Jornal aGente - Ditadura e Comissão da Verdade

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aGente ANO 7 | NÚMERO 6 | NOVEMBRO 2012

MEMÓRIA E VERDADE

A Ditadura Militar ainda esconde seus segredos


aGente

memória e verdade

Ano 7 | Número 6 | Novembro 2012

Jornal aGente SUMÁRIO Observatório de Educação em Direitos Humanos http://www.unesp.br/observatorio_ses

Contato

oedh@unesp.br Produzido por alunos de Comunicação Social/Jornalismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Unesp/Bauru

Reitor

Julio Cezar Durigan

Diretor da FAAC

Roberto Deganutti

Coordenação do Curso de Jornalismo

Juarez Tadeu de Paula Xavier

Professores Orientadores Ângelo Sottovia Aranha Tássia Zanini

Reportagens

Aline Ramos Arthur Ferreira Felipe Amaral Fernando Martins Gabriel Cortez Jéssica Frabetti Lucas Vieira Solon Neto Thales Schmidt Vinicius Martins

Coordenação e Diagramação

Vinicius Martins

Supervisão Geral

Clodoaldo Meneguello Cardoso

Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação - Unesp Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, nº14-01 CEP 17.003-360 - Vargem Limpa - Bauru-SP

EDITORIAL N a segunda metade do século XX, a América Latina foi tomada por regimes autoritários, ditaduras lideradas por militares. Tempos difíceis vieram para as sociedades atingidas. A censura política e cultural aliada à violência foram os principais instrumentos de força adotados por esses governos. Ditaduras de países vizinhos, como Chile e Argentina, foram responsáveis pela tortura, morte e desaparecimento de milhares de pessoas. Aqui, no Brasil, não foi diferente. Estima-se que a tortura ultrapassou a casa dos 20000 casos. Mas e o que nós, a sociedade, temos com isso? O Brasil é o último país do continente a instituir uma Comissão da Verdade para apurar e analisar crimes cometidos pelo Estado durante o período militar. Desde o fim do regime, muitos casos de violações dos Direitos Humanos entre 1964 e 1985 permanecem nas sombras, sem solução alguma. A sociedade tem o direito à

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memória e à verdade, a sociedade tem o direito de conhecer a verdadeira história de um período tão importante e tão obscuro da vida política brasileira. Mostrar a realidade dos 21 anos de regime militar será a missão da Comissão Nacional da Verdade e de tantas outras comissões que surgem pelo país. Só dessa forma podemos seguir adiante, sem vergonha de um passado manchado. Só assim continuaremos zelando por nossa democracia, pelo espaço de livre expressão e opinião. Para que anos tão terríveis não se repitam em nossa história. Ainda vivemos muitas lutas diárias contra o próprio pensamento autoritário, que insiste em permear setores da sociedade e contra desigualdades e injustiças. Estudar o passado e reconhecer os erros cometidos é fundamental para que possamos entender a vida na sociedade atual e o nosso papel dentro dela.

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Por que ditadura militar? Cultura e o resgate da memória

PELOTÃO...

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“A Brasa” Polícia Militar e ditadura

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Ditaduras na América Latina Cultura e censura Frente Anticomunista de Bauru O anticomunismo Tortura e desaparecimento Escrachos Comissão da Verdade Os números do regime

Movimentos Sociais Casa da Eny Entrevista: Nando, o irmão de Zico

Anistia? O que é? Justiçamentos Ensino da ditadura nas escolas O que restou em Bauru?

AINDA NÃO MUDOU por Klaus Aires

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a ditadura, o que foi de gente reprimida, punida, marcada, torturada, presa e que teve sua vida rompida foi uma coisa impressionante. Pouco ou nada se escreveu sobre essa época. Uma nebulosa ainda obscurece os acontecimentos da ditadura, pouco sabemos e pouco procuramos saber sobre esse período que representa tanto atraso. As ações do Estado trouxeram consequências profundas para a sociedade, sentidas a longo prazo e, muitas vezes, não percebidas diretamente como associadas ao regime. A ditadura militar no Brasil teve início no dia 1º de abril de 1964, depois de um golpe das Forças Armadas contra o então presidente do país,

O QUE É DITADURA?

Termo usado para designar governos não democráticos, nos quais existe a concentração do poder em uma única pessoa ou em um pequeno grupo. Nesse tipo de regime não há respeito pelas leis e pelas liberdades da população.

O QUE É GOLPE MILITAR? Um golpe militar acontece quando as Forças Armadas tiram do poder do governante do país e passam a ocupar seu cargo e a governar conforme seus interesses.

