MOSTRA FILMES DE PLÁSTICO
10 - 17 JULHO 2024
MOSTRA FILMES DE PLÁSTICO
Inclinar-se ao risco: uma conversa com Andrezera, Gabito, Maurilove e Thi, por Renan Eduardo e Victor Guimarães........................................................................14
E a luz se fez... em Contagem, por Carlos Reichenbach......................................62
Filmes de Plástico: De mar, amar, por Viviane Pistache......................................64
Contagem e re-contagem: o realismo plural da Filmes de Plástico, por Ivone Margulies......78
Uma parada em Contagem: quinze anos de topofilia compartilhada, por Claire Allouche....96
O jogo instável entre realizador e espectador na Filmes de Plástico, por Maria Bogado.....102
Estética do quintal remix , por Victor Guimarães...........................................110
As constelações de Maurílio Martins, por Adilson Marcelino................................118
Família feitiço: o cinema de André Novais Oliveira , por Ana Júlia Silvino...................124
O céu de Gabriel, por Juliana Costa.......................................................128
Carta aberta a Thiago Macêdo Correia, por Bárbara Defanti................................136
Filmes de Plástico e a dramédia das nossas diásporas, por Grace Passô....................144
Espaço, visualidade e direção de arte na Filmes de Plástico, por Mariana Souto............148
APRESENTAÇÃO
Por Victor Guimarães1
Dentre os vários agrupamentos de cineastas que se constituíram no cinema independente brasileiro entre meados da primeira década do século XXI e a segunda, a Filmes de Plástico impressiona pela longevidade – quinze anos não são quinze dias –, pelo volume da produção de filmes e pela fortuna crítica inspirada por eles. São teses de doutorado, dissertações de mestrado, disciplinas acadêmicas, e muitos, muitos textos dedicados aos filmes realizados por André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurílio Martins e Thiago Macêdo Correia e seus inúmeros colaboradores e colaboradoras. Embora abundante, no entanto, essa produção crítica é surpreendentemente pouco variada. Muitas abordagens se repetem, há uma enorme concentração em um conjunto pequeno de filmes, e, por incrível que pareça diante da vastidão, há lacunas importantes ainda.
Diante desse cenário, este catálogo se impôs algumas tarefas: reequilibrar o olhar crítico sobre a produtora, buscando contemplar uma pluralidade de abordagens estéticas; evitar o modelo filme-a-filme, por razões de tempo e espaço (este catálogo foi feito em poucas semanas e sua extensão era, de saída, limitada) e para privilegiar as ressonâncias entre os filmes; recuperar a riqueza formal das obras e o estilo particular de cada um dos cineastas, evitando a homogeneização da produtora e o excesso de sociologização que paria sobre a Filmes de Plástico nos últimos anos. O desejo era, de saída, falar sobretudo de cinema, com um profundo respeito ao talento, à inteligência e ao conjunto da obra desses quatro homens de cinema extraordinários.
Nesse sentido, os títulos de cada seção do catálogo prestam tributo silencioso a certos gestos cinematográficos recorrentes nessa filmografia. A seção Conversa traz uma longa troca de ideias que Renan Eduardo e eu tivemos com os quatro integrantes da produtora numa tarde de junho. Andrezera, Gabito, Maurilove e Thi falam livremente – e com uma sinceridade impressionante – sobre os desafios passados, presentes e futuros da Filmes de Plástico.
1 Victor Guimarães é crítico de cinema, programador e professor. Seus textos foram publicados em espaços como Revista Cinética, Con los Ojos Abiertos, Desistfilm, Senses of Cinema, Documentary Magazine, La Furia Umana, La Vida Útil e Cahiers du Cinéma. Doutor em Comunicação pela UFMG.
Na seção Panorâmica, reunimos algumas das joias da fortuna crítica já existente em torno dessa filmografia, além de contar com duas traduções inéditas. Privilegiamos textos com um olhar mais amplo sobre a produtora, evitando a particularização excessiva em torno de um ou outro filme. Com uma exceção que dispensa explicações: recuperamos o texto de Carlos Reichenbach sobre Contagem, publicado em seu finado blog Olhos Livres em 2010 e há muito desaparecido da Internet. Uma década e meia depois, o tino de Carlão para o novo não poderia ter dado em outra coisa: sua breve profecia se cumpriu.
O texto de Viviane Pistache faz um retrospecto amplo sobre a história da produtora, com foco em sua contribuição inestimável para o debate sobre cinema negro no Brasil. O artigo de Ivone Margulies parte de dois leitmotivs plásticos – a vista e o retrato – presentes em
Temporada e No Coração do Mundo para definir teoricamente o “realismo plural” da Filmes de Plástico. O texto de Claire Allouche aterra os filmes, devolve-os ao útero territorial de onde nasceram em uma abordagem que mescla etnografia e análise fílmica, enquanto o de Maria Bogado, na direção oposta, ressalta os atravessamentos de outras imagens longínquas – do cinema, da televisão, da Internet – no tecido das obras, especialmente as de curta metragem. Meu texto, que também parte de um conjunto de curtas-metragens, arrisca uma breve hipótese estética.
A seção ZOOM parte da premissa de um afunilamento necessário. Diante de abordagens por vezes demasiado amplas e de certas homogeneizações daninhas, faltam ainda mais trabalhos que se dediquem a pensar nas marcas estilísticas de cada um dos integrantes da Filmes de Plástico. Por isso convidamos um crítico e duas críticas de gerações diferentes para se debruçar sobre os estilos próprios de cada um dos cineastas: Adilson Marcelino tece constelações em torno de Maurílio Martins; Ana Júlia Silvino pensa o feitiço particular de André Novais Oliveira; Juliana Costa identifica obsessões duradouras em Gabriel Martins. A seção se completa com uma pergunta instigante: pode a produção ser um estilo? É uma pergunta afirmativa e generosamente respondida por Bárbara Defanti, em uma carta aberta a Thiago Macêdo Correia que deslinda os meandros de sua forma absolutamente peculiar e inventiva de produzir filmes.
A seção Reenquadramento busca lançar um olhar renovado sobre o conjunto da obra da Filmes de Plástico, arriscando abordagens pouco usuais a partir de dois convites muito es-
peciais. Grace Passô, uma das maiores escritoras brasileiras vivas, nos oferece em poucas linhas uma maneira inteiramente única de pensar as dramédias diaspóricas da produtora. Mariana Souto, escrevendo como participante dos processos e também como pesquisadora, nos entrega um ensaio inédito sobre visualidade e espaço que parte de um aspecto muitas vezes negligenciado na fortuna crítica: a direção de arte.
O catálogo se conclui com a seção Travelling, dedicada a testemunhos de familiares, profissionais intimamente ligados à trajetória da produtora e que colaboraram com sua construção, admiradores ilustres e jovens cineastas que se declaram influenciados pelo trabalho da Filmes de Plástico. Esses testemunhos foram coletados em entrevistas por Renan Eduardo, a quem agradeço pelo empenho e pela interlocução em todo o processo do catálogo.
Este conjunto de textos é um breve esforço concentrado no sentido de fazer jus ao trabalho e à inventividade de quem constrói a Filmes de Plástico. É muito raro para um crítico ter a oportunidade de ser testemunha ocular de um fenômeno histórico tão decisivo para o cinema de seu país e de estar tão perto de alguns dos maiores cineastas de sua geração.
O pensamento da organização deste catálogo não está separado dos cafés da manhã partilhados com Thi, dos discos ouvidos entre confidências na casa de Andrezera, das noites memoráveis em festivais com Gabito, das cervejas e dos caldos de mocotó na madrugada com Maurilove ou das incontáveis idas ao Mineirão para ver o nosso Cruzeiro nessa década e meia. Se nossos caminhos nos cruzaram tanto nesses anos todos, só tenho a agradecer por esse privilégio.
Antes da amizade, contudo, estava o cinema. Obrigado por aquela sessão de Ela Volta na Quinta de manhã no Humberto Mauro, por Mundo Incrível Remix na praça em Tiradentes, por Temporada em Brasília, por No Coração do Mundo com a turma toda no Shopping Contagem, por Marte Um em Toulouse, pelo prazer de ver a alegria no rosto dos meus alunos descobrindo Fantasmas pela primeira vez, tantas vezes. Este catálogo não é senão uma pequena maneira de agradecer por tanta força e por tanta beleza nesses quinze anos. Que venham os próximos!
[CONVERSA]
INCLINAR-SE AO RISCO:
UMA
CONVERSA COM
ANDREZERA, GABITO, MAURILOVE E THI
Por Renan Eduardo e Victor Guimarães
A Filmes de Plástico é, hoje, uma das produtoras independentes com maior fortuna crítica do país. Há inúmeras entrevistas já feitas com seus integrantes, explorando diferentes aspectos da trajetória do grupo. Muito embora o contexto deste novo diálogo sobre o percurso de André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurílio Martins e Thiago Macêdo Correia seja o de uma mostra em justa homenagem aos quinze anos da produtora, decidimos adotar o comportamento da personagem de Malu Ramos em Quinze (Maurílio Martins, 2014) e “não esquentar muito a cabeça com festa, não”. Na conversa realizada durante toda a tarde de uma sexta-feira de junho na sede atual da produtora, o resgate narrativo da trajetória do grupo – presente em vários dos textos deste catálogo – perde espaço para um diálogo franco e contundente sobre alguns dos principais desafios do passado, do presente e do futuro da Filmes de Plástico. Saltam à superfície os embates com a crítica e os festivais, a relação com as expectativas sobre a produtora, os diferentes modelos de produção e distribuição experimentados pelo grupo, as novas responsabilidades assumidas. Embora, mineiramente, o termo que mais se use para se referir aos quatro juntos seja “os meninos”, emerge aqui o pensamento lúcido de quatro homens de cinema no sentido mais agudo da expressão: com uma plena consciência, ambiciosa e serena, sobre de onde vieram, onde estão e aonde querem chegar. A conversa é cheia de anedotas preciosas, reflexões eloquentes e provocações certeiras em direção a um debate mais amplo sobre o cinema brasileiro dos últimos quinze anos (e o dos próximos). Uma constatação se impõe: a produtora não é apenas uma fábrica de talento impressionante ou uma reserva imaginativa que contém algumas das mais valiosas obras do cinema deste século. A Filmes de Plástico
é também uma usina de pensamento cinematográfico. Esperamos que o exercício da leitura seja tão valioso quanto foi, para nós, a experiência da conversa.
Renan Eduardo: Recentemente, lendo a entrevista que vocês concederam para a CineBH de 2019, na homenagem de 10 anos da produtora, uma fala do Maurílio me chamou muito a atenção. Na ocasião, ele comentava que Fantasmas havia sido um marco da produtora diante da crítica de cinema. De lá para cá, acho que podemos considerar outros dois marcos da produtora: Temporada no catálogo da Netflix e o tempo que Marte Um ficou em cartaz. Vocês enxergam que esses dois filmes foram viradas para a produtora no que podemos chamar de “grande público”? Como vocês lidam ou estão lidando com a repercussão do público diante dos novos trabalhos de vocês?
Gabriel Martins: Objetivamente falando, acho que foram as duas situações em que a gente se deparou com maior repercussão em termos de público, que o nosso trabalho chegou a mais olhares, por assim dizer. Nem é muito uma questão de opinião, é mais um fato estatístico mesmo.
Fazendo um pequeno paralelo: eu lembro de acompanhar muitas discussões em Tiradentes que polarizavam uma ideia de “cinema autoral” contra o “cinema de público” e eu acho que essa divisão nunca foi uma questão para nós. Talvez, na verdade, nos entendemos como parte dos dois lados em termos de cinefilia, uma cinefilia que passa por tudo que essas pessoas polarizaram. A gente sempre assistiu filmes que vão dos mais experimentais a filmes super populares. Então, na nossa feitura isso nunca foi uma questão. Só que ao mesmo tempo, em termos de resultado até então e pelo fato de sermos uma produtora que foi realmente numa escadinha buscando visibilidade a cada filme, a cada processo, a nossa experiência está muito mais conectada a um cinema independente e autoral, sendo que eu sempre considerei que boa parte das nossas obras são completamente acessíveis no sentido popular. Não acho que a gente tenha filmes em que, tipo assim “isso aqui realmente está num outro tipo de lugar”. Mas isso acontece muito naturalmente, sem fazer parte de um discurso “vamos fazer no cinema popular ou um cinema autoral”. Nosso desejo foi sempre fazer um cinema honesto, um cinema sincero com cada ideia que aparecia.
Existe um potencial para alcançar mais pessoas com o tipo de filme que a gente faz, o que não depende só da gente ou do que tá dentro dos filmes em escolher estéticas ou narrativas, mas esses dois momentos mostraram um potencial. Eu colocaria também
o No Coração do Mundo como um filme que travou uma relação com o bairro, com opertencimento que, embora o No Coração do Mundo não tenha ido para a Netflix e não tenha alcançado um público como o de Marte Um, culturalmente ele teve uma coisa que marcou a questão do espaço mais do que outros filmes. Talvez o Temporada
e No Coração do Mundo, por terem sido lançados no mesmo ano, eles começaram a falar de forma mais ampla “desses caras de Contagem”. Esses filmes começaram a buscar uma coisa que a gente talvez sempre quis, que é dialogar, ser visto, ter impacto numa tela de cinema com muita gente. Hoje mesmo saiu na Mídia Ninja uma cena do Marte Um e nos comentários tinham vários de pessoas que não conheciam a Filmes de Plástico e, de repente, se impactaram com uma cena. Isso é uma coisa que eu vejo como um sonho que eu tenho daqui para frente: dialogar com muitas pessoas. Eu acho que os nossos filmes abrem portas para muita gente diferente e torço muito para que os próximos filmes tenham repercussões parecidas porque é muito precioso fazer esse diálogo.
Thiago Macêdo Correia: Eu acho isso engraçado porque parece que dentro da nossa própria formação cinéfila é quase como se tivesse uma diferença, uma classificação entre o que é acessível ao público e necessariamente de menor valor artístico ou coisa do tipo. Como se a gente tivesse que pertencer necessariamente a um ou ao outro. Eu não acho que tenha muita diferença entre o No Coração no Mundo, que não teve opúblico do Marte Um, e o próprio Marte Um Para mim são dois filmes que estão no mesmo lugar, a diferença é só que mais gente viu Marte Um. E aí curiosamente, para muita gente, o Marte Um soa como um filme mais popular porque o público viu. Houve “críticas” à produtora, digamos assim, como se a gente tivesse se vendido ao popular e ao comercial, sendo que na nossa cabeça sempre foi isso. A gente faz um filme que está estreando num festival,tem aquele público que é elitizado,num recorte específico, e você sabe que vai ser difícil atingir uma camada maior de pessoas. Mas o que a gente quer é que o máximo de pessoas assistam. A gente não faz um filme tor-cendo para que apenas 15 intelectuais assistam.Só que aí parece que se estabelece um juízo de valor sobre isso.
No processo de Marte Um teve uma coisa que me irritou profundamente quando a gente ainda estava conversando com festivais. Um festival em específico me respondeu dizendo que gostava muito do filme, mas considerava que o filme não era apropriado para aquele festival, e que esperava que um dia o filme encontrasse o diálogo especificamente com o público que de fato ele poderia se comunicar. Eu fiquei assim: “Espera aí, deixa eu só entender… seu festival não é para o público? É exatamente isso que você está dizendo? Vocês já são elite e agora vocês estão sublinhando o nível de elite que vocês são?”. A nossa cinefilia é formada por uma variedade imensa de referências e pessoas, algumas delas atingiram o público e outras não. Eu suponho que todas elas queriam atingir o público, todo mundo quer fazer milhões na bilheteria e que seu filme seja visto. Acho que a única coisa que diferencia os nossos filmes é que alguns foram mais vistos do que os outros.
Gabriel Martins: Eu acho que o Marte Um é um resultado de Temporada e No Coração do Mundo, porque quando Marte Um chega, tem mais gente que conhece a produtora por causa desses dois longas que foram lançados no mesmo ano e que repercutiram. Eu acho que não existe uma coisa sem a outra. O Marte Um lançado sem esses dois longas não teria mesmo impacto: o boca a boca teria sido menor, contando que é um filme que só fez essa bilheteria por causa do boca a boca. Tem algo ali que foi uma construção que faz parte da nossa história mesmo. Embora o tamanho do filme tenha sido quase acidental, em alguns aspectos, ele não foi algo excluído de um processo que está sendo construído há 15 anos.
Maurílio Martins: Eu venho refletindo há um tempo sobre o descontrole que temos sobre a obra. Nós não temos a menor ideia de como essa obra vai ser recebida pela crítica ou pelo público e, principalmente, pelos festivais. Mas me interessa pensar também em como essas obras rebatem nas expectativas de quem as espera. Por exemplo, o Quinze é muito emblemático em relação a isso. É filme que sempre foi pensado enquanto melodrama. Carrega todas as referências que a gente discute nos outros filmes, mas aconteceu que, na forma final, ele tivesse uma pegada mais “popular” no sentido de alcance de público. Ele tem uma carreira excelente em festivais e ganha prêmios em quase todos eles. Ainda assim, de certo modo, ele frustra a crítica porque ele vem de um modelo… a gente vinha do Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides,
vinha do Contagem e vinha do Fantasmas. Já comentamos isso internamente muitas vezes, mas o Quinze é completamente ignorado pela crítica, apesar das premiações e apesar de ter um alcance gigantesco entre as mulheres em círculos feministas e outros lugares muito “inusitados” que ele foi exibido.
Gabriel Martins: Acontece isso com o Rapsódia Para o Homem Negro também.
Maurílio Martins: A gente não tem controle sobre isso, mas eu falo até em relação ao que se espera. É diferente do Fantasmas e Contagem que chegam no início de tudo, eles foram o demarcador de um terreno. Daí para frente surge uma expectativa. Eu já ouvi gente falando que o Marte Um não corresponde ao trabalho prévio do Gabriel [Martins] porque ele é muito popular. Porra! Então o que que é ser popular ou não? O Marte Um foi feito no mesmo período de tempoque o No Coração do Mundo e o Temporada. Eles estavam completamente imbricados: o Marte Um foi filmado no final de 2018, enquanto o No Coração do Mundo e o Temporada foram em 2017. Ou seja, esses filmes dialogam muito mais do que possa parecer enquanto resultado final. O que a gente faz são filmes muito fiéis ao nosso pensamento basilar que é: a gente gosta de um monte de coisa e às vezes o filme vai ter uma característica e às vezes ele vai ter outra. O mesmo André [Novais Oliveira] que faz o Domingo, que talvez seja um dos filmes mais herméticos da produtora, é o André que faz Pouco Mais de Um Mês pouco tempo depois. As pessoas não sabem disso, mas esses filmes estão muito mais próximos do que possa parecer quando olha-se à distância e fala-se “isso aqui é o André popular e isso aqui é o André intelectual”. Essas divisões nunca existiram internamente. Em todos esses anos da Filmes, eu nunca ouvi algum tipo de desejo de nenhum de nós de fazer um filme que seria para crítica, para festival ou para atingir um público. A gente faz o filme que tem que ser feito, o que o filme pede para ser feito.
Gabriel Martins: Ao contrário disso, né? Inclusive, após o Marte Um tem uma certa expectativa do que virá em sequência e assim, meu próximo filme é um projeto mais antigo do que o Marte Um… então não tem uma sequência de tipo “agora é esse e depois aquele”. Claro que a gente tem uma noção que ocupamos um lugar, mas eu não sinto a gente tão contaminado pelas percepções sobre a gente quando vamos para o papel escrever roteiro porque eu acho que somos muito pé no chão. Eu acho que, nos próximos filmes,
pode até ter uma surpresa ou uma decepção porque eles apresentam outras faces da produtora, coisas que não são necessariamente mais comerciais ou mais autorais.
Thiago Macêdo Correia: A minha dificuldade é que eu acho a gente sempre meio óbvio. Eu vejo as coisas e fico assim “é tudo a mesma coisa”. O exemplo do Quinze é interessante. Eu lembro de um debate em Tiradentes em que o “cinema de afeto” virou um termo pejorativo, mas eu tô assim: “eu gosto de cinema de afeto”. Pouco depois eu lembro que vi um comentário nas redes sociais que era tipo assim: “fazer processo de curadoria é sempre ver filmes que tem planos da cidade e planos no chuveiro”. Aí o Gabriel viu isso e falou assim: “No próximo filme vai ter plano de cidade e plano no chuveiro! Se isso é de mau gosto, então vai ter no filme!”. É um conceito do que é bom ou mau gosto, não é que a gente não entende, mas pela maneira que sai daqui pra fora, a gente não vê muita distinção. O engraçado é que, nos próximos filmes, algumas coisas apontam para diferentes lugares, mas eu ainda meio que acho que a gente segue fiel a aquilo que nos interessa. A gente não mudou de interesse. Só me surpreende isso porque quando alguém olha o Marte Um e critica falando “isso aqui é menos interessante porque é mais comercial”, eu fico assim “uai, o outro também era, só não tinha sido visto”. No final das contas é só um juízo de valor sobre quem viu.
André Novais Oliveira: Da minha parte, essa coisa de pensar o que é natural e o que não é. Eu acho que tudo que a gente faz é de maneira muito natural mesmo. Quando vem a ideia, a gente não pensa em como vai chegar, a gente só quer que chegue em mais pessoas. Eu fiquei pensando numa coisa aqui que, talvez no meu lado, seja pensado para mudar um caminho mais pelo incômodo do filme anterior que, no caso, foi de Ela Volta na Quinta para o Quintal. Teve um cansaço meu sobre o que as pessoas falavam a respeito do Ela Volta na Quinta, independentemente se gostavam ou não. Tinha uma coisa de ficar falando sobre ficção versus realidade que era uma coisa meio massante.
Maurílio Martins: Aí você vai lá e bate com os dois pés na porta! (risos)
André Novais Oliveira: Aí deu uma vontade mesmo de fazer algo totalmente diferente. O Quintal realmente teve um pensamento nesse sentido.
Maurílio Martins: Claro! Mas aí tem uma legitimidade que é muito diferente do que ser pautado. Porque aí a sua pauta é uma anti-pauta. Você pega o que está sendo dito e inverte e surpreende.
Renan Eduardo: Que é o plano do chuveiro em No Coração do Mundo.
Maurílio Martins: Exatamente! Em No Coração do Mundo a gente abre o filme com planos de cidade e no auge do drama é um plano de chuveiro. Isso aí é delicioso!
Inclusive, o cinema marginal, na minha opinião o auge do cinema brasileilo, é isso enquanto síntese. É pegar aquilo que estava anteriormente sendo feito e avacalhar tudo porque avacalhando que a gente vai conseguir algo. É isso que o Carlão [Carlos Reichenbach] faz com o melodrama. Não à toa é um dos meus diretores favoritos da vida, talvez a figura que mais me inspire, me impressione. Mas é sempre como que ele lida com as expectativas. Tem várias entrevistas dele falando que os filmes deles são populares e que ele faz filmes para que as pessoas vejam. Talvez ele tenha dado o azar de nunca ter tido um grande filme popular que passasse na televisão, mas são filmes populares inclusive no sentido estrito do termo: ele usa da linguagem mais entendida como popular e faz os filmes dele com o “toque” do Carlão. Se você assiste todos os filmes dele em retrospectiva, os filmes se parecem pra caralho.
Thiago Macêdo Correia: Isso acontece porque as pessoas não sabem, entendeu? Se você coloca o Alma Corsária (Carlos Reichenbach, 1993) nesse pacote de “homenagem: clássicos do cinema brasileiro”, como que isso não pode ser visto como popular?
André Novais Oliveira: Última coisa que vou falar sobre esse negócio do afeto que o Thi estava falando. É engraçado como que chega no público e na crítica porque, pode ser qualquer coisa que você fizer, as pessoas vão dar um jeito de relacionar. Isso aconteceu com o Ela Volta na Quinta e tudo que estávamos fazendo até então era relacionado pela galera com essa coisa de afeto. Na época, me incomodava um pouco, mas hoje não. No Quintal realmente tinha isso de inverter as coisas. Eu lembro de alguém falando sobre o plano que tem o pé da mãe [Dona Zezé] voando: “nossa, aquele pé inchado… que afetuoso”. Tipo assim, é só o pé inchado da minha mãe (risos).
Thiago Macêdo Correia: É isso: fazer coisas do nosso interesse. No Ela Volta na Quinta tinha uma cena específica em referência ao Minnie and Moskowitz (1971), do John Cassavetes, e ela não deu certo. Chegou no Temporada, o André fala assim: “Então, eu queria fazer uma cena tipo a Minnie and Moskowitz” (risos). Eu perguntava “por que que você quer fazer?” e o Andrezera só respondia “porque eu gosto da cena” e é tipo isso. Simplesmente é porque é.
Victor Guimarães: Um pouco nessa direção, mas indo para um outro lado, eu sinto que há uma mudança na realidade da produção. O Filme de Sábado surge em 2009 e, para mim, é um dos grandes manifestos do cinema brasileiro no sentido de fazer um filme barato no quintal. Até a própria ideia do “filme de plástico” reflete esse material precário e, ao mesmo tempo, muito livre. Precário em termos de recursos, mas com uma liberdade muito grande. Sinto que os primeiros filmes surgem nesse caminho. Especialmente nos últimos anos, vendo de fora, temos a impressão que a Filmes de Plástico está em outro patamar (no sentido futebolístico), no sentido que tem mais robustez de produção: tem equipes e orçamentos maiores. Mas, por outro lado, ainda há filmes como O Dia que te Conheci, que tem um orçamento mais modesto e uma equipe menor. Eu queria entender mais sobre esse espírito de fazer filmes entre amigos, de equipes sem muito dinheiro, de gambiarra com arame e cola. Esse espírito lá do começo ainda está presente em vocês? E também como é que vocês lidam com a realidade de orçamentos maiores, de produções mais robustas? Queria entender melhor como vocês se veem diante de um desafio mesmo.
Gabriel Martins: Tem um exemplo muito bom que é quando eu e Maurílio estávamos em Porto Alegre finalizando o som de No Coração do Mundo. A gente estava fazendo o som com o Tiago Bello e o Marcos Lopes, que vieram a fazer outros filmes nossos depois. Eles têm um trabalho muito profissional, muito denso. Por exemplo, lá tem uma pessoa específica para fazer foley, um trabalho muito completo de som. Quando estávamos lá, o pessoal aproveitou para fazer uma pequena sessão de filmes nossos. Eu lembro de assistir uma sessão que exibiu o Contagem e comentava com o Maurílio que o som estava muito precário, o desenho de som muito simples, eu tinha feito na timeline do Premiere mesmo e dentro de casa. Ao mesmo tempo, a gente estava trabalhando os mesmos personagens, o mesmo universo, mas num filme com mais recursos
e mais ferramentas, ou seja, mais possibilidades. Eu sinto que com o tempo a gente foi descobrindo coisas que a gente poderia usar. A gente literalmente não fazia foley nos filmes porque a gente não tinha esse recurso ou mesmo essa possibilidade de mixar um filme numa mesa de som. A primeira vez que fizemos isso foi no Dona Sônia…, mas a mixagem e o foley foi lá quando a gente fez o Nada (2017). Então assim, a gente ficou um tempo entendendo o que poderíamos fazer. Muitas vezes essas ferramentas significam mais grana. Por exemplo, quando você tem uma steadicam e um profissional para manuseá-la, muitas possibilidades se abrem. Você consegue criar altas imagens que você não conseguia criar antes da mesma forma.
Eu tomo essa história como um resumo porque acho que com o tempo essas ferramentas, esses tamanhos de equipe, criaram outras dificuldades: o processo se torna muito mais burocrático. Eu lembro que isso era uma certa frustração em No Coração do Mundo, porque em Filme de Sábado a gente filmou 35 posições de câmera em um só dia e isso com travelling e várias outras coisas diferentes. Em No Coração do Mundo, isso já cai para cinco diferentes posições de câmera, às vezes menos. Mas também já havia um entendimento que não estávamos fazendo mais da mesma forma, que agora havia um número “x” de figurantes, que estamos iluminando a cena toda com equipamento profissional. Tem também um certo valor um tamanho de equipe. Isso é muito importante politicamente falando enquanto presença de um filme desse tamanho dentro do bairro. No fim das contas, isso corresponde a um desejo de fazer filme. Dito isso, a gente faz o filme do André [O Dia que Te Conheci], por um desejo impulsivo do André em filmar naquele momento, algo que corresponde muito ao desejo estético daquele filme. Não tinha como fazer o Se eu Fosse Vivo… vivia, que a gente acabou de rodar, naquela mesma circunstância. Os desejos estéticos do André em Se eu Fosse Vivo não eram possíveis na estrutura de O Dia que te Conheci.
Thiago Macêdo Correia: Mas a gente considerou, passou pela nossa cabeça (risos).
Gabriel Martins: A gente filmou um baile black em 16mm com 250 figurantes, todos caracterizados em roupas dos anos 1970, uma estrutura foda e, somando equipe e seguranças, dava quase 350 pessoas. Tinha uma importância dessa diária ser com 350 pessoas e não ser “na tora”, sabe? Os seguranças sendo pagos, todo aquele figurino
sendo produzido por costureiras. Às vezes tem umas coisas boas que precisam dar trabalho para você fazer e, na nossa ambição, a gente foi encaixando essa forma de fazer para abastecer… A gente não foi crescendo à toa. Acho que tem uma certa ambição na gente que é: vai abrindo uma porta na loja de brinquedos, depois vai abrindo outra, a gente vai querer usar o que tá do outro lado da porta.
Maurílio Martins: Eu vou ser breve porque o Thiago vai falar sobre isso com mais propriedade. Mas é que a gente foi descobrindo o terreno quando a gente estava ali fazendo o Fantasmas e o Dona Sônia… ou o Contagem. A gente fazia dentro de um modelo que não tinha precedente. Era um modelo que a gente tinha que inventar a cada filme. Quando o Thi torna-se sócio da produtora, a gente faz o Nelson Prudêncio, que não era da produtora mas estava todo mundo envolvido, e depois a gente faz o Ela Volta na Quinta, teve uma decisão que eu acho que ela é boa de ser colocada aqui porque o próximo filme era o Quinze. A gente senta numa sala, depois de fazer um filme sem dinheiro, o Thi fala uma frase que permeia muito o nosso trabalho até hoje: “Muito lindo tudo que a gente fez até hoje, deu certo, mas não é um modo de se fazer em relação a respeito. É preciso pagar todo mundo, ter uma comida boa no set, tirar uma pessoa de casa com o mínimo de conforto”. Na pré-produção do Quinze, filme que a gente fez com o nosso dinheiro, ele [Thiago] falou assim: “esse vai ser o primeiro filme que a gente vai começar a ter um pensamento de produção decente”. Ele nem usou a palavra “profissional”, era decente mesmo. Uma produção onde a gente consiga pensar minimamente nas pessoas.
Só que essa decência e esse carinho, tem um custo. Esse custo é: para você chamar figurante para sua cena você tem que pagar o figurante, aí depois pagar alguém que contrata o figurante e por aí vai. Então, tem um crescimento ali que foi natural com os filmes seguintes. Não tinha mais como fugir disso. A gente já estava atingindo um “nome”, um respaldo crítico que também nos obrigou a ter mais responsabilidades. Como diria o famoso Tio Ben: “grandes poderes vêm com grandes responsabilidades”. A gente também passou a ser muito visto e, com isso, muita gente passou a querer trabalhar com a gente também. Novamente, o Thi teve um papel muito importante nisso, porque o romantismo da produção precária cobrava um preço muito alto de nós. A gente fez o Ela Volta na Quinta com sete pessoas e 17 diárias, rodadas em cinco cida-
des diferentes e uma porrada de locação. A gente foi herói naquilo ali. Eu acho que o espírito permaneceu ao longo desses anos. O Dia que te Conheci tá aí como prova, mas houve uma mudança lá atrás que foi uma das melhores decisões que nós tomamos em relação ao nosso bem-estar e ao bem-estar de quem estava trabalhando com a gente.
Thiago Macêdo Correia: Menos gente você implica em outras limitações, obviamente. Quanto mais gente vai tendo, mais demanda tem. É a frase clássica da Sara Silveira, quando estávamos em um debate com o Carlão [Reichenbach] aqui em Belo Horizonte falando sobre as obras dele, até que o Carlão comenta que fez um filme com cerca de 10 pessoas e que achava isso lindo e tal. E, na época, a Sara estava produzindo Trabalhar Cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011) e uma pessoa da plateia pergunta o que ela prefere, se ela prefere quando tinha menos gente e mais funções acumuladas, ou agora com uma equipe maior. A resposta dela foi apenas: “querido, gente só serve para correr atrás de você pedindo coisa”. E eu fiquei assim: “hmm, é verdade” (risos).
A questão é que se tem um certo valor para produzir, você lida com alguns limites em termos de criatividade. Se você tem como pagar, isso vem com algumas liberdades, mas também gera outras demandas. Eu acho que o aspecto que a gente mais conseguiu levemente manter entre um filme muito pequeno e o nosso maior filme, é o fato de que a gente tem necessidade de que as pessoas que trabalham com a gente estejam fazendo o filme porque querem fazer o filme. Todo mundo é respeitado, recebe o salário acordado e em dia. Isso tudo está dentro dos nossos limites. Mas a pessoa precisa ter interesse. A gente escolhe os nossos motoristas pela personalidade do motoristas. É importante que os motoristas estejam ali não só para prestar um serviço.
Quando surge alguém que não é assim, normalmente essa pessoa não sobrevive ao próximo filme, porque não é do nosso interesse que as pessoas façam um “job”.
Esse filme do André que a gente acabou de rodar é isso. A gente pulou de uma das menores equipes (O Dia que te Conheci) para uma das maiores (Se eu Fosse Vivo… Vivia). Nesse último, era um filme que tinha muita demanda de arte e figurino, mas chegou num momento que o André desapegou. Num passado, o André tentava fazer sempre com o mínimo necessário. Nesse projeto, teve um dia que eu cheguei no set e não sabia quem era uma pessoa. Me responderam que era um fulano da arte e eu falei
que não gosto de não saber quem é que está dentro do filme. Isso é importante para mim. Aí fui lá me apresentei e etc. Depois disso, eu chamei a pessoa responsável e pedi para que ela me repassasse esse tipo de coisa, não é para ficar nesse lugar impessoal. Depois disso, a gente começou a fazer uma piada interna de que no set a gente saia tropeçando em gente nova da arte e do figurino (risos).
Quando você chega de fora num set da Filmes de Plástico, você ainda vai considerar a Filmes de Plástico muito pequena para o que se vê em outras coisas com o mesmo orçamento. Isso acontece por causa desse movimento nosso de evitar uma impessoalidade muito grande, mesmo quando você precisa fazer uma cena com 250 figurantes. Esse dia foi muito legal porque assim eu e o Gabriel chegamos, o set não foi em Belo Horizonte, e quando descemos do carro e vimos aquela quantidade de outros carros e ônibus deu um troço. Era uma situação inacreditável! Só que quando você entra no set, aquele tanto de gente tá todo conectado, todo mundo sabendo o que tá fazendo. Esse set, que foi o maior no sentido de estrutura, foi também um dos sets mais, com o perdão da palavra, afetuosos. Não tinha frieza. Esse é o ponto principal que a gente ainda consegue manter.
Gabriel Martins: Uma coisa importante dizer é que não é verdade que as produções só vão crescendo nos próximos tempos não, pelo contrário. A gente tem projetos que são bem mais simples e que provavelmente vamos filmar ano que vem. A gente teve um processo meio contrário, porque normalmente a galera começa com os primeiros longas que são mais simples: só uma locação, um projeto bem experimental com um pouco menos… A gente já começou com primeiros filmes muito difíceis e com muitas locações. Então, eu acho que agora a gente está fazendo um caminho contrário de voltar para ideias mais simples. A gente teve uma boa época de projetos muito desafiadores em que a gente tirou leite de pedra. Agora a gente quer um pouco de descanso também.
Thiago Macêdo Correia: Dito isso, duas coisas engraçadas para não ser incoerente: o próximo filme é o nosso maior em estrutura, mas esse tá na cota dos “antigos”. Gabito comentou que começamos com algumas coisas muito desafiadoras e agora queremos buscar caminhos mais simples, por assim dizer. Acho que isso tem uma coisa parecida
também com o negócio do longa e do curta, né? Tipo assim, para muitos cineastas, sem nenhum juízo de valor quanto a isso, o curta é só um caminho para chegar no longa. Mas para a gente não é bem assim. Um dos nossos próximos projetos que estamos tentando fazer é o roteiro de curta do André que a gente adora. Ele vai estar no meio de longas dele, mas é um curta que a gente ama.
André Novais Oliveira: É uma frase que o Gabriel fala: a gente faz filmes que a gente quer ver.
Victor Guimarães: Só complementando um pouco. O próximo filme que vai ser o maior é o Vicentina Pede Desculpas, dirigido pelo Gabriel e feito em parceria com a Netflix, certo? Vocês comentaram um pouco sobre essa coisa que fica um pouco mais burocrática quando cresce, também e dessa vontade de fazer um filme menor logo depois desse filme grande do André. Mas vocês sentem alguma pressão de algum lugar, a exemplo dessa parceria com a Netflix, de descaracterizar esse método de vocês? Ou uma pressão no sentido de fazer um filme que seja mais “industrial”? Tem algum tipo de “assédio” que vem sei lá de onde?
Gabriel Martins: Já vieram propostas que inclusive se anunciavam para ser coisas bem burocráticas. Eu nem posso dizer porque eles não se efetivaram, mas que perderíamos a nossa identidade. Inclusive, projetos que não foram para frente porque a gente achou que não tinha nada a ver. Nesse caso da Netflix, talvez seja o primeiro projeto que a gente desenvolve com um grande streaming, mas também é um projeto que tem características muito específicas. Ele não surgiu por uma demanda de lá. É um roteiro bem mais antigo, é um roteiro nosso. É um projeto que vem da gente, não deles. Deles vem só a possibilidade de financiar, mas em termos de execução… inclusive, boa parte de uma liberdade de execução vem muito próxima do que a gente já fez. O roteiro em nada se modificou a partir de uma demanda do streaming. Então, o filme não perdeu nada da personalidade dele até esse momento.
Thiago Macêdo Correia: Sem dar muitos detalhes, mas a gente não tinha expectativa de que esse projeto pudesse ser feito num modelo que a gente entendia como um modelo praticado pelo streaming. Quando esse projeto chegou na mão deles, a
primeira coisa que a gente foi falando era que não é do jeito que vocês [a Netflix] trabalham. Eles responderam que queriam fazer com a gente e que dariam a nossa liberdade. Na matéria de anúncio ele falou assim: “a gente está respeitando o método de vocês”. Então, desde que começamos isso, estou reforçando que é um filme da Filmes de Plástico. Eles são nossos parceiros, mas é um filme da Filmes de Plástico.
Gabriel Martins: A gente está muito aberto, mas até agora não vivenciou de fato uma situação em que a gente tenha ceder de uma forma muito grande para fazer uma coisa acontecer. Então, essa pressão simplesmente não aconteceu até agora em nenhum projeto nosso. É uma coisa que não é surpreendente dentro de um mercado de streaming e é algo que pode até vir acontecer com a gente. Se vier, a gente vai ter que entender se faz sentido ou não ou como, se dá e como operacionalizar nessa situação.
André Novais Oliveira: Quando vai para esse lado de ser diferente do que a gente pensa, sempre acontece alguma coisa: ou a gente sai ou acontece alguma coisa que não viabiliza.
Thiago Macêdo Correia: Em suma é isso. A gente não tem pressão de ninguém e muito menos interna. Mas rolam assédios assim e isso cresceu muito. A gente tem muitos novos amigos que a gente nunca viu na vida, sabe? (risos)
Gabriel Martins: Eu acho que, de alguma forma, não para o senso comum e popular, mas dentro de um certo mercado, começou-se a entender a Filmes de Plástico, principalmente após Marte Um, como uma possível assinatura que pode legitimar um certo tipo de filme periférico, negro e etc. Aí a gente sente uma certa falsidade em algum lugar de querer estar com a gente.
