Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Escola de Psicologia e Ciências da Vida
Sessão Solene de Abertura do Ano Académico – Aula Magna
…sobre os nossos factores de desenvolvimento UM CONTRIBUTO ESSENCIAL DO PORTUGAL INSULAR, O MAR Por Carlos César*
*presidente do Governo dos Açores 1996/2012
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Autoridades universitárias Senhor Diretor da Escola de Psicologia e Ciências da Vida, Docentes e alunos Minhas Senhoras e meus senhores
Começo, naturalmente, por saudar os presentes no início de mais um ano letivo. A todos aproveito para augurar os melhores sucessos académicos e pessoais. Agradeço também, vivamente, o convite que me foi formulado pelo Professor Doutor Carlos Alberto Poiares - que muito me honra, sendo ele um distinto docente e investigador -, para vos falar neste momento tradicionalmente solene na vida das instituições de ensino superior. Nasci, como devem saber, nos Açores. Sou, afinal, um descendente dos portugueses e de muitos outros povos europeus com os quais fomos estabelecendo relações. Desde sempre, pois, a nossa geografia colocou-nos como região associada à comunicação civilizacional e à globalização. O diálogo entre a terra e o mar é a constante da história açoriana e da sua condição física. Raul Brandão, referindo-se ao cenário natural das terras dos Açores com que se confrontou nas suas viagens em 1924 escreveu que “O que completa a beleza desse grande panorama de trabalho e de luz é a colaboração do oceano e da serra”. Como 2
também referenciou Vitorino Nemésio, "As ilhas são o efémero e o contingente: só o mar é eterno e necessário". É, justamente, dessa maresia e da consciência do seu valor como um dos elementos estratégicos para o benefício do nosso país que vos falarei mais adiante, com maior detalhe, no âmbito dos fatores de sustentabilidade do desenvolvimento que Portugal procura. Os Açores dos finais dos anos cinquenta, quando nasci, ou mesmo dos primeiros anos da democracia, eram muito diferentes, para pior, dos de hoje, mesmo considerando os efeitos atuais da crise que se dissemina por todas as regiões do país, quer nos planos económico e social quer na qualidade da sua inserção nos níveis nacional e europeu. Éramos então a região mais atrasada do país quando este era o mais atrasado da Europa. Representávamos cerca de 40% da média do PIB nacional per capita, o que contrasta bem com os quase 95% atuais e com a boa aproximação que fizemos à média europeia por habitante (11 pp nos últimos 15 anos). Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo que a dívida dos Açores pouco nos últimos anos sendo de 19% face ao PIB da Região contra os 124% de Portugal em relação ao PIB em Dezembro passado. Os Açores não só não contribuem actualmente para o desiquilibrio orçamental do país como realizaram uma consolidação orçamental real. Quando por vezes alguns falam das transferências financeiras para as regiões autónomas atente-se que, no caso dos Açores, estas hoje já não chegam a metade do que por exemplo o Estado gastaria
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se detivesse na Região a administração dos setores da Saúde e da Educação. A extraordinária mudança que ocorreu não foi alheia à instauração do regime autonómico que conferiu amplos poderes políticos e legislativos às regiões insulares. De outro modo não teria sido possível. As autonomias, pese embora os incidentes processuais e os seus resultados últimos na Madeira, são experiências bem sucedidas que reforçaram a unidade nacional e a coesão económica e social entre o Portugal continental e insular. Podemos dizer que foi e é uma das mais relevantes reformas político-administrativas na organização do Estado português, depois do colonialismo, e só é pena que não se tenham desenvolvido, entretanto, processos semelhantes descentralizadores de reforço das competências da administração local e ou das regiões no território continental. Ainda recentemente, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, salientava com muita oportunidade que, no âmbito da reforma do Estado de que o País carece, “a descentralização deve ser a pedra angular” desse processo. Uma reforma do Estado assente, como ele diz, “na simplificação e modernização administrativa, que transmita eficiência e diminua custos de contexto, que poupe na burocracia, nas redundâncias, nos desperdícios e na ostentação”, em síntese que reoriente de forma adequada, racional e produtiva a despesa. Em sentido semelhante falou Silva Peneda afirmando que “falar de Reforma do Estado sem falar da regionalização não tem sentido”. 4
Não há, estou convicto, nada a temer - em matéria de eficiências, ou de multiplicação de efeitos burocráticos e na despesa, ou de desbulhe do Estado ou de efeitos desagregadores -, de uma descentralização inteligente, qualquer que seja a sua intensidade. A realidade tem provado que esses processos são virtuosos se e quando o seu enquadramento e condicionalidades não são desacautelados, podendo resultar numa redistribuição eficaz de recursos, numa transferência de serviços periféricos de proximidade para as regiões, num modelo de estabilização demográfica, em sinergias que melhoram a integração, tal como na superação de gritantes ausências de planeamento à escala regional que têm acentuado descontinuidades e desigualdades no desenvolvimento do país e menorizado e excluído regiões, pessoas e empresas. As vantagens, pois, da dispersão organizada de núcleos de responsabilização e de autogoverno são muitas e, ao contrário do que a politicagem centralista propaga, os perigos são conhecidos, escassos e, sobretudo, controláveis. Portugal é um exemplo flagrante: quando centralizado não evitou a decomposição e descentralizado, no que toca aos Açores e à Madeira, não tem riscos de fragmentação. Num período de transição entre paradigmas de gestão, de desenvolvimento e de exercícios de cidadania, como aquele que ora se vive, os apelos justificados à Reforma do Estado são, neste caso, uma boa oportunidade para reequilibrar o âmbito competencial dos diversos níveis de poder, facilitar a rapidez das decisões e para melhorar a participação cívica (participação que, diga-se, conjugada com a sensação de revolta e desconfiança que se vai generalizando 5
no país, é a melhor alternativa à instabilidade incontrolada em que, como avisa Adriano Moreira, “o imprevisível está à espera de uma oportunidade”). Portugal está, assim, a meu ver, incompleto na sua reconstrução democrática e penalizado nas suas eficiências com a falta de oportunidades que as suas regiões continentais têm para dispor, com maior autodeterminação, sobre aspetos específicos dos seus destinos. O mesmo, sem dúvida, acontece, ou devia acontecer nos contextos europeus. Na verdade quanto mais associadas estiverem as representações democráticas nacionais e europeias às aspirações e sensibilidades regionais e locais mais robustas ficarão as nossas democracias e menor será o temor da desconstrução europeia que paira sobre todos nós como uma ameaça quase civilizacional. Na verdade, para além da necessidade absoluta que Portugal hoje tem de ser parte de uma Europa providente e reguladora, o nosso destino também não poderá deixar de estar associado, na evolução que ambicionamos positiva, a uma Europa exigente, que arrepie caminho da debilitação e disfuncionalidade da sua governação e da desilusão e da sugestão de deliquescência da solidariedade entre Estados, governos e Povos. Não é um apelo serôdio o de aspirar a uma verdadeira União, que recupere do debilitamento do que designarei como “o espírito de necessidade de Europa”, que animava Jacques Delors ou mesmo Helmuth Kohl. Mesmo uma Europa que, na esteira de Maurice Shumann, se estruture com “realismo sem ideologia” serviria. Ao contrário, o prevalecimento das razões de uma advocacia patrona da 6