SENTIDO!

por Felipe Amaral

João Goulart. Na época, os militares chamaram o golpe de revolução e o justificaram afirmando que Goulart estava transformando o Brasil em um país comunista, principalmente porque prometia implantar um conjunto de mudanças que incluíam reformas de base. As elites não ficaram satisfeitas com a ideia. Os militares criaram uma junta militar, que assumiu o controle até o dia 15 de abril, quando o marechal Humberto de Alencar Castello Branco foi nomeado como presidente, após eleição no Congresso realizada quatro dias antes. Ao contrário das ditaduras tradicionais, a brasileira não contou com um único presidente com mandato por tempo indeterminado. Ao todo, foram cinco presidentes militares eleitos indiretamente entre 1964 e 1985. Eram eles: Humberto de Alencar Castello Branco (1964 - 1967), Arthur da Costa e Silva (1967 - 1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974 - 1979) e João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979 - 1985), aquele que disse preferir cavalos à pessoas. Assim que o novo governo se estabilizou, os militares começaram a emitir os chamados Atos Instuticionais (AIs), medidas que tentavam legitimar o golpe. Os 17 atos diminuíram as liberdades da população, caracterizando a ditadura. A violência e a redução dos direitos dos cidadãos aumentaram com a implantação do AI-5. Com essa medida, ficou

mais fácil para os militares cassar direitos políticos, censurar a imprensa e restringir a defesa de acusados, por exemplo. Nesse período o Congresso Nacional ficou aberto na maior parte do tempo, porém os parlamentares não tinham mais autonomia. Quando algum deputado denunciava o governo, ele era cassado. Essa censura não ficou apenas no Congresso, universitários e operários foram os que mais sofreram nas mãos do governo, que chegou até a fechar a UnB (Universidade de Brasilia) por considerar os estudantes subversivos. Apesar dos protestos ocorridos, a ditadura ainda teve popularidade, especialmente por causa do milagre econômico que ocorreu na época, porém, logo esse período passou

e as greves e protestos voltaram. A solução encontrada pelo então presidente Ernesto Geisel foi abrandar a repressão. A ditadura deu início a uma transição gradual para a democracia O Brasil tem uma cultura política de não se falar nas torturas ocorridas no passado. Em 1888, nós proibimos um crime coletivo, a escravidão. Dessa época, por exemplo, sabe-se no máximo 10% do que aconteceu e não queremos saber mais. Durante quase quatro séculos, 5 milhões de negros foram escravizados, não foram dois ou três. Esse não é um exemplo a se seguir, não podemos apagar a ditadura como fizemos com a escravidão, é preciso estar atento, até porque não se sabe quando uma nova ditadura pode surgir.

CULTURA RESGATA MEMÓRIAS DA REPRESSÃO por Vinicius Martins

Para estimular o debate, iniciativa cultural ajuda a retratar histórias da ditadura

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ntes mesmo do nome “Comissão da Verdade” ganhar força na política nacional, alguns setores da sociedade já se mobilizavam para discutir o período de repressão no Brasil. Uma das bandeiras que promovem o resgate histórico dos 21 anos de chumbo do país foi levantada pelos agentes culturais. Desde 1985, o cinema, o teatro e a literatura abordam assuntos como o debate político, que desencadeou a Ditadura Militar, a tortura, o desaparecimento de opositores do Estado, a Anistia e as Diretas Já. O projeto Memórias da Resistência é um exemplo desse resga-

te histórico-cultural do período. A iniciativa foi idealizada a partir da história de Cleiton Oliveira. Em 2007, o estudante de História e cortador de cana descobriu arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em uma casa abandonada no meio de um canavial. O local fica na cidade de Jaborandí-SP, em uma fazenda que pertenceu a um ex-delegado do departamento. Em 2009, por meio do edital Mídias Livres, do Ministério da Cultura, Tito Bellini, professor de Cleiton, idealizou o projeto e decidiu inscrevê-lo para continuar as pesquisas sobre os arquivos.

Dessa forma seria possível aumentar a visibilidade e a discussão acerca do tema. Memórias da Resistência consiste em filme, livro, site e boletins bimestrais. Marco Escrivão, diretor do documentário, reforça a importância dos arquivos encontrados e a meta do projeto: “o principal objetivo é dar visibilidade àquele achado, que era inédito até então, segundo a própria historiadora do Arquivo Público de São Paulo. E, como consequência, fomentar o debate a respeito do resgate da memória”. Marco destaca não só o projeto, mas também o valor geral

da cultura no resgate de histórias da Ditadura Militar, desconhecidas para a sociedade. “A cultura é o instrumento de identidade de um povo, é dela que emanam as reflexões sobre as conjunturas da sociedade, logo seu principal trabalho é cutucar as feridas, mexer e fazer doer para que elas efetivamente possam ser curadas e não escondidas”, considera, lembrando que “para entender os problemas brasileiros atuais, seja a questão agrária, política, de segurança ou da educação, é preciso, em primeiro lugar, entender de onde esses problemas vieram”.