Maurílio Martins: Um dia conversando com Gabriel sobre isso, a gente viu um outdoor de faculdade particular só com pessoas negras. Aí o Gabriel fez um comentário massa que era tipo assim: “Enchem os outdoors de pessoas negras quando isso é o melhor momento para eles, né?”. Isso foi posto ali enquanto pensamento de mudança. Ele é colocado na hora em que os negros estão acessando cada vez mais as faculdades particulares e as faculdades particulares precisam se comunicar com o público principal
deles. A gente falando sobre isso e como isso, de certo modo, também acontece com André e Gabriel. Eles são sagazes para sacar isso rapidamente, mas é o tanto de projeto que cai no colo deles pelo “selo”.Há um aproveitamento tanto da produtora, de Marte Um e Temporada estarem no auge, quanto do fato deles serem homens negros. Ou seja, é uma junção de coisas para que o mercado coloque a mão. Eu falo por eles porque eu fico presenciando diariamente esse tipo de pedido: “você poderia dirigir esse projeto aqui comigo?”, “na minha produtora tem um projeto que é a sua cara”. Muito sutilmente, até pelo tanto de trabalho que ambos têm aqui dentro da produtora, eles vão se livrando disso. Mas perceber, a gente percebe. Esses “novos amigos” que a gente comenta vem disso, né?
Gabriel Martins: É meio a Filmes de Plástico como voz de periferia, né? Eu acho que as pessoas não entendem os métodos que levam os filmes a serem interessantes. Então, acredita-se que é uma coisa que simplesmente se fabrica e que pode se repetir a partir de qualquer projeto ou ideia. Sendo que, na verdade, nasce muito de origem. Todos os nossos projetos são muito pessoais…
Thiago Macêdo Correia: Como se houvesse uma fórmula a ser aplicada, né?
Gabriel Martins: Os nossos projetos não tem nenhum tipo de conexão além de ser uma vontade muito pessoal ou um trauma. Mesmo que os personagens do filme possam não ser exatamente iguais a quem escreveu ou igual a nós, sempre tem… E que não precisa estar na periferia, Constelações é um exemplo disso. É um filme extremamente pessoal, mas que não precisa estar na periferia ou falar o tempo todo da periferia para ser um Filme de Plástico. Só que algumas pessoas têm um entendimento superficial de quem a gente é. Inclusive, em muitos casos, nos tratando de maneira condescendente. Na distribuição do Marte Um, que foi onde eu convivi com mais pessoas do grande mercado, as pessoas realmente têm uma relação muito condescendente em relação a nós porque somos de Minas, porque somos os caras da periferia. Então assim, eles estão dispostos a reconhecer um certo valor no filme, mas eu sinto que eles não olham para nós como pessoas que estamos no mesmo lugar de produção e que, eventualmente, vamos produzir mais e melhor do que eles, que é uma coisa que já está acontecendo.
Thiago Macêdo Correia: Só que isso é fácil de identificar. É fácil de identificar quem se aproxima da produtora por um senso de oportunidade e quem se aproxima não só pela admiração, mas por um desejo de colaboração que é legítimo. A gente está envolvido em projetos que a produtora está entrando mesmo quando supostamente a gente não deveria, por administração do nosso tempo, mas por um interesse legítimo de colaboração, de conexão de vozes, de linguagens e tudo mais. Então, é muito fácil notar quem se aproxima de um jeito ou de outro. É muito fácil notar um tapinha nas costas e outro tapinha nas costas.
Renan Eduardo: É até curioso que vocês comentem isso, porque parece que vocês até leram a pergunta que eu ia fazer agora. Eu queria voltar um pouco naquilo que o Maurílio falou sobre o Quinze. Na maioria dos textos panorâmicos que lemos sobre a Filmes de Plástico, é possível perceber uma extrema recorrência de classificação dos filmes em “cinema periférico”, mas sobretudo como “cinema negro”. Nesse sentido, acho que tem um pouco a ver com uma certa homogeneização da produtora, sendo que, na verdade, estamos lidando com cineastas muito distintos em termos estilísticos. Eu fiquei pensando que quando trabalha-se sob a chave de cinema negro e Filmes de Plástico, a filmografia do Maurílio é deixada de lado. Fala-se sobre os filmes do André e do Gabito, mas o Maurílio acaba esquecido, mesmo sendo um sócio e diretor da produtora. Em parte, isso surge talvez em função de atrelar a ideia de cinema negro a uma autoria exclusiva da direção. Desviando um pouco disso, eu queria saber:vocês pensam que essas leituras de “negro” e “periférico” encaixotam os filmes em um determinado rótulo que restringe o olhar à materialidade das obras?
Maurílio Martins: Eu acho que a crítica brasileira, desde sempre, tem uma questão de culpa muito grande nas costas. E que a academia, ao invés de combater, reforçou ainda mais. Então, no momento em que houve o cruzamento entre a academia e a crítica, isso ficou quase impossível de penetrar. Você não consegue mais ler nada que não tenha esse viés. Por exemplo, quando a gente foi montar sugestões para a programação dessa mostra, uma das coisas que a gente falou é que a gente queria um debate que explorasse a linguagem e a técnica. Nós nunca, em nenhum debate, em 15 anos de produtora, tivemos a oportunidade de falar de linguagem,técnica, de falar de referências, de citar as referências, de falar sobre estética.
Tem uma entrevista do [Elia] Suleiman que é genial. Hoje ele é o cineasta que eu mais me espelho no sentido do que é possível fazer enquanto filme periférico. Nessa entrevista, a repórter pergunta algo para o Suleiman, ele fala assim: “Meus filmes são estéticos”. Ela retruca tentando falar que os filmes são tratados e ele responde: “Meus filmes são, antes de tudo, estéticos. É a partir da estética que eu falo sobre o meu povo”. Na época achei que era arrogância dele, mas quando tivemos o prazer de conhecê-lo e conversar com ele por alguns minutos na França, eu entendi tudo. Aquilo é uma defesa da integridade do artista, porque se ele não defende, ele é só mais um filme a fazer coro aos filmes. É bonito falar, enquanto crítico e acadêmico, sobre os filmes palestinos e tirar desse homem toda e qualquer característica de um cara que é um dos maiores estetas do mundo contemporâneo.
Thiago Macêdo Correia: É um absurdo porque a imagem é literalmente a primeira coisa que aparece. Isso é a fase do “importante”, né? Tipo assim, falar de “cinema de afeto” de um modo negativo porque o popular e o afetuoso é “mais baixo”. Agora é isso: vamos falar da periferia e das populações porque isso é “importante”. Esse conceito de “isso aqui é importante” está esbarrando em um lugar do que valida e o que não valida. E tem gente que, infelizmente, está se valendo de modo oportunista desse movimento. Cineastas que, na minha opinião pessoal, não estão trazendo nada muito interessante para a discussão da própria pauta, mas que se escoram em “esse é um cinema negro” e, então, nem vamos refletir sobre porque é um filme negro. Aí cria-se uma superficialidade de tudo, porque só vira caixinhas, só vira onde você deve se resguardar e permanecer.
Maurílio Marins: Quando eu falo que é agressivo com o nosso cinema é que isso não é agressivo apenas comigo, não é agressivo só com o meu cinema. Essa exclusão do meu cinema é proposital. É proposital falar da Filmes de Plástico e me excluir, tem uma ideia por trás disso. É a ideia de encaixar os meninos dentro de um pensamento, de tratar o cinema somente enquanto instância racial ou social. Isso é agressivo com a própria capacidade e inteligência dos dois. Por exemplo, quando se analisa o Ela Volta na Quinta, não há quase nada sobre o tamanho do estudo que o André faz sobre composição de planos dentro do filme ou das referências que ele traz explicitamente. A dança do pai e da mãe em referência direta a O Matador de Ovelhas, que também é de
outro esteta [Charles Burnett], mas que é colocado dentro de caixinha. Gabriel é um dos cineastas que mais movimenta a câmera, uma das pessoas mais inteligentes a movimentar uma câmera e isso não é posto. Não há texto sobre No Coração do Mundo para falar das movimentações, para falar de todo o pensamento que há de linguagem dentro do filme. Então, esse encaixotamento é agressivo. O problema é que quando eu vou falar isso parece choro de perdedor, mas alguém tem que falar isso. Por isso que há revisões críticas de 30 em 30 anos, porque depois de 30 anos a pessoa já passou, já não tem mais nenhum problema com aquilo ali.
Os jovens turcos não surgiram à toa naquele momento. É porque ali eles estavam revisando algo que as pessoas antes não tiveram coragem. Então, é um problema muito grave, porque a massificação dessa crítica vai se atropelando. Um começa a escrever, o outro quer acompanhar e chega uma hora que quando você olha para toda essa fortuna crítica, ela é igual. Ela não é apenas igual, mas é repetitiva.
Quando o Suleiman fala isso, ele parece pedante; quando eu falo isso, parece um choro de perdedor. Não é. A gente entende o quanto de culpa essas pessoas carregam e o quanto elas deixam de apreciar profundamente o material. E eu nem tô dizendo para elogiar. Pode ser inclusive para fazer críticas. Tentou fazer e isso não deu certo, seguir essa linguagem e deu errado, mas eu amaria ler porque eu acho que esse é o papel.
Gabriel Martins: Acho que isso se tornou assim com o tempo. Quando a gente começou, os nossos filmes não eram analisados sob essa ótica. Falava-se mais do cinema mesmo. Eu não lembro muito do Contagem sendo analisado especificamente por ser de periferia. Eu entendo também porque a crítica foi mudando e a gente também foi mudando. Depois de tanto que aconteceu, eu acho que existe uma certa dificuldade de inclusive se associar as duas coisas. Entender essa nossa potência que… isso é óbvio, né? A gente tem uma potência de identidade mesmo. Somos famílias de classe trabalhadora que nos trouxeram uma história. A nossa formação de vida não é igual à do Walter Salles e isso é especial. Isso tornou o nosso cinema especial. Só que eu acho que várias pessoas, quando analisam, têm uma dificuldade de associar essa potência com a potência narrativa, estética e realmente ir a fundo em várias coisas que a gente está construindo no filme que não são propostas sobre a conversa de raça, periferia e
gênero que caberiam numa discussão apenas de representatividade. Acho que falam sobre outras coisas. Não existe no Marte Um nenhuma conversa explícita sobre racismo sendo feita, mas existe uma amplitude sobre a ideia de negritude que não precisa estar no seu volume mais alto. Isso não é feito por uma vontade de desviar, mas é que para nós isso não é necessariamente um truque.
Partindo da ideia de que os nossos filmes surgem de ideias muito pessoais, esse truque talvez seria barrado internamente, ainda enquanto ideia. Talvez até em algum momento a gente já escreveu alguma coisa que poderia parecer um truque, mas isso foi barrado antes de ser filmado ou caiu na montagem. Eu acho que existe, de fato, uma verdade, uma sinceridade e acho que também existe um impulso que tem a ver com a forma como surgimos no cinema. Se a gente tivesse surgido no cinema dois anos atrás, talvez seria diferente. Talvez seria um processo que, de alguma forma, até teria fracassado ou teria ido para um outro lugar. Mas a gente nasceu num momento de uma cinefilia muito bruta, digamos assim. Então, o cinema em primeiro lugar.
O cinema nessa ideia de pacto sagrado entre quem cria e quem vê, nessa relação que você está fazendo de escolhas visuais para aquilo chegar até um fim, até um resultado emocional. Esse pacto é algo que atravessa diversos momentos históricos até que, por fim, os filmes ficaram apesar de tudo. Por acreditarmos nesse pacto, me parece que automaticamente isso nos protege também de muitas possíveis ciladas assim que a gente poderia cair. Acho que isso também tem a ver com o tempo que a gente tá nesse rolê, o tempo que a gente tá nesse corre.
Victor Guimarães: Eu queria voltar numa coisa que vocês falaram sobre a periferia. A Filmes de Plástico é muito identificada com Contagem, as duas coisas são quase sinônimas, mas é interessante porque tem exceções. Há filmes que não estão territorialmente vinculados a Contagem. Constelações, por exemplo, se passa num carro, que é meio um não-lugar, e O Dia de te Conheci, já de um outro momento, tem o centro de Belo Horizonte como algo muito forte no filme. Então, queria perguntar para vocês sobre essa relação com o território de Contagem: é algo primordial no sentido de que vai permanecer para sempre ou vocês também acolhem a possibilidade de abraçar outros territórios? E se vocês sentem que isso muda alguma coisa? Como é isso de
filmar em Contagem, mas também filmar em outros espaços? Porque isso complica a ideia do periférico.
Maurílio Martins: Meu próximo filme é rodado 100% no Laguna, se chama Laguna, e o seguinte já não tem nada disso, vai ser todo no sul de Minas. Da mesma forma que a gente não quer que sejam condescendentes conosco, eu também não quero ser condescendente com esse espaço ou ser vítima disso no sentido de que eu sou “obrigado” a fazer aqui por uma questão que isso comprometeria o nosso trabalho como um todo. Eu tive dificuldades em O Último Episódio (projeto ainda em finalização) com pessoas e vizinhos e que eu não imaginava. Por outro lado, são dificuldades normais dentro do processo de uma produtora que vai crescendo. Eles olham para aquilo ali e tem mais de 100 pessoas trabalhando, aquele tanto de van, e eles começam a pensar que aquilo também tem que dar um retorno mais do que financeiro. Então, começa também a ter problemas ali. Porque se não fica nesse discurso sobre a bondade na periferia que eu odeio. Essa homogeneização em que todo mundo é bonzinho na periferia é um discurso filha da puta. O Adirley [Queirós] sempre fala que esse discurso só serve para deixar aquelas pessoas na mesma situação.
O Último Episódio era um filme extremamente geográfico. Ele tinha que se passar ali, era a ideia do filme, ele não podia se passar em outro lugar. Mas em compensação, é o filme que eu tive mais debates com moradores para conseguir coisas. Foi muito natural que no projeto seguinte eu pensasse em fazer no interior. Um filme que também é de memória, também é nostálgico, mas que não necessariamente é um filme menor ou um filme que comunique menos com as minhas coisas do que o Laguna. Eu, enquanto cidadão Maurílio, vou ser territorialista sempre. Eu nasci ali, vou morrer ali, minha ideia é seguir morando, mas acho que não queria que o meu cinema fosse refém disso. O que eu não quero que a crítica faça, eu não quero fazer com o meu cinema. quando eu me obrigo a fazer filme para que ele tenha só essa identidade, eu estou contradizendo tudo que eu combato enquanto pensamento.
Thiago Macêdo Correia: Essa é a maior diferença. Eu acho que o Laguna tem uma coisa que é mais internalizada. O filme passa muito pela vida do bairro e vice-versa. Os moradores têm uma relação diferente, entendeu? Por exemplo, Se eu Fosse Vivo… foi feito a maior parte em Contagem, mas não é a mesma relação que se tem no Laguna.
O bairro não tem uma relação tão forte com o filme como o Laguna tem. Eu diria que essa é a principal diferença. Mas eu acho que não tem essa pressão. Os projetos vão variar muito fortemente, mas a gente faz isso sem dívida nenhuma. É meio engraçado porque a gente na nossa cabeça é um cinema eventualmente feito em Contagem.
Gabriel Martins: Essa coisa da relação com a cidade virou um ponto comum entre nós três por termos crescido na periferia. Mas assim, mesmo quando eu morava em Contagem, eu não tinha a menor relação com o centro da cidade, por exemplo. Eu tenho uma relação com o Milanez, com o Laguna e com o Novo Progresso, naquela periferia eu estou todo fim de semana lá. Essa relação eu tenho. Mas essa coisa de Contagem virou algo muito simbólico, porque precisaria dar um nome para definir. Teria sido até mais justo dizer Laguna do que Contagem. Na prática é isso, porque a gente não filmou Contagem inteira. Tem muito bairro de Contagem que eu nunca fui. Eu conheço menos bairros de Contagem do que conheço de BH.
Thiago Macêdo Correia: A Contagem do Affonso Uchôa não tem necessariamente a ver.
Gabriel Martins: Dito isso, eu acho que tem um histórico da minha família, do Maurílio e do Andrezera que é construir o bairro. Chegar no bairro e não ter muita coisa. Sabe aquele meme do “aqui era tudo mato”? Não sei como era no caso da família do André, mas na minha e na do Maurílio é literalmente isso: chegaram em uma região que só tinha lote vago, que era uma roça, só tinha bicho. Eu associo isso à história da Filmes de Plástico: nosso primeiro filme tem uma relação muito forte de vizinho e casa, né? Tem uma coisa ali forte da paisagem, dos cenários que aquilo ali colocava, do estilo de quintal que essas casas têm. Isso pode ser associado e pode parecer com outros lugares do Brasil, mas tem uma coisa que é muito específica de lá. Essa escolha visual também se repete enquanto um espírito, um espírito que tem a ver com uma apreciação desse espaço como algo que não é violento ou precário, algo que não seja avaliado pelo seu aspecto publicitário no sentido negativo da coisa. Eu acho que essa releitura é uma coisa que nos conecta intimamente com a periferia e com essas periferias. Em qualquer lugar que a gente filmar, eu acho que a gente vai carregar esse interesse de olhar para as coisas de uma maneira ampla, de olhar para espaços não pelo valor superficial que ele tenha, mas pelo valor de profundidade, pelas histórias que esse es-
paço conta. Certamente nos nossos filmes esses lugares específicos vão voltar muito ainda, isso eu não tenho dúvida, mas é como o Maurílio falou, às vezes vai aparecer uma ideia muito boa e que não tem a ver com isso.
Maurílio Martins: Tem um ponto muito louco que é o quanto ter algo no filme que o identifique com o lugar, também faz com que as pessoas falem do lugar. Por exemplo, o Marte Um foi rodado rigorosamente a 850 metros da minha casa. Ele foi rodado na casa do meu irmão que é na primeira rua do Novo Progresso, bem na divisa com o Laguna. Como isso não é tratado dentro do filme enquanto discurso, eu nunca vi ninguém comentando e perguntando nada. O Marte Um foi rodado muito perto da locação de No Coração do Mundo, mas dentro do Marte Um isso não é uma questão. Como as discussões ali são outras, é como se o Gabriel tivesse filmado no estúdio. As pessoas não perguntam, não se interessam, mas aqueles personagens moram na mesma região.
No caso de O Último Episódio, eu exponho isso. A escola tem o nome do bairro, o nome da rua aparece, então isso vai ser mais posto em prática. Mas se é uma discussão sobre a arquitetura periférica, sobre a vivência periférica, o No Coração do Mundo e o Marte Um têm que ser colocados rigorosamente na mesma prateleira porque ambos tratam da mesma coisa, no mesmo lugar, com o mesmo tipo de estrutura. É a minha discussão de sempre: se o filme fala de política, então ele passa a ser político. Porra, isso aí é a coisa mais idiota do mundo, né? O filme é político enquanto instrumento do que ele provoca no pensamento político e não porque ele fala de política. Se eu tenho um personagem que é candidato a vereador, o meu filme vira automaticamente político?
Victor Guimarães: A gente estava falando sobre território, essa identificação com a periferia de Contagem, ou com bairros específicos de Contagem, e o André faz O Dia que te Conheci que tem várias cenas muito importantes no centro de Belo Horizonte. Eu queria entender um pouco se muda para você quando você filma literalmente no centro, ao invés da periferia. Que diferença isso faz no seu cinema?
André Novais Oliveira: Eu ia falar mais sobre O Dia que te Conheci, mas isso acontece
também no Pouco Mais de um Mês, né? É um filme que acontece em BH, mas o personagem pega um ônibus para outro lugar. E isso pode ser para vários outros lugares. Quando eu escrevi é claro que eu pensei em Contagem, mas poderia ser qualquer lugar. Mas tem outros filmes que não tem uma relação muito direta com Contagem, como o final de No Coração do Mundo ou em Mundo Incrível Remix. Voltando para O Dia que te Conheci, para mim tem uma relação do lugar que eu estou nesse momento ou que eu já morei. Claro que Fantasmas e os outros têm uma relação com Contagem mesmo, mas como eu estava morando naquela casa de O Dia que te Conheci é como se eu tivesse uma uma propriedade pra falar sobre aquele lugar. Isso me dá vontade de contar uma história ali. A questão do centro de BH foi consequência de estar filmando por perto e englobar toda aquela parte do centro. Eu tenho vontade de filmar em outros lugares, mas eu tenho mais vontade de filmar em lugares que eu tenho uma relação próxima. Lembrando, por exemplo, de Roubar um Plano que fiz com Lincoln Péricles, tem a relação de que quando eu cheguei lá no no Capão Redondo, eu percebi que realmente é muito parecido com o bairro Amazonas em algumas partes. Então, eu me senti à vontade de filmar lá. Não precisa ser necessariamente no bairro Amazonas, em Contagem e tal, mas sim nos lugares em que eu me sinto à vontade para ter uma relação mais próxima possível com os lugares em que eu morei ou com lugares que eu tenho interesse.
Gabriel Martins: É curioso porque O Dia que te Conheci traz um espírito de Contagem só que o Andrezera faz uma coisa cômica que é justamente o inverso: é o cara que trabalha longe de onde ele mora, só que no caso ele vai de BH para Contagem, não de Contagem para BH. Isso tem a ver totalmente com a nossa vida de pegar ônibus por muito tempo, tem que sair muito mais cedo de casa para fazer as coisas.
Maurílio Martins: Novamente, a ideia do território que, quando não é anunciado, ressignifica tudo. A escola de O Dia que te Conheci é no Novo Progresso. Aquela cena da estrada é filmada em Contagem e Betim, mas projetada na garagem do Seu Norberto. A pastelaria é Contagem, mas como cita Betim, todas as críticas vão escrever sobre Belo Horizonte e Betim. Então, essa ressignificação do espaço tem a ver com os primeiros filmes em que a gente filmava, parte pela facilidade de produção e a parte pelo amor que a gente tem por aquele lugar. O Dia que te Conheci é bem
simbólico nesse aspecto porque ele parte de uma facilidade, filmar na garagem do seu pai é muito mais prático.
Então, eu acho que a gente ressignifica essa Contagem. Eu acho que ela é mais cinematográfica do que real. A gente transforma essa Contagem. Ela pode ser qualquer lugar. A gente transforma esse lugar em Contagem ou a gente pode transformar Contagem em qualquer lugar. Tá tudo em função do nosso cinema. O Gabriel brinca muito com essa coisa meio Marvel do universo de Contagem da Filmes de Plástico, mas eu acho que a gente faz muito isso com o espaço geográfico em si. No Temporada, a cena que a Grace entra na casa do pai, que é uma das mais bonitas do filme, a frente da casa é em Itaúna, mas o miolo é a famosa casa do Seu Norberto transformada pela vigésima vez. Eu acho que a síntese disso tudo para mim é… eu acho muito bonito quando o André escolhe o nome do filme dele desse jeito, porque eu acho que o lugar para nós que tem muito a ver com o “quando aqui”, sabe? Quando Aqui eesse lugar esse lugar passa a ser nosso. Ele pode ser do passado, como é em O Último Episódio, ele pode ser do futuro como é em Rapsódia para o Homem Negro, porque eu vejo ele como uma coisa meio distópica.
Essa Contagem é muito maior e talvez a gente nem dê conta. Eu acho que nós não temos dimensão do que a gente faz enquanto representação de uma porção dessa cidade. Porque é mesmo uma porção. Contagem é uma cidade muito distinta, tem coisas muito distintas entre ela e o que eu acho que a gente faz, que é pegar esse espaço periférico e transformá-lo em linguagem. Novamente eu volto nesse discurso de linguagem. A gente usa esse espaço pelo que a gente precisa na linguagem. Essa recriação está à serviço do nosso cinema.
Gabriel Martins: Tem uma coisa engraçada porque quando eu penso numa história que pode se passar em qualquer lugar, que não tem uma coisa muito específica, esse “qualquer lugar”, em geral, é o bairro onde eu cresci. Esse foi bem o caso do Marte Um porque ele podia se passar em Betim, em Vespasiano, Sabará, periferia de São Paulo, meio que em muitos lugares. Talvez o quintal daquela família não é o Santo Antônio, não é o Belvedere, é o quintal de uma periferia. Graficamente se vê isso pelos vizinhos, pelo tipo de casa e pela rua também. Poderia ser outras periferias parecidas, mas na-
turalmente se torna esse lugar que morei por 25 anos na minha vida e que a minha família ainda mora. Para mim ainda tem uma coisa meio automática.
A gente vai rodar uma série no início do ano que vem que poderia ser em qualquer outro bairro, mas automaticamente é meio que… Mesmo que você não filme em Contagem é meio certo estilo de casa, um certo estilo de rua, o pôr-do-sol do bairro, a avenida. Tem umas coisas que, para mim pelo menos, já estão na minha cabeça, como a Avenida Tiradentes. É uma avenida que você viu muito na sua vida, então automaticamente você vai pensar nela. Eu confesso que tenho um certo apego aos lugares que eu conheço e que eu acho muito bonitos geograficamente, tipo aquele morro do Dona Sônia, o morro do Deivinho e várias cenas de No Coração do Mundo. Tem uma geografia que eu acho que é muito bonita. É o que existe de Los Angeles, Nova Iorque e Paris para alguns realizadores que parecem ter um interesse de filmar esse lugar de várias formas e em vários gêneros. Tem muita imagem boa aqui que isso aqui traz, mais do que eu tenho interesse em filmar o Buritis (bairro nobre de Belo Horizonte). Pode ter uma pessoa que consiga fazer um bom filme ali no Buritis a partir daquela geografia, mas particularmente me interessa menos.
Victor Guimarães: A gente sente em vocês uma coisa de reagir a certas recepções críticas da Filmes de Plástico. Eu acho que é muito interessante o modo como vocês reagem ao modo de como o cinema de vocês é lido. Uma outra tendência é a de pensar a filmografia de vocês como centrada no cotidiano. É uma palavra que aparece muito, mas quando você olha para a filmografia, tem filmes de assalto como é em No Coração do Mundo, filme alegórico como Rapsódia para o Homem Negro. A gente queria entender um pouco como é que vocês lidam com uma certa homogeneização, uma certa expectativa de que vão ser filmes de cotidiano. Como é que isso entra no pensamento de vocês?
Renan Eduardo: Só pra complementar a sua pergunta: eu pensei muito nessa questão do cotidiano porque ela é algo muito presente no cinema do André, mas se a gente olha para a produtora temos outros três integrantes que fazem coisas que vão sim lidar com o cotidiano em maior ou menor grau, mas que estão também propondo algo além. Constelações, por exemplo, não é um filme do cotidiano. Enfim, existem vários
outros exemplos que desviam dessa ideia de cotidiano, mas ela aparece reiteradamente talvez em função do trabalho do André.
Gabriel Martins: Eu acho que a gente tem dois filmes que são completamente estruturados no cotidiano que é o Ela Volta na Quinta e o Marte Um, principalmente o Marte Um. A estrutura do filme é literalmente a família acorda, vai trabalhar, volta e janta. Eu acho que essa ideia de cotidiano está presente em vários filmes, mas eu não sei se é pelo momento que a nossa geração chega, porque tiveram muitas críticas que conseguiram entender o que a gente tá tentando fazer e que foram muito importantes. Eu e Maurílio sempre gostamos muito de ler texto, mas eu lembro que eu tinha uma certa coisa que estranhamente, para mim, ainda persiste no cinema brasileiro, que é uma visão muito limitada sobre gênero cinematográfico. Às vezes, associou-se o Marte Um a uma ideia de melodrama que eu não sei se é verdade. Teve principalmente a ver com não estarem acostumados a um certo tempo e possibilidade de filme, e que o gênero do cinema pode se expressar de outra forma.
Esse ano eu falei em Tiradentes defendendo o André como uns grandes diretores de comédia romântica. E eu não falo isso totalmente brincando. Óbvio que, com essa frase, eu estou forçando uma leitura, mas ao mesmo tempo eu não desacredito completamente disso. Eu só gosto de abrir um pensamento de que esse esquema de comédia romântica que a gente tem visto não é o único a se fazer. Acho que existem outros tempos possíveis para um filme existir. No Coração do Mundo é um exemplo que, no fim das contas, tem como ponto de chegada um assalto, mas também pode ser considerado um filme de cotidiano. Ainda assim, ele tem uma outra estrutura. Ele vira um filme de assalto, não tem tem alguns clichês do gênero, mas ele está totalmente vinculado ao gênero de ação da primeira cena à última cena. A diferença é que a gente faz de uma maneira que encara o tempo da cena, o tempo do que se olha que não é necessariamente convencional. Não é montado de uma maneira em que os clichês do gênero vão ser sempre contemplados. Eu acho que como não se contempla essa estrutura mais convencional de certos gêneros, acho que alguma crítica até mais superficial, poderia tentar se desdobrar para quais outros gêneros são esses. Muitas vezes essa coisa do “filme de cotidiano” também foi colocado de uma forma pejorativa. A ideia do “nada acontece” e de serem filmes chatos. Eu já vi isso ser colocado, mas eu
sempre sentia uma falta de esforço para desvendar outras possibilidades para isso que poderiam levar a estudos muito interessantes sobre forma. Isso cai no que Maurílio falou agora há pouco, que é uma pouca vontade de analisar os filmes esteticamente, de estar sempre preso ao conteúdo.
André Novais Oliveira: Eu sempre coloco nas entrevistas que eu busco alguma coisa do cotidiano que eu não sei muito bem explicar o que é, mas que eu busco. Esses dias eu estava revendo o Close Up, do Abbas Kiarostami, e pensei especificamente naquela cena da latinha caindo. É o tipo de cena que eu via antigamente e só pensava que queria fazer algo parecido, mas sem saber exatamente o que é. Realmente tem essa coisa pejorativa de falar do cotidiano, mas eu acho que a galera fala do cotidiano sem saber o que eu estou buscando e sem saber também o que a própria pessoa está falando. Eu sinto que é uma busca de ambas as partes. Principalmente por eu não saber o que estou buscando mas que, ao mesmo tempo, eu ainda busco. Tem isso também: você mira num negócio e acerta em outro, mas que não deixa de ser válido.
Maurílio Martins: Mas será que essa ideia do cotidiano ela já não é posta de antemão como redutora? Pensando num exemplo mais recente, o Perfect Days (Wim Wenders, 2023) é um filme de cotidiano. O personagem acorda, almoça, toma banho e dorme. No dia seguinte é a mesma coisa. É um filme de cotidiano ou o cotidiano só está préestabelecido quando você filma algo que é da sua familiaridade? Ninguém fala que os filmes do Scorsese são filmes locais. O Scorsese olha para a Little Italy do mesmo jeito que a gente olha pro nosso espaço.
Thiago Macêdo Correia: Eventualmente, a ideia redutora do cotidiano tem a ver com essa percepção de que “nada acontece”. Quando se estabelece uma relação de que o cinema do cotidiano significa “o nada acontece” é uma limitação de quem vê aquela obra e enxerga nada no tudo assim, sabe? Tipo assim, você pode ver Fisrt Cow (Kelly Reichardt, 2019) e achar que é um filme sobre os caras roubando leite da vaca e você pode ver outras coisas também.
André Novais Oliveira: Isso tem a ver com uma relação de tempo e espaço, e uma ideia confortável de que os personagens que estão ali conhecem aparentemente tudo. Tem
uma relação de que os personagens estão confortáveis naquele lugar e fazem coisas que talvez já fazem normalmente no dia a dia, conhecem aquele lugar e conhecem aquele espaço.
Gabriel Martins: Eu acho que tem uma expectativa de muitos espectadores de serem mais conduzidos em uma narrativa e nisso ter uma certa dificuldade para lidar com um vazio. Um vazio em que você vai ter que olhar e apreciar. Às vezes parece até meio absurdo a ideia de olhar para um quintal vazio por um tempo. Tem muita gente que acha isso uma coisa sem sentido, enquanto a gente vê muito sentido nisso. Acho que tem uma certa expectativa do que o filme pode ou tem ser.
André Novais Oliveira: Eu acho que, por exemplo, é mais cotidiano no sentido de busca… No Quintal tem duas coisas. A primeira é que o pai [Seu Norberto] estava servindo o almoço e a torneira abre meio do nada e ele meio que fala “foda-se” pra coisa. A outra é o pai tentando abrir a porta com a mão na janela. São coisas que eu olho e penso que são duas coisas que eu gosto de fazer, duas coisas que eu gostaria que estivessem mais vezes nos meus filmes. Gostaria de dobrar a aposta e ter mais coisas daquilo ali.
Gabriel Martins: Aquilo não vai ser importante para ter uma revelação dramática que vai mudar a história. Aquilo é importante por causa de outra coisa, né?
André Novais Oliveira: Sim! E quando isso tá meio orgânico dentro da história eu fico mais feliz ainda. Uma coisa que veio meio sem querer, mas que quando eu olho faz todo sentido é esse negócio da mãe [Maria José Novais Oliveira] no quintal, aí vem o vento, seca a roupa e ela pega a roupa seca, sabe? Isso está dentro da narrativa de uma forma grande e que eu falo assim: “isso aí é uma das coisas que eu queria fazer”.
Renan Eduardo: Tentando fazer um retrospecto dos 15 anos de produtora, eu imagino que já seja possível fazer um balanço no sentido de que vocês já se tornaram referência para uma série de outros cineastas, não apenas em algo do tipo “a gente pode chegar lá”, mas também em termos estéticos, de composição de imagens e etc. Penso em alguns nomes como Higor Gomes, Rafael Luan, Marcelo Lin e Lincoln Péricles, sendo que alguns deles até trabalharam com vocês. Gostaria de saber
como vocês refletem sobre e lidam com isso. Há um senso de responsabilidade ou compromisso?
Thiago Macêdo Martins: Acho que tem um senso de responsabilidade. A gente entende que muitas pessoas se influenciaram pela produtora em alguma esfera, seja por representatividade ou por estética. Gabriel estava supondo mais cedo que algumas coisas poderiam ter sido diferentes se a produtora tivesse surgido dois anos atrás. Eu sempre tive muita consciência de que a gente é fruto da circunstância, de um momento. A gente é o fruto desse encontro, dessas pessoas, naquele momento e tals. Então tem uma série de privilégios que a gente viveu que hoje, por exemplo, eu vejo que novas gerações não necessariamente tem. A gente tinha uma idade específica no momento em que tecnologicamente as coisas se abriram. Havia a possibilidade de uma exploração de algo muito grande, mas que em gerações anteriores não havia e que a gente podia de fato experimentar, fazer ações entre amigos. Só que logo em seguida vieram os incentivos e a gente pôde muito atrevidamente correr atrás desses incentivos sem que parecesse algo impossível.
Hoje eu sinto o senso de responsabilidade pelo nosso lugar de privilégio de observar que tem gente que se espelha na gente, que quer abraçar a carreira de cinema e que talvez observe a narrativa da história da Filmes de Plástico como uma história “bem sucedida”, onde nada aconteceu rápido e fácil, mas que talvez não compreenda o contexto de algumas coisas. Isso é algo que me preocupa. Me preocupa sobre a continuidade de políticas públicas, continuidade de brigas coletivas para que exista uma condição. Por exemplo, hoje é tudo mais difícil. Talvez se a gente tivesse surgido dois anos atrás não teríamos conseguido fazer o primeiro longa. Hoje é muito difícil uma empresa pleitear recursos. Em 2009 a gente tinha um edital local, que era problemático e com pouco dinheiro, mas que foi onde a gente conseguiu acessar. Hoje tudo passa pelo FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). Então, democraticamente falando tem muito pouco do que é possível de acessar de fato para uma produtora pequena e jovem. Supostamente tudo é democrático porque tudo é público, mas não é. As decisões do direcionamento de recursos passam por alguém e esses recursos são entregues em algum lugar específico.
Isso me preocupa muito porque se a gente tivesse surgido nesse contexto, talvez não teríamos disposição e disponibilidade, talvez a gente não tivesse condições para construir a carreira que a gente efetivamente construiu. A gente não tinha como prever o caminho, mas tínhamos condições de investir em nós mesmos, digamos assim. Hoje em dia eu acho que isso é mais problemático. Eu tenho esse senso de responsabilidade de observar principalmente quando alguém fala que quer ser como a gente ou ter a carreira que a gente teve. Do meu lado, eu sempre penso no que eu posso fazer como agente desse meio cultural para permitir que não apenas o meu lugar de privilégio seja resguardado, mas que novas gerações possam existir. Além disso, dentro da Filmes de Plástico, a gente pensa em como pode ajudar novos nomes e novas pessoas que também estão produzindo.
A gente também sente um peso, desde o Quinze, que tem a ver com aposição que a gente ocupa hoje. Hoje em dia, sob nenhuma hipótese, a gente pede um favor. Eventualmente a gente pode estar fazendo um filme de baixo orçamento, mas todo mundo vai receber. Ninguém vai entrar no nosso set sem ser remunerado por conta disso. Tem uma responsabilidade de entender que é um trabalho. A gente tem muita consciência disso e foi um processo que a gente teve que lidar. Essa é uma parte meio objetiva de como eu vejo essa responsabilidade diante das novas gerações. Só que tem uma outra parte, a parte mais afetiva…
Gabriel Martins: Eu me sinto muito grato por uma coisa muito simples: os nossos filmes terem chegado até as pessoas. Porque talvez em algum outro momento histórico, pode ser que a gente tivesse todo esse combustível e ele fosse constantemente sabotado. Antes de tudo eu me sinto muito grato ao universo porque a gente ocupa essa posição de ser algum tipo de referência. Isso acontece porque os filmes foram vistos com generosidade, as pessoas guardaram os filmes para elas. Todo mundo tem um curta favorito. Esses dias eu estava na premiação da Abraccine lá no Rio de Janeiro, aí um menino que ganhou dois prêmios na noite veio falar comigo do quanto ele amava o Quinze, que o Quinze tinha mudado a vida dele. Então, ouvir isso é a coisa mais incrível do mundo. E esse menino veio de uma cidade do interior e tal. Então ele teve uma conexão muito específica… Ele não é a personagem da Karine e nem da Malu, mas aquilo ali para ele era um pacote que dizia sobre muita coisa. Isso é uma coisa
muito bonita, muito gratificante e que eu fico muito feliz de que a gente tenha atingido, inclusive muitas pessoas que não são necessariamente frequentadores assíduos de cinema. Isso vai se abrindo cada vez mais. Marte Um talvez como o filme que teve muitas respostas de pessoas que não são necessariamente do meio, mas que viram e que se identificaram de alguma forma.
Acima de tudo, eu acho que é muito legal que a gente possa inspirar as pessoas e que as pessoas também possam se libertar de uma ideia de que a história delas tem que ser igual à nossa. As composições dos grupos são muito diferentes, o momento histórico é muito diferente e isso não pode virar um peso de que se a pessoa não tiver vários filmes em sequência, isso vai significar um fracasso. Porque simplesmente é uma outra história. A nossa história também não é igual à das pessoas que nos inspiraram. Eu fico muito feliz de ver um filme como Ramal, do Higor Gomes, que é um cara que já expressou verbalmente que se inspira na gente, gosta dos nossos filmes, mas é um filme que talvez a gente nunca teria feito. É um filme muito específico, muito dele e isso eu acho brilhante. Mesmo que você possa se inspirar em alguém, você tem tá olhando para uma coisa muito sua, tá respeitando a sua própria história. Eu acho que isso me parece mais importante do que tentar copiar alguma coisa. Eu sempre falo pra galera tomar muito cuidado nisso: não tentar replicar alguém que você vê muito como referência.