renacionalização de alguns poderes – que pode, é certo, satisfazer a visão do Reino Unido de coexistência mínima europeia, a proverbial suspeita alemã ou os avanços da direita populista –, o prevalecimento dessa tendência, dizia, liquidará por muitos anos um projeto europeu e destruirá progressivamente a competitividade de cada um dos seus atuais estados membros, inclusive os agora mais fortes. Só institucionalmente unida, também, a Europa poderá diminuir a probabilidade futura de eclosão novos conflitos internos fatais para as pessoas e para a sua economia. Sem um espaço europeu dotado de uma coordenação económica e financeira central e efetiva, de coordenadas de caracterização da Europa Social e da centralização de políticas conducentes ao redesenho dos poderes europeus em matéria de segurança e defesa, vai ser iminente e doloroso para os povos a destruição do ideal europeu sob a ilusão do honorifico beneficio da renacionalização de poderes. E, com isso, todos ficarão expostos a todos os perigos. A incorporação de preocupações de uma estratégia de crescimento para a zona euro, que parece animar o novo compromisso partidário do governo alemão, pode ser um sinal animador de inversão da deterioração que temos visto, goradas que foram as principais espectativas que haviam acompanhado a ascensão dos socialistas em França. Sabemos que só uma Europa socialmente mais forte e economicamente mais coesa poderá dar uma resposta mais eficaz aos desafios de desigualdade e de desemprego que alastram na União Europeia, pelo que não devemos temer uma reacção negativa 7
dos que são hoje contribuintes líquidos do Tesouro da União quando lhes reiteramos que a Europa só se preservará como espaço de paz e tolerância e só vencerá no concerto da competitividade mundial e da modernidade se tiver um Governo efetivo e com um poder fundado numa legitimidade democrática, direta e verdadeira que trate os cidadãos europeus com a equidade necessária.
Minhas Senhoras e meus Senhores Num momento em que tudo entre nós se parece confinar ao deve e haver do dia seguinte e em que cresce a convicção de que não sabemos o que fazer de Portugal, para além das práticas cruéis de confiscação e das políticas de cronometria “orçamentalista” que nos atingem, é fundamental perscrutar outras dimensões que podem ajudar a romper com esse imediatismo político conservador e restringente. A descentralização interna, por um lado, e uma governação europeia efectiva e provedora, por outro, são, seguramente, factores de sustentabilidade da autonomia e do progresso do país e informadores da reforma do Estado. É verdade que Portugal atravessa uma crise gravíssima que tem uma fortíssima componente estrutural. Mas, podendo ser uma das mais graves, não é única na nossa História nem na dos países com que convivemos, nem é irreversível. Não refaremos certamente o nosso futuro apenas com sobreviventes de uma epidemia de fome e miséria; todos deveremos superar estas dificuldades. E isso é possível. 8
Como dizia Roosevelt em 1936, ao referir-se aos desafios com que a sua geração de compatriotas se confrontava, “Há um ciclo misterioso nos eventos humanos. Para algumas gerações muito é dado. De outras gerações muito é esperado.” Roosevelt iniciou e concretizou o tenso e delicado processo de construção do pacto entre Estado, trabalho organizado e capital, que, no pós-guerra, fundamentaria o Estado de Bem-Estar americano e um longo período de prosperidade. E logo avisou que “ A Humanidade veio primeiro”, ou seja que para equilibrar o orçamento no pico do desemprego e da grande depressão ele teria “de virar a … cara com indiferença ao sofrimento humano” e isso não faria. São convicções de impressionante incisão na conjuntura portuguesa penosa que atravessamos, e porventura difíceis de seguir, no enquadramento europeu e internacional que temos e no humanismo que infelizmente escasseia. A alternativa, porém, tem sido depauperadora. Tenho pesar nesta constatação, mas não vale a pena negar as evidências. A verdade é que o País não conseguiu superar bem, nestes quase quarenta anos de democracia, os seus maiores défices estruturais, que condicionaram e condicionam os principais fatores de desenvolvimento: falo, por exemplo, da qualificação, da produtividade, dos desequilíbrios no consumo de recursos do Estado, do continuado mau funcionamento das funções judiciais, da inconstância nas prioridades económicas do investimento público, do contínuo desequilíbrio na balança de pagamentos, ou da falta de massa crítica do sector privado estabelecido para ser um motor de crescimento. 9
Simultaneamente, temos que reconhecer que falhámos na criação de um enquadramento propício estável para o investimento privado, pois, se revisitarmos todo este período antecedente verificamos que, para além da profusão burocrática, há uma marca profunda de instabilidade legislativa e insegurança jurídica, de alterações constantes nas políticas fiscais, de incentivos ao investimento, na lei laboral, no licenciamento industrial empresarial, entre outros aspetos. Outro exemplo, ainda é o do Sector Empresarial do Estado: apesar de necessário como potenciador de investimento, de crescimento económico e de correção de falhas de mercado, na verdade, mantivemo-lo sobredimensionado, com empresas inúteis em alguns casos e funcionando noutro como veículos do Estado para contornar limites de endividamento. O seu endividamento, hoje, absorve parte importante da capacidade de crédito do país e prejudica o tecido empresarial tendo em conta o valor da sua dívida a fornecedores. Alimentados por conjunturas económicas em que o acesso à liquidez externa – ou seja, ao crédito facilitado – era grande e estimulado, obtiveram-se, todavia, níveis significativos de crescimento e de emprego ainda que numa base de sustentabilidade provisória. É bom notar que mudámos a realidade do país em várias dimensões com enormes benefícios e disso somos beneficiários e não nos devemos arrepender. Mesmo assim, atente-se, os governos desaproveitaram fundos europeus, que receberiam a fundo perdido, deixando por concretizar várias infraestruturas necessárias em sectores como a ferrovia e os aeroportos ou na economia do mar, na
