítico) ou, mais platónicamente, que as ideias são mais reais do que as coisas e têm uma existência efectiva (realismo ontológico) ou que o mundo real coincide com o mundo da percepção e que é independente do sujeito (realismo ingénuo). A experiência do erro pode levar-nos a reconhecer que é ao conhecimento científico (às ciências) que está reservado o papel de descreverem um mundo, independente da mente humana (realismo científico). “Nunca saberemos quão fiel é o nosso conhecimento relativamente à realidade “absoluta”. Aquilo de que precisamos é, e creio que a temos, de uma notável consistência em termos das construções da realidade que os cérebros de cada um de nós efectuam e partilham.” (António Damásio, 1994, p. 242). Ou seja, “o melhor adjectivo para apreciar o valor do conhecimento

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será se ele é ou não viável, se funciona ou não, se é ou não tolerado no meio no qual evoluímos.” (Francisco Varela citado in Maria Manuel Araújo Jorge, 1994, p. 399). Perante a instabilidade do conhecimento, tomamos consciência da nossa situação no mundo. Vem a propósito uma referência à litografia “Galeria de Arte”, de Esher (1956). “Deformando o espaço através duma espiral, Escher mostra-nos um jovem que contempla, numa galeria de pintura, um quadro do qual, afinal, ele próprio faz parte integrante. Se o sujeito e o objecto se envolvem num anel auto-referente, o que é a realidade? Se o sujeito e o objecto se geram mutuamente, não podendo estabelecer-se o ponto onde tudo começa, o que é o objecto?” (Maria Manuel Araújo Jorge, 1994, p. 400) Em vez de optarmos por ceder à tentação de um fatalismo, vemos que o cinema traz-nos uma nova visão do mundo. Deu-nos a ver imagens que sem ele não seriam possíveis. E este é, precisamente, o cinema de Dziga Vertov. A câmara de filmar com o seu olho mecânico, em conjunto com o processo de montagem e o próprio editor são uma nova entidade que dá pelo nome de “cinema-olho”.10 Este cinema assenta na ideia de que, comparado com o olho humano, o olho da câmara é-lhe largamente superior. O olho mecânico mostra-nos a “verdadeira realidade”, completa e aperfeiçoa o olho humano. O aparato cinematográfico mostra-nos a nossa presença no mundo. Ao mesmo tempo, transcendea, pois mostra-nos o que sem ele nunca poderíamos ver. É também este o sentido dos estudos de Jean Epstein (1897-1953) que recupera um conceito de Louis Delluc (1890-1924): a fotogenia. Mas, se para este a fotogenia é um valor estético, para Epstein trata-se de um conceito especificamente cinematográfico que diz que só os aspectos móveis do mundo, das coisas e das almas podem ver o seu valor moral majorado no cinema. Ou seja, a fotogenia aplica-se ao movimento porque os objectos do cinema não são os objectos físicos, mas sentimentos, paixões, ideias, etc. Estes objectos do cinema são vistos num novo espaço-tempo; o espaço-tempo próprio do cinema, onde de um momento para o outro se muda de ponto de vista, onde as horas são segundos. Parafraseando Epstein, um grande plano de um revólver não é mais um revólver é o personagem-revólver, no cinema não há naturezas-mortas, cada acessório torna-se uma personagem. O filme documentário lembra-nos a nossa presença no mundo, lembra-nos que fazemos parte do mundo e que interagimos com ele. Contudo, antes de representar algo, o cinema trabalha o movimento. A imagem especificamente cinematográfica, a imagemmovimento (Deleuze, 1983) permite afirmar que o cinema dá-nos a ver muito mais que apenas a presença de algo (o objecto x, a pessoa y, . . . ). No texto “Le cinéma e la nouvelle psychologie”, Merleau-Ponty (1945) discute o cinema tendo em conta a então nova Psicologia, a Gestalt. Ao contrário da Psicologia clássica, a nova Psicologia diz que não existe uma separação entre a observação interior ou introspecção e a observação exterior, por exemplo, a ira, o amor, o ódio não são, como diria a Psicologia clássica conhecidos a partir de uma introspecção, são um comportamento, uma modificação da mi ira, o amor, o ódio, etc, não estão escondidos no mais profundo da consciência do outro, são tipos de comportamento visíveis de fora, estão nos rostos, nos gestos,.. O Outro é-me dado como evidência, como comportamento, nós reconhecemos uma certa estrutura comum na voz, nos gestos, na fisionomia de cada pessoa e essa pessoa é para nós essa estrutura ou uma determinada maneira de ser no mundo. Para o cinema, como para a nova Psicologia a ira, o amor, o ódio, são condutas, visíveis nos gestos, nos olhares. O cinema dirige-se à nossa percepção e tem a particularidade de mostrar a união do espírito com o corpo, o espírito com o mundo e a expressão de um no outro. Qual é, então, a relação do mundo do cinema com o nosso mundo?

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Uma resposta possível pode ser a que já num estudo anterior afirmámos14: a realidade a que o filme documentário nos dá acesso é menos a realidade em si e mais o relacionamento que o autor do filme tem com os intervenientes do filme. Decidir fazer um documentário é uma intervenção na realidade, é um percurso que se faz e que se partilha com o espectador. Um percurso equacionado por uma relação de confronto e/ou uma relação de compromisso com os intervenientes/ personagens. No capítulo “La surface video” do livro Le champ aveugle, Pascal Bonitzer refere que a característica da película é ser transparente e sensível, daí decorre uma “impressão de realidade”. Pelo contrário, a imagem do vídeo é composta por pontos, por isso é passível de ser decomposta até ao infinito. Nanha relação com o mundo e com o Outro. A imagem do vídeo há cores, mas não há diferenças de iluminação, não há sombras, em suma, não há vida. Ou seja, embora o problema do realismo esteja mais ligado ao cinema que ao vídeo certo é que este último, pela sua fácil manipulação, pela sua ligação ao epíteto “em directo”, está mais ligado ao documentário; e é precisamente a problemática da representação da realidade a que mais apaixona e entusiasma as reflexões teóricas sobre o documentário. Para nós, o filme documentário afirma-se como um género cuja utilidade última é servir como uma espécie de reservatório para toda a experiência fílmica, uma espécie de reserva de toda a experiência fílmica, por favorecer a interligação e o esbater de fronteiras entre géneros. E, se estamos perante imagens que têm uma ligação especial (directa) com o objecto representado, também é importante lembrar que, a partir do momento em que os objectos se tornam imagem, estamos perante uma matéria com autonomia própria, uma autonomia que pode bem passar pelas características superficiais, próprias da imagem vídeo, apontadas por Bonitzer. Em certa medida, quebra-se o cordão umbilical que as liga à realidade. A realidade passa a ser não aquilo para que as imagens remetem, mas uma ausência, um fora de campo. As imagens vão para além da representação, onde a “paisagem” da ima gem é o mundo mental e não o exterior (físico). Documentário e ficção partilham o mesmo mundo, o do cinema, têm uma mesma natureza. Mas, se o filme documentário reclama para si uma maior ligação com o nosso mundo, então (numa perspectiva alargada) podemos dizer que o Documentarismo ao interrogar o cinema a partir do filme documentário, terá de estudar as modalidades de relacionamento (os diferentes graus) entre o mundo do cinema e o mundo do quotidiano. Assim, a questão da representação da realidade não deverá ser abordada pelas diferenças entre ficção e documentário, mas pelos diferentes graus de relacionamento em que o mundo do cinema e o mundo do quotidiano se cruzam. Falamos de diferentes graus porque reconhecemos que existe uma práxis do documentário, não podemos negar que existe um conjunto de cineastas que se sentem identificados com uma práxis diferente da ficção, ainda que esse afastamento não seja claro. Esta é uma questão importante para o Documentarismo. O documentarismo É possível criarmos uma linha imaginária onde se represente a produção de imagens em movimento, num extremo as imagens captadas pelas câmaras de vigilância e no outro extremo, as imagens de síntese. Algures entre um extremo e outro, encontra-se a ficção, o documentário, a ficção documentada, o docudrama, o documentário ficcionado, etc. Se, em cada momento da evolução histórica do cinema, é possível averiguar a concepção de cinema presente nos filmes (sendo o exemplo mais emblemático o cinema clãs sico americano), o objectivo essencial do Documentarismo será extrair o projecto de cinema que está presente no filme documentário. O registo documental será mais inevitável no documentário mas,