Maurílio Martins: Tem dois pontos que eu quero comentar. O primeiro deles é que tem uma coisa muito foda da Filmes de Plástico que são as pessoas que começaram com a gente e trilharam caminhos geniais. Renato Novaes talvez seja o nome símbolo disso, ele já deixou de ser irmão do André há muito tempo no sentido de reconhecimento. Teve uma história que se eu não tivesse visto, até acharia que era piada. Eu e o André chegamos na Gruta [casa noturna de Belo Horizonte] e uma menina falou assim: “você é irmão do Renato Novaes???” (risos). Você tem a Rejane [Faria], Carlão [Carlos Francisco], Bárbara Colen que começaram com a gente, tem várias pessoas da técnica. Muita gente que começou com a gente e hoje tem suas carreiras brilhantes por aí. Isso eu acho muito foda porque, querendo ou não, essas pessoas também construíram a Filmes de Plástico e hoje elas respondem por si mesmas.
A outra coisa é uma história que eu e Gabito vivemos e diz muito sobre influências e influenciados e como isso vai passando de cineasta para cineasta. Num processo de descoberta da nossa cinefilia O Matador de Ovelhas foi exibido aqui em BH. Eu não estava, mas os meninos assistiram e acharam do caralho. Depois eu baixei pra ver e fiquei alucinado. Aquele foi um filme que mexeu muito com a gente, talvez um dos que mais mexeu no sentido de querer fazer igual. Aí quando fomos rodar o No Coração do Mundo, ainda muito impactados pelo filme, queríamos fazer uma homenagem explícita e a gente recria a cena da menininha com a máscara brincando com a tartaruga.
A gente queria fazer uma máscara idêntica, mas abortamos a ideia porque ela custava 1200 reais (risos). Isso quase nunca foi citado nos textos, mas para nós era muito importante ter conseguido colocar o Charles Burnett de alguma forma dentro de No Coração do Mundo
O filme foi lançado em 2019 e ele vai para o Festival des 3 Continents, em Nantes. Quando a gente vê o júri do festival, a gente descobre que o Charles Burnett estava no júri. O nosso filme teria três exibições e a gente não sabia em qual delas ele estaria. Nas duas primeiras ele não foi e a última sessão do filme era numa manhã. Aí, na noite anterior teve a exibição em uma cópia maravilhosa de O Matador de Ovelhas. A gente estava nessa sessão linda, todo mundo emocionado assistindo ao filme. Aí no dia seguinte, 11 da manhã era a exibição de No Coração do Mundo. O Burnett estava nessa e eu também fiquei, porque eu queria ver a reação dele, queria saber como ele ia reagir, se ele iria sacar a referência. E aí quando apareceu a cena, a plateia reagiu em peso no meio da sessão. Reagiu porque aquilo era muito novo para eles, a plateia tinha visto isso na noite anterior. Depois que acabou, a gente chega tremendo perto dele, muito emocionado e ele vem com uma conversa baixinha, nos cumprimentou, falou que adorou o filme e ele podia ter ficado só nisso. Mas aí ele falou algo que eu vou levar pro resto da minha vida: “eu gosto muito do cinema brasileiro e O Matador de Ovelhas tem a influência de dois cineastas que eu amo, primordiais para mim: Nelson Pereira do Santos e Akira Kurosawa”. E aí ele fala do Rio, 40 Graus [Nelson Pereira dos Santos, 1995] e o quanto esse filme tinha influenciado o cinema dele. E depois ele agradece a gente falando: “muito obrigado pela homenagem, fiquei emocionado”. Quando eu voltei pro Brasil e fui rever Rio, 40 Graus foi um choque para mim porque O Matador de Ovelhas está todo dentro do filme.
É muito massa também a postura e o carinho dele em entender o processo cíclico de quem homenageia e quem é homenageado. Hoje eu tenho consciência plena, mas nunca imaginaria que aquele filme que tanto moveu a gente fosse um filho direto do Rio, 40 Graus. No final das contas essas coisas estão muito ligadas e a gente não tem muito controle.
Hoje eu só fico muito emocionado, porque na nossa cabeça a gente ainda tá no processo de usar referências. Estamos no processo de tacar Carlão [Carlos Reichenbach] no nosso cinema, como é aquela homenagem ali no final de O Dia que te Conheci Então, eu acho que pra gente é um pouco mais difícil olhar pros trabalhos do Lincoln Péricles, do Higor Gomes ou de quem quer que seja. É aquilo que Gabriel falou do Ramal, porque não consigo imaginar aquele filme sendo feito aqui. Assim como o Serrão, porque é um filme muito do Marcelo Lin. Talvez ele consiga explicar onde tem o nosso trabalho ali, mas pra gente ainda é difícil porque ainda estamos contaminados por outras coisas.
André Novais Oliveira: Eu sinto uma gratidão enorme com as pessoas que falam isso para nós, mas também é uma gratidão enorme aos professores que passam nossos filmes em sala de aula. Eu acho que isso fez toda a diferença. É muito grande a quantidade de gente que fala que assistiu nossos filmes em sala de aula.
Victor Guimarães: Na Mostra serão exibidos filmes que vocês são parceiros, mas são dirigidos por outras realizadoras. ORomance da Karine Teles, o Baronesa da Juliana Antunes e o A Felicidade das Coisas da Thais Fujinaga. Eu queria entender um pouco como se deram essas parcerias. Queria saber se tem uma afinidade desses filmes com a filmografia da Flimes de Plástico? É um critério para vocês fazer com que essas parcerias tenham uma afinidade estética com a Filmes de Plástico?
Thiago Macêdo Correia: Quanto a afinidade estética, eu diria que não necessariamente. É mais uma proximidade afetiva mesmo. Cada filme desse tem um caso, não tem uma história muito complexa. Dois deles passam por um mesmo movimento. Em 2015 a gente foi contemplado num edital do FSA de Núcleos Criativos. Aí a gente tinha que desenvolver projetos na produtora. A gente apresentou para o núcleo criativo
cinco projetos de longa-metragem de ficção e uma obra seriada de ficção. Nosso núcleo criativo era composto por nós quatro, Karine Teles, Thais Fujinaga e Tiago Ricarte. Todo mundo tinha um longa para o projeto. O da Thais virou o A Felicidade das Coisas. O longa da Karine a gente está captando recurso em co-produção com a Bubbles. Logo quando a gente começou a captar esses recursos no começo da pandemia, a Karine queria fazer um curta de experimentação. Aí o Romance veio disso. Eu acho ele muito muito distante de tudo que a gente faz, mas vinha muito desse movimento de investigação da Karine do que funcionaria ou não dentro do longa. Esses dois casos são frutos disso. Tem também o projeto do Tiago que ainda não saiu.
Gabriel Martins: Eu acho que tem um elemento em comum que une esses filmes: são filmes que também partem de perspectivas muito pessoais de quem está escrevendo e dirigindo. Foi muito bom o que vocês falaram no início que somos uma produtora, mas que somos muito diferentes. Talvez nesses casos seja algo meio parecido com isso. O que a gente chega nesses projetos que são diferentes de outros é que são projetos que tem uma conexão muito forte com o universo criativo dessas pessoas. Mesmo o Baronesa que é rodado na periferia de BH, é um filme muito próprio da Ju [Juliana Antunes]. Mesmo se a gente tivesse entrado lá atrás no Baronesa e não só no processo final, que foi o que aconteceu nesse caso, ainda assim eu acho que teria uma identidade muito forte das escolhas dela e a gente respeitaria isso. A gente não tentaria impor de nenhuma forma que esse filme tem que ser assim ou assado porque traz a nossa assinatura. Talvez tenha uma série de filmes que não façam parte do escopo do que a gente vai querer fazer ou não. Acho que a gente ainda não fez esse filme que não tenha nada a ver com esse lugar que é uma pessoa trazendo uma ideia muito genuína.
Thiago Macêdo Correia: É engraçado porque quando a gente surgiu tinham muitos coletivos rolando, muita gente fazendo trabalhos coletivos, mas as empresas produtoras, principalmente as mais estabelecidas, eram pessoas produtoras e eventualmente contratações desses “talentos”. Até hoje as grandes empresas são isso: são produtoras e produtores que contratam talentos para fazer os filmes. A nossa tinha essa característica diferente: dentro da produtora já existem esses “talentos”. Então, o crescimento exponencial da Filmes de Plástico vem acompanhado de um interesse grande das pessoas em colaborar com a gente, o que nos deixa feliz. Só
que isso é algo muito frontalmente difícil para a gente fazer, porque nós três somos absurdamente prolíficos. Uma reunião tradicional de nós quatro é um problema de gestão de calendário por si só. Quem não é muito partidário da Filmes de Plástico critica, por exemplo, esse lugar de privilégio que a gente passou a ocupar em relação a poder conseguir financiamento. Isso acontece porque a gente tem projetos diferentes para todos os editais. Os meninos estão guardando projetos. Então, tem uma questão numérica muito simples. Tem produtoras que vão trabalhar com um cineasta e se em um ano tem sete fundos, eles têm um projeto. A gente tem sete projetos diferentes e pode mandar para todos esses sete.
André Novais Oliveira: Se tiver um edital de filme de vôlei, a gente já procura um filme de vôlei no nosso arquivo (risos).
Thiago Macêdo Correia: Aí como as pessoas nos buscam, a gente tem uma coisa naturalmente difícil que é o falar não, às vezes, sem nem poder discutir o projeto simplesmente porque… E essa é minha exata fala: “Não é bom para você trabalhar com a gente. O seu projeto vai entrar numa fila que o do André vai entrar na frente. Às vezes você precisa de uma parceria, um alguém que esteja com você com mais tempo”.
A gente fala isso com muita muita frequência, mas, essas experiências que ainda estão em curso, nos ajudaram muito a observar o que sai de nós para fora, o que a gente pode ajudar enquanto troca.
Nos últimos anos, para além do núcleo, vieram alguns projetos que nos interessam, mas muitas vezes são decisões assim: “a gente não deveria estar entrando isso”, mas que, na base do “quero ver esse filme”, a gente colabora. Então, menos estética e mais afetivamente. Um dos projetos que a gente está desenvolvendo é o primeiro longa de ficção da Letícia Simões. E aí, por exemplo, quando o projeto chegou, a primeira coisa quando eu fui conversar com os meninos era que: ao mesmo tempo que esse projeto não tem nada a ver com a gente, ele é, em essência, um filme da Filmes de Plástico. Uma coisa muito forte.
É sempre um desafio. Eu falo que a gente é um encontro, mas eu tenho um pouco de medo de ficar romantizando demais esse encontro porque parece que a nossa
convivência é o suco da harmonia, mas não, a gente briga, discute, quebra a cabeça e tal. Eu não queria colocar esse lugar de: “Nossa, que lindo! Os quatro vivendo 15 anos de passeio no parque”. Só que tem uma coisa muito forte entre nós que é a honestidade e o respeito. Por exemplo, eu não vou deixar de falar que não gosto de uma ideia só para quem está apresentando não se magoar. E ele vai continuar apresentando a ideia, porque ele confia que eu vou falar e assim por diante. Às vezes com outras pessoas rola esse receio porque a gente trabalha assim e não sabemos se podemos ser brutalmente honestos o tempo todo. Então assim, são aprendizados e isso é um processo. Esse processo às vezes tem pequenos traumas, mas que, na balança final, me ajudaram a ir para o próximo passo. É um movimento dentro da produtora que, particularmente, tenho orgulho de fazer e me excita muito em pensar nas próximas colaborações que podemos fazer apesar da quantidade muito grande de coisas que vão sair daqui de dentro mesmo.
Maurílio Martins: Gabriel fala algo e eu sempre gosto de repetir nos debates: nenhuma ideia que surgiu aqui dentro foi melhor do que o produto final porque o produto final sempre passa por essa discussão, por essa honestidade, mesmo que às vezes seja doloroso. Mas é uma honestidade na opinião e uma franqueza na recepção. Eu acho que todos os nossos projetos passaram pelos quatro num nível de amor, mas também de sinceridade muito grande. E eu acho que todos os projetos, sem exceção, foram muito melhores do que a ideia original.
Thiago Macêdo Correia: As nossas recusas de projetos também passam por saber que os projetos externos vão demorar mais e que isso, às vezes, não é bom para o projeto. Quando abrir o filme e vier a logo da Filmes de Plástico, uma parcela das pessoas vai associar a uma certa dinâmica e tals. Por exemplo, o filme de Thais passou em um festival internacional que só mencionava a Filmes de Plástico, mas não mencionava ela. Isso foi uma coisa bem delicada, mas infelizmente é o tipo de coisa que pode acontecer. Tipo, você vai estar fazendo seu primeiro filme e depois entra na sombra da Filmes de Plástico, sabe? Como se já não bastasse a comparação que fazem entre a gente. Eu lembro que foi um alívio muito grande a gente ter lançado o Quintal depois de Ela Volta na Quinta, porque tirou esse peso do próximo filme, sabe? Aí quando veio o Temporada já estava meio que resolvido. Aí agora veio isso com o Marte Um, né? A
gente sentia que tinha uma certa pressão em fazer uma boa performance de bilheteria ou agora ir pro Oscar… Mas assim, são coisas que a gente já lida internamente, imagina alguém que vem de fora ter que lidar com isso também.
Gabriel Martins: O povo fala assim: “o próximo vai pro Oscar”, aí eu respondo: “uai, faz você e vai pro Oscar”. Tá achando que é fácil (risos).
Renan Eduardo: Mudando um pouco o rumo da conversa, é muito comum o discurso de que a distribuição é a maior “pedra no sapato” do cinema brasileiro. Isso pode ser visto em textos desde Paulo Emílio Salles Gomes, do Jean-Claude Bernardet e até em balanços mais recentes acerca da nossa produção nos últimos anos. Recentemente, eu li que vocês estão fundando uma distribuidora própria. A ideia de distribuição esbarrou em alguns assuntos, mas mais ligada a uma ideia de recepção do público. Como vocês enxergam a distribuição dos seus longas e por que vocês decidiram fundar uma distribuidora?
Gabriel Martins: São muitos motivos. O primeiro é que você precisa de uma distribuidora para competir com longa-metragem, para entrar em edital de longa e não depender, necessariamente, do nosso filme ter o aval de fazer parte da cartela de uma outra distribuidora. Isso é um alívio. Isso vai junto com outra coisa: nas experiências que tivemos, sempre sentimos que poderia ter sido feito algo de alguma outra forma ou algo que não se encaixou. Não foram todos os casos de experiências traumáticas, mas em muitos casos a gente achou que a verba para a distribuição poderia ter sido usada de uma forma mais criativa, um pouco mais efetiva. E a gente fala de ideias de distribuição há muito tempo. Uma vontade de aplicar a mesma criatividade que a gente tem com os filmes para a distribuição.
Obviamente muito tem que se atribuir ao sistema mesmo, mas a gente pensa que existe algo dentro do escopo do que uma distribuidora pode fazer que pode ser melhor feito do que algumas distribuidoras estão fazendo. Pelo menos de acordo com a nossa perspectiva com a nossa ambição. Embora a gente tenha uma boa relação com distribuidoras parceiras, existe um certo momento em que não tem como também a gente operacionalizar totalmente uma empresa que é de outra pessoa. Então a gente teve
essa vontade de fazer as coisas mais do nosso jeito mesmo. E se for para experimentar, você também não arrisca uma outra pessoa que tem um plano muito próprio, uma vontade de fazer as coisas daquele jeito e que talvez para nós não seja mais suficiente. Acho que a gente tem outras ideias de como fazer e a gente quer tentar aplicar. Pode dar certo em algum lugar, pode não dar certo no outro, mas pelo menos a gente vai tentar fazer de uma outra maneira.
Thiago Macêdo Correia: Eu acho que a chave é isso. Com respeito aos trabalhos das nossas parcerias prévias com distribuição, mas a gente é muito mão na massa, temos uma profusão de ideias e tal. Tem uma característica da Filme de Plástico que eu acho inegável é que nós somos ambiciosos. A gente sempre queria chegar no próximo lugar.
A gente nunca se contentou com alguns possíveis limites e achamos que algo não nos cabia. Eu acho que a produtora andou por isso e muitas vezes a gente colocou o nosso na reta para que isso funcionasse. Na lógica da distribuição, por mais honestos, transparentes e horizontais que sejam os processos, não tem como operacionalizar uma empresa alheia. Mas além disso, acho que é porque a gente é mais inclinado ao risco do que tradicionalmente algumas empresas possam ser. Neste lugar, a gente não sabe se vai dar certo, não sabe o que que vai dar certo, mas a gente queria experimentar algo que a gente sabe que está dando, pelo menos, médio certo ou meio errado. E aí chegou no ponto em que essa rédea tem que vir para nossas mãos. E assim, foi um caminho quase natural, não tinha como ser de outro modo. Só o tempo que o Maurílio fala desse assunto tem pelo menos sete anos. A gente pretende, dentro desse processo da distribuição, buscar algumas outras coisas diante da absoluta dificuldade das circunstâncias atuais. A gente tem plena consciência disso, mas a gente quer pagar para ver. Ver o que não vai dar e reconfigurar. E isso nada mais é do que a realidade da produtora.
Novamente, se tem sete editais do ano e a gente ganha três, a gente não olha para os quatro que não ganha achando que estamos sendo perseguidos ou injustiçados. A gente sempre retoma esses projetos buscando melhorar eles, buscando dar o próximo passo para que a gente possa ganhar no próximo edital. A distribuidora também vai passar por esse mesmo lugar.
Maurílio Martins: Vai ser do mesmo jeito que a gente acreditou lá atrás em montar a produtora. 15 anos depois é fácil falar, mas na época a produtora foi montada sob uma perspectiva completamente negativa de que aquilo pudesse dar certo. Não existia edital para poder sustentar empresa, não existia Fundo Setorial. Quando a gente registra a produtora em 2013, a gente registra com muito medo, mas com a mesma ideia que a gente montou a distribuidora agora. Se a gente não fizer isso, ninguém vai fazer para a gente, mantendo ideais não. Era a única forma de colocar as nossas ideias em prática e manter os nossos ideais. Podia dar certo, como deu, mas a chance de dar errado era muito maior. Quando a gente vai fazer a distribuidora não é diferente. O trabalho vai ser de formiguinha de novo.
Você fala muito bem que o problema do Brasil é a distribuição, mas não só isso. O problema no Brasil é a exibição, a merda é a exibição. A distribuição é um sintoma do problema maior que é a exibição. Nós temos uma das menores taxas entre os países ditos como “civilizados”, “progressistas” e “avançados” no sentido de ter cinema, a gente encontra uma das menores taxas entre a população e o espaço de exibição. É ridículo um país desse tamanho ter apenas 3.000 e poucas salas, sendo que duas mil e tantas estão só no sudeste e ainda uma boa parte delas está dividida entre Rio de Janeiro e São Paulo. Mesmo um estado rico como Minas Gerais tem um número muito pequeno de salas de cinema.
Então, é só uma vontade de tentar caminhar diferente. Pode dar tudo errado ou dar tudo certo, mas queremos caminhar diferente do modelo que já existe. Mas assim, a gente não vai aumentar número de salas, a gente não vai aumentar a boa vontade dos exibidores que é uma merda. Qualquer pessoa que já tenha tratado com exibidor sabe disso. Então, a gente quer tentar naquilo que nos cabe, mudar pelo menos a forma de lançar, para ver se com isso a gente atrai um pouquinho mais de olhar para os nossos filmes. Um pouquinho a mais eu já vou estar muito satisfeito.
Renan Eduardo: Bom, última pergunta: na entrevista para a retrospectiva da CineBH, vocês fazem uma projeção para os próximos 10 anos da produtora e, de lá para cá, já se passaram cinco. Quero ouvir de vocês o que vocês enxergam que foi conquistado nesse “meio tempo”. E o que vocês projetam para os cinco anos restantes?
Gabriel Martins: Esses últimos cinco foram estranhos porque como a gente teve uma pandemia e um desgoverno no meio, foram anos muito difíceis para projetar alguma coisa. Curiosamente nesse meio tempo tudo se rearranjou. Principalmente nesses últimos dois anos, a gente está com um futuro para a produtora de muitos projetos que nos empolgam e com muita coisa acontecendo. Eu acho que tem um caminho do que já está escrito, do que a gente já filmou e do que a gente vai filmar, gêneros e propostas de filmes que são diferentes de tudo que a gente já fez. O Último Episódio, que é o filme do Maurílio que a gente tá finalizando, é bem diferente do que a gente já fez. Ele está em total consonância com a filmografia do Maurílio e com a Filmes de Plástico, mas já é bem diferente do Se eu Fosse Vivo… Vivia. Por mais que tenham vários diálogos, é um filme bem diferente na filmografia do André. Eu acho que todos tem diálogos, seguem uma mesma atmosfera, mas abrem coisas muito novas. Muito novas mesmo em termos de várias questões técnicas, experimentos, os tipos de cenas, as escolhas.
Tem uma coisa bem maluca e que eu me dei conta recentemente que o universo fez acontecer. Eu não sei muito bem o porquê, mas a gente vai ter uma série de projetos sobre luto. Tudo parte de um luto, mas que foram escritos em momentos diferentes. Não escrevemos tudo na pandemia, mas, de alguma forma, a história convergiu para que esses projetos fossem sobre isso. Eu acho que também tem a ver com experiências pessoais ou com nossos pais envelhecendo. Alguma coisa que tá rondando, mas eu vejo muito mais multiplicidade de linguagens. Tipo assim, analisar a gente daqui a cinco anos vai ser uma tarefa muito mais complexa do que já foi até agora. Nos próximos cinco anos a gente vai lançar filmes que vão desafiar muito. Alguns com muitos efeitos especiais, ficção científica, ação, uma série inteira passada numa locação só. Enfim, um monte de coisa que a gente nunca fez. Isso é uma coisa que tem me empolgado muito.
Maurílio Martins: Eu acho que para buscar a coisa do luto foi um choque muito grande. Quando a gente se deu conta que o luto não é apenas o eixo frontal dos filmes, mas ele move a ação deles e isso em gêneros muito diferentes. Quando a gente olhou para aquilo ali foi uma coisa interessante. Interessante de ver para onde os nossos filmes caminharam e como isso também diz muito sobre um processo de amadurecimento do olhar. A gente está envelhecendo. A coisa mais radical de todas é que a
gente está envelhecendo. A gente passa a olhar para as coisas com outra perspectiva. Aí eu acho que as respostas que a gente vai dando sobre as coisas vão acontecendo. Querendo ou não, a gente a gente se influencia muito por isso. Não tem jeito. Há uma influência muito grande de um com o outro e, em algum momento, isso ia reverberar. É quase como se a gente tivesse escrevendo algo juntos. O Thi recentemente tem colaborado também com os roteiros e isso se desenhou para filmes com cunho filosófico muito grande.
Thiago Macêdo Correia: Eu fico muito querendo pensar em retrospecto esse dia de hoje e pensar… A gente estava falando da crítica e como as pessoas vão reagir, eu fico pensando que alguém vai falar que a pandemia influenciou os nossos filmes de luto. Talvez isso seja verdade mesmo. No nosso caso acho que vai ser uma associação inevitável com a perda da Zezé.
Gabriel Martins: Em certos filmes essa influência é um fato, mas outros são roteiros escritos num momento anterior. Enfim, acho que a perspectiva é a maneira como a gente está lidando ao filmar isso. No próximo filme do André tem uma história que aconteceu no velório do Zezé. Tem muita coisa que tem a ver com isso.
André Novais Oliveira: Eu penso sempre numa frase que Gabriel falou num dia que estávamos conversando. Era algo do tipo “o dia que a gente fizer algo que não for sincero, todo mundo vai notar”. Então, acho que os filmes que a gente tem para os próximos cinco anos são muito sinceros. Pode não ter relação direta com os outros, mas eu acho que a sinceridade continua.
Thiago Macêdo Correia: É quase patético o que eu vou falar, mas o André é um constante defensor de a gente sempre celebrar quando rola alguma coisa massa. A Élida [Silpe, atriz de Pouco Mais de um Mês e ex-companheira de André] sempre falava muito isso: “vocês nunca podem subestimar nada. Tudo tem que ser celebrado porque essas coisas não são comuns. Tem muita gente que não está conseguindo”. Então é isso. A gente tem muita noção desse lugar que a gente está ocupando. Às vezes algumas coisas podem quase passar no automático, só que a parte mais legal que existe agora são esses marcos. Recentemente a gente foi contemplado num edital automático por
performance comercial. Tipo assim, em nenhum momento da nossa trajetória a gente imaginava isso. E isso é incrível. Por exemplo, saber que existem expectativas sobre as coisas da produtora é a parte mais legal para mim. É uma coisa quase infantil de ficar tipo assim: “ou, você não sabe o que que vai ser o próximo filme do André” (risos). É aquela coisa que quase escapa do profissional e vira só amor, sabe? É uma coisa de muita excitação. Quando a gente foi apresentar o Laguna, foi tipo assim: “a gente quer mostrar para vocês esse cara foda aqui que a gente conhece”.
Acho que o meu resumo é uma vontade de entrar no cinema e ficar observando se as pessoas gostaram da cena tanto quanto eu gostei. Um desejo quase puro mesmo. É muito engraçado porque me dá essas ansiedades. Ontem eu estava no carro falando sobre a Filmes daqui a um ano e eu antecipo muito esses movimentos. Acho que dentro das coisas que a gente tem para colocar no mundo nesses próximo cinco anos está tudo num lugar de amplo entusiasmo. Acho que vai ser massa para quem gosta da Filmes de Plástico e quem não gosta vai ficar muito chateado com a gente. Meu lugar agora é pura excitação pelo que vem pela frente.
Gabriel Martins: Eu achei engraçado porque o Marte Um não foi para mim uma sensação de chegada ou de fim, mas eu tive a sensação mais de um começo. Embora a gente seja uma produtora que já está há muito tempo, em comparação a outras produtoras independentes a gente tem uma experiência. 15 anos não é qualquer coisa. Mas ainda assim, eu acho que para o tamanho da nossa ambição, das coisas que a gente sonha, eu acho que o Marte Um foi o começo de uma coisa que a gente quer ver acontecer mais. Até pelo pacote de ideias que a gente tem aqui dentro, eu acho que tem muito experimento para ser feito ainda. Eu não sinto que exista nada consolidado, embora exista o princípio de um nome que começou a se consolidar. Pensar que a gente vai lançar agora o primeiro longa que Maurílio dirigiu sozinho. Pensar que eu lancei recentemente o primeiro longa que dirigi sozinho também. Embora já experientes, a gente é praticamente estreantes em um certo sentido. E tipo assim, eu acredito que ainda vou descobrir qual tipo de cineasta eu sou. Por isso que eu falo que nos próximos cinco anos vai ter que ser feita uma revisão sobre tudo porque talvez até algumas coisas que a gente analisou até agora vão estar muito longe. Já terão vários outros materiais que vão possibilitar fazer outras análises, outras coisas. Isso eu acho que é particularmente empolgante e desafiador.
Recentemente, dando uma entrevista, eu comentei que tenho a impressão que nos últimos 10 anos de cinema brasileiro, a gente não produziu tantos clássicos num certo aspecto de frescor, como nos próximos 10 anos a gente vai produzir. Eu acho que o filme da Grace Passô que eu estou montando agora vai ser um clássico. O filme do André também. Vários filmes que eu sei que estão sendo produzidos e tem potenciais de serem mini-clássicos. Por exemplo, o primeiro longa da Ponta de Anzol está prestes a ser feito. Um dos primeiros longas de Maceió está prestes a ser lançado. A Lei Paulo Gustavo, de alguma forma, vai ter um efeito de que muitos primeiros longas de pessoas interessantes vão surgir. Então, daqui a daqui a 10 anos, quando a gente analisar de 2024 a 2034, eu chuto, talvez eu até esteja jogando isso para as estrelas, de que a gente vai ter alguns clássicos do cinema brasileiro que a gente não teve nos últimos 10 anos. Talvez, dentre os grandes filmes desses próximos 10 anos, três ficções de longa-metragem de mulheres negras. Uma coisa que a gente não teve nos últimos 10 anos como clássicos irretocáveis. Numa certa projeção, eu acho que tem uma coisa interessante no caminho de acontecer não só junto a nós, mas o que está ao redor também.
Maurílio Martins: Eu acho que o Thi e o Gabriel resumiram muito bem, mas não deixa de ser sofrido, né? O cinema ainda é muito difícil, tudo é muito dispendioso, tudo é muito grande, mas a gente ainda segue fudido. Quando você olha para a Nova Hollywood e vê que todos aqueles jovens cineastas conseguiram seu patrimônio muito cedo. Com a gente não acontece isso. A gente tem expectativas de que melhore muito, mas ainda é muito difícil. O cinema no Brasil paga as contas, mas ainda não deixa ninguém rico. É rico quem já era rico. Eu pelo menos não conheço ninguém que ficou rico com o cinema. Eu conheço gente rica que ficou mais rica e vai continuar sendo rica. Ainda é muito difícil lidar com filmes que você está pensando orçamentos gigantescos, mas que sobra muito pouco para você enquanto pessoa física. É muito louco porque você faz projetos para dirigir, pensa em clássicos, mas ao mesmo tempo eu estou preocupado com a grana para pagar a escola do meu filho. E eu estou falando isso, porque isso leva a gente a trabalhar em outros lugares que é algo que não acontecia necessariamente com esse cinema autoral de antigamente. As pessoas podiam tirar ano sabático, podiam mudar para os Estados Unidos, podiam mudar para a França porque tinham um aporte. Essa nova geração, oriunda de periferia ou oriunda de outros lugares, ocupa esses lugares enquanto espaço intelectual, enquanto espaço
crítico, mas ainda é muito distante. A minha vida mudou quase nada em relação a se eu estivesse trabalhando com outra coisa.
O cinema ainda é um lugar que me empolga, me excita, é minha vida e não saberia fazer outra coisa, mas ainda é difícil. Eu não estou querendo ser rico, mas eu acho que com trabalho que se faz ou que se tem, poderia ser um pouco melhor. Eu queria muito poder pensar num projeto e eu não ter que ficar fazendo outros trabalhos para pagar conta. Ficar um ano aqui de boa porque o que eu ganhei no projeto anterior vai sustentar.
É isso. Eu quero continuar fazendo filmes, eu quero que as coisas continuem, mas a gente não mudou muito. Poderia ser melhor e eu espero que seja, porque sendo bom pra nós, é bom para todo mundo, né? Quando é bom para quem está propondo filmes, é bom para quem está trabalhando ter mais trabalho. Eu acho que para quem propõe filmes como os nossos e que tem toda essa celebração em torno dos filmes, o retorno financeiro ainda é muito incompatível.
André Novais Oliveira: Isso me fez lembrar de algumas coisas da filmagem de Se eu Fosse Vivo… Vivia. Uma parte do filme, a gente filmou em um estúdio muito antigo e nas paredes deles tinham vários cartazes de diretores que fizeram muito sucesso ali nos anos 1980/90 e eu estava ali conversando com o Gabito. Isso me gerou uma reflexão que vai ao encontro de muitas coisas que estou pensando. Desde os meus 18 anos, quando comecei a querer fazer cinema, eu lembro de ter muito medo no sentido de não saber como seria, uma coisa de não saber se eu vou conseguir viver disso. Depois dessa conversa, eu fiquei pensando que essa galera meio que sumiu, né? Essa pergunta dos cinco anos é muito interessante e muito boa para nós em termos positivos, porque agora a gente consegue ver um horizonte. A gente consegue ver um pouco à frente. Eu sou meio pessimista e fico meio com medo de pensar como é que vai ser daqui a 15 ou 20 anos porque pode acontecer alguma coisa política, alguma pandemia e pode acontecer de a gente não conseguir filmar mais ou senão entrar num limbo de esquecimento. Ou talvez a gente não consiga filmar do jeito que a gente está filmando agora. Isso me dá um certo medo.
Maurílio Martins: E o medo é real. Quando eu falo de medo, é um medo de quem vem de baixo. Acho que é um medo que outras classes socais não tem. Eu falo isso sempre para
os meninos: não é que eu tenho alguém para me ajudar, eu sou quem ajuda. E o cinema, inclusive, ajuda diretamente a minha família inteira. Às vezes eu tenho medo e às vezes tentar fazer um filme que tenha um certo apelo comercial, é porque isso tem uma resposta e um impacto muito imediato dentro da vida. As 110 mil pessoas que o Marte Um levou ao cinema, trouxeram dinheiro real para a produtora. Trouxeram oportunidade de trabalho. Esse filme que estamos fazendo agora, sem nenhum demérito ao roteiro dele que é incrível, ele não teria a recepção que teve dentro da Netflix se não fosse o Marte Um. Ele poderia e ele seria feito, eu acredito nisso. Mas talvez em outras condições ou de outros modos.
O respeito que o Thi tem hoje em meios públicos ou privados de conseguir dinheiro está muito diferente depois de Marte Um. Não tem como negar isso. Isso tem um impacto financeiro. Às vezes é tipo dosar um pouco de droga e um pouco de salada. Às vezes é fazer um filme de maior apelo comercial e ter grana para segurar a onda por um tempo. Eu sempre penso no Anselmo Duarte falando o quanto ele foi massacrado porque dirigiu O Pagador de Promessas. Mas ele conta uma história maravilhosa. Ele fala assim: “O Pagador de Promessas me gerou 3 milhões de dólares e, quando eu me aposentei, eu fiz uma conta de que esse dinheiro seria o suficiente para manter minha vida digna até meus quase 90 anos. Agora, eu não preciso ficar debatendo com pessoas sobre se o que eu fiz é bom ou ruim, eu vou apenas seguir”. E seguiu, né? Morreu mais ou menos ali perto do que ele havia planejado e porque isso, às vezes, é necessário.
É muito foda porque falar de cinema nesse campo abstrato de “próximo filme” é muito fudido, porque tem funcionários que dependem de nós enquanto salários. A gente mesmo tem uma série de pessoas que dependem de nós. É só olhar para o impacto financeiro que o André teve sobre a família dele. O Seu Norberto troca coisas na casa com grana que ganha dos filmes. É muito foda quando você olha para isso e percebe o quanto os filmes têm esse impacto para a nossa vida. Quando eu olho para o cinema eu vejo igual o André: em cinco anos tá OK, eu sei que vou conseguir sobreviver com os filmes dando certo ou não. Mas mais para a frente eu tenho medo. É um medo porque eu não pago INSS, eu não tenho uma porrada de coisa. O cinema no Brasil te dá esse medo. Ao mesmo tempo que você é celebrado, que você dá entrevista, que você sai nos jornais, sai na Piauí, que os festivais te endeusam, mas quando você volta para a casa, a sua casa
não está numa condição muito diferente do que era quando você começou. E olha que a gente está muito bem comparado a muitas outras pessoas. É fodido por isso porque se eu olho para outras pessoas, o buraco é muito mais embaixo. Um cineasta como Marco Antônio Pereira, por exemplo, às vezes não tem grana e tem que vender as lentes que ele consegue comprar para filmar os próprios filmes, ele vende para pagar as coisas.
Então, o cinema brasileiro ainda mete medo em quem não tem suporte econômico, mas eu vou seguir fazendo, isso é minha vida, nem que eu tenha que trabalhar em outras coisas para fazer filmes.
Gabriel Martins: O lance é que o mundo não está necessariamente demonstrando um caminho muito positivo para o futuro, né? Tipo assim essa coisa que a gente estar fazendo filme com a Netflix… A gente tem zero deslumbre que isso pode durar. Pode ser que sim, pode ser que não. A gente acredita totalmente no nosso talento, mas a gente sabe que não é só isso. Como várias outras produtoras brasileiras, a gente ainda precisa que o país nos permita fazer cinema. Principalmente porque somos três diretores para um produtor aqui dentro. Então, a gente ainda é uma produtora que para alcançar plenamente a realização pessoal dos quatro, a gente realmente tem que produzir muito. Até hoje conseguiu praticamente um milagre de se revezar nos projetos: a gente termina de fazer um projeto do André, começa um do Maurílio e depois começa um meu.
Na prática, com o lançamento do filme do Maurílio, cada um já dirigiu pelo menos um longa, mas isso não quer dizer também que as coisas estão garantidas para mais 10 anos de produtora. A nossa história não é necessariamente uma garantia para mais 10 anos, né? Acho que ela consegue garantir o espectro de algum tempo e que a gente também não se deixe abater por isso. O que Maurílio e André estão falando é uma postura realista, mas na prática a gente está investindo e pensando como sonhadores que sempre fomos. Eu acho que a gente gostaria que fosse um pouco mais fácil, que não precisasse ter um intervalo tão grande entre um projeto e outro, que o Maurílio já pudesse ter uma grana para o próximo projeto. A gente já aprovou muita coisa, mas ainda existe um descompasso. Eu espero que nos próximos anos o cinema brasileiro consiga realmente ser apto para a vocação, energia e disposição de quem tá fazendo o cinema brasileiro.
[PANORÂMICA]
E A LUZ SE FEZ...
EM CONTAGEM1
Por Carlos Reichenbach2
UM COLÍRIO PARA MEUS OLHOS DEBILITADOS E AS MENTES LIVRES DA PLATEIA
Na segunda noite da sessão competitiva da 43ª edição do Festival de Brasília, a descoberta de uma pérola do curta-metragem recente, que anuncia de forma retumbante o nascimento de um novo Ciclo deflagrador: o de CONTAGEM. As GERAES revisitando a Era de Cataguases, sob inspiração de Maurício Gomes Leite, Joseph H. Lewis, Andréa Tonacci e Edward Ludwig (a referência de Godard, em ACOSSADO). É ver para crer!
As exuberantes imagens de “CONTAGEM”, de Gabriel Martins e Maurílio Martins; ou, como captar imagens em vídeo com o rigor da película e a sensibilidade dos que amam profundamente o cinema.
1 Texto originalmente publicado em 2010 no blog Olhos Livres, escrito por Carlos Reichenbach durante muitos anos. Recuperado com a ajuda de Maurílio Martins. Publicado com a anuência de Ligia Reichenbach, viúva do cineasta. Agradecemos a Ligia e a Sara Silveira pela autorização. 2 Cineasta brasileiro. Diretor de filmes como Lilian M: Relatório Confidencial (1975), Amor, Palavra Prostituta (1982), Alma Corsária (1993), Garotas do ABC (2003) e Falsa Loura (2007).
FILMES DE PLÁSTICO: DE MAR, AMAR1
Por Viviane Pistache2
Contagem, abril de 1968. Palco da primeira grande greve operária no recrudescer da ditadura militar no Brasil, Contagem semeia Lula em São Bernardo do Campo, onze anos depois. Antes de abandonar a batina, um padre espanhol foi enviado à cidade industrial para ajudar a organizar os trabalhadores, como era do feitio de um saudoso catolicismo das comunidades eclesiais de base. O então padre Ignacio Hernández conta em seu livro Memória Operária que, na periferia de Contagem, apareceu um poodle, com o qual se identificava muito, por ser branco e europeu demais naquela paisagem. Mas a fuligem do asfalto e das fábricas foi encardindo o pelo do cachorro, que se enturmou com os vira-latas e as crianças da vizinhança. Povo.