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modernização da agricultura, na ciência e na reestruturação do sector secundário. Gerámos, pois, progressos indiscutíveis mas não gerámos riqueza suficiente para assegurar a maior longevidade desse percurso. Permanecemos vulneráveis à conjuntura externa de referência que tal como nos beneficiou agora nos prejudica, que tal como nos incentivou para o aumento do investimento público com dívida inverte subitamente o critério e, para usar a expressão mais popular, retiranos o tapete tal como a outros países que seguiram percursos semelhantes. A crise, também nesse sentido, é europeia…e não só! O país vive com défices orçamentais há décadas, que ora foram cobertos por remessas de emigrantes, ora por fundos comunitários, ora por receitas extraordinárias, ora por recurso à dívida. Uns anos mais, outros menos, sempre assim foi possível prosseguir. Não foi um problema criado em 2009 ou 2010, nem agravado com este governo. Foi sim um problema que passou a ter outro enquadramento externo que tornou difícil ou irrepetível essa trajetória. As consequências foram inevitáveis: a economia frágil não se mostra capaz de reerguer sem assistência, a banca tem como prioridade salvar-se antes de acudir à economia, o Estado debilita-se com a quebra de receita e com os estabilizadores automáticos no máximo, a dívida e a desconfiança externa crescem de mãos dadas favorecendo o impasse. Talvez por lembrança do recurso ao FMI nos anos oitenta foram feitas várias tentativas para reverter a situação da dívida. Lembro que já em 2001 o governo Guterres equacionou um plano de redução de 11
despesa que não foi concretizado nem seguido pelo governo posterior, aumentando-se, como se sabe, em cerca de 60%, a despesa pública primária nos dez anos seguintes. O mesmo foi conseguido numa primeira fase pelo governo Sócrates e tentado de novo com o desfecho conhecido do PEC 4. Enfim, como dizia Eça de Queirós, “Todo o ministro que entra – deita reforma e coupé. O ministro cai – o coupé recolhe à cocheira e a reforma à gaveta. (…)”. E aqui chegámos. Em matéria de austeridade, de 2011 para cá passámos a fazer de objectivo aquilo que quisemos sem sucesso várias vezes fazer de adjuvante. E assim tudo para todos ficou pior. Um olhar sobre o que poderemos chamar de ação de superfície do actual governo, não nos leva além da verificação das várias formas de austeridade e de recurso a receitas extraordinárias. Porém, a despesa do Estado cresceu, a receita na maior parte dos impostos desceu, o desemprego atingiu um valor aflitivo, a restruturação da banca ainda é uma incerteza e o endividamento público subiu para valores nunca antes esperados pela Troika. A única boa notícia é o facto das empresas produtoras de bens transacionáveis terem continuado a aumentar as suas exportações, para onde se reorientam em maior parte e em consequência do estrangulamento no mercado interno. O caminho que estamos a fazer tem agravado problemas conjunturais, como o défice e o endividamento, sem corrigir desequilíbrios estruturais nem ativar fatores de sustentabilidade de crescimento e de desenvolvimento como os que resultariam de uma correta reforma do Estado.
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Economistas de várias tendências apontam, com contas feitas, para a forma negligenciada como se tem avaliado os chamados “efeitos multiplicadores” da austeridade intensiva: um corte salarial que gere uma poupança imediata de 100 na despesa do Estado pode induzir, por via do prejuízo sobretudo no consumo, uma diminuição ad riqueza do país em 150, com consequências óbvias na receita fiscal direta e indireta e no crescimento das prestações sociais como no subsídio de desemprego, penalizando assim afinal o Estado em 50. Se juntarmos ao efeito real das medidas o clima económico que resulta da antecipação do comportamento das empresas e das pessoas face à possibilidade de penalizações futuras o efeito multiplicador negativo é ainda maior. Estranhamente é um tribunal, neste caso o Constitucional, um dos fatores momentaneamente mais importantes de melhoria no clima económico. O caso da Reforma do Estado, que todos reclamam como necessária, é outro dos impasses incompreensíveis. Faz-se afinal o que é económica e socialmente mais oneroso e não o que seria mais necessário e reformador, ou seja reduz-se a alocação de meios para as mesmas estruturas com as mesmas funções, que é como quem diz – aposta-se apenas no definhamento do Estado. Por exemplo, com os cortes efetuados e a redução do número de funcionários públicos – como escreveu Daniel Oliveira, para níveis face à população ativa três vezes inferiores aos da Dinamarca ou da Noruega - as análises de projetos de investimento e a obtenção de determinadas licenças e certificados passaram a levar o dobro do tempo.
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Cumulativamente, a realidade mostra-nos, pesem embora alguns borrifos de indicadores de conjuntura, que a recessão está para ficar face à reincidência dos métodos e instrumentos que têm sido utilizados com insucesso, o que nos levará, com muita probabilidade, a um segundo resgate. Com este ou outro governo não vejo outra via racional, na óptica dos credores como na dos devedores, do que o reconhecimento da impreteribilidade da reestruturação da dívida pública portuguesa com a dilatação dos respetivos prazos de pagamento. Basta verificar as nossas necessidades de financiamento até 2017 e os custos que gerarão, ainda que sob assistência no recurso ao mercado (o chamado programa cautelar), para percebermos como seriam insuportáveis para o erário público, proibitivos de quaisquer funções úteis do Estado de previdência social como de impulso ao crescimento. Recordo que só em 2013 o montante de juros pagos atingirá um valor equivalente a 4,4% do PIB. Obama referiu num discurso que o seu papel “não é representar Washington junto das pessoas, mas sim representar as pessoas em Washington”. Importa, pois, colhendo esse espirito e adotando outra atitude, garantir junto das instituições internacionais o financiamento até 2017 em conexão com uma travagem da austeridade e uma folga para o investimento, ao mesmo tempo do compromisso de reformas estruturais com enfoque na eficiência e não no corte simples da despesa. A alternativa a esse rumo é o perdão parcial da dívida que se seguirá ao incumprimento, com a destruição da credibilidade e de uma 14
autonomia mínima de decisão política do Estado português e com o prejuízo dos credores. Estou convencido que uma renegociação naqueles termos permitirá um acordo de incidência de médio prazo entre os principais partidos portugueses e uma garantia de estabilidade, de cumprimento e de interlocução com os credores. Paradoxalmente, ou não, uma decisão negativa do Tribunal Constitucional nos casos mais significativos da projeção orçamental para o próximo ano – pensões e remunerações da função pública – ajudará fortemente o país nessa renegociação e na construção de um novo compromisso nacional de que tanto necessitamos. Se daí advier entretanto uma crise política, tanto melhor: que seja rápida e contribua para o compromisso que nos falta para o futuro!