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podemos, de igual modo, encontrá-lo no chamado cinema de ficção. O Documentarismo está presente quer no filme de ficção, quer no filme documentário. Para além de um discurso dominado pela função social do documentário ou de um cinema próximo da realidade (em sentido quase literal), é possível um cinema cujos filmes vão utilizar de modo crítico imagens registadas in loco que, em simultâneo, representam a realidade e questionam essa mesma representação. O uso de material recolhido in loco ou de material reconstruído ou totalmente ficcionado é menos uma necessidade e mais uma opção, são imagens que estão ao serviço das ideias e não dos factos. O que o Documentarismo deve verificar é a sua própria viabilidade no sentido de ser uma “arqueologia do cinema”, algo similar à “arqueologia do saber” de Michel Foucault, onde o filme documentário se constitiu como uma das variantes do Documentarismo. Uma visão superficial e imediata, mostra que o filme documentário tem sido muitas vezes colocado de lado na história, crítica e teoria do cinema. Há um distanciamento entre teoria cinematográfica e filme documentário. Este distanciamento pode dever-se à sua proximidade a géneros televisivos (como a reportagem) e por ser colocado, o mais das vezes pelos próprios documentaristas, em oposição ao filme de ficção. É aqui nossa intenção colocá-lo não em oposição, mas em relação com o restante cinema; uma relação de continuidade. O filme documentário sempre ocupou um lugar de segundo plano no cinema, sempre esteve à sua retaguarda do cinema e quase sempre numa posição de inferioridade, pois quanto mais próximo se está da representação da realidade menos se está da arte. Em vez de tentarmos encontrar nele especificidades que o tragam às luzes da ribalta, pretendemos olhá-lo na sua situação de retaguarda e discutir a sua relação com o cinema, o seu projecto de cinema. Não pretendemos dar-lhe um lugar de relevo, como se isso fosse necessário. Estudar o Documentarismo justificase não por querer trazer para primeiro plano um tipo de filme em grande parte esquecido pela teoria cinematográfica, mas porque na história do cinema grandes filmes se cruzam com o documentário. E esse cruzamento não é meramente acidental. Os filmes Nanuk, o esquimó16 (1922), de Robert Flaherty e O homem da câmara de filmar (1929), de Dziga Vertov constam de qualquer listagem de grandes filmes da história do cinema. No primeiro, o registo documental funciona como uma espécie de síntese em relação ao “filme de viagem” ou ao “filme de actualidade”. No segundo, esse registo constitui-se como um projecto de cinema. Vertov alia a sua presença no filme e a presença do aparato cinematográfico à ideia de registar as pessoas sem que elas se apercebam. Nanuk, o esquimó não é um filme apenas sobre Nanuk e sua família, foi feito com Nanuk para registar o passado do povo inuit. A vida que Flaherty registou foi a dos antepassados de Nanuk. O modo de vida dos seus antepassados ainda estava vivo na memória de Nanuk: como caçavam, como construíam igloos, etc.; foram esses gestos que a câmara de Flaherty registou e que depois transformou em filme. Nanuk, o esquimó é um filme que aprisiona o tempo, não o presente, mas o passado, preserva a memória do passado. Outros filmes, mesmo não intencionalmente, preservam a memória do presente. O cinema de ficção e, mais inevitavelmente, o filme documentário constituem-se como uma ferramenta de preservação de cultura. Um tempo que se torna presente, mas que é, também, um presente que se torna passado. Nanuk, o esquimó é um filme em que a vocação de preservação da memória (colectiva) que o cinema privilegia, surge com grande força. Numa hipótese mais radical, poder-se-ia dizer que todos os filmes são filmes etnográficos. Uma disciplina que nos interessa é a Antropologia Visual que considera que a cultura se manifesta visualmente: gestos, cerimónias, rituais, etc. e que é desse modo que as sociedades recordam e

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preservam a sua identidade (Cf. Paul Connerton, 1989). Os filmes etnográficos divulgam a mensagem antropológica: o relativismo cultural. A variedade de formas que o homem encontrou para viver (e sobreviver) apresenta uma inesgotável fonte temática para o registo cinematográfico. É absolutamente essencial encontrar modos de sobrevivência e modos de transmitir conhecimento às gerações seguintes. Entender uma cultura implica entender as regras dessa cultura e os elementos culturais que unem as pessoas. Deste ponto de vista, o Documentarismo estudará o cinema enquanto processo (que envolve o autor, a utilização dos meios técnicos, os espectadores, etc.) culturalmente determinado. No Documentarismo falamos de um cinema que transcende o mero registo dos géneros, influências de diferentes géneros são o principal contributo para esta concepção de cinema. É interessante verificar que o documentarista Errol Morris se afasta da concepção tradicional de documentário, para encontrar nele o principal contributo para o seu cinema. A inclusão de imagens de outra ordem/qualidade que não as documentais é um recurso recorrente e identificador dos seus filmes. A concepção tradicional do documentário pressupõe que as coisas estão aí para quê manipulálas? Mas, este “estar aí” é em si vago e potencialmente enganador, nada garante que aquilo que “está aí” seja um discurso coerente, ou uma verdade irrefutável. Há que ultrapassar o cliche da reprodução da realidade. Uma postura como a de Errol Morris será mais coerente. A respeito do filme The thin blue line, Errol Morris diz: “Talvez não possa afirmar, inequivocamente, que Randall Adams é inocente, mas posso dizer que, na enorme quantidade de material que coligi, quase tudo aponta para a sua inocência e nada para a sua culpabilidade.”(AAVV., Mr. Death, a América de Errol Morris, 2001, pp. 30-31). O acto de documentar com uma câmara é algo de concreto, é o primeiro acto cinematográfico. Esse acto que pode ser premeditado ou um impulso, surge-nos como uma marca. Documentar é algo importante do ponto de vista da humanidade. Subjacente a esse acto estará, porventura, a vontade de preservação das nossas memórias, uma tomada de consciência da nossa diversidade ou uma necessidade de nos manifestarmos. A ficção terá uma função diferente da do documentário em contribuir, quer para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, quer para o modo como olhamos e questionamos o nosso mundo. No documentário, essa função é mais inevitável, uma vez que a nossa atitude enquanto espectadores é substancialmente diferente. A propósito de um filme de ficção podemos sempre dizer que é apenas um filme, no documentário tal afirmação já não se aplica. Visionar um filme é participar de uma experiência cujos temas estão ligados ao nosso mundo num grau maior ou num grau menor. Os filmes de fronteira, os que misturam convenções de géneros ainda que possam ser designados de documentário ou de ficção, serão os filmes a estudar pelo Documentarismo, este deverá ser capaz de esclarecer com precisão a hipótese de que o que afasta um de outro é o seu grau e não a sua natureza cinematográfica. São filmes que fazem das convenções do filme documentário e das convenções do filme de ficção o principal contributo do seu cinema e de onde deverá partir a reflexão para averiguar a viabilidade da nossa hipótese inicial. Para já, podemos afirmar que o desenvolvimento da linguagem cinematográfica encontra no Documentarismo o seu principal aliado. Mas, a grande vantagem do Documentarismo é que nos lembra (e garante) que a realidade se manifesta, inevitavelmente.