Contagem, abril de 2009. Uma baleia atracou no quintal do cineasta Gabriel Martins, em Filme de Sábado, que se tornou o manifesto da fundação da Filmes de Plástico, produtora que inventou mar, Marte e até Oscar com sotaque mineiro, deslocando o cinema brasileiro do eixo Rio-São Paulo. A produtora nasceu numa Contagem que vivia a primeira gestão da prefeita Marília Campos, do PT, mesmo partido no qual Lula encerrava seu segundo mandato. Em 2003, quando Lula assumiu a presidência, surgiu a Escola Livre de Cinema, na qual Gabriel Martins, André Novais Oliveira e Thiago Macêdo Correia estudaram e se conheceram. E foi através do Prouni (Programa Universidade Para Todos), programa de ampliação do acesso da juventude preta e periférica ao ensino superior na era PT, que os vizinhos Gabriel Martins e Maurílio Martins ingressaram no Centro Universitário UNA e puderam se formar em cinema. Gradualmente se alinhava o encontro do quarteto fantástico que compõe a Filmes de Plástico: os diretores André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurílio Martins e por fim
1 Este texto é uma versão revisada e ampliada do artigo Filmes de Plástico offre la mer, Mars et l’Oscar au Minas Gerais. Publicado na Revue Cinémas d’Amérique Latine de Toulouse em Março de 2023. 2 Viviane Pistache é preta das Minas Gerais, pesquisadora, roteirista, curadora, júri e, de vez em quando, crítica de cinema.
o produtor Thiago Macêdo Correia. Apesar da genialidade singular de cada um, este texto se debruça apenas na obra de André Novais Oliveira e de Gabriel Martins por um par de razões: o fato de serem irmãos de negritude e por simples economia analítica. Nascido no bairro Milanez, fronteira entre Belo Horizonte e Contagem, Gabriel é um caçula precocemente ousado. Desde os nove anos manifestava em desenhos o desejo de ser cineasta. Aos doze anos já fazia oficinas de formação nos festivais de cinema promovidos pela Universo Produção. Ainda no Ensino Médio ingressou na Escola Livre de Cinema, quando dirigiu seu primeiro curta-metragem, Quatro Passos (2005), aos 17 anos, e na sequência Más Notícias Para Franco (2006), ambos filmados em película. Gabriel tentou vestibular na elitista Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, a USP, última universidade pública a adotar cotas raciais e sociais no país. Através do Prouni, Gabriel conseguiu bolsa integral de estudos na UNA, em Belo Horizonte, onde conheceu Maurílio Martins, seu vizinho e posteriormente sócio. Começou sua carreira como crítico de cinema na Revista Filmes Polvo e atualmente publica no site do Itaú Cultural, na coluna Sincera Forma do Mundo. Gabriel é filho de Geraldo, aposentado de uma cooperativa de crédito e de Beatriz, costureira e artesã. Seus pais compõem um casal negro com um costume então raro na periferia: desde sempre viajaram, inclusive internacionalmente, fazendo registros da família em vídeo, aproveitando a incipiente popularização das câmeras digitais no mercado brasileiro a partir dos anos 80. Essas imagens foram incorporadas em curtas de Gabriel, que em alguns momentos também ficcionaliza a própria trajetória, endossando este traço poderoso dos cineastas da Filmes de Plástico.
Por sua vez, André Novais Oliveira é nascido no bairro Amazonas, periferia de Contagem, graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica, a PUC Minas, e tem formação técnica na Escola Livre de Cinema, onde conheceu Gabriel e Thiago. André é filho de Norberto, metalúrgico aposentado da montadora Fiat e Maria José, que foi funcionária pública da Rede Ferroviária Federal, e irmão de Renato, professor de Geografia. Num estilo meio Russel Hobbs do Gorillaz, André toca bateria e contrabaixo e já teve uma banda de rock apoiada por sua família, que sempre acreditou na sua veia artística. Quando um jovem negro na periferia de Contagem pode brincar e sonhar, certamente é algo a ser notado e celebrado. Na Escola Livre de Cinema André dirigiu o primeiro curta-metragem, que se intitula Uma Homenagem a Aluizio Netto (2004), que
mistura ficção e biografia sobre um seminal cineasta mineiro, disponível no Youtube, e A Mulher Que Sabia Demais (2009). Vale ainda pontuar que André também trabalhou como agente de saúde de combate a endemias e zoonoses, o que certamente foi fundamental para a concepção de seu longa Temporada (2018), bem como trabalhou na locadora Videomania, junto com seu futuro sócio Thiago, onde refinaram ainda mais a cinefilia compartilhada.
Arriscando enumerar sucintamente as pedras basilares da Filmes de Plástico, destaca-se primeiramente a história de luta política e axé de Contagem (que também é terra do Quilombo dos Arturos), num traçado de migração que trouxe as famílias de André, Gabriel e Maurílio para o maior polo industrial mineiro, bem como as políticas públicas para a educação e o cinema na Era PT. Ademais, a Escola Livre de Cinema e a Revista Filmes Polvo que aproximaram Gabriel, Thiago e André; o Centro Universitário UNA que revelou a vizinhança entre Gabriel e Maurílio e a Videomania que estreitou a proximidade entre André e Thiago. É possível enumerar ainda um outro solo sagrado compartilhado pelos quatro sócios: o Cine Humberto Mauro, espaço obrigatório para qualquer estudante de cinema de Belo Horizonte; além do robusto circuito de festivais, desde os universitários e/ou dos editais de fomento (inter)nacionais ou regionais. E é impressionante o sincretismo de referências admitido em algumas entrevistas pelos cineastas da produtora, que conjugam uma rotunda cinefilia com o que há de mais popular da TV aberta como Sessão da Tarde, Anos Incríveis, Hermes e Renato, Trapalhões, Porta da Esperança, pegadinhas, vídeos viralizados, memes etc, passando por muitos mestres do cinema mineiro como Geraldo Veloso, Carlos Alberto Prates Correia, e do cinema nacional, bem como uma infinidade de cânones mundo afora.
O curta-metragem que fundamenta a Filmes de Plástico, o referido Filme de Sábado (2009), apesar de não ter grandes pretensões, já apresenta uma linguagem cinematográfica muito bem articulada. Dirigido por Gabriel Martins, o filme sintetiza elementos que marcam desde então a produtora: a baleia de plástico, preta de olhos azuis, que se tornou o icônico mascote, os quatro sócios que se reveza(va)m em muitas funções, inclusive a de atuação, numa mescla entre atores e atrizes em distintos níveis de experiência e profissionalização, a possibilidade de universalizar a periferia a partir da intimidade doméstica, com um humor muito peculiar e o fundamental: uma insuspeita
ambição de quebrar qualquer teto de vidro ao propor um independente e (im)possível cinema em Minas, com direito à praia no quintal, mesmo com chuva; à aposta em personagens (extra)ordinárias, sejam pessoas, quintais, ruas e praças, na condução das histórias que projetam Contagem, famílias, amores, amizades e conflitos em Tiradentes, Brasília, Gramado, Cannes, Marselha, Locarno, Lisboa, Veneza, Roterdã, Sundance, Los Angeles, Marte e tantas outras telas fundamentais.
Depois de Filme de Sábado, Gabriel Martins experimentou bastante em curtas como No Final do Mundo (2009), Pelos de Cachorro (2010), Gabriel Shaolin Mordock (2009), ou ainda em Mundo Incrível Remix (2014), que dizem muito da sua liberdade de criação e desejo de experimentar em ação. Se hoje ele é celebrado como Young, Gifted and Black, acumulou erudição, disciplina e assumiu riscos para afinar o traço e o faro, pois Gabriel Martins não se faz de rogado. Com o curta Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides (filmado em 2010, lançado em 2011), a Filmes de Plástico furou a bolha dos editais de fomento em Minas Gerais, com um faroeste teatralizado que traz a força do rosto e do canto da periferia ainda sitiada em escombros da violência. Dona Sônia, uma mulher marcadamente afroameríndia, encontra na igreja evangélica, no afeto e na arma do Seu Alcides, a coragem para vingar a morte de seu filho negro.
Na sequência foi filmado Contagem, em 2010, como o projeto de conclusão de curso de Gabriel e Maurílio, cujo roteiro é baseado no conto Duas Balas de Gabriel Martins.
O curta foi concebido junto com uma monografia sobre personagem, câmera e espaço, analisando o filme de Eduardo Valente, No Meu Lugar (2009) e Mal dos Trópicos (2004) de Apichatpong Weerasethakul. Apesar de bem diferentes em muitos aspectos, Dona Sônia e Contagem são irmanados como perspectivas sobre a periferia com grandes traços de filmes de gênero com afeto e a potência poética de olhares horizontais com a intimidade de quem é da vizinhança. E é por esses e outros motivos que são filmes merecidamente tão aclamados. Contagem especificamente, foi celebrado e projetado por Carlos Reichenbach no Festival de Brasília quando escreveu que “e a luz se fez... em Contagem”, anunciando um novo “ciclo deflagrador” no cinema nacional. A bênção de Carlão atraiu muito prestígio.
Em Fantasmas (2010), seu curta de estreia na produtora, André Novais Oliveira conquistou festivais pelo país inteiro e internacionalmente, como sintoma dos atravessamentos que esse filme provoca em quem se aventura na arte e no ofício de assistir, sentir e fazer cinema na atualidade. Ou simplesmente em quem porventura já stalkeou alguém ou recolheu cacos de dignidade para se reconstruir depois de um término de relacionamento. O filme é sobre o apego ao “fantasma da ex” que há três anos fere o ego do personagem brilhantemente vivido no antecampo por Gabriel Martins, numa prosa quase insuspeita com Maurílio Martins. Da sacada de um muro, espia a vizinhança na sofrida expectativa da aparição do espectro branco de Camila, a ex, que dispara um loop que é não apenas recurso narrativo, mas uma tradução interessante de aspectos da pulsão de morte, conceito freudiano que diz o quanto a repetição é sintoma do que não foi elaborado. Abusando da liberdade poética de acionar referências, Fantasmas avoluma André Novais à categoria de um Orson Welles dos trópicos, ou um jovem gigante negro com obsessões por Rosebud, como um possível “macguffin” que talvez esteja na força motriz e libidinal do autor e sua obra sensivelmente afeita a filmes sobre relacionamentos. Ou de um Federico Fellini de Cidade das Mulheres (1980), onde assume ser refém do mito de um ideal de mulher, que por fim lhe aparece como um espectro de beleza jovem, branca e padrão, como um retorno do recalcado.
Em Pouco Mais de Um Mês (2013), André aprofunda seu cuidadoso traço estilístico de fazer da câmera uma personagem destacada. Enquanto em Fantasmas a câmera é flagrada como sintoma da dor da separação, em Pouco Mais de Um Mês a câmara escura traz encantamento para um casal em começo de relacionamento. O recurso de projeção invertida da rua entre a cortina e o teto do quarto da namorada, além de trazer a magia necessária para quebrar gelos num incipiente processo de construção de intimidade; ainda ressalta a marca estética do universo da produtora de um profundo interesse na vida cotidiana, suspendendo a banalidade e descortinando a poesia. O ano de estreia do curta é o famigerado 2013, que sacudiu o país politicamente, e cujos impactos ainda (des)organizam a nossa vida política. Curiosamente, na lista dos muitos festivais pelos quais o filme passou, é a primeira vez que se vê a produtora presente em festivais de cinema negro, como o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, organizado pelo Centro Afrocarioca de Cinema.
No ano seguinte em Ela Volta Na Quinta (2014), na esteira de uma profícua carreira de ficcionalizar a própria vida, André Novais traz pela primeira vez toda a família para seu longa-metragem de estreia, que foi filmado com orçamento de edital de curtametragem. O filme é uma carta de amor de André a algumas de suas referências no cinema, como Charles Burnett, ou à MPB que sedimenta o filme, cuja sinopse é o verso «alguém partiu, alguém ficou” da canção Nada de Novo de Paulinho da Viola. Um samba que dita bem o tom da obra, que tem a profundidade de uma cachoeira sugerida pelo negrume das rochas submersas. Aliada à delicadeza das águas paradas, o filme cria uma atmosfera de iminência de trombas d’água, na condução do fim do casamento de Dona Zezé e Norberto, premiados no 47º Festival de Brasília.
Impossível não se emocionar com Dona Zezé pedindo a Norberto para ajudá-la a lembrar da canção Preciso Aprender a Ser Só, na voz de Maria Bethânia, culminando com a dança da separação que se avizinha3. É arrebatadora a doçura madura da personagem, que viaja até Aparecida do Norte para organizar as ideias, renovar a fé, ainda que volte magoada com a “vadia” que é amante do marido. De modo (in)consciente, André sabe bem como construir histórias em que mulheres negras são preteridas por outras mulheres brancas e mais jovens. Mesmo dolorida e adoecida, Dona Zezé é gigante em tela, nas suas múltiplas temperaturas de atuação, como na cena em que seu caçula, André, conta as agruras de estar em festivais de cinema sem dinheiro para confraternizar numa feijoada prevista na programação. Curiosamente, a cena relembra e reatualiza a urgência do Dogma Feijoada (2002), encabeçado pelo cineasta Jefferson De, como um manifesto de cinema negro brasileiro cujo patrono é Zózimo Bulbul, com Alma no Olho (1974), curta-metragem seminal, feito com restos de película de um longa no qual atuou, Compasso de Espera (1973). É isso: historicamente seguimos lutando para superar a reinvenção das sobras num movimento soul food que vai da feijoada ao cinema. Mas assim como Dona Zezé, seguimos acreditando que “é muito mágico essa história de fazer cinema”.
Depois do sucesso do seu primeiro longa-metragem, André Novais faz Quintal (2015), um curta-metragem selecionado no mesmo edital que contemplou Rapsódia Para Um Homem Negro (2015), de Gabriel Martins, que na ocasião ainda poderia concorrer
3 N.E. Na versão do filme que circulou em festivais, a canção presente nesta cena era Olha, de Roberto Carlos.
como jovem de até 25 anos. Em Quintal Dona Zezé e Norberto vivem “mais um dia na vida de um casal de idosos da periferia”, conforme a sinopse. O filme é uma obra-prima que atesta mais uma vez a genialidade que André tem de olhar a vida ordinária com camadas de realismo mágico. Dona Zezé voa no seu quintal na companhia de um caramujo, que no candomblé é também conhecido como Boi de Oxalá, por traduzir a calma da temporalidade espiralar desse orixá que traz, na sua casa-concha, a noção de Igbin como lugar de proteção, o que rima bem com a cinegrafia de um diretor tão canceriano como André.
E ainda, a inserção das relações de gênero na vida pública é tensionada de modo subreptício e bem-humorado no filme, quando Dona Zezé é a rezadeira que entrega a cabeça de um político corrupto como matéria de capa e é ainda a senhorinha que pretende ser a sócia oportunista de um marombeiro de muita massa muscular e pouca esperteza. Concomitantemente, Norberto encontra o infinito acervo de pornografia de seus filhos, que desfruta com biscoito de polvilho até que atravessa um portal que se abre como fenda no quintal, dá rolezinho no além, volta à noite como se nada de extraordinário tivesse acontecido e se dedica tanto à pornografia que até vira tese acadêmica defendida na maior universidade pública mineira. Assim, a partir do protagonismo de seus pais e com ironia machadiana, André aborda o machismo nosso de cada dia.
Esse é um tema sensível à produtora, que não costuma exibir na sua galeria o longa Aliança, de 2014, no qual Gabriel dividiu a direção com os amigos Leonardo Amaral e João Toledo. Uma comédia bem bromance em que os amigos, Isaac, um judeu virgem e Pilo, um roqueiro maconheiro contam para Panda, um jovem negro bem-sucedido, que ele está sendo traído por Janaína, para a qual comprou uma caríssima aliança de casamento. O filme poderia ser uma rara oportunidade de espiar pactos segredados num Clube de Bolinhas, considerando o quanto homens são corporativistas e se protegem. Mas ao expor o masculino de modo canastrão, a comédia saiu pela culatra. Ou na definição de Gabito em conversa de whatsapp: “Aliança é fruto, na minha visão, de uma tentativa meio radical de fazer uma coisa com influência cem por cento muito masculina e que também refletiu esse momento do cinema mineiro, bem machista. Dito isso, acho que tem muita coisa interessante ali também. Uma coisa de artesanato e sem
compromisso algum com um certo status quo de festivais daquela época e etc.”. Assim, o longa está para a trajetória da produtora como a música Trepadeira para a obra do rapper Emicida: um sintoma de que homens negros geniais ainda gaguejam, porém cada vez mais interessados no processo de entender e vivenciar práticas feministas.
Mas como diz o ditado mineiro, “às vezes o tropeço até adianta a caminhada”. O jovem Gabito que volta com Rapsódia Para o Homem Negro (2015) traz um debate incrivelmente amadurecido sobre masculinidades negras a partir dos arquétipos dos irmãos Ogum e Oxossi na luta cotidiana da Ocupação Odara, com muita consciência de direitos, sonhos, talentos e ação política sobre o destino. Trançando as mitologias grega e iorubá, o curta faz uma afinadíssima e aguerrida ode a Odé.
Em Nada (2017), Gabriel Martins aborda os conflitos vividos pela jovem Bia que, às vésperas da inscrição do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, cria coragem para assumir para seus pais, depois de afrontar a professora diante de toda a classe, que não pretende escolher nenhuma carreira profissional e reivindica seu direito de fazer nada, literalmente. Considerando que o filme é de 2017, momento de avançado debate sobre ações afirmativas para acesso da juventude negra ao ensino superior, o filme ousa ao desobrigar sua protagonista do sucesso acadêmico e profissional contaminado por uma lógica neoliberal meritocrática e lembra que a juventude negra tem direito tanto a políticas públicas quanto a experimentar seguir sua intuição para correr mundo e correr perigo.
Em seu segundo longa, Temporada (2018), André Novais tece uma potente crônica da vida na periferia, pedindo licença para entrar muito respeitosamente na intimidade das casas numa obra que fomenta a saúde e afasta a morte, suplantando assim a necropolítica e inventando uma necropoética num melodrama com subtextos oníricos de realismo fantástico, pitadas de ficção científica e comédia. No livro-diário em que conta todo o processo de feitura do longa, o diretor cita algumas obras que o inspiraram, especialmente Certas Mulheres (2016) de Kelly Reichardt, Paterson (2016) de Jim Jarmusch e a série Horace and Pete (2016). Temporada é protagonizado por Juliana, que muda de cidade para assumir a vaga no concurso público de agente de saúde no combate à dengue e outras endemias.
Numa jornada de coming of age magistralmente encarnada em Grace Passô, Juliana entende que foi abandonada pelo marido desde um aborto acidental que abalou uma relação que se revelou dependente de uma ideia de maternidade compulsória. Apesar de ser muito reservada, aos poucos Juliana tece relações com colegas de trabalho e com a nova cidade. Mais uma vez, André propõe um sensível olhar sobre a imperativa solidão da mulher negra que se vê obrigada a buscar caminhos para a liberdade e a solitude, evidenciando o quão raro é uma mulher negra ter chances reais de ser amada, para além de ser sexualmente desejada, eventualmente. Essa solidão está estabelecida também no cotidiano da senhora muito simpática que oferece cafezinho com broa de fubá e queijo para Juliana, numa casa caprichosamente habitada por fotografias e a ausência dos filhos adultos. Essa é a derradeira cena de Dona Zezé nos filmes de André Novais. Dona Zezé, carinhosamente chamada de Malute por Norberto, tinha mais de 60 anos quando, em Ela Volta na Quinta, se revelou uma das mais simpáticas e promissoras atrizes mineiras, numa carreira meteórica ceifada em 2018, na véspera de completar 71 anos.
Considerando a importância dessa atriz no cenário mineiro, faz-se uma breve digressão sobre sua carreira. Nas notas do seu livro-diário do dia 19 de maio de 2018, André Novais escreveu: “Aconteceu o que eu mais temia na vida: perder minha mãe. Ela faleceu dia 04 de maio. (...) E com os filmes que ela fez, vieram sets que ela curtiu muito, abraçava todo mundo com carinho, muitas novas amizades, reconhecimento pelas suas atuações, prêmios e viagens para diversos lugares (Brasília, Anápolis, Bagé, Teófilo Otoni – terra onde ela nasceu, São Paulo, onde ela morou por um tempo e inclusive Paris, que era o sonho dela. Como meu irmão falou esses dias, ela tirou muita onda com tudo isso. Nos últimos filmes que ela fez, eu ficava muito impressionado vendo ela decorando os diálogos em casa, junto com meu pai, e na hora das filmagens interpretar de forma fantástica, com uma naturalidade incrível. Eu sabia do carinho da mãe pelas pessoas, mas na verdade, foi nos filmes e nos sets de filmagens que fui realmente descobrir o tamanho do carisma dela. Ela tratava a todos como filhos e fez diversas amizades bem sinceras nesse período. Isso a deixou muito feliz. Muito!”.
Dona Zezé foi o coração dos filmes de seu filho, ou como sugere Milton Nascimento em A Voz Feminina do Cantor, não é possível entender a voz de um artista sem a
voz que ele traz no interior, sem a voz que o gerou. Dona Zezé é certamente o que há de melhor e mais sensível que habita o diretor e sua obra. André Novais já tinha um conjunto de outros roteiros pensando nela, como o longa Se eu Fosse Vivo... Vivia, que acaba de ser rodado. Tentando elaborar o luto, André retomou um material gravado em 2011 e o lançou dez anos depois como o curta Rua Ataléia (2021), em que sua família conversa à luz de velas, iluminando pensamentos e memórias. Por fim, Dona Zezé protagoniza o derradeiro curta-metragem Nossa Mãe Era Atriz (2022), que faz uma homenagem póstuma que compila preciosos momentos da trajetória cênica da Dona Zezé, o que diz tanto da sua genialidade espontânea em cena, quanto da habilidade de André Novais de dirigir e projetar a carreira de atrizes e atores não profissionais, uma vez que sua família toda seguiu atuando em filmes de outras pessoas. E, para encerrar considerações sobre a Dona Zezé, trazendo a noção de ícone como a tradução do sagrado em imagens, é muito poderosa a ideia de que em Ela Volta Na Quinta, Dona Zezé, negra à imagem e semelhança de Nossa Senhora Aparecida, tenha buscado alento no colo da padroeira do Brasil. A possibilidade de existência de uma atriz como a Dona Zezé é certamente um caminho de cura para as chagas do racismo no seio da nossa sociedade.
No ano seguinte ao lançamento de Temporada, a Filmes de Plástico lança No Coração do Mundo (2019), que curiosamente foi gravado antes, sendo ainda a obra que trouxe Grace Passô para o universo da produtora. O longa dirigido por Gabriel e Maurílio casa e amplia os argumentos dos curtas Dona Sônia e Contagem, com prequel do casal central, bem como envereda para um heist que aposta tanto na estética de uma malandragem mineira quanto na presença de mulheres negras na vida do crime. Contagem, BH, Neves, Santa Luzia e Betim são motherfucking Texas, como canta o “porteiro do filme”, o MC Papo.
O diretor Gabriel Martins assinou na sequência alguns curtas-metragens sensivelmente comprometidos com o debate racial, como Nove Águas (2019), que conta a saga diaspórica de quase um século de quilombolas desde o Vale do Jequitinhonha ao Vale do Mucuri em Minas Gerais e a luta contra grandes mineradoras. Em Terremoto (2022), o diretor acompanha a vida da família Augustin, refugiada no Brasil por causa do terremoto que arrasou o Haiti em 2010. E completando uma espécie de trilogia de obras
flagrantemente negras, Gabriel Martins dirigiu um dos cinco episódios de terror que compõem a obra O Nó do Diabo (2017), que trata dos pesadelos da escravidão e de seus espectros perenemente atualizados na vida cotidiana, cuja (re)existência é desde sempre inventiva.
Por fim, a mais recente obra da carreira de Gabriel Martins é Marte Um (2022), que marca em elevadíssimo nível o início de sua direção solo como longa-metragista, fazendo nossa negritude reluzir cinema. Every Nigger is a Star, canta Boris Gardiner, mas o racismo insiste em apagar nossa luz. Por isso precisamos de mentes brilhantes para nos lembrar que merecemos viver de sonhos. O diretor Gabriel Martins nos leva até Marte para conferir um raro missaré nas telas. E assim como a lua abraça a estrela, também derrama sua luz na pele negra para que o azul de nossas almas resplandeça. Todo menino negro merece um oceano de oportunidades para chegar onde quiser, seja na constelação do Cruzeiro ou em Marte. O longa conta o dilema de Deivinho, um adolescente bom de bola com chances reais de jogar no Cruzeiro, mas que prefere compor a expedição Marte Um, prevista para colonizar o Planeta Vermelho em 2030. Num país racista que sequestra nossa bola no jogo, como cantam os Racionais MC’s em A Vida é Um Desafio, um garoto ter opções é um grande avanço. E Deivinho compartilha o protagonismo com sua família num filme-coral, em que cada personagem ou cena é composta com muita afinação.
O projeto inicial começava com a derrota da seleção brasileira para a alemã na copa do mundo de 2014, partindo do famoso mineiraço num filme que era muito mais cômico. Curiosamente, no edital que foi aprovado na Ancine, Tércia, a mãe do protagonista, é descrita como uma personagem ruiva, baseada na diarista do próprio Gabito. O enegrecimento de Tércia, brilhantemente vivida por Rejane Faria, a aposta numa família afrocentrada, a transversalidade do desgoverno bolsonarista, trazem adensamento político e poético à tela, dizendo muito do amadurecimento do próprio diretor, que não abre mão da malandragem do filme, que habita lugares insuspeitos, como o personagem Wellington, pai do protagonista, que é porteiro, assim como o arquétipo de Exu da Calunga. Wellington também é parça de Flávio (Russão APR), um trickster mineiro que habita o universo da Filmes de Plástico, produtora que tem a malandragem de agradar patronos brancos como Carlos Reichenbach ou negros
como Joel Zito Araújo, tornando-se uma produtora consenso de crítica e amantes do cinema.
Favorecido pela atuação de um elenco maravilhoso, Gabriel Martins se prova um grande maestro na arte de nos fazer rir e chorar com viradas de cenas memoráveis de um drama com boa dose de chanchada e memes. Marte Um é um filme sobre e para famílias negras absolutamente necessário. Coincidência maravilhosa, enquanto Marte Um era celebrado em Gramado, outro filme de Gabriel Martins estreava no Kinoforum, o referido Terremoto. O filme começa com os preparativos para a chegada da pequena Niky, irmã de Neyla, cujo nome o pai lhe diz que significa “flor que brilha”. É muito lindo ver Neyla vibrando com o próprio nome. “Eu sou brilhante, né, eu brilho na noite!”. Seja a partir de Deivinho, Neyla Augustin, Niky Augustin ou de sua filha Teresa, Gabriel Martins se mostrou um jovem pai sensível na sua condução cinematográfica. Seja em Marte Um ou em Terremoto, os filmes de Gabito são zonas de convergências tectônicas que nos fazem avançar eras na nossa cinematografia, gestando futuro. E é essa obra-prima da Filmes de Plástico que encerra o trio de longas-metragens de jovens direções negras contempladas no único edital afirmativo da história da Ancine; que tornou possível Um Dia com Jerusa (2020) de Viviane Ferreira e Cabeça de Nêgo (2020) de Déo Cardoso. O longa fez ainda a estreia do cinema mineiro na corrida para o Oscar, com incansável apoio da Universo Produção, que fomenta os diretores da Filmes de Plástico desde que Gabriel Martins era um adolescente nas oficinas da Mostra de Tiradentes. A Universo Produção que já homenageou a produtora de Contagem na 13ª CINEBH - Mostra Internacional De Cinema De Belo Horizonte, voltou a celebrar a Filmes de Plástico na última edição da Mostra de Tiradentes, pois além de estrear a mostra Clássicos de Tiradentes, com o curta Meu Amigo Mineiro (2013), de Gabriel Martins e Victor Furtado, homenageia André Novais.
Assim, às vésperas dos quinze anos da produtora Filmes de Plástico, a 27ª Mostra de Tiradentes celebrou em especial a carreira do cineasta André Novais. Numa fase bem produtiva, o diretor trouxe três filmes na matula: O aclamado O Dia que te Conheci (2023), com estreia premiada no Festival do Rio daquele ano, uma comédia romântica autoral, que trabalha de modo singular questões delicadas como medicação
psiquiátrica, insônia, demissão do trabalho e encontro amoroso, que traz em toda sua gramatura as atuações de Grace Passô e Renato Novaes. André, consagrado mestre da arte dos relacionamentos, aposta que quando pretos e pretas se amam, se curam, pelo menos na ficção. A estrutura de O Dia que te Conheci se inspira em Um Alguém Apaixonado (2012), de Abbas Kiarostami, bem como cita Alma Corsária (1993) de Carlos Reichenbach. Especialmente para a sessão de abertura da Mostra, foram exibidos dois filmes inéditos: O curta Roubar Um Plano (2024), codirigido com Lincoln Péricles, um fantástico nonsense sobre um trabalhador mineiro como uma espécie de herói sem muito caráter, que desiste de sua insatisfatória vida laboral, cujas portas foram abertas por um veterano paulista. Assim, Contagem se encontra com o Capão Redondo na cinefilia de dois titãs da periferia que faz cinema.
Por fim, o média-metragem Quando Aqui (2024), concebido especialmente para a Mostra em tempo recorde. Dialogando com a ideia de tempo espiralar, a partir de um espaço habitado de tempo, André revisita sua obra, abrindo as portas da casa-quintal que o consagrou, numa espécie de álbum vivo. Dona Zezé é re-eternizada, enquanto seu Norberto se despede da casa-cenário que o fez metalúrgico, marido, pai e ator. Revelando novas facetas do diretor canceriano que troca de pele como quem troca de exoesqueleto, o filme conecta ciclos na carreira de André Novais, apontando futuros de um cineasta que ama filmar o amor. Ademais, o filme avança no amadurecimento de um cineasta que começa negro e periférico por coincidência, mas que agora desbrava maior consciência, como um caranguejo de casco forjado no mangue, com maior profundidade política tanto (in)consciente quanto coletiva. Quando Aqui pode ser lido como um concentrado contra o esquecimento, numa arqueologia que lembra um trecho de “Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão”, da autora Saidiya Hartman:
“Em Gana os cativos recebiam um banho cerimonial antes de serem vendidos, a fim de entregá-los livres das identidades anteriores. (...) No norte, eles possuíam remédios tão poderosos que transformavam homens e mulheres vigorosos em escravos vazios e pacíficos. A planta ‘Crotalária Arenaria’, um pequeno arbusto leguminoso encontrado na savana, era chamada de ‘Manta Uwa’, que significa “esquecer a mãe”,
em haussá. Os traficantes apregoavam que escravos que ingeriam a planta logo esqueciam suas origens e não tentavam mais fugir.
Manta Uwa fazia esquecer parentes, perder de vista o próprio país e parar de pensar em liberdade. Ela expurgava todas as memórias de uma terra natal e arrancava a proteção espiritual da escrava. Ignorante de sua linhagem, a quem ela poderia apelar? Não mais capaz de lembrar dos santuários, ou dos bosques sagrados, ou das divindades das águas, ou dos espíritos ancestrais, ou dos feitiços capazes de exigir vingança por ela, a escrava era indefesa. Não mais a filha de alguém, a escrava não tinha outra escolha senão suportar as marcas visíveis da servidão e aceitar a nova identidade no lar de seu proprietário.
Era um fardo ser um estrangeiro numa terra estrangeira, e inteiramente pior ser um estranho para si mesmo”.
Quando Aqui funciona como um antídoto para a Manta Uwa. E nada mais poderoso do que o encontro entre encantamentos ancestrais, cinematográficos e políticas públicas. Quando Aqui foi concebido graças ao apoio da prefeitura de Contagem, na figura visionária da prefeita Marília Campos, em seu terceiro mandato, e da Universo Produção. Assim, janeiro de 2024 celebra abril de 1968, 2009 e 2024, alimentando um ciclo de fertilidade política e cinematográfica de Contagem.
CONTAGEM E RE-CONTAGEM: O REALISMO PLURAL DA FILMES DE PLÁSTICO1
Por Ivone Margulies2
A Filmes de Plástico, produtora fundada pelos cineastas André Novais Oliveira, Gabriel Martins e Maurílio Martins e pelo produtor Thiago Macêdo Correia, é responsável por definir um novo realismo “plural” fora do eixo Rio/São Paulo. Filmando com moradores locais e atores da periferia, destacando o sotaque mineiro em idioletos idiossincráticos e diálogos ponderados, os cineastas têm transformado as ruas intimamente reconhecidas e as vistas ondulantes de Contagem em ocasiões para epifanias contemplativas.
Com a intenção de fazer “um cinemão na porta de casa”3, o grupo da Filmes de Plástico tem se afastado do registo naturalista habitualmente esperado dos filmes sobre a periferia, voltando-se para procedimentos autorreflexivos, alegóricos e poéticos. A baleia preta de plástico com olhos de desenho animado, presente na logo do grupo, torna-se um adereço visível em uma cena de praia improvisada no primeiro curta de Gabriel Martins, Filme de Sábado (2009). Os brinquedos de plástico associados a materiais baratos e a brincadeiras imaginativas são índices da plasticidade abraçada pelos diretores, que mobilizam livremente os efeitos mais cafonas e os mais sofisticados para expandir suas realidades4. Uma sensibilidade remix, próxima do hip hop, e um amor
1 N.E. Uma versão anterior deste texto foi publicada em Film Quarterly (2020) 74 (2), pp. 39-46. Tradução de Victor Guimarães, a partir de versão em inglês enviada pela autora. Agradecemos à autora Ivone Margulies e a Rebecca Prime e J. M. Tyree (editores da Film Quarterly) pela permissão para republicá-lo.
2 Ivone Margulies é Doutora em Cinema Studies pela New York Univeristy. Professora no Departamento de Film and Media Studies do Hunter College. Autora, entre outros, de Nada Acontece: o cotidiano hiper-realista de Chantal Akerman (Edusp, 2016).
3 Essa frase é repetida em várias entrevistas televisivas.
4 Para uma leitura iluminadora do espírito transformacional desse cinema, ver o texto de Juliano Gomes, “Além é o
eclético pelo cinema (de Spike Lee a Abbas Kiarostami e James Gray) coexistem com o seu compromisso com as realidades locais e os corpos que povoam seus imaginários5 Esse é um cinema periférico feito de dentro; como nos filmes de Charles Burnett e nos dos cineastas brasileiros Carlos Reichenbach, Adirley Queirós e Affonso Uchôa, sua textura concreta e seu alcance universal emergem de uma poética narrativa segura6.
A beleza de seu trabalho se irmana às realidades profílmicas desoladas, improvisadas e contingentes, filmadas com uma lógica dramática e formal plenamente realizada. Um enfático “esse bairro é feio demais”, expresso sempre que um personagem sai de um interior apertado em busca de um momento de privacidade, conversa com um vizinho em ruas mal iluminadas ou passa em frente a uma lagoa fedorenta, afirma a necessidade dos personagens de expressar uma sensibilidade resistente em face à precariedade constante e à negligência sistémica. Esse refrão também testemunha a espessa densidade social e histórica visualmente encarnada em suas escolhas de locação e de composição do enquadramento. Em Temporada (André Novais Oliveira, 2018), Juliana, a protagonista, se instala em um espaço improvisado nos fundos de outra casa, configuração arquitetônica típica do desenvolvimento inicial do bairro Amazonas: alguém compra um lote, mas, prevendo dificuldades financeiras, reserva o puxadinho do quintal para alugar7. A casa de Marcos em No Coração do Mundo (Gabriel Martins e Maurilio Martins, 2019) mal abriga sua presença. Ele lancha na soleira da porta, enquanto sua mãe lá dentro enche garrafas com produtos de limpeza caseiros coloridos. A cena começa com uma menina com uma máscara de cachorro (uma homenagem direta a O Matador de Ovelhas, de Charles Burnett, 1978) brincando com uma tartaruga em uma que se vê”. Revista Cinética, Fevereiro de 2014: http://revistacinetica.com.br/home/mundo-incrivel-remix-de-gabriel-martins-brasil-2014/
5 Os diretores são muito precisos quando discorrem sobre nomear e filmar em seus bairros específicos de Contagem: Milanez (Gabriel Martins), Laguna (Maurílio Martins) e Amazonas (André Novais Oliveira). Thiago Macêdo Correia é do interior de Minas Gerais. Os diretores também mencionam Elia Suleiman, Apichatpong Weerasathakul, John Cassavetes e Brian de Palma.
6 Carlos Reichenbach foi um diretor crucial do cinema brasileiro com foco em personagens da periferia, com uma mescla de gêneros e realismo similar ao trabalho da Filmes de Plástico. Quando assistiu a Contagem (2010), um dos primeiros curtas-metragens da Filmes de Plástico, Reichenbach escreveu um post em seu blog – “Fez-se a luz em Contagem” – e ajudou a estabelecer a reputação do grupo entre os cinéfilos brasileiros. A Vizinhança do Tigre (2014), de Affonso Uchôa (que codirigiu Arábia com João Dumans em 2017) é um filme impressionante sobre uma outra região de Contagem. Adirley Queirós, o brilhante realizador de Branco Sai, Preto Fica (2014) e Era uma vez Brasília (2017), concentra-se em repensar radicalmente a história das exclusões em Ceilândia, periferia de Brasília. 7 André Novais Oliveira menciona seu interesse em registrar a história arquitetônica da periferia em uma entrevista com Claire Allouche: “André Novais Oliveira: en saison”. Débordements, 20 de Novembro de 2019: http://debordements.fr/Andre-Novais-Oliveira
área comum apertada; a menina entra em casa e em seguida volta com a tartaruga. A mãe de Marcos o repreende, diz que ele não presta “nem para dar de comer à tartaruga”, enquanto a menina, enquadrada pela janela e amplificando a falta de privacidade nesse espaço restrito, chama a atenção de Marcos, após o constrangedor confronto. Nesse plano, com sua série de molduras internas, nada retém o centro das atenções: a porta, a imagem de Jesus, uma pintura ruim na parede, a imagem tremeluzente da TV ao lado, tudo funciona em conjunto para desestabilizar o corpo de Marcos. Enquanto isso, firmemente enquadrado e desconfortável no espaço, ele rebate debilmente as reprimendas de sua mãe.
Temporada e No Coração do Mundo (NCDM) desdramatizam a trama por meio de longos diálogos em tempo real e de uma recuperação cheia de texturas de esquinas negligenciadas e pessoas à margem, dando-lhes um lugar firme no interior de uma tradição realista, mas com ritmos e modos distintivos que definem o ambicioso alcance social de cada uma dessas narrativas de múltiplos personagens. Do desenvolvimento episódico e cumulativo das conversas delicadas ao longo de Temporada até as surpreendentes mudanças bruscas entre momentos banais e reviravoltas típicas de filmes de ação em NCDM, o que é mais impressionante é como o ritmo preciso e a pontuação coral dos filmes emprestam transcendência coletiva ao drama individual. O meu interesse reside na empreitada realista desses filmes, na maneira pela qual eles constroem a pluralidade partilhada de suas personagens, sua imbricação numa comunidade. A seguir exploro os impulsos corais de Temporada e No Coração do Mundo através de duas formas usadas para dramatizar e expandir seus mundos sociais: o retrato e a vista. Essas categorias são entendidas de maneira literal, mas também como figuras de inflexão dramática, performativa e épica8.
A inclusão de material referencial (fotos, referências históricas, pessoas da família) é um exemplo da propensão expansiva do retrato. Como forma de caracterização, a reiteração, na narrativa de um filme, dos traços singulares de uma pessoa confere densidade performativa, bem como profundidade diacrônica aos indivíduos, sejam eles
8 Retratos e vistas são primordialmente discutidos em contextos de história da arte. Meu interesse aqui tem a ver com estratégias narrativas e dramáticas que podem ser transferidas para o cinema, incluindo questões sobre indicialidade e referencialidade.
personagens fictícios ou pessoas reais. Usadas para converter assuntos pessoais em material cinematográfico, as fotos e a presença dos familiares tornam ambíguo o registro ficcional dos filmes. Elas criam uma correspondência entre indivíduos existentes e personagens fictícios principais e secundários, que estendem o universo do filme a partir de dentro. O público pode não saber, por exemplo, que Dona Zezé em Temporada ou em Ela volta na Quinta (André Novais Oliveira, 2014) é na verdade a mãe de André Novais, nem que a personagem de Dona Fia, mãe de Marquinhos em NCDM, foi inspirada numa vizinha de Maurilio Martins, em cuja casa eles filmaram, e com quem a atriz Gláucia Vandeveld chegou a fazer um laboratório. Mas essa inscrição de pessoas reais tem um impacto no roteiro e nas atuações que informa o ethos social e o afeto dos filmes, através de suas equivalências extra e intradiegéticas.