Minhas senhoras e meus senhores Já mencionei atrás que o nosso país não resolveu ainda muitos dos seus mais importantes défices estruturais, que inquinam o nosso desenvolvimento e competitividade: relevo as questões associadas à qualificação, com destaque para a Universidade, e a reforma do Estado na ótica da economia portuguesa, designadamente nos segmentos da produtividade, da atratividade, da fiscalidade, da função judicial, da burocracia e da seletividade do investimento no quadro do cofinanciamento europeu até 2020.
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Uma breve nota, pois, sobre a prioridade na Educação e outras notas seguintes sobre essas dimensões da reforma do Estado que se constituem como fatores de desenvolvimento. A prevalência da Educação entre os investimentos mais reprodutivos, como aposta no capital humano, é dificilmente compaginável em Portugal com os cortes de financiamento que têm ocorrido. Na educação não pode vigorar a insolência liberal que clama “O Estado que desampare a loja!”. Se ao nível da escolaridade obrigatória cresce o incumprimento e no ensino profissional eclodem as dificuldades, o decréscimo de ingressos no ensino superior triplicou face ao ano anterior. Isto, num país com uma taxa de diplomados de 26,5% no grupo etário dos 30 aos 34 anos face a uma média europeia que chega aos 40%. A universidade é “alma-mater” da Investigação & Desenvolvimento. Dela agora se exigiria os caminhos inversos que lhe estão a proporcionar: a universidade – tal como, de resto, os politécnicos – tem de aumentar a sua porosidade, em múltiplos campos, com as empresas e instituições, com o corpo social, na sua pluralidade de manifestações e necessidades, no relacionamento externo, fora das fronteiras nacionais, na fluidez do relacionamento com o mundo da economia. A universidade, porque o é, é abrangente: não é só tecnológica. É por excelência o domínio das ciências sociais e humanas e das artes. E isso tem tudo a ver com o desenvolvimento dos povos e mentalidades. Acredito que nesta casa em que estamos, bem gerida e pensada, essa reflexão é permanente. 16
Volto, pois, minhas senhoras e meus senhores, a algumas incidências mais necessárias no âmbito da reforma do Estado com impacto direto na economia portuguesa. Portugal é um dos países da Europa onde menos se remunera o trabalho e onde mais horas se trabalham, mas em que a produção por cada trabalhador é das mais baixas. A produtividade é, portanto, um dos problemas que temos que resolver, não por via da continuada diminuição dos custos do trabalho mas através de um pacto social, envolvendo sindicatos e partidos, que estabeleça metas e compromissos para os próximos dez anos nos âmbitos da formação profissional e da legislação laboral. Sabemos que o investimento privado externo e interno é indispensável nesta fase e que carece, para se processar, de estabilidade, de segurança e de agilidade na resposta do Estado. Impõe-se, igualmente com sentido alargado de compromisso, contratar com o sector bancário para este desígnio, utilizar fundos europeus de forma criteriosa e com a taxa de co-financiamento máxima possível e agir com determinação e impacto imediato nos incentivos fiscais. Tal como no caso da produtividade está em causa a aplicação de recursos financeiros nacionais bem modestos. A constante alteração no sistema fiscal português, tal como o excesso de carga fiscal, é outro fator que mina a confiança e importa retificar. O Pacto Fiscal que está a ser trabalhado ao nível do IRC deve ser negociado como todos os intervenientes sociais e alargado a todos os impostos, por forma a garantir uma estabilidade fiscal durante pelo menos uma década. O Partido Socialista, por exemplo, não se deve 17
excluir nem ser excluído desse esforço de consenso que deve ser rapidamente concluído com êxito. O caso da Justiça é um dos factores mais inibidores de um novo ciclo de eficiência. Algumas alterações no sistema e no mapa judicial provocaram alarde mas não contrariaram uma realidade: a Justiça é cada vez mais cara, processualmente complexa, desigual no acesso, lenta e um fator insegurança nas relações económicas e de ineficiência no combate à corrupção. O mesmo acontece com a burocracia onde até o programa Simplex, premiado a nível europeu, foi suspenso. São reformas necessárias onde, uma vez mais, estamos a falhar e não precisávamos nem precisamos de dinheiro para não falhar. Sabemos bem, por fim, como importa reverter a queda do investimento privado interno e externo e do investimento público ocorrida nos últimos dois anos. Estamos num momento em que necessitamos de resolver uma contradição a favor do nosso desenvolvimento: por um lado, avizinham-se novas e importantes oportunidades com o novo Programa Operacional Comunitário 2014/20, que podem fazer-nos chegar recursos financeiros extraordinários; por outro, são grandes as dificuldades em mobilizar a comparticipação financeira própria para cativar e aproveitar esses vultuosos fundos. Temos que fazer alguma coisa para ganhar esse processo e, mais uma vez, impõe-se concatenar e potenciar a influência externa dos atores nacionais, com relevo para os partidos políticos, para obtermos facilidades como a diminuição da componente necessária de 18
investimento próprio para co-financiamento dos fundos, bem como, por exemplo, a criação de Eurobonds, (títulos de dívida mutualizados), para financiamento dessa componente, pelo menos nos 3 primeiros anos. Isso é fundamental para alicerçar o crescimento económico de que necessitamos. E é fundamental, simultaneamente, que sejamos capazes de usando esses fundos, aplicá-los como se fossem os últimos: no apoio à competitividade empresarial em função do emprego e dos bens transacionáveis gerados; na sustentação de postos de trabalho em empresas exportadoras; na requalificação profissional de desempregados; no apoio à construção de acessibilidades enquadradas nas redes europeias e transatlânticas de transportes; na redução da balança energética do país.
Minhas senhoras e meus senhores A experiência de governo ensinou-me que a nossa ambição legítima nem sempre é realizável e que os compromissos que assumimos com muita seriedade encontram, por vezes, obstáculos imprevistos que se mostram inultrapassáveis para a concretização do pretendido. Todavia, o tempo que vivemos é de desvalorização da palavra dada e de quase indiferença perante o compromisso. Não creio que seja possível superar o descrédito no exterior, o desânimo e a indignação crescentes das pessoas e manter a paz social que ainda temos sem que termine o turbilhão de incumprimento político que nos persegue e a incapacidade de compromisso que nos desenraíza.