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4.3 O ponto de vista no filme documentário Introdução A partir do conceito de "ponto de vista", este texto irá discutir uma questão essencial na produção e realização de documentários: a relação que o documentarista estabelece com os intervenientes do seu filme. O documentário ocupa uma posição ambígua e polémica na história, teoria e crítica do cinema. Por um lado, recorre a procedimentos próprios do cinema (escolha de planos, preocupações estéticas de enquadramento, iluminação, montagem, separação das fases de pré-produção, produção, pós-produção, etc.). Por outro lado, enquanto espectadores, exigimos que um documentário, por manter uma relação de grande proximidade com a realidade, deva respeitar um determinado conjunto de convenções: não direcção de actores, uso de cenários naturais, imagens de arquivo, câmera ao ombro, etc. Estes recursos constituem o garante da autenticidade do representado. Ora, estes recursos que lhe são próprios, não lhe são exclusivos. Nada impede que um realizador de ficção os utilize. Os filmes de Lars von Trier realizados no âmbito do movimento Dogma, utilizam algumas técnicas próprias do documentário, como por exemplo, a câmera ao ombro. Por outro lado, alguns recursos que à partida não é suposto o documentário utilizar, podem contribuir para um esclarecimento e aproximação dos espectadores com a realidade; a realidade que tanto se espera que um documentário nos transmita. Por exemplo, em Errol Morris, a re-criação de acontecimentos tem o mesmo valor, está ao mesmo nível, que as imagens de arquivo (que transmitem prova de autenticidade). Um documentário pouco se afasta dos procedimentos de produção dos filmes de ficção. No entanto, é consensual que o documentário não recorre à "direcção de actores", própria dos filmes de ficção. A natureza da relação que um realizador de ficção estabelece com os actores é diferente da natureza da relação que um documentarista estabelece com os "actores"do seu filme. Mais correctamente, estes últimos são designados por intervenientes. Um realizador de ficção dirige os actores, é ele que constrói as personagens que os actores interpretam. É ele que decide como devem expressar-se. Um documentarista não dirige actores, não constrói personagens (pode sim, transmitir uma determinada imagem das suas personagens - intervenientes). O texto que se segue procura discutir a natureza da relação documentarista - intervenientes. 1 O documentário é cinema Apesar de ser sempre estimulante discutir as diferenças e semelhanças entre um filme de ficção e um documentário (mesmo quando à partida se sabe que não se chega a conclusão nenhuma) tenho como prioridade centrar-me no campo da produção/realização de documentários, independentemente do que haja de diferente ou semelhante com a ficção. Um documentário pauta-se por uma estrutura dramática e narrativa, que caracteriza o cinema narrativo. A estrutura dramática é constituída por personagens, espaço da acção, tempo da acção e conflito. A estrutura narrativa implica saber contar uma história; organizar a estrutura dramática em cenas e sequências, que se sucedem de modo lógico. A suportar tudo isto deve estar uma ideia a transmitir. Essa ideia a transmitir constitui a visão do realizador sobre determinado assunto. Considerações acerca do presente ou do passado são comuns nos documentários. No entanto, também é possível e legítimo manifestar considerações sobre o futuro, por exemplo, a partir do nosso conhecimento sobre a I e II Guerras Mundiais colocar a hipótese do que aconteceria se se repetisse uma guerra mundial. Tendo em conta que o ponto de vista de um plano é entendido como representando uma visão individual, seja a do documentarista, seja a de um interveniente, o ponto de vista determina com quem o espectador se identifica e o modo como o espectador lê os planos (e o filme) e interpreta a acção. É através do uso da câmera de filmar e da montagem que o documentarista define qual o ponto de vista a transmitir e, consequentemente, qual o nível de envolvimento do espectador. Durante um plano longo ou um plano sequência, o ponto de vista pode alterar-se mas, em geral, podemos dizer que cada plano expressa um determinado ponto de vista. Por tal, os espectadores só têm acesso a um ponto de vista de cada vez. Num filme narrativo pode optar-se por um (ou mais) dos seguintes pontos de vista:

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Ponto de vista na primeira pessoa - os espectadores vêem os acontecimentos através dos olhos de uma personagem. Esta técnica é muito usada para efeitos de suspense em que é necessário reter informação. É difícil utilizar este ponto de vista, uma vez que o espectador não vê as reacções desse mesmo personagem. Ponto de vista na terceira pessoa – trata-se da acção vista por um observador ideal, muito comum nos filmes de Hollywood. Raramente é usado como o único ponto de vista. Ponto de vista omnisciente - para que um filme apresente este ponto de vista é necessário que sejam dadas indicações ao espectador sobre o que as personagens pensam. Nestas situações é vulgar recorrer-se à voz em off (também denominada voice-over). Aqui, pode cair-se facilmente na explicação, o que não é muito inventivo cinematograficamente. Ponto de vista ambíguo - consiste em alternar entre um ponto de vista na terceira pessoa e um ponto de vista na primeira pessoa (plano subjectivo). Isto pode ser feito dentro de um plano ou com vários planos, recorrendo à montagem. A escolha de um ponto de vista é uma escolha estética implica, necessariamente, determinadas escolhas cinematográficas em detrimento de outras (seleccionar determinado tipo de planos em detrimento de outros- por exemplo, grandes planos, - optar por determinadas técnicas de montagem- por exemplo, montagem paralela - em detrimento de outras). Cada selecção que se faz é a expressão de um ponto de vista, quer o documentarista esteja disso consciente ou não. Cada plano oferece um determinado nível de envolvimento, quer isso tenha sido ou não deliberadamente controlado pelo documentarista. Convém salientar que não é suposto um filme usar, constantemente, determinado ponto de vista. O essencial é o documentarista definir qual o ponto de vista predominante no seu filme. O nível de envolvimento/identificação do espectador depende do modo como o ponto de vista seleccionado é articulado com a linguagem cinematográfica. Esse nível de envolvimento pode ser obtido de dois modos: através de um controlo gráfico (graphic control) e através de um controlo narrativo (narrative control). (cf. Steven Katz, 1991). O primeiro diz respeito às características formais dos planos (composição dos planos - modo como os elementos estão organizados dentro de um plano, por exemplo, em primeiro plano ou em segundo plano; grandeza dos planos – por exemplo, grande plano, plano médio; enquadramento - posição dos elementos em relação às margens do plano - por exemplo, centrado, descentrado; iluminação - que parte ou partes do plano têm mais ou menos luz; etc.). Só a título de exemplo, se se utilizar grandes planos apenas com um dos intervenientes do filme, favorece-se um maior envolvimento do espectador para com esse interveniente. Por seu lado, o controlo narrativo depende essencialmente da montagem, do ritmo com que se sucedem os planos, das técnicas de montagem, etc. Por exemplo, se um interveniente permanecer mais tempo no ecrã, é com ele que o espectador mais se envolve. Estes dois modos, parecem dizer mais respeito à imagem que ao som, no entanto, este é um elemento importante que pode ser trabalhado para criar/reforçar determinado ponto de vista, através, por exemplo, da criação de um som específico para determinado interveniente no filme. É possível estabelecer uma correspondência entre o controlo gráfico e o controlo narrativo e as fases de produção de um documentário: pré-produção (pesquisa e desenvolvimento); produção (filmagens); pós-produção (montagem). O controlo gráfico está presente nas primeiras duas fases e o controlo narrativo na última fase. Apesar de ser possível separá-los, o controlo gráfico deve ser trabalhado em articulação com o controlo narrativo. A pré-produção é uma fase de preparação para as filmagens. Esta fase caracteriza-se por uma pesquisa e desenvolvimento do tema/assunto a tratar. Não há regras a seguir, aqui trata-se de justificar o interesse de um filme. Assim, há que definir a motivação, ou seja, o documentarista deve, antes de mais, interrogar-se quanto às razões por que quer fazer determinado filme, definir a abordagem ao tema, recolher informação, fazer a caracterização e selecção dos locais a filmar, a caracterização dos intervenientes ("personagens"), definir a estrutura do filme, tipo de planos, etc. Embora não seja regra, o mais das vezes, esta fase dependente do que o documentarista encontra in loco. Antecipar determinados acontecimentos é uma tarefa impossível, pois os mesmos são por natureza imprevisíveis. Esta