Além da familiaridade, a extensão performativa de uma esfera íntima para uma esfera social descrita acima, a Filmes de Plástico representa um universo social comum através de várias estratégias dramáticas e visuais: sequências de conversas e dramas que ecoam conferem ressonância plural a representações individuais, enquanto as vistas, num horizonte referencial compartilhado como a topologia montanhosa de Minas Gerais, fornecem um correlato espacial para obter uma perspectiva sobre uma totalidade social. Agrupada por uma trilha sonora unificadora ou por uma montagem visual, uma vinheta ou uma série de retratos pode, tanto quanto uma vista abrangente, enunciar as dimensões coletivas e épicas das narrativas.
O TEMPO TENTATIVO DE TEMPORADA
O título de Temporada transmite a indeterminação temporal da jornada da protagonista e captura o ritmo delicado da transição de Juliana para um novo trabalho como agente de prevenção da dengue em Contagem. Suas ligações não atendidas para o marido que ficou para trás e uma breve visita à sua casa anterior e ao pai à noite, desfazem silenciosamente seus últimos laços com Itaúna, enquanto, desdramatizadamente, ela mobília sua nova casa, faz novos amigos e transa com um novo homem. Guiado por Juliana (Grace Passô), o filme pinta um retrato de grupo. Conversas individuais de Juliana com os outros personagens, gradualmente, vão traçando um painel de sentimentos comuns, seja ao admirar a feiúra de um canteiro de obras perto de
uma lagoa fedorenta, ou sentados num banco, tendo como pano de fundo um conjunto de amplas vistas urbanas. A partilha conversacional dá forma ao filme num concerto de pausas, definindo tanto seu ritmo como a reticência natural da protagonista. É aos poucos e com um afeto mínimo que Juliana conta à prima, tomando um copo de cachaça na mesa da cozinha, sobre a perda do filho num acidente durante a gravidez.
A postura empática de Juliana convida a revelações singulares sobre as dificuldades de cada personagem: o plano de Russão de abrir uma barbearia (sem experiência em corte de cabelo) para aumentar seu salário; Hélio, o funcionário mais antigo do serviço de combate à dengue, que está sobrecarregado por estar preso a um emprego com remuneração tão baixa; e o alívio quando o grupo é avisado de que seus salários foram finalmente depositados.
A alternância entre o dito e o não dito, numa genial combinação entre a atuação de Passô e os diálogos de Novais, indica a crescente confiança de Juliana em sua nova vida. O processo termina com um passeio à beira de uma cachoeira onde ela conta a uma de suas colegas que parou de falar durante três anos quando criança, e só voltou quando precisou gritar um alerta de incêndio na cozinha do vizinho. A profunda relação de Juliana com o silêncio é apresentada sem explicação psicológica, quase casualmente. Uma simples cena de Juliana sozinha e pensativa ao lado de uma pedra no início dessa confissão cifra sua profundidade existencial, potencialmente colorindo todas as trocas e personagens anteriores com igual densidade.
Se as conversas são uma forma de dar corpo a um universo comum, o trabalho da inspeção da dengue fornece outro pretexto para entrar em espaços privados, que vão desde terrenos baldios repletos de lixo até os interiores das casas cheios de histórias pessoais. Em uma das visitas, Dona Zezé (mãe de Novais) recebe Juliana com um cafezinho, enquanto a câmera percorre as fotos da família (do diretor). Através de suas propriedades indiciais e fisionômicas, os retratos sugerem existências além da cena. Mais do que um efeito de real, eles apontam para o significado único da familiaridade como um catalisador do realismo da Filmes de Plástico.
Essa noção de inclusividade e autorreconhecimento está implícita quando, numa discussão sobre a presença negra nos filmes da Filmes de Plástico, Maurilio Martins men-
Temporada (2018)
Temporada (2018)
ciona que, como os cineastas “convivem com esses corpos que são negros ou gordos, era natural que eles entrassem os filmes…” que “[eles] pensaram em Grace Passô porque ela é Grace Passô, não porque ela é negra. Não há fetichismo ou discurso vazio” 9 . Passô também tem afirmado que os corpos marginais mostrados nas obras da Filmes de Plástico são como “os da minha infância, os que vivem nos meus sonhos... Eu reconheço as pessoas... os traços físicos... meu sobrinho, meu desejo de futuro e minha ancestralidade”10 Temporada (tanto quanto o primeiro longa de Novais, Ela Volta na Quinta, de 2014, estrelado por sua família) afirma a potência e a valência performática da familiaridade como um mecanismo interno de expansão social11. Como observou Fábio Andrade, não só a mãe de Novais passa a fazer parte do seu mundo cinematográfico, mas Grace Passô, por sua vez, torna-se família12. A contaminação recíproca, afetiva e estética, que se opera entre a própria família e os atores, a temporalidade confusa das idades na exibição sincrônica de fotos estendem-se a um diálogo quando Dona Zezé pergunta por notícias dos “meninos da dengue”, um deles amigo de seu filho André (que trabalhou realmente no mesmo centro de controle em 2007).
Em outra inspeção, Juliana contempla uma vista de cima após subir para verificar se há água estagnada no telhado de uma residência. Sua conversa com o proprietário, justaposta a vistas distintas, gera um miniensaio sobre o bairro, numa montagem que progride desde planos médios de ruas circundantes e transeuntes até planos gerais e distantes do desenvolvimento urbano. Em meio à descrição das mudanças drásticas na região, principalmente nos últimos dez anos, o homem grita: “Ó, ó o Vanderlei, meu cunhado. Ô Vandinho! Nem viu... Parte do pessoal aqui veio da Vila dos Marmiteiros, onde agora é a Via Expressa, saca? Meu pai fala que a galera veio tocada, assim, de lá. A Prefeitura colocou todo mundo pra fora e a galera veio assim, a pé, de carroça...”
Significativamente, essa menção ao despejo traumático se espalha por vistas urbanas cada vez mais apinhadas, num sinal para lembrar a Vila dos Marmiteiros, uma comunidade próxima a Belo Horizonte, conhecida por seu papel histórico na luta contra a re-
9 Em uma entrevista para o programa Agenda da Rede Minas, Gabriel Martins, Maurilio Martins e Grace Passô falam sobre a Filmes de Plástico. https://www.youtube.com/watch?v=f_mzrkW3ZAg
10 Ibid.
11 Ibid.
12 Ibid.
moção forçada de trabalhadores da periferia na década de 1950, bem como por iniciar a organização de um movimento mais amplo de favelas13. A hábil conexão feita por André Novais Oliveira entre Vandinho, o parente próximo que passa, e uma massa invisível e anônima, espalhada por um espaço e um tempo histórica e politicamente carregados, articula com fluidez o território da Contagem de Juliana. Tecendo bolsões de experiência profundamente personalizada com uma geografia social visitada de perto – em seu lixo, seus cheiros e suas memórias, bem como na parede de fotos – Temporada postula Juliana como um fio condutor para seu mundo densamente estratificado.
A BATIDA ÉPICA NO CORAÇÃO DO MUNDO
Na produção da Filmes de Plástico, retratos e vistas são atravessados por vetores pessoais e estéticos. Uma vista recorrente de um morro em No Coração do Mundo, que mostra a casa de Maurilio Martins a partir da perspectiva do bairro de Gabriel Martins, engloba literalmente os mundos dos dois diretores, que cresceram nos bairros Laguna e Milanez, respectivamente. Não é irrelevante, portanto, que essa vista, o plano subjetivo do protagonista Marcos olhando para as luzes distantes do bairro, faça a ponte entre as versões dramática e “documental” de Contagem no prólogo do filme.
O filme começa em uma praça do bairro Laguna, com um anúncio num carro de mensagens do aniversário de Marcos (Leo Pyrata), presente de sua namorada Ana (Kelly Crifer). Eles se beijam, ouve-se um tiro e um corte revela que Marquinhos está por trás de um homicídio equivocado. O cadáver (Gabriel Martins) colorido pelos flashes das luzes da polícia, jaz no chão com a mãe idosa ao lado, consolada por um homem. Após esse começo insinuante, Marcos contempla a ampla vista do bairro Laguna à noite. Uma trilha sonora épica de faroeste tinge a cena com uma qualidade melancólica existencial. Uma cena de motos dando grau na estrada vazia à noite conduz o filme a um outro registro, com uma montagem coreografada ritmada por uma batida trap: “Sejam
benvindos ao Texas... BH é o Texas... Contagem é o motherfucking Texas... disputas de poder... favela... velório... baile funk e pagode... maconha pro ar... ameniza o sofrimento” 14. Cortes enérgicos mostram planos encenados de adolescentes dançando e retratos posados em câmera lenta ou em fotos fixas: um lixeiro sorridente pendurado em um caminhão, uma carroça puxada por cavalos em meio a uma cidade que parece um vilarejo, uma criança com uma máscara do Homem-Aranha perto de uma bandeira brasileira. Essa galeria de pessoas comuns que nunca se tornam personagens do filme se transforma, em vez disso, numa formação coral: desligada da narrativa do filme, essa sequência de créditos performativa enraíza e expande o drama socialmente, assim como muitas outras o farão15.
Flertando com múltiplos gêneros, NCDM acompanha sobretudo alguns personagens que vivem em precariedade econômica, com empregos mal remunerados ou esquemas ilegais de pequena escala. Estes incluem Marquinhos, um vagabundo que não faz nada; Ana, sua noiva que trabalha como trocadora de ônibus e cuida do pai com deficiência; e Selma (Grace Passô), amiga de Marquinhos que o convida para ser sócio de um negócio paralelo de fotos escolares – e para ajudar em um assalto. Realizado no escuro e com lanternas, esse roubo imprime ao filme um suspense estiloso, mas confirma, quando fracassa, a sensação generalizada de frustração e cansaço em Contagem. Uma série de outros personagens ressurgem esporadicamente: Rose (Bárbara Colen) e seu amante (Robert Frank, um dos compositores da trilha do filme), irmão do assassino sem noção da abertura do filme (Renato Novaes, irmão de André Novais); Dona Sônia, que atira no assassino do filho em uma cena brilhantemente executada; Brenda, velha amiga de Marquinhos e traficante de maconha (interpretada pela famosa MC Carol de Niterói); e Dona Fia (Gláucia Vandeveld), mãe de Marquinhos, vendedora de porta em porta de produtos de limpeza caseiros coloridos artificialmente. Esses personagens
13 Marmiteiros refere-se aos trabalhadores que trazem consigo suas marmitas para trabalhar. De acordo com o estudo de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira sobre o movimento de favelas desde o final dos anos 40 até o golpe civil-militar em 1964, “em 1948, os moradores da Vila dos Marmiteiros mobilizaram-se para combater a ação de desalojamento iniciada pela Empresa Mineira de Terrenos e outras organizações privadas. A defesa da ocupação do terreno se desenrolou até 1957, quando a Prefeitura comprou o terreno litigioso”. SILVA RODRIGUES DE OLIVEIRA, Samuel. O movimento de Favelas de Belo Horizonte (1959-1964). E-Papers Serviço Editorial, 2010, pp. 32-34.
14 Trap é uma forma mais lenta de rap, proveniente da cena rap do Texas, menos conhecida que as cenas de Nova Iorque ou Los Angeles, assim como Belo Horizonte [BH] e Contagem são menos conhecidas se comparadas às cenas musicais de São Paulo e do Rio. Martins revelou que Contagem, na região entre o Laguna e o Milanez, mudou de cor em seus filmes para se parecer com um faroeste. A letra de “Texas” de MC Papo reforça a ideia do Texas como um imaginário, um lugar onde o Estado de direito vacila. Por isso optaram por uma trilha sonora com elementos retirados do compositor Ennio Morricone, de Sergio Leone, “essa coisa épica, trilha sonora do western dos anos 1980”. ALVES, Alessandra. Entrevista com Maurílio Martins: “No Coração do Mundo, periferia Universal”, em Cinema em Cena, 2019: https://cinemaemcena.com.br/coluna/ler/2456/no-coracao-do-mundo-periferia-universal 15 Para essa carta de amor a Contagem, os diretores filmaram em sua própria busca por uma textura e um tom completamente diferentes. Entrevista com Claire Allouche.
estão entrelaçados em um microcosmo comunitário de violência silenciosa, festas de aniversário, cantos evangélicos e conversas entre mulheres.
No Coração do Mundo tem uma “disritmia” que se manifesta em mudanças surpreendentes de registro e endereço, um reequilíbrio constante de acontecimentos menores e maiores, de dramas íntimos ou de suspense e momentos corais16. O roubo planejado por Selma pode ser esquecido momentaneamente, à medida que o tempo para para que ela possa conversar com sua amiga Rose, com um isqueiro emperrado que distrai ainda mais suas reflexões sobre a vida. Outra conversa decisiva sobre o plano do roubo poderá ser adiada quando, em vez de seguir Marquinhos e Ana até o terraço, a câmera para no quintal para filmar e ouvir um canto evangélico cantado por Dona Fia, Dona Sônia e seus vizinhos, juntos para a reunião semanal da célula17. O refrão berrado por uma fervorosa Dona Fia com as palmas das mãos levantadas e a foto do filho assassinado de Dona Sônia olhando para fora da camiseta amplificam a atmosfera de confronto da cena.
Outros aglomerados corais irradiam da sessão fotográfica que está no coração do filme. Nessa cena altamente construída, a voz de Selma no meio de uma conversa se projeta sobre uma paisagem que logo se revela como cenário artificial para os retratos de classe que ela e Marquinhos foram contratados para fazer na escola. Ela conta que quase teve que abortar um bebê e menciona que Contagem já foi seu “coração do mundo”. Enquanto conversam sobre a qualidade da imagem, uma panorâmica para a esquerda mostra o rosto de Selma, agora emoldurado pelo visor da câmera. Com seu típico sotaque, Marquinhos pergunta “e esse negócio, que cê falou, no coração do mundo?”. Da tela dentro da tela, Selma vai aos poucos adentrando seu sentimento: “coração do mundo é o próximo lugar. É pra onde a gente quer ir. Melhor, muito melhor. É onde a gente quer pisar. Pra onde vai o desejo da gente... Aqui não é mais meu
16 Victor Guimarães caracteriza os registros imprevisíveis do filme como uma disritmia, registrando a emotividade do filme, mas também seu abraço apaixonado de múltiplos gêneros. Ver o texto de Victor Guimarães, “Coração no olho”. Revista Cinética, Agosto de 2019: http://revistacinetica.com.br/nova/coracao-no-olho/ Luiz Soares Júnior lê o filme como uma expressão radical de irreconciliação, apontando para o fato de que as expressões de autenticidade do filme são constantemente reenquadradas, mediadas e negadas, trazendo o filme sempre para sua tematização maior da precariedade, da dívida insolúvel e da desolação. Ver o texto de Luiz Soares Júnior, “O fundo do coração e outras superficies,” Revista Cinética, Dezembro de 2019: http://revistacinetica.com.br/nova/ncdm-lsjr/ 17 Células são pequenos grupos de igrejas evangélicas compostos por familiares e amigos que se reúnem semanalmente na casa de alguém para orar, conversar e cantar em louvor a Jesus.
coração do mundo, não...”. A porta se abre, crianças uniformizadas começam a entrar, e uma garota rapidamente ocupa o lugar de Selma na mesa, sorrindo obediente.
Ao longo desses discretos reenquadramentos – da paisagem trompe l’oeil à revelação pessoal de Selma e à mudança de escala do visor da câmera – o desenho dramático da cena é perfurado por notas de guitarra pungentes. O discurso de Selma cristaliza as aspirações esvaziadas de mobilidade disseminadas em todas as conversas e planos hesitantes entre amantes e amigos. O alcance de seu discurso sobre a necessidade de seguir em frente é confirmado primeiro por uma substituição: a estudante que está sentada posando para a foto toma seu lugar e projeta o significado do discurso de Selma para trás e para frente no tempo.
A pose da estudante reaparece no plano seguinte, evoluindo para uma nova sequência de quatro planos com algumas das principais personagens femininas do filme: Brenda, obesa, caminha lentamente pela rua com sua avó doente a reboque, no centro da tela; Dona Fia vende seus produtos de limpeza; Dona Sônia surge em outra rua carregando uma caixa; e Ana sai da garagem do ônibus. Essa sequência de quatro planos de pouco mais de um minuto é a primeira a apresentar tantos personagens diferentes desde a galeria de retratos de Contagem nos créditos iniciais. Embora essa montagem transmita o teor da vida cotidiana no bairro, ela é estrutural e formalmente discreta. Sua frontalidade, sua simetria e a equivalência na duração dos planos qualificam-na, antes, como um desfile de confrontação.
Mas o que essas pontuações corais acrescentam a um filme que navega com tanta habilidade em uma trama de ação cheia de suspense envolvendo o roubo de Ana, Marcos e Selma? As poses piscantes dos créditos; o canto evangélico que para a câmera em seu percurso e as séries femininas compartilham uma maneira particular de confrontar a câmera com firmeza. Na verdade, é essa rostidade da imagem, tomando um termo emprestado de Deleuze, que personifica ainda mais, independentemente de essas figuras serem reconhecidas como personagens fictícios ou como pessoas reais; quando olhado por tempo suficiente, um grupo/imagem reivindica sua singularidade, devolvendo poderosamente o olhar.
Momentaneamente apartados da trama e manifestados através desses retratos, os coletivos reivindicam uma existência discreta, tornada possível pelo realismo expansivo de No Coração do Mundo e da filmografia da Filmes de Plástico como um todo. Somente no cinema e somente através da generosa estética realista de Maurilio Martins, Gabriel Martins e André Novais Oliveira esses corpos podem projetar ao mesmo tempo sua singularidade individual e sua pluralidade compartilhada.
O realismo plural refere-se tanto à ampla gama expressiva da Filmes de Plástico quanto à reiterada incursão do grupo no imaginário de Contagem. Estratégias da tradição realista clássica, como a escolha de figuras locais e anônimas, ou a “coralidade”, a figuração de grupos ou vozes comuns identificadas no cinema neorrealista18, ganham uma inflexão singular à medida que Temporada e NCDM representam um mundo compartilhado que parece infinitamente expansível. Tal como no cinema neorrealista, a própria natureza da sua amplificação do comum varia esteticamente. Os cineastas, conscientes de que a sua representação de novos corpos da periferia confere ao seu cinema uma aura instantânea de resistência, têm alertado para o fato de que o valor oposicional do seu cinema depende, em vez disso, da carga ficcional de suas personagens19
O casting é central para essa carga ficcional, e a Filmes de Plástico tem procurado ativamente modos de encarnação que se expandam de dentro da própria noção de um mundo social comum. Nesse sentido, a escolha de mulheres para papéis inicialmente destinados a atores masculinos em NCDM é tão importante quanto a personalidade pública das atrizes. MC Carol de Niterói, estrela negra do rap da periferia do Rio de Janeiro, ativista que concorreu ao cargo de deputada na Assembleia Legislativa20, interpreta Brenda, personagem que transmite a Marcos sua sabedoria arduamente conquistada no centro de detenção de menores, relembrando seu antigo bairro. Ela é uma das mulheres que, no final do filme, segue em frente deixando Marcos literalmente
18 Para uma discussão iluminadora da propensão plural do cinema neorrealista, ver ALSOP, Elizabeth. “The imaginary crowd: neorealism and the uses of coralita.” Velvet Light Trap 74 (2014), p. 27.
19 Os diretores têm mencionado a tendência de ver seus trabalhos, principalmente os filmes com familiares, como documentários. Eles também sublinham, em entrevista, o peso da resistência que opera na realidade: “essas pessoas são [as] que enfrentam o mundo e o Brasil, e já há muito tempo”. CARMELO, Bruno. GUEDES, Maria Clara. “No Coração do Mundo: Diretores e Grace Passô falam sobre o faroeste “maximalista” que mostra outro lado do Brasil”. Adoro Cinema, 2 de agosto de 2019: www.adorocinema.com/noticias/filmes /notícia-149812/
20 MC Carol foi incentivada a entrar na política por Marielle Franco, a deputada negra e lésbica do Rio de Janeiro assassinada por milícias fascistas em 2018.
preso numa encruzilhada, condensando os temas de mobilidade e estagnação do filme. Grace Passô (que interpreta Juliana e Selma) é uma dramaturga e cineasta que investigou a materialidade concreta de sua presença negra por meio de monólogos poderosos e uma mise-en-scène informada por uma teatralidade claustrofóbica em Vaga Carne (codirigido com Ricardo Alves Junior, 2019) e República (co-realizado com Wilssa Esser, 2020).
A troca entre o mundo e o cinema, ativada pela presença dessas personas públicas, também opera através da escalação constante, para o elenco dos filmes, de familiares anônimos. A familiaridade que argumentei como uma das táticas de expansão social da Filmes de Plástico está presente em muitos dos filmes de André Novais Oliveira.
Em Ela Volta na Quinta, um close horizontal de Dona Zezé perfura a tela quando ela se dirige com ternura à câmera dizendo ao filho (o diretor e ator) para não desistir de seus sonhos de artista. A fusão entre documento e ficção, que tem sido a marca registrada do cinema moderno desde o neorrealismo e Os Incompreendidos de Truffaut, continua a impulsionar a inscrição pessoal nos filmes, levando a uma compreensão intrincada da porosidade da realidade no cinema.
Outro endereçamento direto à realidade em NCDM faz com que o status da presença de Passô vacile momentaneamente quando, exasperada com a sugestão de Marcos de que Selma fosse de carro até o assalto, ela exclama: “Você é burro? Eu sou negra, porra! Em que mundo você vive?” 21. O registro performativo da cena ilumina o impacto de ser negra dentro e fora do mundo do filme. A afirmação de Selma sobre sua diferença, dirigida à câmera, é, no entanto, reabsorvida na narrativa quando o olhar de Selma abrange, dentro do plano, Marcos, seu destinatário fictício. Essa passagem da primeira para a terceira pessoa sugere que a força do filme não se baseia numa única estratégia retórica ou narrativa, mas nos riscos assumidos quando se dá uma guinada ambiciosa em direção a um cinema plural.
Essas instâncias performativas exemplificam uma expansão interna do mundo do filme, mas a precisão coral dos realizadores também se manifesta estruturalmente, na
Drama” do grupo de hip-hop da periferia de São Paulo, Racionais MC’s.
forma singular como cada filme resume as suas trajetórias através de muitos personagens. NCDM multiplica suas cenas de saída, distribuindo-as entre Selma, Ana, Brenda e a mãe de Marcos, numa espécie de saraivada feminista dissipada. Em outra direção, Temporada projeta um desencanto partilhado, por meio de um gesto centrípeto de uma câmera estranhamente desmotivada: seu olhar conduz o público por uma sala vazia, passa por uma TV transmitindo notícias sobre novos esforços para combater a dengue e sai para a rua. Enquanto isso, uma partitura de clarinete, uma equipe mínima de fumigação e uma motocicleta enchem as ruas de fumaça e uma desconfortável sensação de fechamento.
A pluralidade se manifesta no corpo de filmes da Filmes de Plástico, mas também no corpo de cada filme. O que está em jogo na travessia desses filmes pelas realidades de vários personagens é um senso de potencialidade. Múltiplas dimensões das vidas estão escondidas nas esquinas de Contagem, e a Filmes de Plástico faz com que cada uma dessas histórias conte uma vez mais 22 .
No Coração do Mundo (2019)
22 Ver a entrevista de Gabriel Martins e Maurílio Martins sobre a questão da singularidade. O que está por trás de uma manchete como a que nomeia o filme Dona Sônia pediu uma arma para seu vizinho Alcides (Gabriel Martins, 2011)?, eles perguntam. Cada personagem segura arma de uma maneira diferente, e lida com as situações de uma maneira diferente. Cinema em cena, 2019: https://cinemaemcena.com.br/coluna/ler/2456/no-coracao-do-mundo-periferia-universal
UMA PARADA EM
CONTAGEM: QUINZE
ANOS DE TOPOFILIA
COMPARTILHADA1
Por Claire Allouche2
Atravessar Contagem na alegre companhia dos prolíficos Filmes de Plástico3 implica em adotar como bússola as constelações4, em vez de um astro autoritário. Se uma das maiores realizações dos Filmes de Plástico tem sido a de construir uma cinegeografia diferente de qualquer outra, isso se deve à sua capacidade de multiplicar as potencialidades, sem cair na armadilha de um monopólio. Desde sua primeira imagem significativa, em Fantasmas (2010)5, até a sobreposição de camadas temporais de um mesmo lugar em Quando Aqui (2024), ou seja, num intervalo espaço-temporal de mais ou menos quinze anos e alguns metros, tem recaído sobre nós, contemporâneos dos Filmes de Plástico, a alegre responsabilidade de sermos testemunhas de um movimento de criação proeminente, ao mesmo tempo cinematográfico e topófilo. Com efeito, o amor do quarteto pelo cinema, que se manifesta tanto em sua inteligência formal como em suas citações referenciais autênticas, está sempre associado a uma afecção comunicativa pelos lugares filmados. Suas reminiscências do espaço vivido se entrelaçam com a frequentação atual do território.
1 Este texto é uma variação preparada pela autora para este catálogo sobre ideias previamente desenvolvidas no seguinte artigo: ALLOUCHE, Claire. “Une décennie de production à Contagem par les Filmes de Plástico (2009-2019) : variations collectives sur l’expérience cinématographique de l’habiter”. In: DURET, Christophe. LAHAIE, Christiane. (dir.). Ici et maintenant. Les représentations de l’habiter urbain dans la fiction contemporaine. Québec: Lévesque Éditeur, 2022, pp. 173-201. Tradução do francês por Victor Guimarães, em colaboração com a autora.
2 Crítica de cinema na revista Cahiers du Cinéma e doutoranda na Université Paris 8 (ESTCA).
3 N.T. A autora se refere frequentemente aos integrantes da produtora como “os Filmes de Plástico”. Decidimos manter na tradução essa idiossincrasia porque se trata de uma maneira intencional de referir-se a eles, com uma dose significativa de carinho.
4 Como já sugeria o título de um curta-metragem magnífico assinado por Maurílio Martins. Devemos também esse pensamento cósmico ao trabalho inspirador de Mariana Souto.
5 Não dispensamos, tampouco, a memorável praia mineira de Filme de Sábado (2009)!
Assim, Fantasmas, dirigido por André Novais Oliveira, construía pacientemente sua ficção a partir da observação de um posto de gasolina comum, da marca Ipiranga, em um plano-sequência de dez minutos, enquanto dois protagonistas conversavam em off, interpretados por Gabriel Martins e Maurílio Martins. Sempre em presença-ausência, a dupla de realizadores, acompanhada na produção pelo indispensável Thiago Macêdo Correia, já marcava através dessa participação fônica o vigor da vizinhança geográfica e do companheirismo cinematográfico entre os Filmes de Plástico. A leitura progressiva de um espaço minuciosamente enquadrado permitia que uma história se desenrolasse, para subitamente vacilar sem aviso prévio. Essa imagem fundadora anunciava o horizonte de produção dos Filmes de Plástico, sua capacidade de fazer uma bricolagem de relatos a partir do seu ambiente de proximidade, com um conhecimento prévio do potencial cinegênico do bairro. Quem chega de ônibus do metrô Eldorado e encontra o posto Ipiranga em questão sem dúvida será tomado pela confusão: dois postos de gasolina semelhantes estão separados por apenas alguns metros. No entanto, não são os mesmos fantasmas que rondam por ali.
Os Filmes de Plástico não detêm o monopólio do nobre estatuto de “cineastas-moradores”: como a Agnès Varda de Daguerreótipos (1975), o Ignacio Agüero de El Otro Día (2012), o César González da trilogía villera6, ou, geograficamente mais próximo, Adirley Queirós, dos curtas aos longas, o quarteto de Contagem filma “como morador, à altura do morador, entre outros moradores”7. A escritura dos seus filmes está ancorada num conhecimento íntimo e profundo da singularidade dos lugares, com uma cumplicidade ativa de sua vizinhança de filmagem; pergunte aos seus colaboradores, e eles lhe contarão como um bairro inteiro se mobiliza assim que a ficção começa a ser preparada. Os Filmes de Plástico tanto não têm esse monopólio, o de serem cineastas-moradores, que uma das maiores virtudes do seu cinema reside justamente na originalidade em coletivizar continuamente essa disposição de criação. Por isso, se você decidir passear hoje por Contagem, descobrirá uma passagem secreta que liga a Rua Acácias (Bairro Jardim Laguna) à Rua Quatro (Bairro Milanez) à Rua Coronel Antônio de Cássia (Bairro Amazonas). Nesses endereços se encontram muito mais do que os
6 Que deve ser vista absolutamente, e é possível através do canal de YouTube do cineasta: https://www.youtube. com/c/C%C3%A9sarGonz%C3%A1lez-Cine
7 ALLOUCHE, Claire. « Du côté de chez soi. Ignacio Agüero, Gustavo Fontán et José Luis Guerín, à l’affût du dehors ». Trafic n°102, été 2017, p. 80.
respectivos locais de nascimento de Maurílio Martins, Gabriel Martins e André Novais Oliveira: é a alma das fulgurações do cinema mundial, tão calorosas quanto travessas e melancólicas, que ali está ancorada.
Infelizmente, o espaço deste texto não é proporcional à extensão do mapa astral dos Filmes de Plástico. Retornarei apenas a dois filmes, em dois lugares, convidando os espectadores-andarilhos a ampliar esse percurso.
Primeira parada. Em Temporada (2018), de André Novais Oliveira, Grace Passô interpreta Juliana, funcionária municipal do serviço de prevenção à dengue, trabalho que o cineasta realmente exerceu e no qual se inspirou. Juliana percorre Contagem a pé e nos dá acesso às micronarrações que se desenrolam de soleira a soleira, entre a rua e o interior dos moradores.
O filme é uma maravilha do início ao fim, mas algo se cristaliza entre o ímpeto da ficção e a memória do bairro numa sequência em particular (ousaríamos escrever a mesma frase para cada sequência do filme). Esta sequência organiza o encontro entre Juliana, em pleno serviço, e uma autêntica moradora de Contagem. Não menos importante: ela é Maria José Novais Oliveira, a famosa Dona Zézé, que dispensa apresentações no Brasil, a quem Temporada também é dedicado. A câmera acompanha Grace Passô desde sua entrada no quintal até o interior da casa, com um movimento contínuo muito suave, como se seus passos conduzissem a imagem à descoberta do espaço. Essa sequência funciona como uma suspensão na narração, pois convida à contemplação dos elementos que compõem o local visitado, a começar por uma árvore em flor. A poética do espaço vem de sua materialidade partilhada. Maria José Novais Oliveira demora a levar o café para Juliana, porque um café bem feito e um café bem bebido simplesmente levam tempo. Esse tempo, Juliana o utiliza para observar o pequeno museu de uma vida, exposto na sala da moradora através de sua decoração na parede e de suas fotografias amareladas pelo tempo. Filmados por outros cineastas, esses elementos seriam a expressão de uma direção de arte virtuosa. Num filme dirigido por André Novais Oliveira, não vemos objetos, mas uma vida que passa, na mais justa temporalidade de sua partilha: a matéria da memória é transportada pelo olhar de Juliana, e não pelo olhar mecânico da câmera.
Segunda parada. No Coração do Mundo (2019), de Gabriel Martins e Maurílio Martins, começa e termina na praça do bairro Jardim Laguna, no cruzamento entre as ruas Acácias, Imbúia e Pequi, atrás da qual fica a casa natal de Maurílio8. É interessante examinar como essa localidade tão precisa, filmada à altura do morador, se relaciona com a escala de uma vista do bairro. Com efeito, em No coração do mundo, dois planos gerais urbanos se respondem ao redor do aparecimento da praça, enquadrados de forma idêntica. O primeiro, noturno, é a primeira imagem do filme. O segundo se encontra pouco antes da sequência final, ao amanhecer. No entanto, estas não são vistas funcionais e intercambiáveis. Os planos foram filmados do ponto de vista da casa natal de Gabriel Martins em direção à de Maurílio Martins: “o pequeno vale que nos separa é onde se passam muitos momentos do filme. Para além do simbolismo do cenário urbano, procuramos incluir os nossos espaços de convivência diária”, disse-me certa vez Maurílio. Se a praça é o ponto de encontro privilegiado dos protagonistas ficcionais do filme, esse plano geral urbano apura a medida da colaboração topofílica entre os cineastas-moradores de dois bairros diferentes, deixando emergir o vasto horizonte de ficções possíveis entre eles, um horizonte que se encarna tangivelmente ao longo de todo o filme. Não se trata apenas de “ver” (em, a partir de) Contagem, mas também de ouvi-la. No Coração do Mundo constrói uma cartografia sonora que poucos filmes de ficção hoje têm a ambição de alcançar: o engenheiro de som Marcos Lopes reúne um repertório impressionante de rumores de proximidade. Antes de ouvir as trajetórias dos personagens, é preciso perceber os ecos de um bairro. A acuidade territorial é uma pedra angular da acústica da ficção. Neste sentido, Maurílio Martins insiste no fato de que No Coração do Mundo não “representa” os seus vizinhos, e sim os “apresenta”.
Paradas em movimento, paradas no tempo. Um quintal, uma praça: para mais constelações. Contagem não se compõe, portanto, segundo a tentação de uma visão global, mas como soma de fragmentos que são percepções vividas, à flor da pele da cidade. Através do trabalho da Filmes de Plástico, Contagem deixa de ser um cenário e torna-se um lugar de cinema expressivo, onde quintais e praças passam a habitar a tela com a mesma naturalidade com que são habitados o ano todo. Essa exigência formal que se tornou realidade no cinema nacional encarna organicamente os preceitos políticos
8 Maurílio, não me culpe se os fãs da Filmes de Plástico chegarem amanhã na sua casa, é só justiça geográfica!
de uma descolonização da paisagem, como os geógrafos Leonardo Name e Andréia Moassab puderam delinear9. Os Filmes de Plástico contrariam a posição hegemônica que consiste em pré-julgar características periféricas, sob risco da exotização ou da exclusão, antes mesmo de fazer o trabalho de perceber e questionar o subsolo da memória. Eles têm a coragem e a generosidade de fabricar imagens e sons in situ, uma política formal que nasce dos lugares, abraçados como territórios emocionais e relacionais. E é assim que o coração do mundo deles faz bater o nosso. Onde? Agora10
9 MOASSAB, Andréia. NAME, Leonardo. “Por um ensino de paisagismo crítico e emancipatório na América Latina: um debate sobre tipos e paisagens dominantes e subalternos”. In: 12 ENEPEA, 2014, Vitória. Formação Acadêmica e Políticas Públicas em Prol da Paisagem, Anais, Versão Preliminar. Vitória: UFES, 2014. p. 218-226. 10 Agradecimentos: Filmes de Plástico e seus colaboradores, Victor Guimarães, Cláudia Mesquita, Irene Depetris Chauvin, Érico Oliveira d’Araújo Lima, Vitor Zan e Guillaume Morel.
O JOGO INSTÁVEL ENTRE
REALIZADOR E ESPECTA
DOR NA FILMES DE PLÁSTICO1
Por Maria Bogado2
Talvez quem visse Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira, no ano de seu lançamento, não pudesse vislumbrar o movimento tectônico que se operava no campo do cinema brasileiro. No decorrer do filme, o espectador percebe que está a ver não uma suposta janela para a realidade, mas a superfície de uma imagem captada por uma câmera amadora que duas pessoas observam e manipulam. Esses dois homens que conversam no antecampo são, antes de mais nada, espectadores. O único espaço a que temos acesso é o próprio tecido dessa imagem que é assistida, posteriormente, por alguém que a manipula, faz repetir, avançar e retornar a seu gosto, fruindo da elasticidade e temporalidade particulares do material registrado.
O espectador é uma figura recorrente em toda a filmografia da produtora mineira Filmes de Plástico. O primeiro trabalho do grupo, Filme de Sábado (2009), de Gabriel Martins3, inicia-se com imagens anônimas, aparentemente do início do século passado, nas quais uma família é fotografada no quintal de casa. Diante da TV, o protagonista assiste a essas imagens e sente-se mobilizado, não sem o auxílio das tecnologias de produção audiovisual, a reinventar o seu sábado. Em Contagem (2010), de Gabriel Martins e Maurílio Martins, é enquanto assiste à TV que um senhor é assassinado.
1 Este texto foi publicado previamente na Revista Cinética, em 29 de Abril de 2021.
2 Pesquisadora e crítica de cinema.
3 N.E. A manutenção dos contornos negros dos frames e da marca d’água do site da produtora Filmes de Plástico aqui é proposital. Como o argumento de Maria Bogado pressupõe uma ética da igualdade entre os diferentes regimes de imagem, consideramos que é justo manter a materialidade dos filmes tais como eles foram (re)vistos para a escrita.
Em Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides (2011), de Gabriel Martins, a protagonista assiste às imagens falhas de um VHS com registros amadores de uma família. Em Ela Volta na Quinta (2015), de André Novais Oliveira, os irmãos assistem demoradamente a montagens com o choque de diferenças característico dos vídeos de internet. Enquanto conversam sobre o cotidiano da família e de suas jornadas de trabalho, deixam os olhos e ouvidos transitarem por universos aparentemente antagônicos como o berro de um bode em zona rural e fragmentos de clipes de uma figura pop como Justin Bieber.
O que interessa na Filmes de Plástico — que não por acaso se nomeia a partir de um material tão precário — é a coragem de não se confrontar com essas imagens a uma distância segura, mas de deixar que ocupem e ganhem claro destaque nos planos fílmicos. As mais distintas imagens de diferentes registros e resoluções, que circulam globalmente na televisão e na internet, muitas vezes de autores anônimos, frequentemente aparecem em tela cheia, ou, ao menos, duram o tempo necessário para destinarmos o olhar a elas. A perfuração constante dessas imagens no território de Contagem desestabiliza qualquer possibilidade de construção essencialista dessa paisagem e, ainda, a compreensão desse espaço como puramente periférico. Ao mesmo tempo, a emergência dessas imagens desestabiliza o cinema enquanto campo específico.
Alzheimer (2009-2021), de André Novais Oliveira, Gabriel Martins e Maurílio Martins e Mundo Incrível Remix (2014), de Ga-briel Martins, são eloquentes na exposição de como o cinema, ao se misturar com outros regimes de imagem, desfaz as fronteiras rígidas entre os estatutos de realizador, personagem ou espectador. Esses curtas se compõem a partir de um trânsito instável entre essas posições. Em Alzheimer, Maria José Novais Oliveira, atriz e mãe do diretor, filma sua casa com uma câmera amadora de baixa resolução ao mesmo tempo em que comenta aquilo que vê. Sua fala reflexiva tece elaborações sobre sua relação com as imagens e a memória: “Enquanto eu lembro, preciso viver e registrar algo. Tenho me-mória que já foi boa e uma doença estranha que me lembra a morte”. Maria José filma os próprios olhos, nos apresentando seu olhar enquanto mira a câmera. Em outros momentos, essa personagem-espectadora-realizadora também se deixa ser vista pelo filho, enquanto olha e comenta as imagens dos álbuns de família.
Em Mundo Incrível Remix, imagens produzidas em viagens internacionais pelos atores – e pais do realizador – aparecem em tela cheia e são seguidas da apresentação dos seus rostos e vozes, enquanto eles as vêem e comentam na sala de casa. Em outro momento, entremeando a narração de sonhos, o filme amplia seu escopo imagético ao se abrir a uma exposição remixada de um vertiginoso fluxo de imagens que corta a paisagem da casa e de seus arredores. Aquele espaço aparentemente bem delimitado é rasgado pela visão de galáxias e planetas distantes em registros de baixa qualidade com suntuosos efeitos digitais. A última afirmação dos atores, endereçando-se diretamente para a câmera, é de que “tudo se transforma”. Nesses circuitos de apropriação e manipulação das imagens, os produtores viram espectadores e vice-versa. Nos dois filmes, os realizadores, André e Gabriel, tornam-se espectadores da própria condição de espectador de seus familiares diante das imagens que eles mesmos produzem ou das quais se apropriam. Nesse jogo de variações incessantes, a posição dos realizadores e personagens se cruza e se confunde com a nossa.