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É verdade que, como diz Tarso Genro – um dos intelectuais brasileiros que mais e melhor tem refletido sobre o destino da esquerda democrática na Europa – “ …há uma visão consolidada em grande parte da população da inutilidade da política”, a que se soma a ideia de que “Os partidos têm uma margem decisória muito pequena porque a lógica financeira dos orçamentos foi capturada pelas necessidades do pagamento da dívida…”. Porém, para evitar essa incompatibilidade que se aprofunda entre a democracia representativa e as aspirações dos cidadãos de equidade e de direitos é urgente a criação de um bloco político e social, no país como na Europa, que proclame essa conciliação e recupere das algemas que lhes impuseram os direitos sociais mínimos que incorporam os valores de segurança e dignidade das pessoas. Estamos, pois, no tempo certo para acertar as nossas obrigações face ao estado de emergência do país, o que deverá ser facilitado com a atualização da vontade democrática do povo português e, assim, do modo e da medida em que nos devemos conjugar – e isso é irrecusável - para vencer tantos e tão difíceis desafios.
Minhas Senhoras e meus Senhores Volto, justamente, a propósito das questões de sustentabilidade sobre as quais tenho estado a ponderar, a recorrer ao contributo essencial do Portugal Insular, para vos falar, finalizando, da importância do Mar como fator do nosso desenvolvimento e afirmação.
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Os Açores europeus, situados no encontro das plataformas tectónicas americana e europeia, são um valor acrescentado, sem par, na comunidade nacional e especialmente numa perspetiva de qualificação da afirmação portuguesa no Atlântico. Pelos Açores passaram, obrigatoriamente – por cobiça, ou para abrigo, descanso e aprovisionamento –, desde as primeiras viagens marítimas intercontinentais, os que demandavam a Europa, a África e as Américas. Graças às suas regiões insulares, o nosso País, o centésimo primeiro em dimensão territorial, é o oitavo no Mundo, o segundo na Europa e o primeiro na União Europeia em área marítima exclusiva. É por causa disso que a Portugal cabe, por exemplo, a maior responsabilidade europeia no controlo do espaço aéreo e da segurança e salvamento marítimos. Acresce que todos esperamos que o território nacional seja ampliado proximamente resultando avolumada a sua massa crítica, geográfica e estratégica com a fixação pelas Nações Unidas dos novos e muito mais latos limites da plataforma continental portuguesa. E, note-se, isso acontece por causa dos Açores, cuja dispersão pelo oceano gera desde logo uma zona económica exclusiva com cerca de um milhão de quilómetros quadrados. Se a essas águas acrescentarmos a imensa área de fundos oceânicos que – nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar – pode ser considerada como extensão da plataforma continental em torno dos Açores, teremos, já não um, mas quase três milhões de quilómetros quadrados e, no total, quatro milhões, o que quer dizer 43 vezes a área terrestre 21
do país. Isso alerta-nos para o facto de que, independentemente da decisão da ONU, todos já deveríamos estar numa fase mais adiantada de preparação minuciosa para esse novo enquadramento e de organização das parcerias indispensáveis. A esse respeito quero salientar, também, outro aspeto pouco conhecido do contributo açoriano. Na verdade, os Açores conseguiram ver classificadas 41 áreas marinhas que abrangem uma área superior a 11,2 milhões de hectares, que na sua maior parte passaram a constituir formalmente o Parque Marinho dos Açores, integrado por diversos montes submarinos e fontes hidrotermais. A grande maioria desta área encontra-se fora das 200 milhas da ZEE, em águas internacionais, mas propostas no âmbito do alargamento da plataforma continental, exatamente por influência dessa classificação no âmbito da Convenção de Paris da OSPAR. Essa classificação, aliás, abrange não apenas o solo e o subsolo, mas toda a coluna de água. Trata-se pois de um trabalho bem sucedido nos planos científico e político, que projetou a Região e o País para uma posição de liderança, a nível europeu e mundial, não só no que à salvaguarda ambiental marinha diz respeito mas também aos interesses económicos, nacionais e regionais, que estavam em presença. E estes são muitos. Em vários outros domínios a relevância da componente insular portuguesa é evidente e do senso comum, com são os casos que resultam do seu potencial geográfico de localização de centros reguladores, tecnológicos ou de investigação desde as áreas da climatologia às das ciências do espaço. Mais dominante no debate 22
político tem sido o seu papel nos planos da segurança internacional: de facto, considerando apenas o caso dos Açores estes são um ativo português em consideração constante - os Açores são a fronteira de segurança próxima da América, o lugar geométrico da relação transatlântica e, subsequentemente, a mais relevante fronteira europeia de cooperação internacional em matéria de segurança do mundo ocidental. Neste caso não resisto a, por oposição à inércia de muitos governantes, fazer aqui um registo da observação voluntariosa da deputada europeia Ana Gomes que, a propósito do tema da dimensão marítima da Política Comum de Segurança e de Defesa que deverá estar em análise no Conselho Europeu de Dezembro, questionava: “Porque é que o governo português não começa a pôr a Base das Lajes, sem prejudicar os acordos que temos com os Estados Unidos, no centro de uma política europeia de segurança e defesa por exemplo para a vigilância de toda a zona do golfo da Guiné e da imensa zona que passará a ter implicações com o alargamento do Canal do Panamá?”. Na verdade, esta postura questionadora tem desde logo o mérito de lembrar potenciais centralidades e capacidades portuguesas que não devem ser negligenciadas e muito menos em tempo de uma crise que é também de desvalorização nacional. É, pelo menos por tudo isso mas não só, uma urgência a compreensão, pelos políticos nacionais e pelos diferentes actores, da evidência da necessidade do investimento e da valorização nacional e perante terceiros dos territórios portugueses insulares atlânticos. 23
Sem estes, sem a correta consideração dos Açores e da Madeira, a afirmação portuguesa no processo de construção europeia, e no Mundo, confinada à sua insuficiente faixa continental, ficaria drasticamente diminuída. Tenho dito várias vezes e há vários anos: é esse o dever de perceção e de ação de um país que se conheça a si mesmo, que tenha consciência das vantagens competitivas da sua geografia. Uns por ignorância, outros por preconceito forjado na babugem centralista, não compreendem o país assim e não vão além do imediato e do transitório. Infelizmente o país está a abarrotar de políticos e de decisores assim. É verdade que o nosso país, ao contrário do que se repete com frequência- neste caso, sim, com masoquismo – não é um território desprovido de recursos que podem contribuir para a melhoria dos níveis de cobertura da sua sustentabilidade económica e da geração de riquezas. Pena é que não estejam a ser aproveitados. No mundo em que vivemos, recursos como a água, a produção alimentar e agrícola em geral, os combustíveis e os minerais, tal como a adequação das infraestruturas e a qualidade dos recursos humanos são essenciais. Já me referi nesta comunicação a fatores fundamentais como o da qualificação e emprego dos nossos recursos humanos e, em particular, no que toca à Universidade. Também já referi que o país dispõe de uma rede de infraestruturas físicas com uma razoável distribuição pelo território mas ainda incompleta na cobertura das funcionalidades económicas e sociais mais reprodutivas.