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situação pode implicar que se altere ou se reformule o que inicialmente estava previsto apresentar no filme. Mesmo quando se pretende partir à descoberta do mundo, entendo que é necessária alguma preparação anterior. Entendo que só é possível distinguir entre o que é interessante filmar do que não o é, se se tiver pensado sobre o assunto anteriormente. Ou seja, a preparação facilita a tomada de decisões imediatas perante situações imprevistas. Excepto para documentários realizados especificamente para televisão, dificilmente se escrevem guiões. Frederick Wiseman é disso exemplo. O seu método é igual em todos os filmes. Antes das filmagens faz pesquisa durante cerca de um dia, no local onde irão decorrer as mesmas (no caso, em instituições ou locais públicos americanos).Robert Flaherty e Joris Ivens são outro exemplo, ambos passavam algum tempo apenas a observar as pessoas antes de iniciarem as filmagens. Escrever um guião é reduzir a um já sabido o próprio filme. No documentário, essa situação é inviável; por exemplo, os diálogos, não podem ser previamente escritos, não são previsíveis, e, por tal, não podem ser escritos com antecedência. É por esta razão que é vulgar dizer-se que um documentário é o argumento encontrado. Dito de outro modo, o que o documentarista encontra in loco, ou seja, contém em si o seu próprio guião e é suposto o documentarista estar atento a isso. O documentarista substitui o guião por uma investigação de campo, por um bloco de notas. Este percurso pressupõe à partida uma liberdade que dificilmente se encontra em qualquer outro filme. Por vezes, um documentário é construído ao longo do processo da sua produção. A preparação ou "pesquisa e desenvolvimento", mais não é que a definição clara das intenções do documentarista, da abordagem ao tema, da forma como pretende abordar os locais e as pessoas a filmar. No documentário verifica-se diversidade ou, pelo menos, a possibilidade de uma grande diversidade temática. As temáticas que merecem ou têm merecido a atenção dos documentaristas, vão desde as que dizem respeito à vida animal até aos tabus sociais. Os únicos constrangimentos à sua possibilidade de diversidade, são-lhe exteriores, uma vez que não existe, por exemplo, a obrigatoriedade de actualidade que a notícia exige. Em certos momentos, há temas que dificilmente conseguem ser tratados como, por exemplo, os que envolvem escândalos políticos. A diversidade advém da diversidade e complexidade do nosso próprio mundo. E se, por qualquer motivo, não se filma um acontecimento no momento em que o mesmo decorreu ou habitualmente decorre, usam-se imagens de arquivo ou, então, faz-se uso da reconstrução. Tal uso foi legitimado pela escola de John Grierson, criador e figura emblemática do primeiro movimento documentarista, na Grã-Bretanha (anos 30). Nas imagens de arquivo o ponto de vista não foi, obviamente, escolhido pelo documentarista mas, integrar essas imagens implica uma selecção, o que permite afirmar que essas mesmas imagens se adequam ao filme que se está a realizar. O momento das filmagens propriamente ditas é extremamente importante, não só porque é aqui que se estreita a relação documentarista-intervenientes mas, também, porque o material recolhido é decisivo para o filme final. O momento em que se liga e em que se desliga a câmera de filmar condiciona a fase seguinte - a pós-produção. Cada plano apresenta um determinado ponto de vista, quer o documentarista tenha disso consciência ou não. Neste sentido, é importante que o documentarista defina qual o nível de envolvimento que procura para um determinado momento. Cada plano deve ser pensado na sua especificidade e em relação com o todo do filme. Ou seja, é necessário articular o controlo gráfico com o controlo narrativo. A procura de espontaneidade por parte dos intervenientes no filme coloca a questão, muitas vezes discutida, de a câmera de filmar alterar o comportamento dos intervenientes do filme. Ora, os intervenientes não são actores, por tal não é possível alterarem completamente o seu comportamento. A câmera não é um mecanismo de alteração de comportamentos; a sua presença torna-se, ao fim de algum tempo, um mecanismo que facilita a expressão de cada interveniente. Por um lado, essa facilidade deriva da relação de confiança que o documentarista estabelece com os intervenientes e, por outro lado, pelo facto de as pessoas estarem de tal modo envolvidas em determinada situação que tendem a esquecer a presença da câmera. Ou ainda, pelo facto de as pessoas verem na câmera um meio que lhes permite ter "voz". O registo de imagens e sons do mundo não reflecte, por si só, o valor e interesse do documentário e, embora condicione, não determina a definição do ponto de vista para um filme. Só a organização/ligação que se cria entre essas imagens e sons é o momento determinante para o ponto de vista. O

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documentarista organiza diversos elementos: entrevistas, som ambiente, legendas, música, imagens filmadas in loco, imagens de arquivo, reconstruções, etc. A sucessão de imagens implica uma interpretação por parte do documentarista mediante a escolha de técnicas de montagem. Mesmo quando a interpretação do documentarista se esconde por detrás de convenções (como o plano-sequência) o que se torna patente é que essa sua escolha resulta da convicção de que a mesma merece a aceitação de todos. A sucessão das imagens e sons tem como linha orientadora o ponto de vista adoptado e encontra na criatividade do documentarista o seu principal motor. É ao seleccionar e combinar as imagens e sons registados in loco que o documentarista se expressa. Ao proceder assim, apresenta-nos um ponto de vista sobre determinado assunto. Para além disso, cria uma interpretação que se manifesta pela maior ou menor criatividade que imprime à sucessão dos elementos que o filme integra. A relação conteúdo-forma (ou seja, o assunto abordado pelo filme e o modo como é abordado) deve ser um todo coerente. O importante é não separar o conteúdo da forma. Neste sentido, os melhores documentários serão aqueles cuja forma se interliga de tal modo com o conteúdo, que é quase impossível pensar um sem o outro. Para cada ponto de vista, existirá, eventualmente, uma forma que deve ser encontrada, à qual o documentarista acede pelo uso criativo da linguagem cinematográfica. Esta sua autonomia não exclui o facto de que a escolha da forma do filme é uma opção que depende de vários condicionalismos: sociais, económicos, culturais, políticos, técnicos, etc. Apesar disso, podemos afirmar que no documentário a relação entre a forma e conteúdo é continuamente criada e recriada. O documentarista tem (se colocarmos de lado constrangimentos essencialmente políticos ou económicos) a possibilidade de trabalhar e explorar essa relação forma-conteúdo. O seu ponto de partida, ou seja, a "contingência do real", não é uma limitação. Pelo contrário, é uma fonte inesgotável de conteúdos e formas. São essas formas que impregnadas pela criatividade do documentarista fornecem ao documentário uma vida própria e uma especificidade especial. O único limite é a sua própria criatividade na e pela qual encontra a forma adequada à manifestação de determinado ponto de vista, a respeito de determinado tema. Esta questão não se coloca, ou, pelo menos, coloca-se de maneira menos acentuada, quando o filme a realizar é um trabalho encomendado. Nesta situação, o documentarista é vulnerável ao apelido de "propagandista". Mas, se o lado propagandístico do documentário pressupõe o objectivo último de transmitir um ponto de vista sobre o mundo e levar a audiência a partilhar esse mesmo ponto de vista, todo o documentário, aliás, toda a comunicação, é propaganda. De qualquer modo, o documentário deve ser visto como um modo pouco propagandístico. A ficção seria muito mais propagandística, pois a sua mensagem é recebida como algo diferente: entretenimento. Em contrapartida, o documentário assume-se como muito mais interventivo. Em muitas situações, a ficção funciona melhor que o documentário. Por exemplo, a tomada de consciência da doença SIDA é mais facilitada pelo desvio da ficção; esta facilita mais a identificação e a projecção que o testemunho "nu e cru" de pessoas que vivem essa situação. Enquanto conceito mais abrangente, o ponto de vista permite-nos falar da leitura ou visão que determinado filme, no seu todo, nos apresenta sobre determinado assunto, no caso (do documentário) sobre determinada realidade. A visão de um realizador sobre determinado assunto manifesta-se então, de modo formal, ou seja, pela utilização da linguagem cinematográfica. Assim, o espectador poderá interpretar o filme através do olhar do documentarista e aperceber-se de que determinada realidade pode ser vista de modo diferente. Enquanto figura o documentarista é uma referência para o documentarismo. O documentarista é a base em que se subsume o próprio documentário. Em todas as fases de produção é-lhe exigida uma grande intervenção. Pelas suas características, a produção de documentários é conduzida por equipas reduzidas. É muito usual encontrarmos filmes onde o realizador é também produtor, câmera e, em especial, também editor. Em suma, é o documentarista que com as suas próprias motivações torna patente que, não é só o movimento dentro dos planos que é importante mas, também, o movimento entre os planos, ou seja, a passagem de movimento para movimento, que a montagem torna possível. Embora estes dois movimentos estejam sempre presentes em todo e qualquer filme, é possível dar mais relevância a um em detrimento do outro. No caso, cabe a cada