Em diversos títulos da produtora, como Filme de Sábado, parece que há a investigação de uma temporalidade que não é exatamente um marco em uma linha cronológica, mas aproxima-se de um estado singular de percepção. Essa tendência se acentua nos títulos de André Novais Oliveira: Domingo (2011), Ela Volta na Quinta, Temporada (2018). As imagens anônimas ou arquivos variados de resoluções diversas, de distintos circuitos e datas de realização, ao perfurarem as imagens e narrativas supostamente próprias desses filmes, abrem-nos a uma trama de tempos que se esbarram ou chocam sem se fechar em simples continuidades. Domingo leva esse embaralhamento ao extremo, de forma que já não é possível situar suas imagens próprias ou delimitar seu centro gravitacional. O filme é composto por diversos arquivos de imagens que retratam pessoas em situações de lazer. Se as imagens iniciais podem dar a entender que são registros de viagem de uma única pessoa, logo de início a variação de perspectivas, paisagens e, sobretudo, de texturas e resoluções, permite a rápida compreensão de que se trata de um acervo complexo e difuso. Os sons tampouco informam sobre as origens ou propriedades das imagens, mas somam-se a elas com suas paisagens também um tanto inapreensíveis. Mais ou menos na metade do curta, aparece, mais uma vez, a figura do espectador. Em grandes salas de cinema, centenas de pessoas encaram as telas. Como um contraplano, é inserido o arquivo de um
filme, único trecho de imagem em movimento com som síncrono. Em um fragmento de O Homem do Sputnik (Carlos Manga, 1959), suas personagens celebram a irrupção inesperada de um satélite de ouro em suas casas. Essa tecnologia de produção de imagem, se vendida, os permitiria realizar diversas viagens. Após esse trecho, diversas fotografias mostram espectadores de diferentes épocas saindo de salas de cinema. Se há um centro catalisador dessas imagens tão diferentes entre si, talvez seja um tanto como o efeito desse satélite desgovernado que chega de súbito provocando o desejo de viagem.
Como lugar de confluências e alterações permanentes, Domingo é, a um só tempo, recuperação e reinvenção de vestígios de domingos passados ou por vir. No filme, orbitando fora dos escaninhos convencionais das construções modernas e ocidentais de memória (museu, arquivo, biblioteca etc.) o trânsito inusitado dessas imagens quase incatalogáveis parece criar um “espaço de memória”, como afirma Leda Maria Martins. A junção desses materiais opera como uma prática provisória e inaugural. Há algo de ex-ótico no encontro intervalar e conflituoso dessas fotografias, trechos de filmes e sons que não se fundem em um espaço ou tempo coesos. O espectador é lançado para além do visível. Resta a tarefa de inaugurar, de modo singular e sempre variável, a sensação tão única quanto difusa de um domingo
Em Quintal (2015), de André Novais Oliveira, o cotidiano de um casal da região metropolitana de Belo Horizonte é atravessado por registros de pornografia contidas em um DVD pirata encontrados pelo protagonista. Ao habitarem o cinema, inseridas na narrativa, as imagens pornográficas destinadas a uma fruição particular tornam-se públicas. Um deslocamento final mais contundente, contudo, é operado pela narrativa. Os vídeos pornográficos acessados na sala de casa são transportados pelo seu espectador, Norberto Novais Oliveira, para a universidade. Norberto apresenta, em uma defesa de mestrado, uma “abordagem estética” dessas imagens. Nesse trânsito — da tela da TV ao auditório universitário — parece que o golpe de André está em propor que os espectadores de imagens quaisquer são também os seus mestres. Cabe ao cinema saber aprender com suas aventuras intelectuais, voltando-se, assim, sempre para fora de si mesmo. Esse jogo instável entre espectadores e realizadores leva o cinema a um estado de reconfiguração permanente de suas matérias de composição, modos
de fazer e pensar. Essa posição ética, que leva os realizadores da Filmes de Plástico a se relacionarem com os mais diversos regimes de imagem e seus produtores a partir de uma pressuposição de igualdade de inteligências, parece ser o motor da maleabilidade radical de suas poéticas.
ESTÉTICA DO QUINTAL REMIX1
Por Victor Guimarães2
Há um plano em Quintal (André Novais Oliveira, 2015) que, diante das mirabolantes invenções do filme, pode passar despercebido. Depois de ser abduzido por um misterioso portal que aparece de repente no quintal de casa, Norberto retorna ao lar na periferia de Contagem e se dirige à porta para entrar. A porta está trancada, como seria de se esperar. A câmera, instalada na sala, mostra a chave no trinco. Sem cerimônia alguma, como alguém que repete o mesmo gesto por décadas, Norberto enfia a mão pela janela aberta, gira a chave e entra. A situação é, do ponto de vista lógico e securitário, paradoxal: por que trancar a porta, se basta enfiar a mão pela janela para destrancá-la com a maior facilidade? E, no entanto, cenas semelhantes se repetem todos os dias, em milhões de lares brasileiros da periferia ou do interior. A surrealidade se entranha no cotidiano o tempo inteiro entre nós, em cada gambiarra que passa a fazer parte da textura das casas, a cada gesto insólito que se transforma em hábito. Como escreve o romancista cubano Alejo Carpentier, “na América Latina o inusitado é cotidiano, sempre foi cotidiano”. Noutro momento do filme, quando uma ventania anormal sacode o varal de Dona Zezé e literalmente a faz voar, o gesto seguinte é recolher as roupas magicamente secas e retornar à vida diária, como se nada. Um quintal na periferia pode ser um mundo tão prodigioso quanto um romance fantástico. Mas é preciso ter olhos para enxergar essa imensa reserva de imaginação que se aninha sob a pele da rotina e transformá-la em cinema.
Essa história começa com Filme de Sábado (Gabriel Martins, 2009), curta inaugural da Filmes de Plástico. Filme-manifesto como poucas vezes se viu no cinema brasileiro recente, encena uma situação ao mesmo tempo insólita e familiar: num sábado qualquer, a lonjura do mar faz com que um rapaz decida transformar o quintal em praia.
1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em um catálogo lançado pelo festival Curta Cinema em 2018. 2 Crítico de cinema, programador e professor. Doutor em Comunicação Social pela UFMG.
André rouba uns baldes de areia da construção na casa vizinha, seleciona os apetrechos na garagem empoeirada – guarda-sol, cadeira de praia, a baleia de plástico que se tornaria o símbolo da produtora –, transforma um refletor de cinema em sol na tarde nublada. O despretensioso conto filmado entre amigos é uma tradução precisa, a um só tempo poética e política, do que há de mais poderoso nesse cinema: quando tudo lá fora diz não, o olhar se volta para o quintal de casa e enxerga ali uma imensidão de possíveis.
O quintal é o lar de furacões passageiros e de aberturas para outros mundos: em Quintal, se o rosto de Zezé não demonstra nenhum espanto após a passagem do vento do absurdo, a abdução traz para Norberto a inspiração para uma dissertação de mestrado sobre filmes pornográficos dos anos 1990. Mas a defesa do deslimite da imaginação é também política: a imagem de um homem negro apresentando sua pesquisa em uma universidade brasileira ainda é tão surreal quanto um portal para outra dimensão esburacando a tarde no jardim.
Em Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010), o gesto se torna ao mesmo tempo minimalista e extremamente sofisticado. Um plano fixo mostra uma esquina qualquer na periferia – um início de noite, um posto de gasolina – por longos minutos, enquanto ouvimos no fora-de-campo uma conversa corriqueira – deliciosa e hilariante – entre dois velhos amigos. A certa altura, subitamente, a câmera que filmava a esquina passará a fazer parte da história e motivará uma briga entre os dois. Gabriel a instalou ali na laje para filmar a ex-namorada que foi vista na vizinhança – e se livrar dos fantasmas. Maurílio, zeloso dos sentimentos do amigo, tenta impedir o disparate. Na batalha corporal pela posse da máquina de filmar que adivinhamos nas vozes cada vez mais alteradas e na trepidação violenta do quadro, é todo um conjunto de normas canônicas que rui em segundos. A cisão entre campo e antecampo se esfacela nessa imagem trêmula que carrega as marcas de sua fabricação. A separação entre o que é diegético e o que é extradiegético desaparece quando a câmera, o aparelho responsável por criar o mundo do filme, se torna o centro do conflito dramático. A ontologia da imagem cinematográfica e sua relação indissociável com a memória dá um salto no abismo quando Gabriel diz que não filma para lembrar, mas para esquecer. Quando, no auge da briga, o carro da ex-namorada desponta ao lado do posto de gasolina e o
rapaz “mete o zoom” para poder enquadrá-la melhor, são os limites entre documentário, ficção e cinema de vanguarda que já não fazem sentido algum.
Pouco Mais de um Mês (André Novais Oliveira, 2013) também coloca os fenômenos materiais da imagem no centro da narrativa. A câmara-escura que se forma entre a cortina e o teto no quarto da namorada do protagonista – e que faz ver a rua lá embaixo refletida magicamente em imagens-movimento, para o deleite do casal recente – é uma imagem-síntese do cinema da Filmes de Plástico. Todos os filmes parecem perseguir essa potência de maravilhamento que, subitamente, emerge em meio à cotidianidade mais banal, espalha seus efeitos e depois desaparece, mansamente, até entranhar-se em tudo ao redor. Tudo converge para essas fendas – reais ou metafóricas – que se abrem no tecido do dia-a-dia e logo se fecham, para continuar irrigando tudo. Um pouco como um quintal aos olhos de uma criança: um terreno banal, com erva-daninha crescendo pelos cantos, que, numa tarde qualquer, se transforma em cidade, roça, estádio de futebol, teatro, espaço sideral, para depois se desfazer novamente em poeira e mato – deixando um rastro de possível por toda parte.
É essa capacidade de estupefação que dispara Mundo Incrível Remix (Gabriel Martins, 2014): em algum lugar turístico dos Estados Unidos, um músico de rua toca Hallellujah de Leonard Cohen ao piano e canta, enquanto um homem vestindo um figurino que combina camisas floridas, uma capa com estampa de corações e um papel celofane azul na cabeça, dança sozinho, inebriado pela canção. Em meio a esse rolê aleatório, a câmera se posta no encalço do performer, filmando-o de perto. “You’re amazing, man”, repete a voz de Gabriel no antecampo. Quando o corte nos levar a um outro quintal em Contagem e à tartaruga Binha (“a última encarnação de Jesus na Terra”, segundo o avô do cineasta) entre as imagens de santos e os bonecos no altar, à conversa sobre filmes de super-heróis, será essa disposição para o espanto que percorrerá cada fragmento do filme. Mas se o mundo é incrível, surpreender-se com ele não basta. É preciso dar o passo seguinte: transformar uma partilha de fotos de viagens ao redor do mundo em ocasião para a redescoberta da paixão entre o casal de meia-idade; justapor o rapaz tocando tango ao piano em algum lugar da Ásia ao forró dançado na beira de algum lago do interior de Minas muitos anos atrás; filmar os olhos da namorada e atravessá-los com as texturas de um clipe da Beyoncé; partir das palavras de
um sonho para transformar as ruas do bairro em plataforma para o voo ou em cenário de um filme-catástrofe com direito a explosões e raio laser; encontrar o sentido da vida numa cena de sonho num ônibus, na boca de um ET parecido com o Clodovil. Nessa estética, reconhecer o incrível que há no mundo é só parte do trabalho. A tarefa seguinte é fazê-lo vibrar, desdobrá-lo, transfigurá-lo uma e outra vez – e, para isso, é preciso ficção, montagem, efeitos especiais. Para fazer justiça à transformação ininterrupta do mundo que o faz escapar ao tédio e à previsibilidade absoluta, é preciso deixar-se irrigar alegremente pelos fluxos de criação que hoje surgem em lugares muito distantes da instituição-cinema, para que uma impureza nova possa vir e rachar de novo essa arte indelevelmente impura, que sempre se inventou entre um empréstimo e outro, entre uma fenda e outra.
Mas não nos enganemos: no bojo de toda a leveza e de toda alegria, esses filmes são também um front de batalha. Esse cinema se faz no extremo oposto do olhar contemplativo e apaziguado que faz com que tantos filmes – muito mais numerosos – se dirijam à periferia, ao sertão, ao interior do país com um olhar meramente curioso, desimplicado, que só enxerga esses “outros” mundos a partir de sua diferença mais superficial – e, por isso, só pode se excitar com a mais pueril “cor local” imediatamente celebrada. Fantasmas é também isso: uma implosão cabal do filme de galeria em seu devir câmera de vigilância; uma reação violenta à transformação da periferia em aquário.
Se não é mais a fome ou a violência que atraem o olhar que se dispõe ao espetáculo extrativista – a batalha contra a ética da Retomada sintetizada em Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) já estava ganha, num certo sentido –, ainda restam a combater a retórica da ingenuidade, a farsa do bom selvagem, o mito da pureza ancestral ou a prisão da excentricidade. Se Fantasmas pode ser pensado como o filme que anuncia em poucos minutos o fim do que se convencionou chamar de Novíssimo Cinema Brasileiro, é porque a vibração do cotidiano num canto qualquer da cidade já não vale mais como ocasião para a composição plástica que se contenta em atestar que o mundo é belo, e sim como uma matéria de sonho que é preciso ativar à força dos golpes de encenação, uma piscina de plástico que convida ao mergulho decidido na montagem, uma pista de dança em que é preciso inventar o próximo passo.
Por isso é tão importante que, em Quintal, Dona Zezé destrua sua imagem de inocência ancestral para flertar sutilmente com o fortão da academia e que ela se utilize malandramente de sua própria aparência de candura para sabotar o poder do coronel playboy. Se a música brega é a nova boca de fumo, se os galos de briga viraram peixinhos coloridos saltitantes, é preciso caminhar na contramão do neoextrativismo travestido de generosidade e desarmar as armadilhas do paternalismo imperante com astúcia e altivez.
Seria possível, talvez, pensar essa estética do quintal como um dos elos perdidos entre a estética da fome e a estética do sonho glauberianas. Ou melhor: pensá-la como um remix, um mashup entre uma e outra, pois o quintal é ao mesmo tempo fome e sonho, precariedade e imaginação. “Nossa originalidade é a nossa fome”. Como não identificar o plano único de Fantasmas, filme feito com cinquenta reais (incluindo o macarrão), nessa passagem do manifesto de 1965? Por outro lado, “uma obra de arte revolucionária deveria não só atuar de modo imediatamente político como também promover a especulação filosófica, criando uma estética do eterno movimento humano rumo à sua integração cósmica”. Como não reconhecer o cosmos de Mundo Incrível Remix ao ler essa outra, da conferência de 1971?
Longe dos jardins e das coberturas, perto dos quintais e das lajes, o povo já não precisa mais ser “um mito da burguesia”, pois esse cinema – antiburguês já no nascedouro – pode inventar figuras do povo insuspeitadas, quantas forem possíveis. No interior desses filmes de plástico e arame, feitos com orçamentos de dezenas de reais ou de poucos milhares, com câmeras digitais ou com vídeos caseiros, em planos fixos ou com direito a efeitos especiais, entre conversas arrastadas e explosões de mísseis, aninha-se uma imensa reserva de invenção, capaz de dinamitar as bases das novas hegemonias imaginárias e apontar um possível para o futuro do cinema.
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AS CONSTELAÇÕES DE MAURÍLIO MARTINS1
Por Adilson Marcelino2
A produtora mineira Filmes de Plástico, fundada em 2009 em Contagem, tornou-se não só parada indesviável para o cinema brasileiro contemporâneo, como também um capítulo fascinante de uma geografia e de um caminhar de afirmação social e de altivez existencial, e em que pontos da cena e do imaginário popular se interligam. E se há uma força no conjunto formado pelos cineastas André Novais Oliveira, Gabriel Martins e Maurílio Martins e o produtor Thiago Macêdo Correia, olhar mais de perto para cada um deles em suspensão nos faz entender o tamanho dessa força coletiva, bem como o porquê de ele ser tão forte também pelas particularidades das partes que o compõem.
A Filmes de Plástico tem uma carta ética/estética nítida, não por ser de intenções, e sim de bandeira fincada no coração de seu mundo. E se o coração do mundo é sempre o próximo lugar, cada filme realizado é como um desenho de itinerário inegociável, onde a Filmes parece querer estar e pisar, para onde esse desejo ético/estético a leva. Muito já se falou do quanto e de como a Filmes de Plástico coloca em cena a periferia e os corpos pretos e periféricos no centro da ação. E isso é mesmo um acontecimento forte, central e poderoso na cena cinematográfica brasileira contemporânea – que já nos legou nomes fundantes e cruciais nesse universo, como Zózimo Bulbul, Joel Zito Araújo, Tata Amaral e Carlos Reichenbach.
O cinema de Maurílio Martins está no cerne de uma constelação – e Constelações é o nome de um de seus filmes mais notáveis. Sua fabulação está fincada na construção desses pontos imaginários a alcançar, assim como na busca de sua materialização e no protagonismo da cena popular em sua dimensão mais profunda e complexa. A cada
1 Texto inédito, encomendado especialmente para este catálogo.
2 Adilson Marcelino é negro; jornalista, crítico e pesquisador de cinema brasileiro.
revisita aos filmes de Maurílio Martins, mais e mais se mostra esse estado de fé na vida, mas banhado igualmente pela melancolia, pela solidão e pela tristeza encharcada de cansaço – pelo que se sonha e pelo que se vive – e que também estão nele, no homem e no artista, ainda que submergidas por camadas de doçura e afeto, agigantando-o.
Depois de alguns exercícios cinematográficos, que valeria a pena Maurílio trazer à tona, ele se projetou dirigindo com o sócio e amigo Gabriel Martins o premiado curta Contagem (2010). Muito já se falou também sobre o encantamento do saudoso cineasta Carlos Reichenbach com o curta, que viu no 43º Festival de Cinema de Brasília, em que estava sendo homenageado. E daí não só conheceu Gabriel e Maurílio, como se empenhou em divulgar, fazendo contatos e escrevendo sobre o filme.
Contagem, como se deu com o eterno Olhos Livres Carlão, arrebata já em sua abertura, mostrando como paisagem da janela/laje uma imagem/visão/olhar acachapante da cidade homônima, revelando para os mineiros – inclusive para Belo Horizonte, a capital da região metropolitana da qual ela faz parte –, provavelmente para a própria Contagem, e, sobretudo, para o Brasil, que aquela geografia seria palco central de uma fabulação apaixonante. Os corpos e as corpas que protagonizariam aquele universo da Filmes de Plástico – também presentes no divertido Filme de Sábado (2009), de Gabriel Martins, e no genial Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira – reconfigurariam vários estados de coisas, com projeção que cruzou fronteiras, colhendo aplausos e prêmios nacionais e internacionais com esses filmes e os outros que viriam.
Se, no curta, o olhar multifacetado e a partir de perspectivas diferentes para o mesmo fato/recorte não é novo, causou arrebatamento a forma como ele foi construído e como aqueles personagens periféricos e aqueles corpos tornaram-se sujeitos e não mais objetos materializados de teses brancas de classes médias e altas, que vão à periferia fazer questionários vampiros a alimentar o projeto oficial e contínuo de extermínio do povo preto e periférico. Sem julgamentos, e também sem concessões, os diretores/roteiristas eternizaram aquelas personagens/pessoas: Ana, uma trocadora de ônibus (Kelly Crifer), Marcos, um desajustado (Leo Pyrata), Rose, uma cabeleireira (Bárbara Colen) e Miro, um trabalhador do comércio (Robert Frank). É importante assinalar, além dos seus méritos imediatos evidentes, o quanto a direção de arte assinada por Mariana Souto – e depois também por Tati Boaventura e Rimenna Procópio – tor-
nou-se fundamental para o que é a Filmes de Plástico e o universo em que habita e instituiu. A direção de arte dos filmes colocou as coisas de belezas acesas por dentro nas obras da Filmes – em Quinze (2014), atinge altíssima cepa –, como a reconhecer e a reconfigurar todo um imaginário periférico de significados e significantes formado por cortinas de flores, colchas chenille, vasos e adereços de plástico, bibelôs, filtros gastos de barro, imagens de santos, camisetas de serviços de bairro e de campanhas políticas. Assim também como a fotografia de bambas como Diogo Lisboa, Leonardo Feliciano e do próprio Gabriel Martins. E, por fim, nas trilhas sonoras, em que protagonizam canções populares incrustadas no imaginário, como “Lua Branca”, “Meu Mel”, “Ursinho Pimpão”, “Mordida de Amor”, “Olha”, “Saigon”, entre outras.
Um Homem que Voa: Nelson Prudêncio (2013) é mais um filme dirigido a quatro mãos, pois desta vez Maurílio se junta ao premiado cineasta Adirley Queirós, da Ceilândia (DF). É filme que tem na produção a importante e premiada Vânia Catani, realizado a partir de proposta selecionada pelo edital Memória do Esporte. O projeto do documentário nasceu para ser protagonizado por Nelson Prudêncio, com o próprio contando sua história, mas, infelizmente, ele faleceu antes. O roteiro teve que ser reescrito, ele continuou sendo o protagonista, mas agora também pela visão de outras pessoas, como a família e o ex-treinador. Nelson Prudêncio é uma estrela do esporte olímpico na modalidade salto triplo e, entre outros feitos, fez história nas Olimpíadas do México em 1968, quebrando recorde mundial e conquistando a medalha de prata. O que poderia ser um filme restrito aos aficionados pelo esporte e pela modalidade acaba por ganhar uma dimensão humanista que traduz seu personagem e sua história, traço que marca a obra dos dois cineastas. Há de destacar a presença luminosa de Carlos Francisco como o condutor do filme, fundamental em outras produções da Filmes de Plástico.
Os integrantes da Filmes de Plástico desempenham diferentes funções nos filmes uns dos outros, como montador, roteirista, fotógrafo, assistente de direção, ator, entre outras. Depois desses títulos, Quinze é o curta solo de Maurílio, filme que cresce a cada revisão. Ao circundar sua história entre o feijão – e a busca por ele – e também algum sonho, a partir do dia a dia difícil de uma diarista e os preparos para a festa de 15 anos de sua filha única, o filme traz para a Filmes de Plástico uma atriz que viria a ser fun-
damental para a produtora: a notável Rejane Faria, que estreitaria, cada vez mais no futuro, a relação cinematográfica com os três cineastas e o produtor. Além disso, trouxe também para seu universo Karine Teles – nascida em Petrópolis –, a protagonista do curta, que parece ter estado sempre naquela geografia, e que, por sua excelência artística, vem construindo uma carreira que já lhe garantiu o posto de uma das mais importantes atrizes do cinema brasileiro de sua geração. E ainda a bela revelação Malu Ramos – também inesquecível em Sandra Espera (2014), de Leonardo Amaral. Dedicado a Carlos Reichenbach – olha ele aí outra vez –, Quinze é um filme em que corpas periféricas e preta imperam em cena absolutamente, em uma construção de roteiro e de direção em que luta e sonho jamais se anulam, se opõem, ou o segundo vira alienação para o primeiro. Ao contrário, é apesar de tudo ainda apostar na vida, ou, pelo menos, em uma saída. E isso está materializado em cenas lindas como a da conversa no sofá entre mãe e filha sobre experiência sexual, que vai ecoar como faísca em No Coração do Mundo (2019), na brevíssima cena/conversa entre a mãe evangélica (Gláucia Vandeveld) e a filha menor de idade (outra vez, Malu Ramos): “E aí, como foi lá?”. E, ainda, em carga total na cena da rede em No Coração do Mundo, protagonizada por Grace Passô e Bárbara Colem, ponto altíssimo do longa.
Maurílio já disse que o curta Constelações (2016), que escreveu na Dinamarca, onde vive seu filho e sua ex-companheira, era o mais diferente de tudo o que já havia feito. Ainda que não se possa negligenciar o lugar de fala, há ali, talvez, um meio-termo de engano, pois nem totalmente lá, nem cá. Sim, temos uma nova geografia, é um filme de estrada, e há novos sujeitos. No entanto, é exatamente em Constelações que, por exemplo, os ecos de Contagem e Quinze concretizam-se de forma ainda mais contundente. As máscaras das personagens de Kelly Crifer em Contagem, de Karine Teles em Quinze e, por fim, de Stine Krog-Pedersen no curta são como constelações que contam, e registram, solidão, melancolias, tristezas e cansaços de séculos. O que faz dos cineastas/roteiristas dos três filmes um espanto no olhar acurado para o universo feminino, assim como para a direção de atrizes. Em Constelações, um homem brasileiro preto e uma dinamarquesa branca estão confinados em um carro, ora em movimento, ora parado na estrada. Ele, o motorista; ela, a carona. Eles não entendem o idioma um do outro, mas falam e se comunicam pelo sofrimento, pela solidão, pela melancolia,
pelo abandono, pela tristeza do cansaço, este estado último sobretudo por ele, que é, em meio ao seu drama pessoal, extorquido por um policial corrupto – eterna ameaça ao povo preto, seja pelo achincalhe, pela violência ou mesmo pelo extermínio.
Depois dos curtas vem No Coração do Mundo, o primeiro longa de Maurílio Martins, dirigido com Gabriel Martins, e que retoma os personagens dos curtas Contagem (dos dois) e Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides (2011, de Gabriel), e acrescenta outros, assim como novos entrechos e tramas. Os cinco personagens de Contagem – Ana e seu pai (Eid Ribeiro), Marcos, Rose e Miro – estão no longa em estágio anterior ao mostrado no curta. A eles somam-se Dona Sônia (Rute Jeremias), Beto (Renato Novaes), Selma (Grace Passô) e outros fortes personagens. No longa, vários deles circundam esse grupo central, todos moradores do bairro periférico onde a ação acontece. A introdução da personagem Selma vai nortear o ápice dos acontecimentos em violência, assim como os demais personagens, às voltas com sonhos utilitários e desilusões, que vão compondo, em constelações, confrontos, tensões e acontecimentos circundantes.
No Coração do Mundo já seduz na abertura aliciante e, a cada plano, vai tecendo sua história, sem medo de se valer de vários gêneros cinematográficos. É filme com presença e personagens masculinos importantes, só que, ainda assim, é uma obra notadamente de mulheres, em que todas elas, sejam atrizes ou personagens, desde as protagonistas, as secundárias e até as participações e pontas, estão absolutamente geniais. Importante ressaltar também, novamente, a presença de Carlos Reichenbach, que dá nome à escola da trama, configurando-se em mais uma bela homenagem para aquele que estava lá no princípio de tudo.
Incluindo Deus é um curta dirigido por Maurílio Martins em 2021. Os rituais para que os fiéis possam professar sua fé há muito que se valem da tecnologia e de práticas que povoam o imaginário popular brasileiro. Na época em que o rádio reinava, colocar um copo de água em cima dele durante a transmissão da missa era a garantia de a água estar benzida. Até pouco tempo, no reinado da TV aberta, o lugar no sofá aos domingos tomava ares de sagrado para que os fiéis pudessem rezar junto aos padres e pastores e assim cumprir seus ritos. Então, nenhuma dúvida de que, como para tantas
áreas da vida contemporânea, que vai do comércio às relações afetivas e ao sexo, o celular e as redes sociais tomassem o trono. No curta está em cena sua própria mãe, de 81 anos, que vive sozinha. Ela está à espera do culto que será transmitido pelo celular e troca algumas palavras com o filho. Quando a cerimônia começa, ela, com o véu na cabeça, prostra-se frente ao aparelho sobre a mesa, que se reconfigura como um altar. Em 11 minutos, Maurílio Martins consegue um resultado poderoso e capaz de suscitar sentimentos e questões que permeiam seu cinema, como a solidão, e também as adequações de sobrevivência. A tal fé na vida, de continuar, apesar de tudo, e sem abrir mão do tempo da delicadeza. Na sinopse, ele assinala que a mãe, que vive sozinha, tem aprendido novas formas de falar com o mundo, incluindo Deus. E a maneira como ele registra esse ato, que comporta um mundo em si, revela-se cinema inspiradíssimo e acachapante.
Maurílio Martins filmou mais um longa, o seu primeiro solo. Sabe-se que é sobre o universo juvenil, mas ainda não foi lançado. Vem aí mais um fruto de suas fascinantes e inquietantes constelações.
FAMÍLIA FEITIÇO: O CINEMA DE ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA1
Por Ana Júlia Silvino2
Em um corredor comum, de um quintal comum, de um bairro comum, de uma cidade comum, junto a um amontoado de telhas, algumas plantas e uma mangueira posta no muro de uma casa típica brasileira, Dona Zezé estende as roupas no varal. Com cuidado, posiciona uma a uma, assegurando-se de que os pregadores estão bem postos nas esquinas de cada peça. Repentinamente, um vento forte anuncia sua presença nesse espaço ao movimentar as plantas e as roupas. Um trovão instiga a personagem a olhar para o céu, na busca por uma fonte lógica para esse desequilíbrio no tempo. Entretanto, um cisco entra em seus olhos. Na incapacidade de ver, mas com uma confiança plena nos ouvidos que lhe informam da chegada iminente de uma ventania, Zezé caminha até as grades da janela à sua esquerda e se segura a elas com a mesma força dos pregadores de roupa que evitam que seus vestidos dancem pelo ar. Mas o vento consegue levantá-la da superfície. Em um segundo tudo é possível. Se as mãos de Zezé falham, ela pode voar como o caramujo que desaparece do chão de cimento batido. No entanto, isso não acontece. De repente, a vida volta à normalidade e seu primeiro instinto é aproveitar que a ventania secou as roupas para recolhê-las.
Essa cena em especial, extraída do curta-metragem Quintal (2015), de André Novais Oliveira, é um exemplo de como, em sua filmografia, a magia do cotidiano é fonte vital para dar continuidade às tarefas diárias. Não por acaso, o efeito fantástico do vento e do buraco de minhoca que abduz Norberto posteriormente, em outro corredor do quintal da casa da família, é menos transformador que a troca do horário do antidepressivo em O Dia que te Conheci (2023). Em Quintal, a ventania capaz de sustentar um
1 Texto inédito, encomendado especialmente para este catálogo.
2 Ana Júlia Silvino é crítica de cinema e editora da Revista Descompasso.
corpo por alguns segundos no ar e a viagem bidimensional passam despercebidas, ao ponto em que Zezé pode seguir com seus afazeres diários – refazer uma unha borrada, lavar o quintal e ir para a academia treinar à la Rocky Balboa – e Norberto pode ganhar confiança para apresentar sua tese de mestrado “Bundas e óleos: Introdução aos filmes pornôs americanos da década de 90 – uma abordagem estética”, como se aquele dia extraordinário fosse como qualquer outro. Na direção contrária, em O Dia que te Conheci, uma carona inesperada com uma mulher com o talento de entender as letras dos médicos faz com que o personagem passe a tomar seu antidepressivo no horário correto, na parte da tarde, fazendo com que ele seja capaz de despertar cedo pela manhã. Uma mudança radical. É certo que sua vida nunca mais será a mesma.
Na filmografia de André, as experimentações de linguagem possuem base em rastros e impressões, feitiços incorporados às vidas de gente comum. Desde seus primeiros filmes, a mineirice e o discurso cinematográfico são retratados como inseparáveis, um sustentando as proposições do outro. Em Fantasmas (2010), por exemplo, curta-metragem de plano único que retrata uma conversa entre dois amigos que, do fora-de-campo, esperam ver algo na esquina de um posto de gasolina, o efeito do cotidiano se mistura ao efeito do real. É a descrença de um dos personagens de que o posto de gasolina, em si mesmo, não é uma paisagem digna de ser retratada que nos instiga a pensar sobre o porquê da câmera. E diante das interferências na conversa entre os amigos – a cantoria do louco do bairro, o toque do telefone e o cachorro latindo – esperamos que alguma coisa também influencie e irrompa na ordem natural da imagem. A figura da ex-namorada, que aparece dentro de um carro naquela mesma esquina, e o zoom que a acompanha por alguns segundos são dispositivos de ruptura. Mesmo depois de encontrar o que se filma e evidenciá-lo, não há nada mais que se possa fazer além de preservar essa imagem e rebobiná-la com a esperança de que Camila permaneça aí. No cinema, todas as imagens se tornam fantasmagóricas.
Em uma direção semelhante, Domingo (2011) e Pouco mais de um mês (2013) também são experimentos sobre a linguagem cinematográfica e sua relação com a vida corriqueira. Em Domingo o som devolve e concede movimento a imagens estáticas, provocando sensações que se relacionam diretamente ao momento vivido. É possível ver uma foto de um homem na praia e escutar sua voz serpenteando entre os ruídos
do vento que nasce no mar, da mesma maneira que, em um casamento, escutamos a música da banda e o som dos convidados. Escutar a animação da torcida em um jogo de futebol e se imaginar aí, perto de todos, ou se imaginar junto ao público que ri frente a um clássico cinematográfico, um método usado no filme para evocar a imaginação. A recepção da espectadora e as imagens são apresentadas como elementos complementares e codependentes: um só existe em relação ao outro e compartilham uma porção de magia e segredo. Em Pouco mais de um mês, a luz da manhã escapa do blackout da cortina e projeta uma imagem invertida no teto do quarto. Esse momento, que muito se assemelha ao funcionamento de uma câmera obscura (aparelho óptico), é integrado à rotina de um casal que está começando a se conhecer. O que poderia, a princípio, se transformar em uma tese sobre o funcionamento da fotografia é apenas o quebra-gelo de uma conversa matinal. O cinema, nos filmes de André Novais Oliveira, só possui relevância se em respeito à vida.
Nesse sentido, em Rua Ataléia (2021) o cineasta experimenta ver a vida como textura. Feixes de luz e sombra movem-se por entre o espaço vazio, a distância entre os corpos do Pai e da Mãe. O casal espera, à luz de velas, a volta da energia elétrica no bairro. Uma leitura do terço e um diálogo ancorado no cuidado estabelece a relação entre os dois e entre eles e a câmera, objeto que se transforma cada vez mais em parte da família. Um confidente que atravessa, de certa maneira, a todos. Essa relação é trabalhada mais profundamente em Ela volta na quinta (2014), onde a busca pela poética se dá entre momentos de conexões e conflitos da e na base familiar. Por outro lado, os filmes Pai (2021) e Nossa Mãe era Atriz (2022) elevam essa proposição à enésima potência. No primeiro, a casa do pai, espaço que se repete dentro da filmografia de André, é retratada através de objetos esquecidos: um violão que estava há anos sem ser usado ou uma bucha de lavar louça posicionada entre as grades do quintal. No segundo, compilados de cenas icônicas de Dona Zezé e materiais brutos do making of de outros filmes são a base para um tributo a uma mãe que se descobre atriz aos 60 anos.
O interesse em capturar a memória como imagem-feitiço atravessa as linhas temporais de Quando Aqui (2024) e o silêncio fundacional de Temporada (2018). O último, ainda, dialoga com uma proposta recorrente em sua filmografia: a do recomeço. É certo que os medos de Juliana, em um cinema onde tudo é possível através da fabulação popular, reiteram sua posição de forasteira. Na ficção, sua postura receosa se transforma pouco a pouco para aderir aos feitiços: do amor, da amizade e da vida. O cinema de André é muito sobre isso: romper os limites do cinema para encontrar sementes férteis que brotam das rupturas. O gesto de devolver às vidas populares a dose de mistério e romance que parecem ser canibalizadas pelo trabalho. Abandonar a memória nostálgica para propor uma memória outra: palpável e, sobretudo, vívida.
O CÉU DE GABRIEL1
Por Juliana Costa2
O ano é 2009 e pela primeira vez vemos o rosto da baleia de plástico. Ela desce as escadas carregada pelo jovem que sonha em ter praia nos fundos de uma casa em Minas Gerais. Filme de Sábado (2009), de Gabriel Martins, primeiro filme assinado pela produtora Filmes de Plástico, é uma peça exemplar: a imagem que inaugura a cinematografia do coletivo, recém entendido como tal, é uma cena doméstica que remete às vistas lumièrianas. O começo de tudo. O cinema nasce para transcender o cotidiano em arte. Só após essa inauguração é que somos apresentados ao jovem entediado em uma tarde nublada, que ao ver um monte de areia no bairro onde mora, decide criar uma praia nos fundos de casa. Inicia assim a construção do cenário: carrega a areia até o pátio, abre um guarda-sol, uma cadeira de praia, brinquedos de plástico – entre eles a famosa baleia –, som artificial de ondas do mar, e mesmo “contrata” um ator para a sua encenação. Com o “set” montado, o golpe vem do céu. A chuva desaba e leva o sonho água abaixo. Mas o jovem tira um último artifício da manga: a luz de um refletor estoura no olho da câmera e faz-se o sol.
No início era o cinema: a maquinaria, a linguagem, os efeitos que incidirão no cotidiano, no familiar, no comunitário, pelos quais acontecerá a transmutação do ordinário em extraordinário. O pátio vira praia, o aparelho de som vira mar, o amigo vira ator por meio do artifício cinematográfico. Filme de Sábado já apresenta de partida este universo definido: o artifício que transforma a casa em cinema.
A CASA
A casa é o ambiente íntimo da família – instituição significativa na obra de Gabriel Martins. Lugar dos conflitos, das perdas, das confraternizações e das conciliações. É onde se passa o dia a dia, onde está a mesa das refeições e as fotografias na parede.
1 Texto encomendado especialmente para este catálogo.
2 Juliana Costa é crítica e pesquisadora de cinema. Editora do Zinematógrafo, fanzine impresso, e da revista online Abismu.
É na mesa que Bia (Clara Lima) confronta os pais com seu niilismo adolescente, em Nada (2017). É no jantar que Deivinho (Cícero Lucas) anuncia que não poderá participar da peneira para jogar no Cruzeiro, e na sala de estar que Eunice (Camila Damião) segura a mão de Joana (Ana Hilário), em Marte Um (2022). São as imagens estáticas e frontais de cômodos vazios que denunciam a ausência do filho e a solidão de Dona Sônia (Rute Jeremias) logo no início de Dona Sônia Pediu uma Arma para Seu Vizinho Alcides (2011). As paredes cruas testemunham a vulnerabilidade e a esperança no futuro da família de imigrantes haitianos em Terremoto (2022) e é a pintura da sala que promove o encontro cinematográfico do diretor com Shaolin, músico e obreiro, em Gabriel Shaolin Murdock (2009).
Extensão da casa é a escola, e pelo menos dois dos mais importantes filmes de Martins iniciam com cenas nesta instituição: Nada e Marte Um. A extensão familiar no universo escolar se dá também por um elemento extrafílmico. Os personagens que protagonizam as cenas são atores queridos e recorrentes nos filmes da produtora: Renato Novaes e Karine Telles. Ainda Rejane Faria, Carlos Francisco, Rute Jeremias e a Tartaruga Binha, entre outros, compõem um universo de personagens que dialogam e parecem interagir nas frestas que separam um filme do outro. A família se estabelece em frente e atrás das câmeras, em uma comunidade de cinema.