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O potencial de alguns outros recursos pode ser genericamente avaliado por considerações como estas: temos uma extensa área de solo arável, sendo que na sua maior parte não tem exploração económica; possuímos boas reservas de água doce, quer subterrânea quer de superfície; temos, com maior ou menor interesse, reservas de ferro, cobre, tungsténio, lítio, urânio; também de ouro, prata e de carvão mineral de boa qualidade; desenvolvem-se trabalhos de prospecção avançados de petróleo e gás natural, tanto na costa ocidental como no Algarve, que se têm revelado muito promissores, que se alude serem suficientes para as nossas necessidades de abastecimento ao longo deste século. Se nuns casos isso será compreensível ou mesmo inevitável noutros casos corremos riscos desnecessários de redução drástica da nossa capacidade de retenção do seu valor por causa da sua entrega por omissão a meios de investigação, ciência e empresas exteriores, que se deve ora à nossa falta de capacidade de investigação em meio empresarial ora à governação de salvação do imediato e de comprometimento do futuro que tomou conta do país. Salvaguardo, claro, por um lado a impreteribilidade e ou as vantagens de se agir em cooperação internacional e, por outro, o esforço e os resultados de algumas, poucas, instituições, que têm casos de sucesso na criação de spin-offs nessas áreas como é o caso do DOP da Universidade dos Açores actualmente dirigido pelo Professor Doutor Helder Marques da Silva. É, justamente, nessa ordem de razões e preocupações, que devemos e podemos também reforçar a consideração do Mar e, na origem 25
disso, o carácter essencial do contributo do Portugal insular para o nosso crescimento, desenvolvimento e autonomia. Como relembrava Avelino Meneses – um historiador prestigiado que já foi Reitor da Universidade dos Açores – “Todas as épocas da história de Portugal, do nascimento ao apogeu, à decadência e às tentativas de regeneração, dependeram (…) da influência do Mar, isto é, da conquista ou da perda de predomínio nos mares”. Podemos e temos de tornar o Mar, para utilizar a expressão utilizada na proposta de Estratégia Nacional para o Mar para 2013/20 “um activo com benefícios económicos, sociais e ambientais permanentes” Há quem ainda olhe o Mar, infelizmente, quase só como se de um território inculto se tratasse, onde a principal novidade é a ameaça dos efeitos desastrosos da subida do nível das águas em um metro até ao final do século por causa das alterações climáticas. É verdade que há trabalho avulso feito em Portugal na área do Mar, particularmente a partir da segunda metade dos anos noventa e com a formação sucessiva de instâncias e organismos na periferia dos governos, por impulso das universidades e em cooperação com entidades internacionais, mas nunca esse trabalho foi devidamente integrado ou sequer considerado num plano de ação mensurável e objetivo como se exige estando nós em presença de um vetor estratégico. Continua a não haver uma alocação planeada, ou sequer uma linha de perceção dos meios humanos, informativos, financeiros e técnicos necessários. Possuímos, como já salientei, a maior Zona Económica Exclusiva da UE, que é tão grande como todo o continente europeu. Sensivelmente 26
metade diz respeito ao mar dos Açores. Os interesses económicos associados crescem diariamente e reportam-se sucessivamente aos mais variados domínios de recursos e de exploração. Mesmo face a tal diversidade, ou então talvez por isso, emergem por vezes disputas e contenciosos internos que retardam o aproveitamento deste potencial. Falo, por exemplo, face à área de mar contida na sub-área Açores – que é, afinal, parte integrante da unidade ecossistémica da Macaronésia –, do relacionamento jurídico complexo entre o Estado e a Região Autónoma dos Açores, do qual têm resultado sucessivas dúvidas que acabam por lesar o investimento nesta área, tanto ao nível económico como científico. O caso da prospeção de minerais nos Açores é um dos exemplos dessa incapacidade das autoridades nacionais trabalharem construtivamente com as administrações regionais autónomas na gestão partilhada desses espaços e não persistirem numa atitude suspeitosa e, em consequência, contenciosa e paralisadora. A clarificação e o bom relacionamento entre entidades intervenientes são assim muito importantes e deverão conhecer um novo ciclo mais produtivo. Aliás, a nível europeu, os fundos a disponibilizar até ao Horizonte 2020 contemplam um volume considerável de recursos para cofinanciamento para a designada economia azul que Portugal tem que aproveitar na íntegra e da melhor maneira. Trata-se assim de uma oportunidade, mais uma, promissora para se avançar nos investimentos prioritários de base nacional que se incluem na aposta decidida no Mar que não deve ser retardada.