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A GRANDE ONDA DITATORIAL

FRENTE ANTICOMUNISTA JÁ AGIA ANTES DO GOLPE

Sequência de golpes militares colocou ditadores latinos no poder

A perseguição e o fanatismo dos conservadores de Silvio Marques

sie Jane Vieira de Sousa, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e estudiosa da história da América. Além do apoio dos EUA, empresas e setores da sociedade brasileira também chegaram a contribuir com recursos para os aparatos repressivos da ditadura. Um dos casos mais emblemáticos é do Grupo Folha, que emprestou carros para que policiais realizassem buscas de presos políticos. Jesse Jane comenta o apoio civil aos militares “Alguns setores empresariais, na mídia particularmente, foram absolutamente alinhados com a ditadura militar”.

Foto: Biblioteca del Congreso Nacional de Chile

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ditadura militar brasileira não foi um caso isolado. Na segunda metade do século XX a América Latina passou por uma série de golpes de Estado organizados em sua maioria por militares. Para praticar essas ações, uma suposta luta contra o comunismo foi a justificativa utilizada. A violência e a rebelião do exército foram as maneiras utilizadas para derrubar presidentes eleitos democraticamente no continente. Alguns episódios da época foram marcos para a história da América Latina. O professor do Departamento de Ciências Humanas da Unesp Bauru, e estudioso da América Latina, Luiz Fernando da Silva considera que o Golpe Militar nacional foi um evento chave: “o marco principal dos golpes militares na América Latina inicia-se em março 1964 com o golpe no Brasil”. Outro movimento importante foi a Revolução Cubana liderada por Fidel Castro, os revolucionários da ilha caribenha derrubaram o ditador Fulgencio Batista e depois declararam que o novo governo cubano seria comunista. O episódio incomodou os Estados Unidos, que passaram a enxergar a América Latina como um importante palco da Guerra Fria. A preocupação

Ataque ao palácio “La Moneda”, sede do governo chileno, durante o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende em 1973

norte-americana se traduziu em esforços para derrubar os governos vistos como contrários aos seus interesses comerciais e ideológicos.

Violência patrocinada

Os Estados Unidos e setores da sociedade formaram uma importante base de apoio dos regimes autoritários. Um dos principais instrumentos dos EUA para interferir na região foi a Escola das Américas, instituição de ensino militar localizada no Panamá onde era reali-

O QUE É GUERRA FRIA? Guerra Fria é a designação atribuída ao período histórico de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética, compreendendo o período entre o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991). Em resumo, foi um conflito de ordem política, militar, tecnológica, econômica, social e ideológica entre as duas nações e suas zonas de influência.

zado o treinamento de oficiais de vários países latino-americanos. A casa foi responsável pela formação de importantes figuras das ditaduras da época, como o ditador militar Leopoldo Galtieri, presidente da Argentina entre 1982 e 1983. “Hoje não resta dúvida alguma, na medida em que a documentação do Pentágono e do Departamento de Estado dos EUA está sendo aberta, da participação norte americana nesses processos de ditadura. Ninguém nega isso mais”, afirma Jes-

O GOLPE CONTRA A CULTURA

por Solon Neto

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O controle ideológico da censura sobre os movimentos culturais

m dos pontos mais marcantes do período ditatorial no Brasil foi a censura aplicada aos meios de comunicação e, principalmente, às artes. Quase tudo que era produzido pelos meios de comunicação e pelos produtores culturais, que abrangiam, entre outros, cinema, música e teatro, passava pelo crivo da censura. A censura no Brasil é quase uma tradição que vem desde o século XIX, mas estruturou-se apenas em 1946, potencializada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Os militares, essencialmente a partir do ano de 1968 com o Ato Institucional nº5, acrescentaram outras leis e reformas administrativas para que a censura pudesse agir no plano moral, político e ideológico. Era uma atuação ferrenha, que buscava formatar o que era veiculado pela imprensa, e pelos meios de

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cultura, às ideologias do regime militar. Esse regime fechado obrigava os artistas, principalmente os com engajamento político, a “falarem pelas entrelinhas”. Foi assim com músicas como a famosa “Para não dizer que não falei das Flores”, de Geraldo Vandré, ou com “Roda Viva”, de Chico Buarque. A biografia de Chico Buarque, escrita por Regina Zappa, demonstra que Chico não tinha tanto envolvimento com a militância política, assim como admitiu em entrevistas recentes, como no documentário “Uma Noite em 67”. De fato, nem sempre era necessário que o artista tivesse engajamento político para que fosse censurado. É o caso de Odair José, famoso músico que protagonizou um dos momentos mais enigmáticos da censura. Uma de suas músicas,

“Uma Vida Só”, também conhecida pelo refrão “Pare de Tomar a Pílula” foi censurada pelo governo. Ele conta que suas músicas falavam muito sobre o cotidiano das pessoas, e o tema da “pílula” era um tabu: “o anti-concepcional era um grande tabu na cabeça das pessoas. Ninguém falava do assunto confortavelmente, era como uma coisa proibida, e foi observando essa desconfiança popular que resolvi escrever sobre o tema”. A música foi censurada não só no Brasil, mas em todos os países da América Latina onde o disco foi lançado e só foi liberada no último lote. “O governo achou aquilo um absurdo já que eles tinham um projeto de distribuição de pílulas para ter um controle da natalidade, e proibiram a canção, mesmo com o meu argumento de que a minha música, por ser didática, até ajudaria”.