Comunidade que também é expressa no espaço urbano e nos personagens de Contagem. Cidade natal do cineasta, Contagem é a casa transmutada em cinema. Suas ruas, edifícios e rostos são retratados afetivamente em toda sua filmografia. De fato, o retrato, formato que remete à recordação familiar e também à identidade, é um recurso característico da filmografia de Martins. Seja no documentário, como em Terremoto, seja na ficção, como em Contagem (2010), No Coração do Mundo (2019) ou Dona Sônia, ou mesmo nos seus filmes mais experimentais, como Mundo Incrível Remix (2014), o personagem encara a câmera, posa para a fotografia, enquanto o cinema insiste em movimentar uma mecha de cabelo, uma árvore ao fundo ou captar uma expressão fugidia. Outra forma de nos apresentar a sua casa Contagem são os planos abertos sobre os telhados ou as fachadas das casas e as panorâmicas das ruas, que vão revelando metro a metro a paisagem urbana, mapeando a cidade como um grande cenário. Entre o retrato de família e a comunidade, a violência se interpõe. A opressão social
que acomete a periferia fere a instituição familiar, que algumas vezes pede vingança, outras, resiliência. No primeiro caso, Dona Sônia Pediu Uma Arma para Seu Vizinho Alcides e Rapsódia para o Homem Negro (2015). O dueto vingativo expressa a sua narrativa trágica por uma linguagem performática: o discurso direto do personagem para a câmera, o grafismo do sangue, a encenação do rito religioso. No segundo caso, os filmes-irmãos Contagem e No Coração do Mundo são mais comunitários do que familiares. Ainda que a violência também incida no ambiente doméstico, ela brota das ruas, das esquinas e dos arranha céus. Outro dueto possível no trato da violência no cinema de Gabriel Martins é Rapsódia e No Coração do Mundo, onde a luta de classes e a disputa pela cidade movimentam as narrativas com a luz mais escurecida do diretor mineiro.
Neste duro contexto as fotografias evocam a memória e os afetos perdidos. Gesto usual é o da mão do personagem sobre a fotografia, como quem afaga uma lembrança, como em Rapsódia Para o Homem Negro. Em Terremoto, uma criança fixa as memórias em uma parede ainda sem reboco, e abre um portal entre o passado e o futuro da família de haitianos, assim como uma foto antiga conecta Deivinho e seu avô na ancestralidade da invenção em Marte Um. Também o vídeo doméstico é elemento presente, associando o passado do diretor às suas fabulações. Tanto em Mundo Incrível Remix quanto em Dona Sônia, as imagens da infância e da adolescência de Martins irrompem nas narrativas com as texturas de câmeras digitais do início do século XXI, indicando a primeira geração que cresceu sendo registrada sem o limite do celuloide.
O ARTIFÍCIO
Mas não é apenas em frente a câmera que Gabriel se faz personagem. Se ele é o menino filmado, é também o homem que filma, aquele que vê e faz ver. Como nas cenas escolhidas para abertura de Filme de Sábado, a imagem que segue a da criança aprendendo a caminhar, temos o homem com a câmera, e logo após, o artifício olho-obturador. Mais uma vez o olho da câmera faz a passagem do passado para o futuro, e do dentro para o fora da casa. Em Mundo Incrível Remix, curta-metragem que experimenta uma narrativa de transcendência temporal, é o pai que aparece com a câmera na mão, registrando momentos domésticos e trazendo o mundo para dentro de casa com
as fotos de viagens de família. Já em Movimento (2022), filme de pandemia de Martins, é o diretor que aponta sua câmera fotográfica para o olho da objetiva, filmando a casa, a esposa e a filha. Mas aqui o artifício cinematográfico se apresenta na inserção das imagens do mundo no ambiente doméstico, não pelo registro documental das viagens, mas em um gesto de montagem que traz imagens dançantes da Internet para a narrativa.
O cinema de Gabriel Martins é doméstico e cinéfilo. De uma cinefilia que se alimenta de filmes, mas também das mil imagens que atravessam o cotidiano: da câmera 180° do O Crime do Monsieur Lange (Le Crime de Monsieur Lange, 1936), de Jean Renoir, aos closes que olham o céu, de Contatos Imediatos de Terceiro Grau (Close Encounters of the Third Kind, 1978), de Steven Spielberg, passando por referências da cultura pop, Corujão e Sessão da Tarde, programas de TV e visualidades digitais. Um pouco desta constelação pode ser vista no videoclipe O Sol Não Dá Ré (2016), da banda Djalma Não Entende de Política, em que Martins nos diverte (e se diverte) com uma colagem ritmada e hipnótica de fragmentos de imagens tão extravagantes quanto familiares.
Trazer o videoclipe para a filmografia de Gabriel Martins não é exagero. A música é um artifício significativo dos filmes do cineasta. Documentada em Pelos (2009), a música urbana emoldura sequências emblemáticas como as aberturas de No Coração do Mundo (2019), em que espaços e personagens da cidade são apresentados ao ritmo de Texas, de Mc Papo, e de Nada, onde Cabeça de Gelo, de Shalon Israel, embala um travelling panorâmico por uma avenida comercial. Com menos tempo de tela, mas igualmente impactante é Bomba Explode na Cabeça, de Mc Dodô, no final da cena do pacto entre Ana (Kelly Crifer) e Marcos (Leo Pyrata), em Contagem. A televisão e a Internet, epítomes da cultura pop, também são personagens frequentes. Não são poucas as vezes em que a tela da TV ou do computador é filmada como um recurso narrativo ou de ambientação no tempo e no espaço. Quando a tela é filmada como cenário, é marca do cotidiano familiar; quando é usada como imagem, é artifício de montagem. É assistindo a um jogo de futebol na televisão que o pai de Ana morre duas vezes em Contagem.
O artifício transforma a casa em espaço de sonho e transcendência. Em Filme de Sábado ela se torna praia, em Mundo Incrível Remix (2014), portal. É a luz que surge dentro da máquina de lavar que revela os segredos de um universo plástico e atemporal. A câmera lenta, a noite americana – recurso hollywoodiano por excelência – e os efeitos gráficos alteram o naturalismo de um cinema doméstico. Como em No Final do Mundo (2009), onde um vermelho inesperado no céu rompe com o documentário de observação e redireciona a narrativa para um final fantástico.
O CÉU
Mais uma vez Filme de Sábado nos dá uma pista para pensar a filmografia do diretor: ogolpe vem do céu. É a imagem do céu que recebe os fogos de artifício que comemoram as eleições de 2018, a mais dolorida de todos os tempos, em Marte Um. Mas é também em Marte Um que o céu é o ponto de conciliação da família e do sonho de Deivinho. Ao ver os planos dos pés de All Star dançando em Pelos, nos damos conta de que talvez seja uma das únicas vezes em que Martins filma o chão. Sua câmera ou aponta para cima, ou vem de cima, como nas inúmeras vezes que seus personagens olham para o céu.
Em Nada, de olhos fechados, dentro do quarto, Bia não pode olhar para o céu, mas os leões marinhos em No Final do Mundo podem. Rimenna Procópio volta do sonho, em que um raio atinge Contagem em Mundo Incrível Remix, com o rosto pintado de estrelas. Dona Sônia procura algo no teto antes de estraçalhar a cabeça do assassino de seu filho, assim como Marcos mira para o alto no final de Contagem É olhando pro céu que o casal faz planos no mesmo filme.
O céu como artifício do sonho,do cinema.O que transcende o cotidiano,o trabalho,a violência. O céu é o coração do mundo do cinema de Gabriel Martins, o próximo lugar onde se quer estar.
Marte Um (2022)
Nada (2017)
Mundo Incrível Remix (2014)
No Final do Mundo (2009),
CARTA ABERTA A THIAGO
MACÊDO CORREIA1
Por Bárbara Defanti2
Eu não sou roteirista, nem acadêmica. Eu sou produtora, e sou amiga do Thiago. Talvez esse texto esteja ao redor de outros com uma personalidade mais analítica, mas a minha fala aqui é menos cerebral, mais pessoal. Peço licença pra não fazer um artigo, e sim uma carta de agradecimento, deferimento e amor.
Thi,
Passei dias escrevendo rascunhos que destrinchavam as funções da produção, que nomeavam os seus quatro filmes selecionados em Cannes, listavam os mais de duzentos festivais, mencionavam a quantidade de créditos que você já tem, os prêmios e discursos que eu te vi fazer no palco do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro ou em grupos de Whatsapp, os feitos que te vi alcançar nesses quinze anos de produtora e oito anos em que nos conhecemos.
Fui pesquisando dados para trazer aqui. Ouvi numa live você fazer um agradecimento público ao João Vieira Jr3., que é uma inspiração e que foi para você quem quebrou a ideia de que os produtores estariam sempre competindo entre si, de que não havia parceria entre os pares. Você disse que foi quando aprendeu que “é possível fazer produção no afeto”. Pois, comigo, foi com você.
E, por conta disso, acabei recordando histórias, de dores compartilhadas, de rirmos de nós (e também de rirmos muito dos outros, vamos ter que assumir) e das
1 Texto inédito, oferecido pela autora para este catálogo.
2 Bárbara Defanti é uma produtora carioca. Produziu “O Clube dos Anjos”, “Kasa Branca”, “Verissimo”, e é coordenadora geral da mostra Filmes de Plástico - 15 anos.
3 João Vieira Jr. é um produtor pernambucano. Produziu “Cinema, Aspirinas e Urubus”, “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, e outros.
injeções de coragem e de ânimo que você sempre me deu, na maioria das vezes largando milhões de afazeres para passarmos horas no telefone – e até hoje você ainda sustenta o meu recorde de mais longa ligação da vida.
Pensei, na paralela, que esse nem deve ser o seu recorde, pois já vi também você extrapolar duas horas do horário previsto de uma consultoria para dialogar e ensinar curta-metragistas estreantes que você nem conhecia.
Notei que a sua experiência era algo que você saía mesmo oferecendo por aí, de maneira generosa, e fiquei feliz que a sua sapiência não era exclusividade dos seus próximos, e sim uma porta aberta para o compartilhamento sincero de um saber cinéfilo e prático a quem quer que seja.
Escrevi para os outros integrantes da produtora para ver o que eu poderia integrar ao texto. Falei também com outros de seus parceiros, suas amigas e sua mãe – sim, conversei com Dona Dircinha4! – buscando relatos.
Maurílio falou do seu senso de humor e da sua emotividade, apesar da pinta de durão. A Magela5 disse que você parte de um princípio de autenticidade e de dignidade. A Mari Macedo6 te definiu como alguém aberto à escuta e que não deixa ninguém sem retorno, seja uma opinião, um pedido, uma demanda. A tua mãe me mandou um áudio de seis minutos que terminei de ouvir emocionada e que, por sinal, começava com a frase “O Thiago é minha razão de viver e, se ele não fosse um bom filho, eu ia te falar”, me fazendo ver que a tua franqueza veio de berço.
O que recebi foi inspiração. O ímpeto de ninguém foi me dar uma simples informação, eram sempre retornos carregados de memórias carinhosas. As pessoas
4 Dircinha Macêdo fez aparições como atriz e participações nos filmes Marte um (Gabriel Martins, 2022), Temporada (André Novais Oliveira, 2018), No Coração do Mundo (Maurílio Martins e Gabriel Martins, 2019) e Quinze (Maurílio Martins, 2014).
5 Magela Cavalleri é assistente de produção na Filmes de Plástico.
6 Marianne Macedo Martins é assistente de direção dos filmes O Dia que te Conheci, de André Novais Oliveira, 2023 (em que também assina produção executiva), Marte Um, A Felicidade das Coisas (Thais Fujinaga, 2022), No Coração do Mundo e Temporada.
ficavam felizes de falar sobre você. O conjunto desses contatos acabou, portanto, definindo que o caminho desse texto era o de ser uma carta, cravejada de carinho.
A Luana Melgaço7 literalmente me disse “não adianta ter talento de produzir sem o senso de ética e de fidelidade que o Thiago tem”. Percebi então que o importante mesmo talvez fosse falar mais das suas características únicas, da trajetória pessoal, o que te tornou esse produtor desbravador de caminhos e inaugurador de precedentes.
Não dá pra quem você é hoje não ter a ver com você ter trabalhado de balconista de papelaria e de farmácia, de atendente de locadora e, obstinado, ter saído de Teófilo Otoni com vinte e um anos (e reforçando aqui que foi de Teófilo Otoni, não de Contagem, como já vi em alguns lugares), e ter conseguido um emprego na secretaria da Escola Livre de Cinema – onde também estudou e acabou por conhecer os três amigos que se tornariam sócios de um mesmo sonho.
Não tenho dúvida nenhuma que você é a pessoa mais destemida que eu já conheci. Em uma profissão cheia de inseguranças e incertezas – e, para não deprimir ninguém, nem vou ficar enumerando as responsabilidades que recaem sobre os ombros de um produtor, os impasses jurídicos, as questões financeiras, e tudo mais – poucas vezes vi alguém que finca tanto o pé nas suas convicções e visão estratégica e não arreda, independentemente do que aconteça.
Sempre achei que parte disso era porque, claro, os filmes dão muito certo e com isso você confia em si mesmo. Mas fui entendendo que é um ciclo vicioso do bem: é essa confiança de ter bons filmes que traz – e faz – os bons filmes. Que traz a alegria que a gente tem vendo a reação de alguém assistir aos filmes, que acende a paixão que faz a gente amar trabalhar com cinema autoral independente no Brasil.
7 Luana Melgaço é uma produtora mineira. Produziu A Cidade onde Envelheço (Marília Rocha, 2016), Girimunho (Helvécio Marins Jr. & Clarissa Campolina, 2011) e outros.
E nem é só o seu faro para as boas ideias – lembrando aqui que o que levantou o Marte Um foi a pergunta “E se o próximo Neymar quisesse na verdade ser astrofísico?” –, mas a maneira com que você, nessa confiança, nem cega e nem louca, as defende. Gabito falou algo bem parecido sobre a sua obstinação: “uma figura que praticamente não aceita o não”, no melhor do que essa expressão significa e que sei que você vai conseguir ler como um belo elogio. Porque você pode ser aguerrido, mas a guerra é pela liberdade de fazer o que se quer, a briga é pelo escalonamento das idealizações, o impulsionamento do talento dos parceiros.
Leo Mecchi8 falou reforçou isso também, sobre a sua vontade de acolher os desejos das pessoas.
Comecei lá em cima falando de generosidade, mas, para além da solidariedade ativa, tem também o fato de você existir pioneiramente – o exemplo, o que chamei de precedente. É muito forte presenciar a sua origem social e geográfica manifestada nos filmes. Porque a gente sabe que isso ressignifica a “imagem clássica” do cinema brasileiro para uma imagem periférica e realista do Brasil atual e, indo além, faz com que diferentes pessoas possam se enxergar e se reconhecer no audiovisual do país.
Eu assisti Marte Um no cinema com o Geovani Martins9. Na saída, o que ele comentou comigo foi a alegria de ver, nos créditos de um filme brasileiro, sobrenomes brasileiros. Porque não é por acaso que o Geovani comunga do mesmo sobrenome que Gabito, que Maurilio, e que meu pai. Isso é um sintoma muito direto da realização de aspirações que, se não fosse por você, não existiriam. Se não fosse isso, o audiovisual brasileiro dos últimos quinze anos seria menor, mais pobre, privado das sensações vastas e espaços inéditos que os filmes que você produziu inauguraram.
Ainda podemos presenciar a abertura agora da Malute, distribuidora da Filmes de Plástico. Cada dia é mais um passo natural na postura de confrontação da
8 Leonardo Mecchi é um produtor paulista. Produziu A Febre (Maya Da-Rin, 2019), Los Silencios (Beatriz Seigner, 2018) e outros.
9 Geovani Martins é um escritor carioca. Publicou os livros “O sol na cabeça” e “Via Ápia”.
hegemonia. Distribuir os seus e outros filmes significa reivindicar a ferramenta para espalhar essa representatividade, essa verdade, esse universo. O que acho que estamos vendo são vocês tentando matar um pouco da sede de querer proporcionar que os outros vivam os seus anseios.
Quem sabe isso aconteça porque você aprendeu a se dar ao direito também. Ser produtor exige muito tempo, dedicação, e a maioria das pessoas se consome.
Você, como bom capricorniano (não ia dar pra não mencionar, desculpa) se alimenta de trabalho, mas também não abre mão de viver, de entender que o cinema é sua vida, mas que as coisas e pessoas podem esperar, que você também vai viajar, ver todos os musicais que você tanto ama, comer das melhores comidas.
Quando você mudou pra Nova Iorque e eu, de supetão, fiquei surpresa, perguntei o porquê, se tinha um curso, um trabalho, um motivo, você me disse: “eu sempre tive esse sonho, se eu não for agora, não vou”. E foi.
Foi, viveu e voltou, porque cinema também é sonho. É seu sonho de criança, é o dos nossos amigos, é o de um monte de espectadores. Sonho que se vive junto.
E sonhar junto é bom demais. Devo dizer: é bem prazeroso assistir à história acontecendo ao vivo.
Obrigada, Abobrinha.
[REENQUADRAMENTO]
FILMES DE PLÁSTICO
E A DRAMÉDIA DAS NOSSAS DIÁSPORAS1
Por Grace Passô2
Ana, trocadora de ônibus, sentada numa cadeira de passageira, mirando a cidade passar pela janela, enquanto mira em si a tentativa frustrada de alcançar um sonho: o crime deu errado. É uma cena que acontece num momento chave de No Coração do Mundo (Maurílio Martins & Gabriel Martins, 2019). Até ali, vimos Ana (Kelly Crifer) trabalhando como cobradora, mas naquele momento ela é passageira, sentada noutro lugar do transporte, olhando pra si mesma enquanto a cidade passa do outro lado da janela.
Em Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010), a noção de duração é mais uma vez um instrumento que tensiona a linguagem dos filmes de André. Porque a duração do plano é um instrumento musical, é um pulso. E então, a melodia é construída, compondo a musicalidade do filme: uma conversa entre amigos em uma situação ficcional em que estão atrás de uma câmera, enquanto personagens e nós, espectadores, olhamos um comércio da cidade.
Em O Dia que te Conheci (André Novais Oliveira, 2023), o ônibus estraga. E enquanto espera o próximo, o protagonista aproveita pra comer um pastel do outro lado da avenida. Atravessar a cidade em busca de pastel, trabalho e amores: taí um belo dilema de Zeca (Renato Novaes).
A cidade, fundação dos afetos. É a terra: retorno e partida. O corpo da cidade não é feio ou bonito, é o que somos, o que querem fazer de nós, o que fazemos com o que
1 Texto inédito, elaborado especialmente para este catálogo.
2 Grace Passô é dramaturga, atriz e diretora de teatro e cinema. Atuou nos filmes No Coração do Mundo, Temporada e O Dia que te Conheci.
querem fazer de nós ao longo da história. Os dilemas diaspóricos atravessam nossos territórios e os constituem. Nossas gentes vão e vêm há tanto tempo, à procura de um lugar onde seja possível o coração bater melhor. Atravessamos cidades expulsas, sequestradas, amando, desejando, construindo, fundando comunidades em busca de nós mesmas e todas as gentes que isso abarca, nós queremos poder existir.
Os filmes que os artistas da Filmes de Plástico fazem evocam nossos dramas e comédias genuínas, são pura brasilidade, amefricanidade, latinidade, puro dilema diaspórico das nossas gentes.
E tem a simplicidade...
Já li coisas que apontam que alguns filmes da produtora têm como qualidade suas situações simples. Mas é preciso dizer aqui um fato importante: a simplicidade é a escolha de um povo, não uma consequência. Os sistemas humanos que nos globalizam, padronizam e higienizam traduzem como “simplicidade” o que é, simplesmente, “o outro”. E então respondemos com nossas identidades: é só a gente mesmo. As situações que a olhos distantes parecem “simplesmente simples”, sabemos, são as situações em que nossas identidades se expressam com liberdade. No olhar da vendedora de detergentes caseiros para o filho, sabemos, mora o átomo das nossas vidas.
E tem a atuação...
As pessoas que atuam na coleção de filmes da Filmes parecem dizer a quem assiste: você é um ator, uma atriz, atuante. Parecem dizer: esse pó que botaram pra envelhecer a tal da arte não nos pertence. Você não é padrão e nem quer ser, teu corpo existe, fala e é. Teu corpo é como a cidade: resultado do trânsito da sua história. E para quem atua, esse grupo tem escrito personagens com a heroicidade de se viver na teia de afetos das diásporas.
E tem o coletivo...
À Filmes de Plástico, uma carta pequena:
André, Gabito, Maurílio, Thiago e parcerias, Ninguém os descobriu, vocês não descobriram ninguém e ninguém descobriu o tal Brasil. Que vocês continuem existindo plenamente, Obrigada, obrigada por tanto.
Sim, é uma revolução o que vocês têm feito.
Com a estética revolucionária dos nossos territórios. Estou comovida, movida pelo que vejo (vocês me comovem). Existimos, ufa.
Um abraço apertado meu em cada um, Hoje, quarta-feira, em uma cidade, daqui.
ESPAÇO, VISUALIDADE E DIREÇÃO DE ARTE NA FILMES DE PLÁSTICO1
Por Mariana Souto2
Este ensaio se propõe a abordar a construção do espaço fílmico e da visualidade em alguns filmes da produtora Filmes de Plástico, observando especialmente (mas não apenas) a participação da direção de arte nesse processo. Entendo a direção de arte como departamento do cinema que deve conhecer profundamente os espaços, pensar as relações entre personagens e seus contextos e contribuir para a mise-en-scène. Alterno entre um olhar participante, de quem assinou a arte de algumas dessas produções, e uma mirada mais distanciada, de uma pesquisadora que empreende uma análise fílmica3. Reconhecendo a grande diversidade entre os filmes, assim como do estilo de cada um de seus diretores e diretoras de arte (Rimenna Procópio, Tati Boaventura, Diogo Hayashi), comento algumas características transversais no que se refere à espacialidade, à arquitetura local, ao uso das cores e dos objetos de cena.
Embora sua sede hoje seja em Belo Horizonte, a periferia é espaço central das obras da Filmes de Plástico. Isso reverbera nas preferências por locações e espaços reais para as filmagens, muitas vezes próximos do lugar de origem dos cineastas – isso quando não filmam as próprias casas, as de parentes e vizinhos. Esse expediente realista, contudo, não implica ausência do trabalho de direção de arte. Isso se dá em dois sentidos: por um lado, filmar em locação requer uma preparação daquele espaço para a câmera do cinema, o que envolve uma série de adaptações, transfor
mações e criações. Por outro, são vários os momentos em que a Filmes de Plástico se abre para licenças poéticas ou mesmo concilia o realismo com o fantástico.
Mesmo filmando em locação, muitas vezes por motivos logísticos, em alguns casos, aproveita-se apenas as paredes – que ainda assim são pintadas ou recebem efeitos de envelhecimento ou de infiltração. O espaço ganha móveis, cortinas, objetos, eletrodomésticos inteiramente pensados para aquela cena e aqueles personagens. Em Dona
Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides (Gabriel Martins, 2011), duas locações que, na diegese, se encontravam em locais antagônicos (o quarto da protagonista e a sala do assassino de seu filho), estavam na mesma construção, que funcionava, na realidade, como galpão com espaço para sala de aula (Fig. 1). Já a cozinha de Dona
Sônia se situava em outro lugar: uma casa desocupada do bairro Jardim Laguna, que sequer tinha teto. A possibilidade que o cinema tem de montar locais distintos como se fossem contíguos já era descrita por Kuleshov como “geografia criadora”. Assim, a Contagem da Filmes de Plástico é ao mesmo tempo a Contagem real e um espaço cinematográfico, imaginado, remodelado pelo cinema.
Enquanto algumas locações são inteiramente modificadas e compostas (em O Último Episódio, filme dirigido por Maurílio Martins ainda a ser lançado, montamos integralmente uma mercearia num galpão vazio que um dia já foi igreja e, em outra época, bar), outras recebem poucas alterações. Os dois casos se misturam organicamente nos filmes, já que muitas vezes, no cinema, a tarefa do departamento de arte é se fazer invisível, de tão integrado à proposta, e ocultar seu próprio trabalho. É um ofício que demanda muita observação, pesquisa de campo (usei algumas horas da pré-produção para caminhar e fotografar as ruas do bairro e suas texturas, cores, placas e soluções criativas) e, com frequência, produção de objetos realizada na própria vizinhança.
1 Texto inédito, encomendado especialmente para este catálogo.
2 Professora da graduação em Audiovisual e da pós-graduação em Comunicação da Universidade de Brasília. Doutora pela UFMG, pós-doc pela USP. Diretora de arte e curadora.
3 Os diretores de arte dos filmes mencionados são creditados junto às referências. Todo o departamento de arte, figurino e caracterização (assistentes, contrarregras, produtores de arte e de objetos,maquiadores, etc) colaborou para a construção da visualidade dos filmes.
Já em outras situações, a arte toma partido das licenças poéticas, da extravagância e do excesso. Em Quinze (Maurílio Martins, 2014), Raquel (Karine Teles) se empenha para promover uma festa de debutante para a filha, que na verdade nem deseja a festa tanto assim. Raquel deixa de pagar a conta de luz da casa para arcar com esse sonhado baile e, depois de tanto esforço e dedicação nos preparativos, vai se arrumar. Sem eletricidade, a casa está escura e o banho será gelado. O roteiro diz “Há velas iluminando
Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides (2011) e suas locações reais
o quarto”, ao que a direção de arte responde com dezenas de velas, de diferentes cores e tamanhos, propondo para aquela cena um caráter de ritual de preparação para essa mãe que se realiza na festa da filha. O filme culmina na valsa que dançam, na rua vazia, a mãe e sua namorada; a celebração é coroada por uma chuva de papel picado, que não estava prevista pelo roteiro e foi sugestão do departamento de arte (ideia que surgiu depois que Tati Boaventura e eu, as diretoras de arte do filme, fomos a um show apoteótico de Beyoncé no Mineirão). O filme se encerra sem que a festa sequer apareça, mas o clima festivo, a atmosfera de encantamento e o ritual de passagem se entranham na narrativa e permitem o desvio da verossimilhança.
Verossimilhança e realismo também importam pouco em Quintal (André Novais Oliveira, 2015). Um portal mágico se abre no quintal da família protagonista, composta pelos pais do cineasta, Zezé e Norberto, um casal de idosos. Norberto, que antes assistia a filmes pornô na sala, desaparece pelo buraco com aparência de espaço sideral. Enquanto isso, Zezé ganha liberdades: vai para a academia, levanta barras e halteres pesados, acompanhada por um instrutor de munhequeiras e regata cavada vermelha, enquanto vemos halterofilistas posando ao fundo. Ao final, Norberto retorna do sumiço e vai defender o mestrado. Como diretora de arte, lembro da graça de testar uma série de formatos de apresentações de Power Point com estética formal e os escritos Bundas e óleos, Bundas e óleos, Bundas e óleos, título da dissertação.
Os pesos e halteres, falsos, foram feitos de forma artesanal com cabo de vassoura e tinta metálica. O aspecto lúdico do filme remete à televisão dos anos 1980 e 90, de Chapolin Colorado e Telecurso 2000. E assim, o cinema dos diretores da Filmes de Plástico mescla, de forma muito peculiar, referências tão variadas quanto Chapolin e Charles Burnett, cinema de gênero hollywoodiano, Hermes e Renato e Yasujiro Ozu. Muitos de seus filmes são dedicados a Carlos Reinchenbach, o Carlão – presença sentida afetiva e esteticamente.
CORES E CROMOFILIA
O uso das cores se destaca desde Filme de sábado (Gabriel Martins, 2009), curta inaugural feito sem financiamento, que traz a presença da baleia de plástico que se
tornaria logo da produtora. No filme metalinguístico, um personagem entediado decide recriar uma praia no quintal de casa. Para isso, ele mobiliza recursos cinematográficos – o banco de áudio de ondas, os objetos praianos da arte, o figurino tropical, o casting do vendedor de picolé, a luz da fotografia – tal como um diretor de cinema orquestra uma cena. Escolhi objetos como regador, guarda-sol e brinquedos de plástico multicoloridos, de cores primárias, trazendo uma vibração para o ambiente – que era mesmo uma fantasia, uma miragem numa Minas Gerais tão distante do mar. Como boa produção de baixo orçamento, todos os objetos foram emprestados, com exceção do guarda-sol em vários tons de azul, que não abri mão de comprar porque precisava de um objeto que fosse vistoso e dialogasse com o imaginário náutico. No fim das contas, ele mereceu um plano só para ele (imagem).
Mais patentes ainda são as cores em Quinze, justamente pela proposta festiva já comentada, pelo universo tradicional de debutante (a mãe teria a referência estética dos anos 1990) que convoca a estética da princesa – optamos por um vestido rodado e com luvinhas. Rosa, laranja, lilás, amarelo, prateado se multiplicam em cores e brilhos. Maurílio Martins, Tati e eu prezávamos pela criação de uma periferia colorida, alegre, vibrante, distante das representações em bege, cinza ou monocromáticas de uma série de filmes brasileiros que se passam em comunidades ou bairros pobres. A aposta poderia ser caracterizada como “cromofilia”, conceito que antagoniza com o de “cromofobia” que David Batchelor utiliza para descrever o regime cromático ocidental contemporâneo. Para esse autor, vivemos em um mundo que teme a cor, associando-a negativamente à alteridade: ao feminino, ao infantil, ao cafona, ao vulgar, ao primitivo, ao oriental, à emoção. A falta de cor, por outro lado, remete a elegância, riqueza, sobriedade e racionalidade. Assim, muitas vezes se entende que a cor deve ser usada com parcimônia – não é o que acontece por aqui. As combinações de cores nem sempre são harmoniosas, o que acrescenta originalidade aos filmes.
A abundância cromática é marca especial nos filmes de Gabriel e Maurílio. Em No Coração do Mundo (Maurílio Martins e Gabriel Martins, 2019), Nada (Gabriel Martins, 2017) e Marte Um (Gabriel Martins, 2022), com direção de arte de Rimenna Procópio, dançam os enérgicos laranjas e roxos, amarelos e vermelhos, em contraposição aos azuis um pouco mais melancólicos dos filmes de André Novais Oliveira (especialmen-
Personagem abre o guarda-sol para a câmera em Filme de Sábado
te em Temporada, de 2018). Em O Último Episódio, veremos ainda mais cores, pois o filme se passa em 1991, com muitas referências dos anos 80, década que remete a uma visualidade mais colorida – basta ver nas fotos da época as tonalidades muito mais variadas que tinham os carros, por exemplo, hoje dominados por cinza, prata, preto e chumbo.
A pontuação da cor auxilia também no trabalho com o humor, que aparece, com certa sutileza, em vários dos filmes da produtora. O humor está na cenografia, nos objetos (como um grande relógio de pulso na parede) e na caracterização dos personagens, como Réguinaite, coadjuvante interpretado por André em No Coração do Mundo e que retorna como figurante no aniversário de Tércia em Marte Um. Nesse mesmo filme, Beto (Renato Novaes) usa um corte de cabelo que parece um camaleão, com patinhas que abraçam a cabeça (Fig. 4). Temos também o comentário irônico dos figurinos falsificados de Marcos e Selma, vestidos com blusas da Calvin Klein e Ferrari, respectivamente. Em Nada, a inconveniente coordenadora pedagógica é marcada por figurino laranja, maquiagem roxa e microfone a tiracolo. Algumas escolhas revelam a diversão e o prazer que os diretores e a equipe têm na elaboração dos filmes, ao mesmo tempo em que trazem uma dimensão sociocultural e econômica daquele universo. O olhar brinca com os personagens, revela o que têm de kitsch, sem deixar de vê-los com enorme afeto.
ARQUITETURA DA LAJE
Contagem (Maurílio Martins e Gabriel Martins, 2010), Quintal, Nada, No Coração do Mundo, Temporada começam, em suas primeiras imagens, com planos de observação da paisagem urbana periférica. Essas imagens retornam ao longo dos filmes, em câmeras fixas ou travellings que investigam a composição dos lugares: comércios, avenidas, pixações, texturas. As características do local se imprimem e se enraízam nos filmes de forma decisiva e estão longe de ser mero contexto ou palco das ações – ao contrário, atuam como parte ativa na narrativa. Os bairros Jardim Laguna e Amazonas, em Contagem, são inseparáveis das tramas que acolhem e da subjetividade dos personagens que os habitam.
Abundância cromática em Quinze e No Coração do Mundo
Corte de cabelo de Beto e figurino de Réguinaite em No coração do mundo (direção de arte Rimenna Procópio, figurino Tati Boaventura)
Locações recorrentes são o espaço da laje, do terraço ou do quintal, tão característico das casas brasileiras e meio-termo entre espaço doméstico e espaço urbano, entre privado e público. Cenas decisivas se passam nesses espaços liminares: comemorações, conversas importantes, decisões, momentos de contemplação (a festa de aniversário de Tércia em Marte Um, a abertura do portal em Quintal, a decisão de Ana de participar do assalto em No Coração do Mundo, o diálogo reflexivo entre Bia e Sweet sobre perspectivas de vida em Nada etc.). A partir deles, tem-se a vista da cidade. Ali, o espectador vê, na mesma composição, personagens, casa e entorno, e a relação tão entranhada entre esses três elementos é sublinhada.
A laje, espaço típico da periferia e muito comum no Laguna, tem enorme potencial cinematográfico. Jardim Laguna é um bairro que começou nos anos 1960, ocupado por uma população pobre que se via sem lugar nas áreas centrais da cidade4. As casas inicialmente eram feitas com telhado de amianto e, anos mais tarde, quando as famílias estavam um pouco mais estabelecidas financeiramente, “batiam laje”, seja para substituir o material anterior ou para criar as bases para o crescimento vertical das moradias, necessidade que surge com o crescimento da família ou o casamento dos filhos. As casas periféricas são construções muito vivas, transformam-se com frequência, parte do desejo dos habitantes de melhorar as residências quando entra algum dinheiro: reforma-se a cozinha, em outro momento constrói-se um novo banheiro etc. É comum ver, pelas texturas e materiais, que os cômodos datam de épocas diferentes e que as transformações são feitas de modo informal, sem apoio técnico. As casas têm um aspecto inacabado, provisório, heterogêneo. Em Ela Volta na Quinta (André Novais Oliveira, 2014), a casa de Renato é um “puxadinho” acima da dos pais, com entrada via quintal. Já na cena final, ele mora num apartamento branco e padronizado – sinal das transformações do tempo, de ascensão social, mas também de um mundo que ruma à cromofobia.
As constantes reformas são sinal da dedicação dos moradores aos seus lares, algo muito presente nos personagens da Filmes de Plástico, sejam de classe baixa ou média – a ação de varrer, por exemplo, é recorrente nos filmes de André. As casas muito
4 Para essas informações sobre as habitações do Jardim Laguna, consulto a dissertação de Natália Nadaleto, referenciada após o texto, que atuou como produtora de objetos de Marte Um e O Último Episódio.
arrumadas, asseadas e decoradas integram uma proposta de periferia bem cuidada, especialmente consciente no cinema de Maurílio Martins. Objetos, adornos, porcelanas, porta-retratos, cortinas estampadas e vasos de plantas estão por toda parte. O esmero no cuidado é tão visível quanto a limitação material; não é incomum vermos, por exemplo, uma parede sem pintura, mas com um quadro floral pendurado. Bastante frequente é a pintura com cal, solução econômica em relação à tinta e que deixa nas superfícies um efeito peculiar, dessaturado, com manchas características. O interior acolhedor das casas contrasta com um exterior duro, com fachadas de ásperos muros de chapisco e portões sólidos, provável medo da violência urbana.
Em Temporada, Juliana está em processo de mudança, numa casa ainda bem vazia, colchão no solo, mesa dobrável de bar. Em uma cena, vemos um monte de areia no canto do enquadramento (Fig 5). Materiais de construção e entulho povoam quintais e terraços de outros filmes, índice de espaços em permanente renovação. Em Filme de Sábado, o montinho de areia jogado na calçada do vizinho, provavelmente em obras, é o que permite a praia do protagonista. Gesto simbólico da Filmes de Plástico: a partir da matéria-prima da areia de construção, cria-se imagem, cria-se sonho, cria-se cinema.
Montes de areia em Temporada e Filme de Sábado
Diretores de arte dos filmes citados:
- Filme de Sábado, Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides, O Último Episódio: Mariana Souto
- Quinze, Quintal: Mariana Souto e Tati Boaventura
- No Coração do Mundo e Marte Um: Rimenna Procópio
- Nada: Rimenna Procópio e Tati Boaventura
- Ela Volta na Quinta: Tati Boaventura
- Temporada: Diogo Hayashi
Referências
BATCHELOR, David. Cromofobia. São Paulo: Editora Senac, 2007.
NADALETO, Natália. A apropriação feminina dos espaços domésticos em habitações de periferia. 2019. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura.
[TRAVELLING]
A FILMES DE PLÁSTICO E EU
Esta seção reúne testemunhos de familiares, profissionais ligados à trajetória da Filmes de Plástico e realizadores de vários estados brasileiros, cujo trabalho foi influenciado pela filmografia da produtora. Os depoimentos foram recolhidos em entrevistas realizadas por Renan Eduardo. A edição é de Renan Eduardo e Victor Guimarães. Decidimos preservar as marcas de oralidade e carinho presentes nas falas, com certo desrespeito à norma culta da língua, pois acreditamos que essa escolha é coerente com o trabalho da Filmes de Plástico.
Minha história com eles começou com o Maurilio. Eu conheci ele no final de 2002. Aí no início de 2003, eu fazia um curso e o Maurílio foi dar uma oficina de fotografia. Na época, ele fotografava casamentos e fazia pedagogia na UFMG e eu fazia um curso que era com a galera da Faculdade de Educação da UFMG. Ele foi dar essa oficina e a gente se aproximou muito conversando sobre música, sobre um monte de coisa. No começo, tinha uma coisa meio de juventude mesmo. Eu tinha muito mais certezas do que eu tenho hoje. Então, eu botava muita fé nesses projetos e por isso estava ali junto. No decorrer do caminho, eu fui estudando várias coisas. Fui estudar edição, sou de fotografia, estudei um monte de coisa… Acabei me habilitando em várias coisas e quando fui fazer com os amigos era meio que “pau pra toda obra” mesmo. Eu sei que não é todo mundo que botava muita fé no rolê, então a gente foi se habilitando em várias coisas pra não precisar de outras pessoas. Em No Coração do Mundo, por exemplo, além de atuar, eu fiz os efeitos especiais e a trilha sonora junto a outros integrantes da minha banda. Tem uma coisa que eu já falei muito com o Maurílio que é assim: tinha uma festa e tinham os donos dessa festa e, em determinado momento, a gente conseguiu entrar nessa festa. Aí, num outro determinado momento, a gente começou a botar
as músicas que estão tocando na festa. Agora, somos os donos da festa e não vamos sair, saca? Eu sinto isso pensando numa época em que a gente não tinha acesso a nada. Lembro de a gente lutar pra conseguir uma câmera emprestada e topar com pessoas que não botavam fé em confiar uma câmera na mão da gente. Eu penso a festa nesse sentido e no sentido de dizer daquilo que não estava sendo dito. Levar o bairro Laguna pra uma tela de cinema pelo mundo afora é um negócio muito foda! Dizer dessas outras belezas é um negócio muito forte. É bonito a gente ver que essa beleza também está sendo vista por muita gente.
KARINE TELES
Eu sou do interior do Rio de Janeiro e cresci num Conjunto Habitacional. Então esse lugar da periferia, de estar longe do centro e de se sentir longe dos acontecimentos é o lugar onde eu cresci também. O trabalho dos Filmes de Plástico é muito potente justamente por ter a sua autenticidade de falar muito de dentro ali do universo. De onde eles moravam, onde eles se formaram. Eu acredito muito nisso. Acho que quanto mais de dentro você fala, mais a chance de você chegar nas pessoas, chegar em todo mundo. No caso da Filmes, eu me identifico muito com as narrativas, com as personagens, com as interações entre as pessoas; a coisa do bairro e da vizinhança é muito o ambiente onde eu cresci. A gente se entende. Eu tenho uma troca muito fácil com o Maurílio. Quinze foi um roteiro com o qual me identifiquei. Eu entendia muito aquela situação, aquelas personagens, aquela vida e fiquei amarradona de fazer. Quando eu fui fazer o filme, eu fiquei hospedada na casa dos pais do Gabito, que são dois maravilhosos, e estava muito à vontade com eles e com a situação toda. Maurílio é um diretor muito certeiro no instinto, ele sabe muito o que ele quer. Também é muito generoso e aberto a trocar ideias. A gente conversou muito sobre as cenas, sobre o filme. Eu só tenho boas memórias. Foi emocionante fazer, estar ali em Contagem, morar ali naquele bairro por um tempo. Tem um lugar no cinema que eles fazem em termos de interpretação que me interessa muito. No Quinze, quando eu cheguei no set vestida com o figurino, o Maurílio não me reconheceu. Ele achou que eu era uma das pessoas ali do bairro. Isso me deixou feliz
porque eu sou uma das pessoas ali do bairro, entendeu? São poucas as vezes em que a gente pode ser a pessoa ali do bairro dentro de um trabalho que está falando com o mundo inteiro, que se comunica com qualquer lugar do mundo. Isso me emociona profundamente.