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documentarista estabelecer essa prioridade. Um documentário é uma obra pessoal e implica uma necessidade da parte do documentarista em expressar algo, em dizer algo sobre determinado assunto. Não se trata de egoísmo ou narcisismo. Documentaristas que fazem filmes pessoais, ou seja, sobre eles próprios, sobre temas que a eles lhe interessam ou sobre temas sobre os quais lhes interessa apresentar a sua visão, estão, obviamente, a apresentar a sua visão pessoal. Antes de mais, estão a contribuir para o desenvolvimento do género. Cada filme contribui para o cumprimento de uma das principais funções do documentarismo: promover a discussão sobre o nosso próprio mundo; confrontarmo-nos ou distanciarmo-nos de nós próprios. Estão, também, a incentivar o diálogo sobre diferentes experiências, sentidas com maior ou menor intensidade. Apresentar novos modos de ver o mundo ou de mostrar aquilo que, por qualquer dificuldade ou condicionalismos diversos, muitos não vêem ou lhes escapa, é então a principal tarefa de um documentarista. Estes muitos a que me refiro, podem ser os espectadores ou os próprios intervenientes de um filme. O ponto de vista implica que o documentarista sente necessidade em expressar algo pessoal. É precisamente sobre a visão pessoal que cada filme nos apresenta que a questão da sua relação com os intervenientes do filme se coloca com mais pertinência. 2 Relação documentarista - intervenientes O documentário é, como vimos, uma obra pessoal. O documentarista não deve ser visto apenas como um meio para transmitir determinada realidade. A partir do momento em que se decide fazer um documentário, isso constitui já uma intervenção na realidade. É pelo facto de seleccionar e exercer o seu ponto de vista sobre um determinado assunto que um filme nunca é uma mera reprodução do mundo. É impossível ao documentarista apagar-se. Ele existe no mundo e interage com os outros, inegavelmente. O fim último é apresentar um ponto de vista sobre o mundo e, o mais das vezes, mostrar o que sempre esteve presente naquilo para onde olhamos mas que nunca vimos. O documentário tem por função revelar-nos (aos intervenientes e aos espectadores) o mundo em que vivemos. Acima de tudo, um documentário transmite-nos não a realidade (mesmo nos louváveis esforços em transmitir a realidade "tal qual") mas, essencialmente, o relacionamento que o documentarista estabeleceu com os intervenientes. No caso de documentários mais pessoais, o que é patente é a relação que o documentarista estabelece consigo próprio. O processo de produção dos documentários mais do que permitir, exige uma relação de grande proximidade e envolvimento com o que se filma. A quase necessidade que o documentarista tem em respirar o mesmo ar que o objecto que filma e o fascínio de colocar no ecrã a sua interpretação do que filmou é o que de melhor tem o documentário, deixarmo-nos envolver e partilharmos essa experiência com os outros, nomeadamente com os espectadores. O documentarista percorre um caminho e o filme é o resultado desse caminho percorrido, que se partilha com os espectadores. Um documentário não é unidireccional ou seja, é necessário que o documentarista esteja, constantemente, aberto para receber informações, que advêm dos intervenientes. Por tal, fazer um documentário implica estabelecer uma relação de compromisso e uma relação de confronto com a realidade. Uma relação de compromisso porque é legítimo que os intervenientes tenham expectativas quanto à sua representação no ecrã. Robert Flaherty é um exemplo desta atitude. Flaherty viveu de1912 a 1919 com o povo inuit, esquimós do norte do Canadá. Para ele, devia passar-se o tempo necessário com os intervenientes do filme para que a história emergisse por ela própria, a história devia ser a história do local. Ainda assim, a "última palavra" é a do documentarista (e no caso de Flaherty esta é uma questão polémica). A relação de compromisso implica questões éticas tais como a de saber se os intervenientes estarão ou não conscientes do impacto que poderá ter na vida deles o facto de se exporem perante uma câmera. Quando é que os documentaristas têm essa certeza? Até quando devem filmar? Quem estabelece os limites entre o privado e o que pode ser mostrado publicamente? Onde termina o direito que os espectadores têm a determinada informação e começa a privacidade que é um direito inegável dos intervenientes? Um documentarista tem o direito de contar a(s) história(s) do Outro? Um documentarista é um realizador que, tal como outro qualquer, tem o direito de fazer filmes, de se expressar. O acesso cada vez mais facilitado (embora estejamos ainda longe de uma situação ideal) aos meios de produção, incentiva interessantes registos que cumprem a função de estimular o diálogo sobre o nosso mundo, e

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respondem, de algum modo, às questões éticas que se colocam à realização de documentários. A probabilidade de alguém fazer um documentário sobre uma comunidade e falhar em certos aspectos, certas nuances próprias da vida dessa comunidade, assim como interpretar mal o que foi dito pelos intervenientes, é elevada. Alguns antropólogos resolvem este problema dizendo que basta colocarem-se a eles próprios no filme. Albert Maysles diz que basta o documentarista mostrar empatia e respeito pelos outros para que a verdade surja. Mas, um documentário não deve ser julgado por isso, deve ser visto como uma interrogação sobre a realidade, sobre a nossa própria condição humana. Um documentário é sobre momentos mais profundos que se encontram sob as imagens que vemos. A relação que o documentarista estabelece com os intervenientes é, pois, complexa. Os planos sequência e planos longos, muito utilizados no documentário, são a prova dessa relação. Este tipo de planos revela uma necessidade em não quebrar a unidade, a complexidade e ambiguidade de que é feita a própria realidade. Em geral, este tipo de planos, implicam a selecção de um ponto de vista ambíguo em que se apela à participação dos espectadores para uma leitura crítica do filme. A relação de confronto que se estabelece com os intervenientes advém do estatuto do documentário enquanto obra cinematográfica. A visão do documentarista manifesta-se pelas escolhas que faz ao abordar determinado assunto e a imprevisibilidade inerente à realização/produção de documentários, entra em constante confronto com a certeza do ponto de vista adoptado, que o documentarista pretende transmitir. Enquanto processo, a realização/produção de um documentário implica uma relação especial com os intervenientes mas, também, com outra entidade que faz parte desse processo: os espectadores. Os intervenientes e os espectadores têm direitos. Aos primeiros deve-se o respeito pelas suas expectativas e motivações, aos segundos deve o documentarista oferecer uma visão do mundo que os rodeia. Um documentário não é apenas do documentarista nem dos intervenientes, também é dos espectadores. Podendo partir de algumas ideias préconcebidas, deve entender-se o documentário como um filme que resulta de um processo que envolve tanto a perspectiva do documentarista, como o confronto dessa sua perspectiva com a das pessoas directamente envolvidas no filme. Por isso, é essencial que um documentarista se interrogue sobre as suas motivações: porque quer fazer determinado filme? O que quer revelar/apresentar sobre determinada realidade? Qual o ponto de vista escolhido? Para tal, é necessário fazer pesquisa, ou seja, encontrar histórias da "vida real". Muitos bons documentários surgiram da leitura de jornais, ou revistas. É disso exemplo o filme de Errol Morris, Mr. Death (1999). Morris soube da existência de Fred A. Leuchter, um especialista em tecnologia usada para a execução de humanos (pena de morte) e que foi contratado por Ernst Zündel para encontrar provas de que o Holocausto nunca existiu, através do jornal New York Times. Fazer um documentário implica uma questão essencial: há que fazer escolhas e questionar essas escolhas. No documentário há lugar quer para narcisismos, quer para voyeurismo, quer para a defesa de vozes que não têm a oportunidade de se expressar (ou seja, fazer nossa a luta dos outros). Por isso, é importante incentivar a produção de documentários, há que permitir o acesso aos meios de produção, há que deixar surgir novas visões sobre o mundo. No caso, esta liberdade de expressão (pois é disso que se trata) manifesta-se nas construções visuais que um filme nos apresenta. Construções essas que não se devem submeter ao modo como os espectadores estão habituados a ver. O documentarista deve poder ser livre de fazer as suas próprias escolhas fílmicas de modo a transmitir-nos um ponto de vista sobre determinada realidade. Novos modos de ver o mundo, podem implicar novas construções visuais. Experimentar o pulsar da vida das pessoas e dos acontecimentos do mundo no ecrã é o que o documentário tem de mais gratificante para nos oferecer. É, sem dúvida, um modo de incentivar um conhecimento aprofundado sobre a nossa própria existência. Textos de Manuela Penafria, Universidade da Beira Interior

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4.4 Os Primeiros Documentários O Filme de Viagem (ou etnográfico) Nanook, o esquimó, Robert Flaherty. US:1922. 79’

As Sinfonias das Cidades Rien que les heures, Alberto Calvalcanti. 1926.45’ Berlim, sinfonia de uma grande cidade, Walter

O Movimento documentarista Britânico Drifters, John Grierson. UK: 1929. 49’

O Cinema Verdade O Homem da Câmara de Filmar, Dziga Vertov. SU: 1929. 68’