Para Odair José, “a sensação [de trabalhar sob censura] era horrível, pois para quem está vivendo um momento de criação, o pior era a auto-censura, pois você termina por não se expressar da forma correta sobre aquilo que está pensando”. Sobre o prejuízo trazido pela censura aos movimentos culturais, o professor Marcos Napoli, da USP, Univesidade de São Paulo, afirma que “a censura prejudicou o curso histórico dos movimentos culturais no Brasil. Aliada à repressão policial, a censura desorganizou o sistema cultural na primeira metade dos anos 1970, fazendo com que muitos artistas saíssem de cena e fossem para o exílio, em um momento que se estruturava a moderna indústria cultural brasileira e os movimentos culturais engajados se adensavam”.

por Solon Neto

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o longo do regime militar uma série de grupos anticomunistas se formou em vista do avanço do comunismo. A insatisfação dos setores conservadores se condensou em valores para esses grupos, que surgiam mesmo antes do golpe militar de 1964 que deflagrou a ditadura no Brasil. Em Bauru, houve maior atuação de um grupo: a FAC, Frente Anticomunista de Bauru. A FAC nasceu entre os anos de 1962 e 1963, liderada e organizada pelo professor de Direito da ITE, Instituição Toledo de Ensino, Silvio Marques Jr. O grupo atuou até 1968, perseguindo e prendendo qualquer cidadão cujas atitudes levantassem suspeitas de atividades comunistas. Liderando o grupo, Silvio Marques instaurou um clima de terror na cidade de Bauru, devido ao teor arbitrário das prisões e perseguições que ele e seu grupo efetuavam junto à polícia. A organização de Silvio Marques era formada por homens e mulheres de várias faixas etárias, que se auto denominavam “legionários”. Eles recebiam treinamento de luta e tiro, e contavam com o apoio direto dos militares brasileiros, da polícia, e do governo dos Estados Unidos, que lhes enviava material de propaganda anticomunista. Silvio Marques era um católico convicto e fervoroso, e acreditava que o comunismo era completamente contra os valores da igreja católica. O líder da FAC atribuiu a

esse fato toda a perseguição e tortura que operou, justificando casos como o de Edson Shinohara, que teve os dentes partidos à coronhadas de metralhadora depois de ser preso pela FAC. Para Antonio Pedroso Jr., memorialista bauruense, a FAC foi uma organização superestimada pelo próprio líder, Silvio Marques, que dizia ter dezenas de milhares de legionários inscritos em sua organização. Apesar de ter muitos legionários, ele acredita que a organização não tinha tanto poder, porém mantinha grande atuação.

Invasão do Jornal Última Hora

Em 1964, ainda antes do golpe militar, o jornal “Última Hora” publicou uma matéria sobre os treinamentos militares oferecidos pela FAC aos seus legionários. As fotos da matéria mostravam os legionários empunhando armas nos treinamentos. A matéria foi mal vista pelo grupo, levando-se em conta que o Última Hora era um jornal popular de cunho trabalhista, o que era o bastante para ser considerado comunista. No mesmo ano, pouco depois do golpe, a sucursal do Jornal Útima Hora foi invadida e completamente destruída pelos legionários da FAC. O ex-chefe de reportagem da sucursal bauruense, e hoje jornalista da Rádio 96FM, Zarcillo Barbosa, foi testemunha da invasão da sucursal em Bauru, localizada na rua Virgílio Malta. A invasão se deu no dia 15 de abril,

PERIGO VERMELHO

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urante o período de Ditadutra Militar a caça aos comunistas foi um movimento notável que influenciou na política nacional até os dias de hoje. O movimento anticomunista tomou força por todo o país, porém a resistência ao comunismo vinha de anos anteriores. Apesar do Governo Militar caçar os comunistas durante o período ditatorial no Brasil, junto a eles estavam católicos, liberais, empresários, nacionalistas, fascistas e socialistas democráticos que se reuniam por um ideal quando o comunismo parecia tomar força no país. A percepção de um “perigo comunista” no Brasil passou por um processo de crescente “concretização”, até atingir seu clímax com a Revolta de 1935. Assim, após a Revolução Russa de 1917, tiveram lugar no país a criação