RIMENNA PROCÓPIO
Eu fui construindo meu trabalho artístico dentro da direção de arte, da cenografia e do figurino muito em ligação com o trabalho da Filmes de Plástico. Descobrindo coisas que me tocavam muito e que fazem parte da minha trajetória. Esse interesse pelas pessoas, por essas delicadezas e pelas sutilezas que os meninos e os projetos da Filmes têm, é algo muito genuíno pra mim. Eu faço cinema porque eu vou encontrar pessoas. Enquanto diretora de arte, muitas vezes eu vou pesquisar dentro da casa das pessoas, vou conhecer e lidar com coisas muito pessoais, ou pelo menos me inspirar nelas. Há um lugar de procurar essas belezas e olhar pra essas pessoas com delicadeza, com escuta. Pra mim isso é algo muito caro e acredito que pra eles também. Isso foi entrecruzando o nosso percurso. Eu lembro que a sessão de estreia do No Coração do Mundo foi no Shopping Contagem e estavam todas as pessoas do bairro Laguna. Eu estava sentada lá atrás e na fila da frente estavam uns adolescentes entre 17 e 19 anos, e eles ficaram vibrando e comemorando com várias cenas com as quais eles se identificavam. Lembro que comentaram, apontaram e riram alto o filme inteiro. Eu fiquei tipo num frenesi muito grande porque achava muito massa. Eu acho que isso é um campo de possibilidades não apenas estéticas, mas de ação, de possibilidade, de outras pessoas poderem fazer isso, pessoas que a gente ainda não vê no cinema, mas quer ver.
LEONARDO FELICIANO
Eu penso muito a fotografia e a textura da imagem do cinema brasileiro, sobretudo, na falta de uma palavra melhor, um certo cinema de periferia. Até por uma contradição na minha carreira, porque eu estudei na Polônia, que é
um estudo sobre luzes grandes, grandes difusões, uma certa visualidade que não tem nada a ver com o Brasil. Então, depois que eu voltei, tive um certo choque. A partir daí, passei a pensar muito nas texturas da periferia. Esse pensamento começa trabalhando com o Adirley Queirós, mas também ganha muita força com a Filmes de Plástico, porque os filmes dos meninos têm muito essa coisa dos bairros. Essas casas pequenas com muro colado na janela são de uma geografia muito peculiar. Quando a gente vai procurar uma locação, eu tento fugir de algumas coisas assim, porque não tem recuo pra colocar luz, mas eu quase nunca nego se for algo narrativamente muito importante. Eu encaro sempre na chave de entender a geografia e as texturas que são muito particulares pra eles, particulares dos espaços onde eles cresceram e estão filmando. Tem uma coisa de tentar fazer algo que seja orgânico. Penso em luzes que sejam orgânicas praqueles espaços e não numa técnica “x” que é comum no leste europeu ou nos Estados Unidos. O outro ponto é que eu sou muito “camaleônico” enquanto fotógrafo. Obviamente eu tenho técnicas, estilos que eu gosto de trabalhar sempre, mas se eu acho que não cabe no filme, eu não trabalho. Não tenho muito essa coisa de querer imprimir uma marca estética que se repita, que a pessoa veja o filme e saiba que sou eu. E eu acho que isso é muito bom pra eles. Porque os meninos têm técnicas e estilos muito diferentes. Por mais que tentem homogeneizar a produtora, cada um filma de um jeito. E, nesse sentido, meu estilo “camaleônico” é bom pra produtora. Tem algumas semelhanças entre eles na postura com a equipe, mas o tamanho das diferenças é muito mais eloquente. É curioso porque o Maurílio repete menos takes e isso é maravilhoso (risos). O Maurílio sempre fala “se foi bom, então foi bom”, e isso dá uma confiança pra equipe. Ele tem uma coisa mais “fanfarrona”, no melhor sentido possível. Leva o set de uma forma mais leve, mas tem uns momentos mais agudos. Enquanto o Gabito, pode até parecer contraditório, mas ele é um cara muito diplomata, muito sociável, mas eu vejo que ele carrega o tempo todo uma certa tensão; uma tensão boa, tensão da criação, tensão de fazer o melhor filme. Em comparação, eu acho que o Maurílio chega no set com uma ideia mais fixa do que ele quer. É muito mais sintético, o que tem a ver com ele gostar de fazer take único. Enquanto o Gabito, não é que ele não sabe o que quer, mas ele chega mais aberto pra
qual filme que pode surgir. Já o Thiago, tem a coisa daquele cara mais “produtorzão”: que vai ser a linha de frente, a cara da produtora nos projetos… Nessa dimensão de “produtorzão”, o Thiago é o melhor cara com quem eu já trabalhei. Ele é um cara muito apaixonado, ele sabe o que que ele quer e aonde que ele quer chegar. Ele entende também os sócios e companheiros que trabalham com ele. Entende no sentido de saber a joia que ele tem ali do lado dele. Então, acho que ele personifica muito bem essa cara e acho que ele é uma estrutura muito forte pros meninos.
Eu tenho um portfólio muito longo, que vai desde projetos mais “artesanais” até mais comerciais, mas minha referência sempre foi filmar muito fora e pouco em São Paulo. Isso também me trouxe uma certa sensibilidade, um encantamento que é o que me faz estar no cinema até hoje, que é saber onde você está chegando: olhar ao seu redor e entender o seu ambiente. Isso pra assistência de direção é maravilhoso porque eu tenho muito esse lugar de observar muito, poder chegar e contribuir entendendo o ritmo do lugar. Isso não exclui o fato de eu ser de fora e estar chegando em Contagem. A minha primeira sensação era de “caramba, eu não sei nada. Esses meninos vão me ensinar pra caramba”. Mas eles também pediam que eu trouxesse conhecimento, que eu trouxesse bagagem. E eu gosto desses desafios. Eu tive uma sensação chegando em Contagem de que se eu não sentasse numa mesa e não tomasse um cafezinho com eles, eles já não iam gostar de mim. Então, foi um banquete assim que a gente chegou. Meu companheiro é mineiro, então eu já sabia disso. Eles estão desconfiados, eles chegam muito de mansinho, então, eles também foram chegando, me tateando, mas a gente abriu a roda e eu comi horrores (risos), porque realmente faz parte da cultura mineira você sentar e conversar, senão você não está adaptado à cultura. É uma coisa que eu gosto de fazer e sempre tive essa sensibilidade em todos os projetos que eu faço, em todos os lugares que eu passo: olhar, entender, respeitar e escutar. Cada filme é uma exposição de quem dirige. É muito nítido. Talvez na Filmes de Plástico isso seja mais evidente, mas é muito nítido como o André fala, pensa, escreve
e isso é o que é o filme. Meu plano de filmagem pros filmes do André contempla os respiros que ele precisa, porque não tem saúde mental, saúde física pra aguentar um batidão de set. Meu cronograma de filmagem vai muito no ritmo dele, porque senão a gente não vai ter uma direção na qualidade que a gente e ele também quer. Eu não vou exigir do André uma correria que eu exijo do Maurílio e do Gabito. Eles exigem outro tipo de decupagem, postura e fala, que é uma outra energia. Meu plano de filmagem, meu cronograma vai de acordo com o ritmo deles de viver. Isso eu acho encantador da posição de assistente de direção. Você precisa conhecer onde você está, conhecer os trabalhos anteriores, enxergar como a direção se coloca, porque o filme acaba sendo a pessoa que dirige. Enquanto o filme está nascendo, a gente precisa estar aliada a isso.
Existe um senso comum de que a Filmes de Plástico trabalha com o cotidiano, com o banal, quando na verdade eu enxergo que eles trabalham com uma complexidade muito maior da existência humana. Quando eles colocam uma mulher negra comendo um sanduíche no meio da rua, eles estão trabalhando com uma subjetividade histórica que a gente não costuma ver. Aí você percebe que não tem nada de obviedade ou banalidade ali, mas sim uma reformulação desse corpo em tela. Eu acho que o feito de Gabriel, Maurílio, André e Thiago é causar essa afetação a partir de imagens que não existiam até então. As imagens da Filmes de Plástico só existem porque a Filmes de Plástico existe. Tem um trabalho do Stuart Hall sobre o cinema caribenho que ele diz que o cinema caribenho só mudou porque mudou quem faz esse enunciado. O cinema brasileiro mudou porque as condições materiais da sociedade brasileira projetaram a Filmes de Plástico. Não é nenhuma predestinação, mas as condições criaram o contexto para a Filmes de Plástico existir. Quando a Filmes de Plástico propõe um cinema, eles não propõem uma ideia de um cinema negro a partir da ideia de singularidade da minha experiência, mas eles propõem um cinema que causa identificação com outras pessoas. Porque o sentimento que pessoas negras sentem, é o sentimento que outras pessoas
também sentem. Quando chega essa perspectiva de cinema pra mim, é no sentido de imaginação, de propor outras formas de tempo pros meus personagens e pras minhas histórias. Se a gente for ver os filmes que eu realizei, tem muita proximidade com os filmes da produtora. Claro que só eles fazem filmes como eles fazem, mas, de alguma forma, a existência da Filmes atua como uma possibilidade de visibilidade, de distribuição e de circulação de cinema. Isso me faz pensar numa possibilidade própria de realização também. Eu sou um realizador que traz uma relação muito próxima da ideia de ficção.
Desde que eu comecei a pensar em roteiro, eu penso em ficção. Quando a Filmes de Plástico se firma na ideia da fabulação, eles abrem caminho pra uma outra coisa, não só assentada nessa responsabilidade de realizadores negros e periféricos de fazerem filmes sobre “a vida como ela é”. Se a gente pensar no Ela Volta na Quinta e no Pouco Mais de um Mês, eles têm um registro muito próximo do documental, mas que é ficção. É quase uma sátira em relação ao imaginário brasileiro sobre o que seria a ficção. Nesse sentido, a gente pode pensar que a Filmes de Plástico influencia a classificação de gênero do cinema brasileiro.
RENATO NOVAES
Eu fiquei muito feliz quando o Dé [André Novais Oliveira] começou a falar que ia fazer cinema. Lembro de falar que a gente ia dar conta, que ia fazer e acontecer pro Dé fazer cinema. Aí de tudo que eu tava vendo meu irmão fazer, eu pensava que alguma hora ele ia me chamar, alguma hora eu ia fazer uma ponta ali, de boa. Quando eu vi o Contagem eu fiquei muito fã de todo mundo que tava no filme. Eu fiquei fã do Leo Pyrata tipo de histeria mesmo, sabe? Queria conhecer todo mundo que estava no Contagem, fiquei maravilhado, eles se tornaram tipo uns ídolos pra mim. Eu lembro que vi o Contagem e pensava: “isso aqui eu consigo fazer! Pode me chamar”. Aí eu já não queria mais fazer uma figuração, eu já queria entrar naquele mundo. Por mais que tenha sido filmado no Laguna, uma outra Contagem em relação à que eu conhecia, ainda dialogava demais com a minha Contagem, com a minha juventude. Os caras conseguiram captar a minha cidade, a minha quebrada...
mesmo distante, a gente estava muito junto. Quando chegou o Ela Volta na Quinta, eu já tava preparado e levei com muita seriedade porque eu não sabia se ia ter outra chance. Eu fiz o filme não muito preocupado, mas fazendo o que o meu irmão queria. Nisso, eu aprendi um lance muito foda sobre a direção, principalmente trabalhando com meu irmão, porque eu confio tanto nele, não só nele, mas em todos os meninos, que o que eles falarem pra mim, eu faço. E a linguagem é isso que eu quero passar, isso que eu quero fazer. Me vejo apenas como um instrumento. Fico muito feliz quando eles me chamam pra contar as histórias deles, porque são as nossas histórias. Aí veio o convite do Maurílio e do Gabito pro No Coração do Mundo. O Dona Sônia Pediu uma Arma para o seu Vizinho Alcides, o Contagem e o No Coração do Mundo são uma atmosfera, só quem foi no bairro ou já conversou com as pessoas de lá vai entender. Realmente a gente fez um raio-x dessas pessoas e saber como contribuir pra isso me deixa muito feliz. O universo desses três filmes, pra mim, é muito especial, é um lugar tipo Nárnia mesmo… Eu participei daquilo ali, daquele ritmo, daquela quebrada, daquele jeito. Isso é muito doido porque dez anos atrás eu abri uma outra possibilidade pra minha vida, sabe? Talvez seja a coisa mais gostosa que eu já trabalhei. Eu já trabalhei com muitas coisas, mas a maioria eu odiei fazer, até chegar no cinema. Eu confesso que já fui muito mal remunerado e muito maltratado. Esses traços do racismo a gente às vezes só percebe depois. Mas enfim, dez anos atrás eu comecei uma nova carreira sem saber que era uma carreira. Eu tenho esse apreço por fazer parte desse turbilhão que é uma revolução e o quanto isso mudou… eu sou uma prova viva disso. Ao mesmo tempo, isso é um processo, uma caminhada, ninguém chegou a nenhum final ainda não. Mas é muito melhor caminhar desse jeito e com essas pessoas do que com outras ou então sozinho, porque o fazer sozinho não vira, né, mano? A revolução solitária não faz sentido não. Tem que levar um tanto de gente junto. A Filmes de Plástico é a seleção de 1970, o Cruzeiro de 2003, o Galo de 2021. O que eu vejo é a união de três diretores e um produtor muito fodas, com coisas verdadeiras pra falar… Que orgulho falar da Filmes e pensar naquilo que deu certo e prosperou. Ainda mais de onde a gente saiu. Lá atrás, bem no começo, eu lembro da nossa mãe virar pra mim e falar: “O Dé conheceu uma galera e esses meninos são de Contagem”.
Começou ali pra mim uma certa identificação de achar que tá acontecendo, sabe? Eu sempre soube que o Dé era um gênio, eu tenho isso pra mim e não vou largar de jeito nenhum. Um amigo nosso, que faleceu em 2019, sempre fala assim: “que bom que agora tem um tanto de gente conhecendo o tanto que o Dé é foda!”. Eu lembro que perguntei um pouco mais pra mãe sobre “esses caras” e ela respondeu assim: “eu conheci só o Gabriel e ele é da mesma cor que a gente”. A partir dali eu fiquei tranquilo.
EDUARDO VALENTE
Filme de Sábado foi o primeiro que eu vi, muito antes até de me dar conta que existia uma Filmes de Plástico, porque eu estava acompanhando o Festival Brasileiro de Cinema Universitário. Eu costumava acompanhar a Mostra Competitiva durante meus anos de graduação e, numa dessas oportunidades, Filme de Sábado foi exibido. Era um filme que já demonstrava a construção de um universo ficcional muito próprio. Um festival universitário é um lugar em que as pessoas geralmente estão descobrindo não apenas como fazer seus filmes, mas também qual é o seu olhar, qual é o seu interesse no cinema. Ainda assim, nesse filme já dava pra ver coisas muito sólidas que eles desenvolveriam depois. É um filme que me chamou muito a atenção nessa questão de maturidade de olhar, de um humor muito particular, de uma forma de encenar muito própria. Pouco tempo depois eu fui conhecendo um pouco do pessoal por meio da revista Filmes Polvo, que também escrevia sobre cinema, mas o André eu só fui conhecer depois, porque ele não escrevia crítica. O Fantasmas foi inscrito em Tiradentes ou na CineBH, não me lembro bem porque eu fazia curadoria dos dois festivais. Na época, recebíamos os curtas em DVD, ainda não era a época dos links. Então, íamos colocando os DVDs na máquina sem saber nada sobre os filmes e, de repente, tive uma grande surpresa positiva, uma verdadeira descoberta. Foi uma descoberta de um filme que se tornaria icônico não apenas pra carreira dos realizadores, mas também pro cinema brasileiro de curta-metragem. O filme apresentava uma forma inovadora de lidar com várias questões de linguagem que antecederam muitas coisas que seriam feitas posteriormente; uma inteligência muito particular em chamar a
atenção pro dispositivo e, ao mesmo tempo, contar uma história profundamente humana baseada nos sentimentos de um personagem, encenada por seus amigos. Pra nós que trabalhamos em curadoria, o maior desejo é sempre ter essas surpresas. Naquela época, eu ainda não conhecia o realizador, não tinha assistido ao seu curta anterior; a única coisa que aparecia era seu nome numa caixinha de DVD. De repente, em meio a dezenas de filmes, uns melhores e outros piores, surgem poucas surpresas. Quando isso acontece, é uma alegria imensa pra quem trabalha com curadoria, sentir que você está descobrindo um filme incrível e um talento promissor. Foi então que eu descobri, de fato, o André como realizador. A partir daí, passei a acompanhar seu desenvolvimento que, em 15 anos, mostrou-se muito mais forte do que qualquer um poderia imaginar, mas que, por outro lado, é muito coerente com o que já estava presente nesses primeiros filmes.
LINCOLN PÉRICLES
O primeiro filme que eu vi da Filmes de Plástico foi o Fantasmas. Foi um filme que me pegou demais, principalmente pelos assuntos que os amigos discutiam. Era algo muito próximo da minha realidade, até umas similaridades de dívida e de futebol. Foi algo que eu fiquei aficionado, nem tanto pela forma… A forma do Fantasmas, o plot twist e tudo que faz o filme ser genial, me pegaram depois. A forma do filme que, hoje em dia, eu vejo como tão importante quanto o assunto, foi algo que me pegou só depois. Eu lembro de ficar muito emocionado em assuntos muito banais que os personagens estavam discutindo. Os diálogos longos e as ideias que eles estavam trocando foi um bagulho que me pegou demais. E eu queria muito saber quem eram essas pessoas, porque eles estavam falando num sotaque muito próximo ao sotaque da família do meu pai, que é um sotaque mineiro de quebrada, e também sobre um assunto muito próximo ao que eu estava vivendo na minha quebrada.
O negócio é o seguinte: eu nunca imaginei que algum dia eu seria atriz. Nós viemos de Teófilo Otoni e então levávamos uma vidinha meio sem graça. Em
2005, Thiago resolveu ir pra Belo Horizonte e eu fui só dois anos depois. No começo não acontecia muita coisa porque ele só trabalhava em uma locadora, fez o curso na Escola Livre de Cinema, mas eu comecei a participar dos filmes mesmo só em 2014. Como eu falei antes, eu nunca imaginei que poderia participar de algum filme, isso nunca passou pela minha cabeça e as coisas só foram acontecendo, mas eu gostei muito de participar. No Ela Volta na Quinta, primeiro filme em que eu atuei, me chamaram praticamente na hora, aí o André Novais me entregou o texto e eu falei assim: “Ó André, eu vou falar do meu jeito, dentro do que tem que acontecer, mas eu vou falar do meu jeito!”. Porque eu não ia decorar… eu nem gosto de decorar. Eu sigo dentro do contexto, mas sem decorar. Aí eles gostaram e todo ano me chamam pra participar dos filmes. Nunca pensei em ser atriz, mas gosto de ser e, segundo eles falam, eu sou uma boa atriz. Eu vou acabar acreditando neles (risos).
NORBERTO NOVAIS OLIVEIRA
Tudo começou quando o André entrou na Escola Livre de Cinema e escreveu um filme, o primeiro que eu, minha esposa e o Renato [Novaes] participamos. A gente nunca tinha passado pela experiência de filmar, de ser ator. Aí o André escreveu e pediu pra nós atuarmos, mas a gente nunca tinha feito nada, nem sabíamos como lidar com isso. O André foi muito tranquilo, como geralmente é, e falou assim: “Pai, o negócio é o seguinte: eu estou escrevendo uma história que vocês vão participar, mas eu quero que vocês façam isso naturalmente, não quer dizer que vocês precisam seguir tudo que está no roteiro. Segue com a conversa que vocês têm no dia a dia e é só isso”. Aí aceitamos e ele foi nos orientando como fazer os diálogos e aí o negócio foi fluindo. Nós já viajamos bastante por aí com os filmes. Já fomos pra Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, mas o mais marcante pra mim foi o Festival de Cannes. Lá em Cannes foi interessantíssimo. O filme passou no festival e, depois, minha esposa e eu fomos pro hotel tomar banho antes de dar um passeio pelas ruas. Quando estávamos atravessando a rua, havia um grupo de aproximadamente 30 pessoas do outro lado. Assim que começamos a atravessar na faixa, aquele grupo começou a bater palmas. Olhei pra trás sem entender o que estava
acontecendo e, depois de um tempo, percebi que a manifestação era pra nós. Quando terminamos de atravessar a rua, eles vieram ao nosso encontro e nos parabenizaram pelo filme. Foi uma experiência muito legal e bacana. Tiraram fotos com a gente, foi incrível! Isso traz uma satisfação enorme pra nós, especialmente porque nunca pensei em fazer filmes, muito menos em ver meus filmes em festivais internacionais. Minha esposa adorava quando o set era na nossa casa! Já filmamos três filmes aqui e todos foram experiências maravilhosas. Temos um prazer imenso de estar perto deles e sempre ficamos muito orgulhosos, ainda mais ao ver o André dirigindo os filmes.
MARIA HERCULANA MARTINS
Os meninos são muito esforçados, eles trabalham muito. No começo tinha muita dificuldade, mas os primeiros filmes começaram aqui dentro da minha casa. Foi aqui no bairro e eu dispus da minha casa pra eles começarem a filmar. Eles começaram com muita garra, muita disposição, trabalhavam bastante e passavam a noite inteira filmando. Eu fiquei muito feliz em ver meu filho Maurílio trabalhando com o que sempre foi o sonho dele. Desde criança ele tinha vontade de fazer filme. Aquele filme que ele fez comigo aqui na minha casa (Incluindo Deus) foi quando ele estava aqui na pandemia. Eu sou da Congregação Cristã e os cultos eram online porque as igrejas estavam fechadas e ele me filmou. Até fiquei surpresa porque filmou o que eu estava fazendo. Quando eu ajoelhei pra orar, ele desligou e saiu. Eu gostei muito do filme! Ele é um menino muito bom, muito obediente, está sempre comigo apesar de viajar muito. Outro dia ele estava lá na China, eu fiquei bastante preocupada, mas tenho que me acostumar, né? (risos) Os filmes deles já estão na Europa, então tenho que acostumar, mas sempre confiando em Deus.
DE ASSIS
A nossa casa aqui em Contagem sempre foi um ponto de referência muito bacana de receber esses meninos no começo das atividades, no começo dos sonhos deles, das batalhas. Muito empolgados, mas muito sérios. Tudo que
eles fizeram sempre foi levado com muita seriedade, muito afinco. A gente sempre apoiou. Em alguns momentos até bancamos financeiramente algumas coisas, porque confiávamos e acreditávamos nesse sonho. Mas sempre foi muito empolgante e muito alegre. Eu costumo dizer que a alegria, pra mim, é a característica mais forte da Filmes de Plástico. Eu me lembro sempre de levar e buscar os meninos de carro do set de filmagem pra casa e isso era um motivo de grande alegria pra mim, porque esses meninos sempre vinham no carro numa empolgação, falando bastante, fazendo planos… e eu nunca vi eles reclamarem nem de cansaço, nem de ter que acordar cedo. Era sempre muita empolgação. O Filme de Sábado é um filme que eu amo de paixão, tenho um carinho enorme por ele porque ele é todo feito aqui em casa. Inclusive, ele mostra o estilo todinho da minha casa antes de a gente fazer algumas reformas, então eu tenho um carinho muito grande. Além disso, foi o primeiro curta mais elaborado que eles fizeram, mas ainda dentro dessa proposta deles, de eles por eles mesmos. Nesse filme, eu e meu marido viajaríamos no fim de semana e o Gabriel comentou assim: “Ô mãe, a gente vai fazer um filme aqui em casa e eu vou colocar areia no quintal. Tudo bem?”. E eu: “Areia? Quintal? Tá, né, mas assim, como que vai ser isso? Porque depois você vai tirar tudo né?!”. Aí nós saímos de casa e não acompanhamos nada das filmagens do Filme de Sábado, mas quando eu vi esse filme pronto eu fiquei muito emocionada. Eu acho esse filme lindo e já até perdi a conta de quantas vezes eu assisti. Depois tem o Mundo Incrivel Remix, que estamos presentes, é filmado também no quintal aqui de casa, a tartaruga é daqui de casa. Esse foi encantador porque vimos como que as coisas funcionam, como que o Gabriel assimila do mundo ao redor, capta com o talento que ele tem e reproduz no cinema. Ele, André e Maurílio têm essa pegada de, através dos filmes, passar uma sensação de cotidiano, valorizar o cotidiano em cada cena. A primeira imagem de Mundo Incrível Remix é de uma viagem que fizemos pra Los Angeles e eu acho muito bonito que o Gabriel fez essa filmagem já tendo a ideia do filme na cabeça. Teve algo muito legal também que foi a exibição em Tiradentes, porque foi exibido no Cine Praça. Então, a gente se ver e ver esse trabalho deles ali na praça foi muito bacana. Eu sempre fui muito envolvida com os filmes, sempre fiz de tudo: levava e buscava no set, fazia
almoço, gravava cena abrindo portão (risos). Eu gosto sempre de dizer que me encanta uma imagem que sempre se repete nos filmes deles: a laje que busca o horizonte. Daqui da minha casa, temos uma vista muito bonita e um pôr-do-sol maravilhoso e isso é reproduzido em vários dos filmes deles. Da laje você vê um lindo horizonte de periferia, isso é muito bem retratado em No Coração do Mundo e no Temporada. Eu digo que eles conseguiram levar Contagem pro mundo de uma forma muito bonita.
CRISTINA AMARAL
O primeiro filme que vi da Filmes de Plástico foi o Quintal. A sensação foi deliciosa, de encantamento com a originalidade, com o senso de humor, com a escrita já tão segura, porque sincera e própria. Já se via ali um cineasta com personalidade e olhar próprios, que não se apoiava em mimetismos ou fórmulas. Foi um sopro de esperança. O Andrezera tem uma qualidade que é fundamental à autoria, que é a sobriedade – ele sabe que a vaidade é vã e que a dúvida é essencial. Nesses anos todos ele tem aprimorado, de forma muito rigorosa e corajosa, o olhar, a escrita e o andamento de seus filmes. Como nos filmes clássicos japoneses e como no reggae, a sua simplicidade é uma aparência que engana aos incautos e às mentes preguiçosas, e oferece uma preciosa sofisticação aos que se propõem a dar um passo adiante. E faz parte de um grupo de realizadores e produtores que retomam uma postura essencial ao Cinema que é o fazer coletivo. A Filmes de Plástico expressa esse desejo de realização com afeto e competência. Cada filme é abraçado por todos, batalhando juntos desde a ideia inicial até o filme na tela. E com isso espraiaram o cinema pela cidade de Contagem, que ganha o espaço de existir nas telas do mundo. É o reflexo e o resultado de uma política pública que era urgente e necessária ao Brasil, que é ampliar, abrir espaço, retirar os impedimentos que haviam às múltiplas e belas expressões culturais do país.
[LONGAS]
ALIANÇA
GABRIEL MARTINS, JOÃO TOLEDO E LEONARDO AMARAL. BRASIL (2014) 79MIN. 16 ANOS
Pilo, Panda e Isaac são amigos de infância. Um deles decide pedir a namorada em casamento no mesmo dia em que os outros dois descobrem que ela está o traindo com seu instrutor de ginástica.
ELA VOLTA
NA QUINTA
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA. BRASIL (2014) 108MIN. 12 ANOS
Alguém partiu, alguém ficou.
MARTE UM
GABRIEL MARTINS. BRASIL
(2022) 112MIN. 16 ANOS
A família Martins vive tranquilamente nas margens de uma grande cidade brasileira após a decepcionante posse de um presidente extremista de extrema-direita. Sendo uma família negra de classe média baixa, eles sentem a tensão de sua nova realidade. Tércia, a mãe, reinterpreta seu mundo depois que um encontro inesperado a deixa se perguntando se ela é amaldiçoada. Seu marido, Wellington, coloca todas as suas esperanças na carreira de seu filho, Deivinho, que por pressão e querendo agradar o pai, segue as ambições dele, apesar de secretamente aspirar estudar astrofísica e colonizar Marte. Enquanto isso, a filha mais velha, Eunice, se apaixona por uma jovem de espírito livre e questiona se é hora de sair de casa.
NO CORAÇÃO
DO MUNDO
GABRIEL MARTINS E MAURÍLIO MARTINS.
BRASIL (2019) 120MIN. 16 ANOS
Na periferia de Contagem, Marcos busca uma saída para sua rotina de bicos e pequenos delitos. Surge uma oportunidade arriscada, mas que pode solucionar todos seus problemas. Para isso, ele precisa convencer sua namorada, Ana, a se juntarem a Selma e executarem o plano que pode mudar suas vidas para sempre.
TEMPORADA
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA. BRASIL (2018) 112MIN. 12 ANOS
Juliana está se mudando de Itaúna, no interior do estado, para a periferia de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, para trabalhar no combate a endemias na região. Em seu novo trabalho ela conhece pessoas e vive situações pouco usuais que começam a mudar sua vida. Ao mesmo tempo, ela enfrenta as dificuldades no relacionamento com seu marido, que também está prestes a se mudar para a cidade grande.
A FELICIDADE
DAS COISAS
THAIS FUJINAGA. BRASIL (2021) 87 MIN. 12 ANOS
Paula sonha em construir uma piscina para os filhos na sua modesta casa de praia. No entanto, seus planos se desfazem por conta de problemas financeiros, e ela se vê cada vez mais sufocada pelo peso das responsabilidades.
CARTA BRANCA
MAURÍLIO MARTINS
ALMA CORSÁRIA
CARLOS REICHENBACH. BRASIL (1993) 116MIN. 16 ANOS
Através da amizade de dois poetas, que lançam um livro a quatro mãos, o filme faz um inventário de três décadas da história brasileira.
CARTA BRANCA
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA
CABARET
MINEIRO
CARLOS ALBERTO PRATES CORREIA BRASIL (1984) 16 ANOS
Durante uma viagem de trem pelo norte de Minas, oaventureiro Paixão conhece Salinas, por quem se apaixona à primeira vista. Os dois se amam na cabine e, de manhã, ao acordar, ele percebe que ela não está mais lá. Paixão começa a viver as mais diversas aventuras amorosas, enquanto sonha com a amada que desapareceu de sua vida.
CARTA BRANCA
GABRIEL MARTINS
FAÇA A COISA CERTA
SPIKE LEE. EUA (1989) 120MIN. 14 ANOS
Sal, um ítalo-americano, é dono de uma pizzaria em Bedford-Stuyvesant, Brooklyn. Com predominância de negros e latinos, é uma das áreas mais pobres de Nova York. Ele é um cara boa praça, que comanda a pizzaria juntamente com Vito e Pino, seus filhos, além de ser ajudado por Mookie. Sal decora seu estabelecimento com fotografias de ídolos ítalo-americanos dos esportes e do cinema, o que desagrada sua freguesia. No dia mais quente do ano, Buggin' Out, o ativista local, vai até lá para comer uma fatia de pizza e reclama por não existirem negros na "Parede da Fama". Este incidente trivial é o ponto de partida para um efeito dominó, que não terminará bem.
CARTA BRANCA
THIAGO MACÊDO CORREIA
35 DOSES DE RUM
CLAIRE DENIS. FRANÇA/ALEMANHA (2008) 101MIN. 12 ANOS
O viúvo Lionel e sua filha Josephine têm fortes laços: o pai criou a filha sozinho após a morte da mulher. Lionel atrai a atenção de uma mulher de meia-idade e Josephine começa a sair com um taxista. Quando o rapaz se muda para o exterior, Lionel nota que a filha está amadurecendo. É hora de confrontar o passado.
[CURTAS]
SESSÃO QUINTAIS
FILME DE SÁBADO
GABRIEL MARTINS. BRASIL (2009) 18MIN. LIVRE
Em uma manhã de sábado, André teve uma ideia…
SESSÃO PELO MUNDO
GABRIEL SHAOLIN MORDOCK
GABRIEL MARTINS. BRASIL (2009) 19MIN. LIVRE
Mordock é cachorro. Shaolin é pedreiro. Gabriel é cineasta.
QUINTAL
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA. BRASIL (2015) 20MIN. 16 ANOS
Mais um dia na vida de um casal de idosos da periferia.
NO FINAL DO MUNDO
GABRIEL MARTINS. BRASIL, CHILE (2009) 5MIN. LIVRE
Meu encontro com o final do mundo.
CONSTELAÇÕES
MAURILIO MARTINS. BRASIL (2016) 25MIN. LIVRE
Dois estranhos em uma jornada noite – e alma –adentro.
MUNDO INCRÍVEL REMIX
GABRIEL MARTINS. BRASIL (2014) 24MIN. LIVRE
Uma tartaruga é dada de presente para uma família. Dizem ser ela a última encarnação de Jesus na Terra.
DOCUMENTANDO TRAJETÓRIAS
PELOS DE CACHORRO
GABRIEL MARTINS E MAURILIO MARTINS. BRASIL (2010) 15MIN. LIVRE
O rock desce o morro.
SESSÃO CRESCER
NOSSA MÃE ERA ATRIZ
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA E RENATO NOVAES. BRASIL (2023) 26MIN. 10 ANOS
Maria José Novais Oliveira, uma senhora negra, moradora da periferia de Contagem, já nos seus 60 anos se tornou atriz de cinema, com uma carreira premiada no Brasil e internacionalmente.
QUANDO AQUI
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA. BRASIL (2023) 30MIN. 14 ANOS
Viajar no tempo sem sair do lugar.
TERREMOTO
GABRIEL MARTINS. BRASIL (2022) 26MIN. 10 ANOS
Três irmãos Haitianos sobreviventes do terremoto de 2010 e recém-chegados ao Brasil, tentam se adaptar à vida escolar na periferia de Contagem enquanto o Brasil passa por uma de suas maiores crises econômicas e sanitárias.
NADA
GABRIEL MARTINS. BRASIL (2017) 27MIN. LIVRE
Bia acaba de fazer 18 anos. O final do ano se aproxima e junto dele o ENEM. A escola e os pais de Bia estão pressionando para que ela decida em qual curso vai se inscrever. Bia não quer fazer nada.
QUINZE
MAURILIO MARTINS. BRASIL (2014) 26MIN. 16 ANOS
Luiza fará 15 anos. Raquel tem alguns sonhos.
SESSÃO 35MM
SESSÃO O FIM E O INÍCIO
CONTAGEM
GABRIEL MARTINS, MAURILIO MARTINS. BRASIL (2010) 18MIN. 14 ANOS. 35MM
Um acontecimento, quatro pessoas e a cidade de Contagem.
DONA SÔNIA PEDIU UMA
ARMA PARA SEU VIZINHO
ACIDES
GABRIEL MARTINS. BRASIL (2011) 18MIN. 12 ANOS. 35MM
Dona Sônia quer vingança.
FANTASMAS
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA. BRASIL (2010) 11MIN. LIVRE
O fantasma da ex.
O DIA QUE TE CONHECI
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA. BRASIL (2023) 71MIN. 14 ANOS
Zeca todo dia tenta levantar cedinho pra pegar o ônibus e chegar na escola da cidade vizinha, onde trabalha com bibliotecário. Acordar cedo anda cada vez mais difícil, há algo que o impede de manter esse cotidiano. Um dia Zeca conhece Luisa.
POUCO MAIS DE UM MÊS
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA. BRASIL (2013) 23MIN. 12 ANOS. 35MM
No começo é assim mesmo.
SESSÃO FAMÍLIA
DOMINGO
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA . BRASIL (2011) 11MIN. LIVRE
Memórias de um domingo.
INCLUINDO DEUS
MAURÍLIO MARTINS. BRASIL (2021) 3MIN. LIVRE
Aos 81 anos, minha mãe vive sozinha. Ela tem aprendido novas formas de falar com o mundo, incluindo Deus.
PAI
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA. BRASIL (2020) 3MIN. LIVRE
A volta para casa.
RUA ATALÉIA
ANDRÉ NOVAIS OLIVEIRA. BRASIL (2021) 11MIN. 10 ANOS
Em uma noite sem luz em uma rua de um bairro de periferia, uma família aguarda o retorno da energia elétrica, rodeada por velas que iluminam conversas e pensamentos. Hoje, dez anos depois, a luz tenta impor o seu lugar perante as sombras da memória.
MOVIMENTO
GABRIEL MARTINS. BRASIL (2020) 11MIN. LIVRE
Tereza, nascida na pandemia do Coronavírus em 2020, é cuidada por seus pais Rimenna e Gabriel.
RAPSÓDIA PARA
O HOMEM NEGRO
GABRIEL MARTINS. BRASIL (2015) 24MIN. 14 ANOS
Odé é um homem negro. Seu irmão, Luiz, foi espancado até a morte durante um conflito em uma ocupação em Belo Horizonte.
SESSÃO PARCEIRAS I
ROMANCE
KARINE TELES. BRASIL (2021) 14MIN. 14 ANOS
Juliana quer ser livre numa sociedade que deseja a todo custo controlar as mulheres. O romantismo é a principal armadilha de captura. Será possível ser feliz sozinha?
BARONESA
JULIANA ANTUNES. BRASIL (2017) 70MIN. 16 ANOS
Andreia quer se mudar. Leid espera pelo marido preso. Vizinhas em um bairro na periferia de Belo Horizonte, elas tentam se desviar dos perigos de uma guerra do tráfico e evitar as tragédias trazidas junto com a chuva.
AFILMESDE PLÁSTICO é Andrezera, Gabito, Maurilove e Thi com a equipe Clara da Matta, Júlia Dara, Magela Cavalleri, Roberta Abreu
A SOBRETUDO PRODUÇÃO
é Abobrinha, Angelito e Vevê
MOSTRA FILMES DE PLÁSTICO
Produção Sobretudo Produção Coordenação geral e produção Bárbara Defanti
Coordenação de produção executiva Veronika Berg
CATÁLOGO
Coordenação editorial, revisão e tradução Victor Guimarães Textos de Adilson
Marcelino, Ana Júlia Silvino, Bárbara Defanti, Carlos Reichenbach, Claire Allouche, Grace Passô, Ivone Margulies, Juliana Costa, Maria Bogado, Mariana Souto, Victor Guimarães, Viviane Pistache Fotos Filmes de Plástico Leticia Marota Entrevista com a Filmes de Plástico por Renan Eduardo , Victor Guimarães Entrevistas por Renan Eduardo
Depoimentos de Beatriz de Assis, Cristina Amaral, Dircinha Macêdo, Eduardo Valente, Karine Teles, Leonardo Feliciano, Lincoln Péricles, Maria Herculana Martins, Marianne
Macedo Martins, Norberto Novais Oliveira, Rafael Luan, Renato Novaes, Rimenna Procópio, Robert Frank
VINHETA
Direção Marcelo Lin Fotografia Roberth Michael e Rafael Freire Som Artur Ranne
Ator Robert Frank
AGRADECIMENTOS
Angelo Defanti,Bruno Greco,CesarTurim,Cinemateca Brasileira,Cristina Alves,Daniel Queiroz,Elle Driver, Emmanuelle Deprats, Erika Fromm, Film Quarterly, Hugo Gurgel, Lygia Reichenbach, Luísa Lucciola , Luiza Vassalo, Margarida Maria,Mariana Souto,Marina Baião, Paula Ferraz,Park Circus,Projeto Paradiso,Sara Silveira, Sinny Comunicação, Txai Ferraz, TvZero