Ruthman. 1927.65’ A Chuva, Joris Ivens. 1929 À propôs de Nice,Jean Vigo. 1930 Douro, faina fluvial, Manoel de Oliveira. PT: 1931. 20’

4.5 Outros Documentários da História do Cinema O Cinema Documental como Propaganda 39

O Triunfo da Vontade, Leni Riefenstahl. DE: 1935. 114’ Basil Wright e Harry Watt, Night Mail, 1936. UK. 25` Why we fight, Frank Capra. 1943/45

A influência da Nouvelle Vague Moi, un noir, Jean Rouch. 1958 Belarmino, Fernando Lopes. 1964 Crónica de um Verão, Jean Rouch e Edgar Morin.1961 (definido como cinema vérité) Nuit et brouillard, Alain Résnais. 1955

Direct Cinema Primary, Robert Drew. 1960

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5 Documentário em Portugal 5.1 Propaganda e cinema no estado Novo – O Documentário O Salazarismo compreendeu, desde cedo, a importância do cinema como forma de Propaganda do regime, sobretudo ao nível da "informação". O SPN, logo em 1935, organizava o "cinema ambulante", que percorria o país, contribuindo, assim, como também com bibliotecas cuidadosamente escolhidas e com o "teatro do povo", para a modulação da "cultura popular". Por sua vez, o controlo da censura evitava a difusão de mensagens que não estivessem de acordo com essa cultura-modelo: os filmes, quer fossem portugueses ou estrangeiros, eram "visados pela Inspeção Geral dos Espetáculos" e seria interessante fazer um trabalho sistemático para entender o sentido do cinema que se via e aquele que não era permitido ou de que se censuravam certas partes. Os documentários foram, porém, em termos de Propaganda, o núcleo mais importante. Os seus centros de produção foram, entre outros, ou a SPAC (Sociedade Portuguesa de Atualidades Cinematográficas), a Agência Geral das Colónias, através das Missões Cinegráficas, ou o próprio SPN, que, a partir de 1944, com a operação de cosmética que o levou à mudança de nome, então apelidado de Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), passou a ter atividades alargadas de "proteção" ao cinema'!'. Assim, produzido pela SPAC para o SPN, surgia em 1938 o Jornal Português e os seus suplementos, a maioria deles (como é o caso, apenas para servir de exemplo, de A manifestação Nacional a Salazar, de António Lopes Ribeiro, de 1941) bem elucidativos das intenções propagandísticas. Também produzido pela SPAC ficou célebre pela divulgação que teve, mas sobretudo pelo sentido do espetáculo filmado e pelo apuro técnico e estético da realização de António Lopes Ribeiro, por certo influenciado pelos filmes sobre as Olimpíadas de Berlim de Leni Riefenstahl, a Inauguração do Estádio Nacional (1944). Aliás, as obras públicas tiveram sempre uma divulgação especial, ou através da inauguração de urna obra em particular ou da divulgação desta atividade do Estado Novo - recorde-se, por exemplo, no cinema (também surgiam obras idênticas ao nível da. publicação), Quinze anos de Obras Públicas (1948), produzido pela SPAC e realizado por António Lopes Ribeiro. O SPN produziu, por exemplo, o filme As festas do Duplo Centenário (1940), igualmente de Lopes Ribeiro, que, com A Exposição do Mundo Português (1940), de Carneiro Mendes, apresentam as cenas dos acontecimentos mais importantes da construção da memória histórica pelo Estado Novo, de grande sentido nacionalista, ou seja, os acontecimentos que marcaram a celebração do duplo centenário da Fundação da Nacionalidade (1140) e da Restauração da Independência (1640). A Agência Geral das Colónias virou-se, como seria natural, para a produção de fitas ligadas ao Ultramar, de que são exemplo os filmes Exposição Histórica da Ocupação (1937), ou Guiné, berço do Império (1940), ambos também de Lopes Ribeiro. São meros exemplos que apresentamos. Consultando a importante obra de informação Prontuário do cinema português, de José de Matos-Cruz, e outras edições do mesmo autor'!', logo nos apercebemos do volume incrível de documentários, das mais diversas origens, em termos de produção, que, de forma direta ou indireta, propagandeavam o regime. Na década de 60, com o eclodir da Guerra Colonial, foi então particularmente rica essa elaboração, nomeadamente no que diz respeito a Angola, colaborando nessa atividade empresas particulares ou os Serviços Cartográficos do Exército, que tinham uma importante secção de cinema. Além disso, a televisão, com a fundação da RTP em 1957, passou igualmente a ter uma intervenção significativa neste processo. Luís Reis Torgal, Cinema e Propaganda no Estado Novo. Comunicações, EPHZC, p.129-131,Coimbra, 1994

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5.2 Documentaristas Portugueses O caso de António Campos Almadraba Atuneira

Sinopse

Esta foi a última atividade de “armação” ou “almadraba” da pesca do atum, na Ilha da Abóbora, Algarve, antes do arraial ter sido destruído pelo mar no Inverno do ano seguinte, em 1962.

Ficha técnica Realização, Montagem: António Campos Produção: António Campos Som: Alexandre Gonçalves Música: Sagração da Primavera, I. Stravinsky Duração: 27’ Formato: 16mm; p/b País: Portugal Ano: 1961

Festivais e Prémios 1972 | II Festival Internacional de Cinema de Santarém, Festival do Filme Agrícola e de Temática Rural 1988 | VII Congresso Mundial de Sociologia Rural, Bolonha - Prémio Agri Festival - pelo conjunto da sua obra 1994 | X Festival Internacional de Cinema de Tróia - Exibido fora de competição

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Vilarinho das Furnas

Sinopse Protelada durante alguns anos a sentença de morte que havia sido ditada, Vilarinho das Furnas viu, em 1969, chegar a hora da sua destruição. Aconchegada no sopé da serra Amarela, e por isso defendida das nortadas frias de Inverno, aninhava-se entre o Rio Homem e a Ribeira Eido, que lhe irrigavam os campos que, ao longo daquele, se estendiam. Remetida para um sistema de vida comunitária pastoril, único possível para vencer as deficientes condições de subsistência que o local oferecia, Vilarinho das Furnas desapareceu com o manto das águas frias e límpidas que, durante tantos anos, lhe deram vida. Uma homenagem ao povo, por quem acompanhou os doze últimos meses de existência...

Ficha técnica Realização, Montagem: António Campos Produção: António Campos Som: Alexandre Gonçalves Intérprete e narrador: Aníbal Gonçalves Pereira Música: Duração: 65’ Formato: 16mm; p/b País: Portugal Ano: 1971 Financiamento: Fundação Calouste Gulbenkian