Foto: Acervo de Teresinha Zanloch

por Thales Schmidt

À direita, Silvio Marques: de olhos fechados para a liberdade

pouco depois do fechamento às 22h. Os legionários da FAC vieram de caminhão, todos encapuzados e armados com revólveres e machados. Havia apenas dois jornalistas no prédio, Laudze Menezes e o fotógrafo Celestino Distefano, que foram ambos imediatamente amarrados, encapauzados e trancados no laboratório fotográfico. Os “legionários” destruíram a redação a machadadas e tiros, inutili-

zando textos, arquivos e máquinas de escrever. Logo depois fugiram no mesmo caminhão em que vieram. A FAC tinha espiões que trabalhavam dentro do próprio Última Hora, que foram avisados sobre a invasão a tempo. Segundo Zarcillo, esses jornalistas misteriosamente faltaram naquele dia. Na mesma noite, os legionários invadiram também a sede da Superintendência pela Reforma Agrária, a SUPRA.

Como o anticomunismo se espalhou numa onda ideológica no país no período ditatorial

do Partido Comunista do Brasil (depois Partido Comunista Brasileiro – PCB) em 1922; a conversão do líder “tenentista” Luís Carlos Prestes ao comunismo, em maio de 1930, e sua ida para a União Soviética, no ano seguinte; e o surgimento, em março de 1935, da Aliança Nacional Libertadora, dominada pelos comunistas. Se em 1917 o comunismo no Brasil era visto ainda como um perigo remoto, “alienígena” e “exótico”, aos poucos ele foi se tornando mais próximo. Estourou em 1935, uma revolta comunista em todo o país. Protagonizada principalmente por militares, os revoltos foram rapidamente derrotados pelas forças leais ao governo. O episódio logo viria a ser nomeado, pelos vencedores, de “intentona” — intento louco, plano insensato, desvario —, nome com que

por Aline Ramos ficou, por muito tempo, consagrado na história. Esse evento foi chave para um desencadeamento da institucionalização da luta contra o comunismo no interior das Forças Armadas. Desta revolta, surgiu uma comemoração que ocorria todos os anos em homenagem às vitimas. O ritual de rememoração dos mortos leais ao governo, repetido a cada ano, tornava seu “sacrifício” presente, renovava os votos dos militares contra o comunismo e socializava as novas gerações nesse mesmo espírito. Foi no quadro dessa cultura institucional, marcadamente anticomunista, que se viveu a ditadura do Estado Novo e que se formaram os militares que, em 1964, assumiram o poder. Com campanhas para levá-lo à sociedade, o anticomunismo se fundamentou em três bases, como

aponta Sá Motta no livro “Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil”. Que são: catolicismo, nacionalismo e liberalismo. O catolicismo empreendia uma luta em que “o desafio comunista tinha origem na eterna luta entre bem e mal e na ação do grande tentador, Satanás”. A respeito do nacionalismo, Sá Motta chama atenção para a adoção, por parte dos conservadores, da ideia que a “nação” é um “corpo orgânico” fundamental para a manutenção da ordem do país. E enfim, os liberais recusavam, e até hoje recusam, o comunismo por entender que ele ia contra a liberdade e praticava o autoritarismo político, “destruindo o direito à propriedade na medida em que desapossava os particulares de seus bens e os estatizava”.

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SOMBRASOPRESSÃO Ano 7 | Número 6 | Novembro 2012

DA

NAS

por Vinicius Martins

A tortura e o desaparecimento forçado marcam o uso da violência pela ditadura brasileira

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a segunda metade do Século XX, diversos países da América Latina se fecharam em regimes de característica autoritária. Vários pontos eram semelhantes entre esses governos, como o comando militar, a grande força usada para governar e, consequentemente, o uso de extrema opressão contra a oposição. No Brasil não foi diferente. O regime militar impôs forte censura política e cultural. Passeatas e protestos em locais públicos foram reprimidos com violência. Centenas de pessoas eram presas por tentarem propagar ideias contrárias ao governo. Assim, o fortalecimento dos militares no poder teve suas consequências. Cada vez mais a repressão crescia e mais opositores e suspeitos iam para a cadeia. A partir de 1968, com a instituição do AI-5 (Ato Institucional nº5), a repressão praticada pelo Estado aumentou. Membros da

sociedade civil eram mortos em atentados ou simplesmente desapareciam de maneira forçada. Muitos presos foram torturados. O objetivo era evitar que a oposição e suas ideias se fortalecessem. Com isso, o regime militar continuaria soberano. Carlos Roberto Pittoli, atualmente advogado e ex-preso político da ditadura militar, fazia parte do exército na época do regime. “Em 1965 eu fui servir o exército, fui convocado pra isso, em Quitaúna, no 4º Regimento de Infantaria. Eu cheguei lá nervoso, preocupado, porque eu fui obrigado a servir. Era uma situação difícil, já fazia oito meses que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica estavam dominando tudo, controlando bem a situação para o lado deles”, recorda-se. Apesar de servir ao exército, Pitolli tinha ligações com movimentos opositores ao regime, como o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). O ex-sar-