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Ao nível do mar a pesca surge como um setor relevantíssimo. É verdade que o é, porventura, desde sempre, para as populações e territórios com orlas marítimas, mas ao longo das duas últimas décadas teve uma revalorização considerável por razões que se prendem com a apreciação da qualidade e a imagem de sustentabilidade ambiental e com a procura seletiva mas crescente do produto de pescado selvagem cada vez menos disponível. Considerando que 50% da produção mundial de pescado é processada em regime de aquacultura e que nos próximos anos e décadas essa percentagem aumentará muito significativamente em resultado da escassez de recursos selvagens e da regulação internacional de direitos de pesca, é seguro prever (aliás, como o dizem a FAO e a OCDE) uma grande valorização do produto no mar se for bem dirigido, apoiado técnica e cientificamente, fiscalizado e monitorizado e se for mantida na produção nacional a frota pesqueira modernizada nos últimos anos. Isso, não falando da sua procura para efeitos de transformação, sobretudo para conserva, e do que pode representar de contributo para a atividade exportadora. Infelizmente, porém, o Estado português – tão frequentemente empenhado em missões internacionais de natureza humanitária de segurança ou no âmbito da NATO –, é, ao invés, condenado em tribunal por omissão do dever de fiscalização das águas dos Açores o que tem permitido, especialmente para além das 100 milhas e por embarcações estrangeiras, importantes danos de natureza ecológica e económica. A nossa Marinha procura, é certo, dentro dos seus escassos meios cumprir as suas missões o melhor possível, mas, 28
como já a propósito dizia o Almirante Fernando Melo Gomes, com candura diplomática, “é imperioso que se faça o muito que há a fazer”. Hoje, o produto da pesca, embora se perca muito valor na fileira até ao consumidor final e se deprecie incompreensivelmente os recursos humanos envolvidos na atividade, tem importância no rendimento e na exportação. Se parece muito provável que o produto da pesca continue a diminuir não subsistem razões, todavia, para que as capturas não venham a ser muito melhor remuneradas e o produto extraordinariamente revalorizado. Refiro, aqui, também, o que representa, na dimensão do Portugal ibérico como no do Portugal insular, o nosso potencial próprio e logístico no que concerne ao transporte marítimo de passageiros de cargas quer nos modelos em uso quer, sobretudo, nos esforços inovadores que estão em curso. Recentemente, o coordenador do projeto europeu das “Autoestradas do Mar”, defendeu, no quadro desse cometimento, a realização urgente de estudos para a criação nos Açores de uma plataforma “de reabastecimento dos navios a gás natural liquefeito, cujo uso será intensificado”. Valente de Oliveira, partindo da perceção da posição privilegiada dos Açores e da prioridade que está a ser dada ao preço e ao impacto ambiental dos efluentes da combustão no transporte marítimo, sobretudo entre os lados americano e europeu, tornou claro que esta posição geográfica única tem que ser aproveitada. Na verdade estamos já hoje ligados, desde o seu início, ao chamado projecto europeu COSTA , que surge no âmbito da Estratégia 2020 e da nova política da rede de transportes transeuropeias, visando 29
desenvolver as condições necessárias para a utilização de gás natural como combustível de navios, o que poderá vir a revolucionar o transporte marítimo mundial, e cuja área de atuação inicial será a consolidação de um masterplan centrado no eixo Mar Negro, Mar Mediterrâneo e Oceano Atlântico. É sabido que de entre todos os segmentos do transporte marítimo internacional, que se processa em regime de grande concorrência, é o transporte da chamada “carga geral”, geralmente produtos industrializados, que absorve cerca de 2/3 dos custos dos fretes marítimos internacionais e que gerou uma utilização intensiva do contentor, sobretudo depois da última década de oitenta. Essa inovação alterou profundamente as características dos serviços de transporte marítimo, designadamente com o surgimento e a necessidade de portos concentradores onde se realizam operações de transbordo e de terminais próprios. Concomitantemente, a conclusão do alargamento do Canal do Panamá em 2015 acentuará a circulação transatlântica, como parece que só há dias, para espanto geral, os mais altos responsáveis portugueses constataram extasiados por ocasião dos trabalhos da Cimeira Ibero-Americana. Impõe-se, pois, uma intensa preparação, que já devia estar muito mais adiantada e não interrompida, da nossa infraestrutura marítimo-portuária de Sines liderando e organizando a oferta na fachada continental atlântica. Ao mesmo tempo, é igualmente importante deter uma posição no cruzamento das rotas (este-oeste e norte-sul) do tráfego marítimo atlântico centrada nos Açores.
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A criação do Hub Atlântico dos Açores, no porto oceânico da Praia da Vitória é outro investimento do qual a administração central e a própria UE devem, a meu ver, ser partes investidoras. O projeto consiste no desenvolvimento de um terminal portuário de contentores que possa servir de suporte para a organização desse novo tipo de serviço de transporte marítimo no Atlântico. Este tipo de serviço permitirá também descongestionar o tráfego terrestre, nos portos europeus e norteamericanos, dado que o acesso a esses portos será efetuado através da utilização de navios porta-contentores de médio porte, com maior agilidade operacional em comparação com os designados “mega carriers”. Estão identificados como potenciais clientes os gestores de terminais de contentores, os armadores de linhas marítimas e os Estados/regiões. Como curiosidade note-se que em 2011 foram registados 1570 navios, que passaram a menos de 80 milhas das ilhas do arquipélago. ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ ~~
Falo-vos também aqui de outras três áreas emergentes relacionadas com o mar que são muito desconhecidas das pessoas em geral e frequentemente negligenciadas pelos decisores e até, com raras excepções, ainda não adotadas pelos investidores nacionais. São
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elas: a biotecnologia azul; as fontes hidrotermais; e, os montes submarinos. A biotecnologia marinha está em crescimento significativo, representando hoje o mar cerca de 4% das fontes de biotecnologia. Embora os oceanos constituam 70% da superfície da terra, apenas menos de 5% da diversidade marinha é incorporada em serviços e produtos. Estes indicadores mostram bem o potencial inexplorado do mar. Sobretudo nestes últimos anos, a biotecnologia marinha tem-se desenvolvido em conexão com as fontes hidrotermais no oceano profundo. No caso dos mares dos Açores já foram identificadas seis zonas hidrotermais de grande importância em cerca de duas décadas de missões cientificas, a primeira das quais em 1992 designada por Lucky StriKe. Nestas comunidades têm sido encontrados organismos quimiosintéticos que estão adaptados a ambientes extremos e que têm desvendado compostos cuja atividade metabólica representa uma fonte para a descoberta de novos produtos de interesse biotecnológico, como sejam enzimas de utilização industrial, farmacêutica, agro-alimentar, bioenergética, de bio-remediação e para a investigação científica em geral. O potencial associado a esses ecossistemas é reconhecido pela comunidade científica internacional, conforme o demonstram as sucessivas expedições exploratórias de grupos estrangeiros às fontes hidrotermais de ambiente marinho profundo na Zona Económica Exclusiva dos Açores, ou mesmo o crescendo associado de atividades de serviços de informações públicos e privados e, pelo menos assim o 32