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5.3 Sobre António Campos ‘A filmografia de António Campos - que se situa entre 1957 e 1993 - é aparentemente diversa: documentários propriamente ditos, filmes institucionais, sobre Arte ou ficção adaptada de obras literárias. Há, no entanto, uma coerência temática e formal, muito em especial, antes e depois de um acontecimento que costuma servir de marco e oportunidade para uma mudança de discurso, o 25 de Abril de 1974. Ainda que admitamos haver algum tipo de avanço ou de recuo, o que gostaríamos de destacar é que estamos perante uma filmografia suportada por uma ideia de cinema muito precisa, a saber, o cinema tem uma missão tão importante quanto urgente a cumprir: filmar o presente. E esta é uma missão que António Campos tomou como sua e na qual se empenhou profundamente. O cinema é assim chamado a colaborar numa consolidação do presente impedindo que o mesmo se transforme num passado opaco. “Filmar o presente” é, no entanto, uma expressão demasiado vaga e que trataremos de clarificar com 3 pontos que nos parecem essenciais: 1) Em primeiro lugar, um registo in loco. O realizador deslocou-se aos locais onde os acontecimentos estavam a decorrer e onde as pessoas viviam. Os seus filmes são pois o resultado de experiências vividas com pessoas concretas em situações concretas. Por exemplo, no caso de Terra Fria, filme adaptado do romance homónimo de Ferreira de Castro, a rodagem decorreu em Padornelos (distrito de Vila Real), a mesma aldeia em que Ferreira de Castro escreveu e situou o seu romance. 2) Um segundo ponto diz respeito à actualidade dos temas e aqui podemos destacar dois filmes: A Invenção do Amor e Vilarinho das Furnas. A Invenção do Amor, um filme adaptado do poema homónimo de Daniel Filipe, é uma metáfora ao ambiente de opressão mas, em especial, de perseguição vivida antes do 25 de Abril de 1974. Por seu lado, Vilarinho das Furnas trata de um tema não menos dramático: uma pequena aldeia minhota que foi submersa pelas águas de uma barragem e onde António Campos registou os derradeiros gestos de uma vivência em comunidade. 3) Por fim, um terceiro ponto para nos referirmos aos intervenientes. António Campos aproximouse das pessoas que fazem os trabalhos mais pesados, as que mais se esforçam mesmo sem qualquer garantia de um benefício correspondente ao seu esforço. Sempre ao lado do seu povo e solidário com os seus problemas, a filmografia de António Campos encontra-se enraizada na vida do povo português, mas essa filmografia caracteriza-se, essencialmente, por prestar homenagem às mulheres, à mulher-mãe e à mulher capaz de executar trabalhos pesados. Nos seus filmes também encontramos uma presença de crianças que não raro nos olham a nós espectadores, partilhando o silêncio. Por exemplo, Falámos de Rio de Onor termina com um longo plano de uma fotografia de um rosto de criança e em Retratos dos das Margens do Rio Lis onde o fluir das águas do rio Lis é associado ao fluir da vida daqueles que habitam e trabalham junto às suas margens, as crianças apresentam-se-nos tão-somente e apenas com uma convicção inabalável: “Eu existo”. E existir, o simples existir é em si o maior sinal de Esperança. Estes três pontos dependem e são percorridos por um outro que nos interessa particularmente, já que foi no cinema que António Campos encontrou o meio mais adequado para divulgar a originalidade do povo português; esse aspecto diz então respeito ao seu estilo cinematográfico. Trata-se de um estilo que definimos utilizando uma expressão de António Campos a propósito de Um Tesouro, a sua primeira curtametragem, e que nos parece adequado alargar a toda a sua filmografia, a saber, a “poesia com os pés na terra”. Esta expressão destaca que estamos perante um aturado trabalho de realização

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cinematográfica que não coloca em causa nem distrai o espectador do conteúdo da sua filmografia. Sem nunca cair no mero postal ilustrado, nem no mero exercício formal, António Campos é o realizador da planificação cuidada e amadurecida, uma planificação que lhe permite não recorrer à reconstrução dos acontecimentos e que prevê de antemão a inclusão de gestos espontâneos de personagens encarnadas por actores não-profissionais, por actores profissionais ou por quem se representa a si mesmo. E não é por ter filmado os mais desfavorecidos que António Campos se assumiu legítimo representante dos mesmos. Nunca reclamou dar “voz ao povo”, nem tão pouco se trata aqui de um “assalto ao real” (no sentido de um registo “nu e cru”). A sua câmara está próxima daqueles que filma, olhando-os de frente, mas estabelecendo a distância necessária, nem de mais nem de menos, absolutamente justa. É uma câmara que se substitui ao olho humano. O que nos seus filmes se pressente é que por detrás da câmara há uma força humana que a movimenta. António Campos operador tem a particularidade de “fazer desaparecer” a presença da câmara e de proceder a um enquadramento dinâmico, no sentido em que se adapta ao que está a filmar. Trata-se enfim, de uma câmara curiosa e atenta a tudo quanto a rodeia que apreende, ou melhor, que absorve, o que está à sua frente e movimenta-se como uma força centrípeta que atrai e enquadra pessoas e acontecimento em cenários naturais e esta é uma câmara que se detém, em especial, nas pessoas e para quem os cenários naturais: o mar, a montanha, os rios, os vales, nunca são constituídos em personagem. António Campos é, também, o realizador da montagem depurada, o seu corte aperfeiçoa o filme, distribui por cada plano a duração mais adequada e expurga o que (eventualmente) possa estimular o mais pequeno sensacionalismo, ou qualquer tipo de voyeurismo. É um corte seco e preciso, de um rigor extremo. A montagem é, no essencial, uma actividade onde o realizador trabalha “corpo a corpo” com o material rodado, recorrendo àquilo a que chamámos raccord por analogia, ou seja, uma ligação entre os planos que mantém o equilíbrio de composição e de enquadramento, de um plano para o plano seguinte. E é, finalmente, o realizador do e para o espectador. É para ele que faz filmes; é com ele que António Campos se preocupa, pretendendo tocar tanto o espectador do presente, aquele que é colocado perante acontecimentos que estão a decorrer, como o espectador futuro, aquele que poderá olhar para o passado através dos seus filmes. O espaço fílmico não é um espaço para uma orquestração de entradas e saídas em campo, é um espaço de permanência. Podemos dizer que a partir do momento em que uma pessoa ou um objecto entram em campo é para não mais de lá saírem. Por exemplo, em Um Tesouro, no primeiro plano do filme uma mulher entra em campo, nos dois planos seguintes essa mesma mulher surge já dentro de campo e apenas se movimenta dentro dos limites do enquadramento. A permanência em campo remete-nos para um outro aspecto importante: a riqueza de conteúdo. Entendemos que essa riqueza de conteúdo diz, essencialmente, respeito à relação constante que o cinema estabelece com outras obras. O cinema não se encontra alheado das preocupações de outros autores, nomeadamente dos que têm na palavra o seu modo de expressão, em romances, contos, poesias - ou mesmo em livros de investigação científica, nomeadamente os livros do antropólogo Jorge Dias que serviram ao realizador para preparar a rodagem de Vilarinho das Furnas e de Falámos de Rio de Onor. Em António Campos, o trabalho de adaptação é, também (e sobretudo), um trabalho de transformação. O cinema é entendido como uma Arte contemporânea de outras Artes e que pode partilhar com elas de um mesmo espírito sem, no entanto, perder a sua autonomia uma vez que possui os seus próprios recursos. Ao posicionar-se assim, António Campos vai ao encontro da concepção de André Bazin do cinema como uma “arte impura”, isto é, o cinema que contamina e que se deixa contaminar por outras proveniências. Guardadas as devidas distâncias, António Campos e os escritores Loureiro Botas, Miguel Torga, Ferreira de Castro, Passos Coelhos e Teófilo Braga encontram-se enraizados na originalidade povo português, no quotidiano dos homens e mulheres que trabalham na terra e no mar para daí retirarem o seu sustento e que têm no nascimento e na morte os momentos fulcrais da vida. A missão do cinema