gento foi dedurado por um preso que falou a respeito de sua ligação e atuação em organizações de oposição. Como consequência, acabou preso e torturado: “fui levado para a escolinha (local onde aconteciam as torturas nos quartéis) e lá estava o preso que me denunciou, jogado em uma cadeira, com a cabeça para trás, ele também foi torturado. Ali, me deram um soco, me amarraram e me torturaram, com choques e queimaduras”. Após a sessão de tortura, Pittoli continuou preso, em péssimas condições, assim como outros presos que passaram pelo mesmo processo. Aqueles que não aguentavam as agressões acabavam mortos. Os corpos eram jogados no mar ou enterrados em valas comuns. Em 1975, a morte do jornalista Vladimir Herzog foi um dos marcos para que a sociedade civil intensificasse o desejo por liberdade e o fim do autoritarismo no

Brasil. Surgiram movimentos pela Anistia e pela redemocratização do país até o fim da Ditadura Militar. Mesmo assim até hoje não há um esclarecimento formal por parte do Estado para o desaparecimento e morte de centenas (ver box na página ao lado) de presos políticos no Brasil.

VLADIMIR HERZOG

Vladimir Herzog, croata naturalizado brasileiro, era diretor de jornalismo da TV Cultura e morreu aos 38 anos, após ser torturado nas dependências do Departamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI, órgão de repressão do regime militar. Tornou-se o caso mais famoso de tortura na ditadura. Sua morte, divulgada como suicídio (fato desmentido anos mais tarde), foi o estopim para que a sociedade intensificasse a luta pela democracia no Brasil.

ONDE VIVE O INIMIGO

por Aline Ramos

Os Escrachos denunciam à sociedade onde moram supostos agentes da ditadura

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les pediram a voz na primeira audiência conjunta da Comissão da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), e da Comissão Nacional da Verdade que aconteceu no dia 12 de novembro de 2012. Seis jovens do Levante Popular da Juventude queriam contar que estão sendo processados pelo médico José Carlos Pinheiro após participarem de dois “escrachos” - manifestações públicas - para divulgar que ele teria colaborado com torturadores durante a ditadura militar. Com faixas, apitos, tambores e sprays de tinta, o grupo de jovens se dirigiu a frente do hospital que José Carlos Pinheiro trabalha em Aracaju (SE) para denunciar a suposta participação em sessões de tortura. Essa e tantas outras manifes-

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tações já ocorreram em onze estados no Brasil desde 2011. Chamadas de “Escrachos”, jovens denunciam em frente residências e locais de trabalho de suspeitos de participação em sessões de tortura durante a Ditadura Militar. Os Escrachos são organizados pelo Levante Popular da Juventude, movimento social que nasceu em 2005, no Rio Grande do Sul. A origem dos escrachos é antiga. A ideia surgiu em um acampamento em Córdoba durante a Páscoa de 1995 e se materializou meses mais tarde, num segundo encontro, que reuniu mais de 400 jovens entre 18 e 25 anos. Ele nasceu de uma organização que reuniu os filhos dos desaparecidos, prisioneiros mortos, exilados e políticos da ditadura: H.I.J.O.S (Crianças pela Identida-

de e Justiça contra o Esquecimento e Silêncio). Os escrachos na Argentina ajudaram no julgamento dos criminosos da ditadura e na recuperação da história do país. Como coloca Lauro Duvoisin, integrante do Levante no Rio Grande do Sul. “Parece que houve uma quebra de continuidade geracional no Brasil. Na Argentina, desde muito tempo existe a luta das Madres (movimento semelhante às Mães de Maio no Brasil) que se tornou um símbolo continental”. E aponta a necessidade dos Escrachos serem feitos no Brasil: “embora exista a luta dos familiares, essa luta teve muito menos projeção social do que no caso da Argentina ou do próprio Chile”. Mesmo informando a sociedade sobre a importância de relembrar quem foram os agentes na

ditadura, os escrachos possuem seu lado perverso como defende o escritor Carlos Balmaceda: “são instrumentos políticos fascistas para identificar, classificar e castigar as pessoas”. O escritor não retira a importância do julgamento dos criminosos da ditadura, porém, ressalta que este é um perigoso caminho. O processo que os estudantes sergipanos estão sofrendo por terem feito um escracho pode estar ligado a esse caminho. O de condenar antes de qualquer julgamento, que é o objetivo das Comissões da Verdade que têm surgido em diversas cidades. O médico José Carlos Pinheiro, em nota oficial informou não ter participado e colaborado direta ou indiretamente de atos de tortura e alega que pode ter sido confundido.