espero, dos nossos serviços de informação da República. Nos últimos anos em que presidi ao governo dos Açores todos os diplomatas estrangeiros que recebi procuraram de forma mais ou menos explícitas informações concretas nestes domínios. Nestes campos hidrotermais, como se conclui de relatos vários mais ou menos reservados, bactérias extremófilas e comunidades faunísticas são objeto de coletas para estudos científicos posteriores em que se caracterizam os mecanismos fisiológicos e moleculares de adaptação a ambientes extremos. Só em mexilhões de fontes hidrotermais, de acordo com a informação disponível nos meios científicos, foram detetados inúmeros genes com possível aplicação biotecnológica em domínios como o dos anticoagulantes, antitumorais, antibacterianos, antifúngicos e antivirais, proteínas alimentares com fortes propriedades adesivas, manipuladores de células humanas, hemoglobina (transportador de ferro e de oxigénio), fatores de formação e crescimento de tecidos epidérmicos e de desenvolvimento dos ossos, entre outros potenciais já identificados. Nestes casos, como noutros que já referi, pontuam as dificuldades de colher para nós pelo menos uma boa parte das mais-valias da sua utilização por terceiros, cujo poder científico, logístico, financeiro e empresarial nos são impostos. Nos Açores, por exemplo, foi publicada legislação específica para o efeito para regular o acesso a recursos naturais para fins científicos mas, nesta como em outras situações, as nossas omissões e insuficiências de meios e de investimento na fiscalização já nos saíram e ainda nos sairão mais caras. 33
Uma outra área com forte potencial económico é a exploração mineral de nódulos polimetálicos, crostas de ferro-manganês ricas em cobalto e sulfuretos maciços polimetálicos muito abundantes nos fundos submarinos dos Açores. Nestes casos os interesses e os pedidos de prospeção e exploração são já insistentes, especialmente por empresas com capacidade demonstrada de exploração destes recursos em profundidade. O valor de uma tonelada destes minerais no mercado, em bruto, atinge montantes muito compensadores. Mas, se é verdade que o Estado é por vezes acusado de agir frequentemente atrapalhando iniciativas e resultados, era importante nestes casos, não descurar os interesses dos Açores e do país na ilusão de um pequeno avanço ou remuneração imediata. Volto também a referir o caso da aquacultura para salientar um aspecto alternativo do crescimento que tem tido. É que, também no âmbito da economia do mar, é possível crescer aproveitando este segmento emergente, pois grande parte desta produção é feita em terra e em águas interiores (água doce e marinha) incorporando, em regra, problemas envolventes de eutrofização. A chamada produção offshore, é ainda pouco expressiva mas deverá ter um forte incremento com os sistemas de produção que estão ainda em desenvolvimento e que se deverão generalizar ao longo desta década. Faço notar, por exemplo, que, apesar da enorme carência de pescado no mercado europeu – do qual é tão fortemente deficitário que importa mais de 60% do que consome (o nosso próprio país importa mais de 50%) – há mais de uma década que a escassa produção europeia 34
estagnou. Vastas zonas, incluindo o caso dos Açores (lembro que os Açores e a Madeira têm uma orla marítima com uma extensão de 918 Km, ou seja praticamente igual à de Portugal Continental que é de 943Km), vastas zonas, dizia, poderão ser utilizadas neste novo formato produtivo, desde que se estabeleça uma legislação positiva e um plano adequado para esta atividade. Refira-se, a este propósito, que só o arquipélago vizinho das Canárias produz anualmente cerca de uma dezena de milhar de toneladas. Estamos assim em presença de uma diversidade de oportunidades que o país ainda não aproveita em parte ou no todo para gerar riqueza em sectores onde tem certamente um potencial competitivo e de recursos. Mesmo em áreas de exploração mais tradicional temos muito caminho a fazer e muitos benefícios em criação de valor e de riqueza a procurar e a readquirir. A readquirir, por exemplo, na área da reparação e construção naval que tem sido destruída em Portugal pela incúria e pelo desinvestimento das tutelas governamentais nos últimos anos, como o documenta a incrível incompetência que o Ministério da Defesa e as administrações da empresa têm demonstrado no caso dos Estaleiros de Viana de Castelo, agora subconcessionados em termos que não estão completamente clarificados. A continuar a procurar, por exemplo, no caso das atividades marítimoturísticas que têm observado, ainda assim, um forte incremento nacional, captando importantes nichos de mercados emissores de
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turismo e sustentando muitas iniciativas, economias e empregos locais. Nos Açores, como em outros lugares, a observação de cetáceos, a pesca e outras práticas náuticas desportivas, a caça submarina, a escala de grandes navios de cruzeiros e os pequenos cruzeiros costeiros, o mergulho de lazer e mais recentemente também o mergulho com tubarões e jamantas são alguns exemplos mais chamativos destas atividades que convocam micromercados de elevado potencial e retenção de valor. Saliento, ainda, as atividades ligadas aos roteiros culturais associados à arqueologia e ao património subaquático – nesta dimensão, recentemente, um especialista do Centro de História Além-Mar, referindo-se igualmente aos Açores a propósito do registo em fontes escritas de cerca de 700 naufrágios relevantes entre os séculos XVI e XX, destacou não só o seu elevado potencial científico como na vertente a explorar do turismo cultural. O mesmo acontece por quase toda a costa e baías do território continental. A minha convicção como governante ao longo de 16 anos e a demonstração que insisto em fazer são que: em todas essas modalidades, podemos crescer e fazer melhor por todo o país e ganhar mais usando concertadamente estas nossas vantagens naturais comparativas. O que nos entristece é que, em regra, não se ouve e ainda menos se sente – pese embora a reconhecida qualidade do titular da Secretaria de Estado do Mar, Manuel Pinto de Abreu qualquer pensamento estratégico na ação governativa multissectorial reportada ao Mar, nem na perspetiva nacional nem em âmbitos mais 36
vastos, ou mesmo, como seria interessante fazê-lo, no quadro dos países da CPLP – todos eles países marítimos. O que é estranho é que isso é mais evidente neste governo do que nos anteriores e, dos cinco primeiro ministros com os quais trabalhei como presidente do governo dos Açores, é o atual o que menos adstrito ao tema parece estar.
Minhas Senhoras e meus senhores Fui mais exaustivo – e espero que não definitivamente cansativo – na abordagem destas questões ligadas ao Mar, como o poderia ter sido em outros casos que fui sumariando, porque pretendo chamar a atenção, tal como o faço há muitos anos, para este lado impropriamente negligenciado pelas políticas públicas de conjuntura com que convivemos. Ao longo desta exposição procurei, com prejuízo do ritmo e da sonoridade que os “textos ao ataque” sempre favorecem, procurei, dizia, demonstrar que o país político pode pensar o destino dos seus cidadãos e do seu território para além da redução da despesa, da vendagem do património público e da nacionalização e extorsão dos rendimentos privados. Há um país real pleno de recursos por aproveitar e fazer explorar e há um saldo resultante do somatório dessas omissões persistentes que é suficiente para trabalhar no presente e preparar com maior margem e mais confiança o futuro. O potencial de desenvolvimento que esses
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recursos representam precisa de ser rapidamente apropriado pelo país, sob pena de outros o fazerem. O caso do Mar é paradigmático. Há um Portugal em Portugal que pode dar-nos as garantias da sustentabilidade que outros têm ou alcançaram. Saibamos nós governar hoje sem excluir o futuro.
Carlos César Outubro de 2013
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