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tal como entendida por António Campos, a de “filmar o presente” é uma missão que na sua filmografia se apresenta com rigor e justeza, sem lamentações, nem recorrendo a qualquer tipo de demagogia. Os seus filmes respiram tranquilidade. Há ainda um aspecto que podemos apresentar apenas como nota, mas que entendemos não poder deixar de realçar e que diz respeito às condições para fazer cinema. Desconfortável com um cinema onde predomine a figura do produtor e fortemente avesso a tudo o que pudesse de algum modo afectar a sua liberdade, António Campos encontra nos procedimentos do filme documentário uma outra possibilidade ou uma outra forma de fazer cinema. Uma outra forma que, para usarmos uma expressão do realizador, se constitui em “anti-cinema”. No seu percurso, António Campos não participa propriamente dos movimentos e movimentações do cinema português. É um percurso mais solitário, seja por dificuldades em aceder a materiais e equipamentos para os quais não possuía recursos financeiros, seja por dificuldade de diálogo com o meio citadino por onde circulavam as influências e as tomadas de decisão. Para o realizador, fazer cinema não é uma actividade onde se formam equipas que se organizam e salvaguardam num sistema de produção, distribuição e exibição bem estruturado e assente na especialização de tarefas. Em vez disso, e ao redor de um determinado projecto é necessário que todos comunguem do mesmo entusiasmo e de uma mesma afinidade de sensibilidades. A actuação de António Campos é então mais pessoal e mais íntima. Mais pessoal porque é ele o operador e montador dos seus filmes usando, quase exclusivamente equipamento amador (8 e 16 mm) largamente mais manejável que o formato profissional (35 mm). Da sua filmografia chegam mesmo a constar filmes que apenas foram feitos com o intuito de experimentar a câmara de filmar, nomeadamente, O Rio Lis e Campos de Leiria. A sua actuação é, também, mais íntima porque estabelece um contacto muito próximo não apenas com os intervenientes dos seus filmes mas, também, com os espectadores. À excepção de Terra Fria (1992), único filme a ter exibição comercial, foram os cines clubes, as colectividades, as associações, as escolas ou os festivais de cinema que apresentaram os filmes de António Campos aos espectadores e quase sempre na presença do próprio. Iremos agora tentar explicitar o termo de Documentarismo que tem como fundamento a resposta à questão que colocámos inicialmente: que lugar ocupa o filme documentário na filmografia de António Campos? E a resposta é que não conseguimos identificar um lugar específico. O registo documental serviu-lhe de experimentação, constituiu-se como um projecto de cinema – e lembramos que o seu objectivo maior era “filmar o presente” - e podemos, também, encontrá-lo nos filmes de ficção intrometendo-se por entre os planos encenados. É o caso a que já fizemos referência de A Invenção do Amor e ao qual podemos acrescentar Histórias Selvagens, com o drama das cheias em Montemor-o-Velho ou as famosas chegas de bois e a feira transmontana feita propositadamente para a rodagem de Terra Fria, mas com vendedores autênticos. Se tivermos em conta que, em António Campos, o documentário não ocupa um lugar específico, podemos avançar para uma outra dimensão a que chamamos de Documentarismo, para realçar que mais explicitamente ou à retaguarda, a componente documental está sempre presente no cinema. Se as imagens do documentário têm uma ligação especial com o representado, o Documentarismo lembra que as imagens, todas as imagens possuem uma autonomia própria e solicitam da nossa parte que nos dirijamos a elas sem que nos percamos pelo acessório, ou seja, chamar constantemente o que é exterior às imagens, como seja a veracidade ou não veracidade da representação. O Documentarismo não é já e apenas uma praxis de carácter estritamente documental, mas passa a dizer respeito a uma ligação ao mundo através do cinema. Neste sentido, aquela que consideramos ser uma das principais tarefas do Documentarismo é trabalhar não apenas os modos de “representação da realidade” presentes no documentário, mas interessar-se pelo modo de “representação da realidade” antes, durante e depois da institucionalização do documentário enquanto género (o que decorreu nos anos 30, com o movimento documentarista britânico). Entendemos que esta metodologia de trabalho é coerente com a nossa posição em pensar o cinema a partir do documentário. Assumindo a

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perspectiva do Documentarismo em António Campos, podemos afirmar que os seus planos documentais não são os que nos mostram a praia da Vieira em Um Tesouro, as mulheres a ceifar em Vilarinho das Furnas, a chega de bois em Terra Fria, as cheias de Montemor-o-Velho em Histórias Selvagens... Os planos documentais são aqueles que concorrem para o modo de ver o mundo que está presente no seu cinema. Ou seja, são os aspectos que mencionámos atrás a respeito do seu estilo cinematográfico – não apenas as suas escolhas mais estritamente cinematográficas mas, também, as suas escolhas temáticas - que nos permitem a nós, espectadores, estabelecer e averiguar uma ligação ao mundo através do seu cinema. Muito resumidamente, podemos dizer que no cinema de António Campos o Homem (com H maiúsculo) é o valor maior e está aí presente um olhar militante nas causas que apresentou, mas absolutamente despojado de qualquer reivindicação panfletária. Em suma e para concluir, a filmografia aqui tratada é composta por filmes de fronteira, mais que darem a ver o mundo, são filmes que remetem para um modo de dar a ver o mundo destacando que é no cinema e pelo cinema que se traça o nosso pensar, sentir e agir. ’ Manuela Penafria, in O Documentarismo do Cinema, Uma reflexão sobre o filme Documentário (Resumo da tese de Doutoramento Universidade da Beira Interior, 2006)

5.4 Documentário Português Contemporâneo Ficha Técnica Realização: Sérgio Tréfaut Produção: Faux – Sérgio Tréfaut Imagem: João Ribeiro Montagem: Pedro Marques Som: Olivier Blanc Misturas de Som: Tiago Matos Formato de rodagem: vídeo digital (DVCAM) Telerecording 35mm: Tobis Portuguesa Financiamento: ICAM / MC Ano: 2004 Duração: 100'

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Curiosidades Mais de 3 meses em cartaz Exibido em mais de 20 festivais e mostras internacionais

Prémios 2004 | Melhor Filme Português – IndieLisboa 2007 | Melhor Documentário – Uruguay International Film Festival 2007 | Melhor Direcção e Melhor Montagem – Brasil, Cineport

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5.5 Outros Documentários Portugueses Manuel de Oliveira, Douro, faina fluvial,1931 Manuel de Oliveira, As pinturas do meu irmão Júlio,1965 António Campos, Vilarinho das Furnas, 1971 Fernando Lopes, Belarmino,1964 João César Monteiro, Sophya de Mello Breyner Andresen, 1972 António Reis, Jaime, 1974 António Reis e Margarida Cordeiro, Trás-os-Montes,1978 Rui Simões, Deus, Pátria, Autoridade, 1975 Pedro Costa, No quarto de Vanda, 2000 Sérgio Trefaut, Lisboetas, 2004 Manuel Mozos, Ruínas, 2009 Catarina Mourão, Pelas Sombras, 2010 João Canijo, Fantasia Lusitana, 2010

6 VER AINDA Luís Buñuel, Las Hurdas, terra sem pão. ES: 1932. 30’ Jean Rouch, Eu, um negro, 1958. FR. 72’ Józef Piwkowski, The first film, 1981. POL. 10’ Claude Nuridsany, Marie Pérennou, Microcosmos, o povo da erva, 1996. FR. 80’ Agnès Varda, Os respigadores e a respigadora, 2000. FR. 79’ Michael Moore, Bowling for Columbine. US: 2002. 120’ José Luís Guerín, En construcción. ES: 2000. 125’ Nicolas Philibert, Ser e ter, 2002. FR. 104’ The thin blue line, Errol Morris. US: 1988. 103’

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Bibliografia Aitken, Ian (Selecção e Introdução),The Documentary Film Movement. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1998. Almeida, Manuel Faria de, Cinema Documental: história, estética e técnica cinematográfica. Porto: Edições Afrontamento, 1982. Alves Costa, Henrique, Breve História do Cinema Português (1896-1962). Lisboa: Ministério da Educação e Investigação Científica/Secretaria de Estado da Investigação Científica/Instituto de Cultura Portuguesa, 1978. Baptista, Tiago, Das ‘vistas’ ao documentário: a não-ficção muda em Portugal. In Catálogo PANORAMA 2012 — 6ª Mostra de Documentário Português, 37-42. Videoteca/Arquivo Municipal de Lisboa e Apordoc — Associação pelo Documentário, 2012.

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Baptista, Tiago, A Invenção do Cinema Português. Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2008 Barsam, Richard M., Non-Fiction: a critical history. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1992. Bonitzer, Pascal, Le champ aveugle: essais sur le realisme au cinéma, Paris: Petite Bibliothèque des Cahiers du Cinéma, 1999. Borges, Gabriela (Org.), Nas Margens: ensaios sobre teatro, cinema e meios digitais. Lisboa: Gradiva, 2010. Bousé, Derek, Wildlife Films. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2000. Breschand, Jean, Le Documentaire: l'autre face du cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 2002. Carroll, Noël, “From real to reel: Entangled in Nonfiction Film” en Theorizing the Moving Image. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. Carroll, Noël, “Fiction, Non-fiction and the Film of Presumptive Assertion: A Conceptual Analysis” in Film Theory and Philosophy, London: Ed. Richard Allen, 1997. Choza, Jacinto e Montes, María José (Edt), Antropología en el Cine: construcción y reconstrucción de lo humano. Madrid: Ediciones del Laberinto, 2001. Colleyn, Jean-Paul, Le Regard Documentaire. París: Editions du centre Pompidou, 1993. Connerton, Paul, How societies remember. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. Corner, John, The art of record, a critical introduction to documentary, Manchester and New York : Manchester University Press, 1996. Cunha, Paulo e Sales, Michelle (Org.), Cinema Português: um Guia Essencial. S. Paulo: SESI-SP Editora,2013. Elsaesser, Thomas e Barker, Adam, Early cinema, space, frame, narrative. London: BFI Publishing, 1997. Epstein, Jean, “Le Cinématographe Vu de l’Etna” in Écrits sur le cinéma, Tome 1. Club/Seghers, 1974.

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Graça Lobo |Isa Catarina Mateus

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