LUZES VERDADE

memória e verdade

DA

por Vinicius Martins

Apesar do atraso, Comissão da Verdade pretende resgatar memória do Regime Militar

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o dia 18 de novembro de 2011, a presidente da república Dilma Rousseff sancionou a lei que permitiu a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Essa comissão deve investigar, analisar e documentar violações contra os direitos humanos ocorridas entre o período de 1946 e 1988, sobretudo durante a Ditadura Militar brasileira. Composta por sete ministros – escolhidos pela presidência da república – mais catorze assessores, a comissão foi instalada no dia 16 de maio de 2012. Desde essa data ela tem permissão para atuar durante dois anos. No fim desse período, a CNV deve organizar um relatório com todas as informações levantadas nas investigações. A Comissão Nacional da Verdade não tem caráter jurídico, ou seja, não pode julgar nem punir acusados de violar os diretos humanos no período investigado. Também é função da delegação identificar corpos e o paradeiro de desaparecidos políticos do regime militar, além de locais e estruturas usadas em crimes contra a humanidade. Claudio Lemos Fonteles, um dos sete ministros da comissão nacional, acredita que a CNV tem papel político e social importante no resgate da memória brasileira. “Devemos internalizar em cada brasileira, em cada brasileiro, a consciência de que os Direitos Humanos devem ser protegidos; que a solução do arbítrio jamais deve voltar a ser experimentada no afã de tentar solucionar as divergências de pensamento e de posições políticas que surjam entre nós;

que a violência, portanto, não é, e jamais será, solução de conflitos. Essa é a nossa missão hoje e sempre”, explica. Para auxiliar o trabalho da CNV, o órgão enviou recomendações para os 27 estados brasileiros criarem comissões estaduais. Até o momento São Paulo e Pernambuco já têm delegações constituídas. Fonteles reforça a importância da criação de mecanismos regionais: “para auxiliar no trabalho da Comissão Nacional nos Estados, a existência de comissões estaduais e de instituições comprometidas, como universidades e órgãos de clas-

se, é fundamental para que em nosso país nunca mais aconteça a nefasta experiência da supressão das liberdades pessoais e públicas”. A Comissão da Verdade “Rubens Paiva” fundada no estado de São Paulo irá contribuir na apuração de violações dos direitos humanos. Diferentemente da CNV, o grupo paulista irá apurar apenas casos que aconteceram entre 1964 e 1982. “Nós

movimentos sociais e casos de perseguidos e presos políticos da cidade”.

vamos investigar 140 casos de pessoas que eram do estado de São Paulo e foram assassinadas, como os irmãos Petit que eram da região de Bauru, por exemplo. Eles foram mortos no Araguaia. Serão casos de paulistas ou de pessoas que morreram aqui no estado durante o regime”, reforça o deputado estadual Adriano Diogo, presidente da comissão estadual paulista.

Atraso

O Brasil é o último país latino-americano a criar um órgão de estudo e análise dos crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado, durante um regime militar. Na América Latina países como Argentina, Chile, Uruguai, Peru e Guatemala já apuraram e, em alguns casos, puniram infratores dos direitos humanos em seus períodos de repressão. Estima-se que no mundo mais de 30 comissões da verdade tenham sido criadas. Fora do continente americano, uma das mais conhecidas é a da África do Sul. O mecanismo foi criado para apurar crimes cometidos entre 1948 e 1994, período que corresponde ao Apartheid, regime de segregação racial comandado por uma minoria branca. No Brasil, há a intenção de aprender com outras comissões do mundo, inclusive com as da América Latina. Segundo Cláudio Fonteles, da CNV, o diálogo com outras comissões é muito importante. “Em setembro, a Comissão Nacional da Verdade realizou no Itamaraty um seminário com integrantes de Comissões da Verdade da América Latina. Esse intercâmbio é fundamental para dimensionar nosso trabalho. Dialogar com os outras nações nos dá a vantagem de evitar a repetição de erros e mirar nos acertos, guardadas, é claro, as diferenças culturais e legislativas entre nossos países”, aponta.

Comissão Bauruense

Além dos órgãos em nível nacional e estadual, há incentivo para que municípios e universidades criem seus grupos de apuração. Em Bauru, durante a

II Jornada de Direitos Humanos da cidade, em 2012, foi proposta a criação do Grupo Memória e Verdade. A equipe, composta por sete membros, terá a função de levantar dados e informações correspondentes ao regime militar no município. Segundo os integrantes, “as investigações abordarão as questões políticas da época, a imprensa, a Frente Anticomunista (FAC), a atuação da Igreja Católica, dos

NÚMEROS DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA *

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*Dados aproximados Fonte: Grupo Tortura Nunca Mais e Livro “O Golpe de 64 e a Ditadura Militar” (CHIAVENATO, 1997)

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“A BRASA”, MORA!

O

jornal “A Brasa” foi criado entre os anos de 1967 e 1968 pelos estudantes Irineu Bastos, Milton Dota, Sérgio Antunes e Paulo Sérgio Galvão Nogueira, todos alunos do curso de direito da Faculdade de Direito de Bauru. O jornal começou como uma brincadeira interna na faculdade, criado com a finalidade de entreter e satirizar os acontecimentos que envolviam o universo acadêmico dentro do campus. Além disso, tinha um conteúdo altamente colaborativo, qualquer aluno tinha a oportunidade de opinar ou

acrescentar alguma ideia. O conteúdo tinha cunho humorístico e criticava tanto a política interna do campus, quanto a própria estrutura política do país na época. Esse tipo de temática obrigava seus autores a viver no anonimato, devido a isso, o lema principal do jornal era “circula onde pode e quando pode”. O “A Brasa” se sustentava a partir do dinheiro dos próprios alunos, principalmente os que estavam começando. Aqueles que possuíam algum tipo de negócio na época pagavam para anunciar no jornal.

por Lucas Vieira Dentre os integrantes da equipe, vale destacar a atuação do cartunista Antônio Carlos Nicolielo, que expunha seu trabalho de forma voluntária. Ele começou sua carreira no ramo artístico-jornalístico, divulgando suas charges nesse periódico. Hoje em dia é reconhecido no ramo e possui fama internacional. Uma das principais dificuldades que os produtores do jornal encontravam era sua impressão. Muitas gráficas ficavam receosas em imprimí-lo, justamente pelo seu caráter crítico e gozador.

O “A Brasa” era muito popular na época e recebia críticas muito positivas dos alunos do campus, porém não era muito bem visto por alguns professores, em especial aqueles em que a crítica atingia. Nenhum aluno foi acusado ou punido diretamente, mas alguns docentes deixavam claro sua posição negativa na própria sala de aula, criticando veementemente a iniciativa dos alunos. Esse projeto teve seu fim quando a equipe principal de estudantes, os mesmos que o idealizaram e o mantinham se formaram, em 1969.

por Thales Schmidt

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do Estado de São Paulo já mataram 251 pessoas e 24 policiais morreram. O Instituto “Sou da Paz” levantou o perfil de quem morreu em confrontos com a polícia na cidade de São Paulo nos últimos 10 anos, e concluiu que 93% das vítimas moravam na periferia da capital paulista, 60 % tinham entre 15 e 24 anos e 54% eram negros. Luís Antônio Souza observa que os excessos da polícia atingem de forma diferente os setores da sociedade: “esses abusos afetam pobres que não têm poder, os não brancos, os jovens de periferia”.

Sociedade autoritária

Uma das iniciativas possíveis do Estado para monitorar a atuação das forças policiais é o uso de ouvidorias, sendo que a função desta é receber denúncias e sugestões da população sobre a atuação policial. São Paulo foi pioneiro nessa experiência e criou a Ouvidoria de Polícia do estado de São Paulo em 1995. Também é trabalho da ouvidoria elaborar tabelas com os números das denúncias no estado, assim, desde 1998 é divulgada a soma das queixas que a instituição recebe ao longo do ano. O cargo de Ouvidor de Polícia de São Paulo é uma indicação do Governador do estado a

Foto: Agência Brasil

PM acumula críticas de defensores dos direitos humanos

atuação da Polícia Militar brasileira preocupa diversas entidades ao redor do mundo. Em relatório, a ONU declarou que o Brasil deveria “abolir o sistema separado de Polícia Militar, aplicando medidas mais eficientes para reduzir a incidência de execuções extra-judiciais”. A Anistia Internacional, organização não governamental que defende os direitos humanos, também divulgou que agentes da lei praticam tortura e execuções. A Human Rights Watch, outra organização não governamental envolvida na promoção dos direitos humanos, apontou o “abuso policial” como um problema crônico nas terras brasileiras. Mas, qual é a origem da Polícia Militar em São Paulo? Fundada em 1970, durante o regime militar, a PM surgiu quando o governo uniu a antiga Força Pública e a Guarda Civil. Desde então, a PM ainda guarda muito do regime ditatorial brasileiro. Para Luís Antônio de Souza, professor da Unesp Marília e coordenador do Observatório de Segurança Pública, “existe um legado autoritário muito forte na área policial e na justiça criminal de uma forma geral”. Os números da violência no estado assustam, segundo a Secretaria de Segurança Pública. Só no ano de 2012, as Polícias

AÇÃO PELEGA

Circulou onde pôde e quando pôde

POLÍCIA MILITAR FOI CRIADA NA DITADURA

A

memória e verdade

Ano 7 | Número 6 | Novembro 2012

D

urante a ditadura militar, os sindicatos foram reprimidos com veemência pelo Estado. Em 13 de março de 1964, dezoito dias antes do Golpe, a Confederação Geral do Trabalho (CGT) realizou o Comício das Reformas, na estação Central do Brasil (RJ), e propôs aos sindicatos e associações de trabalhadores uma greve geral. A mobilização não se concretizou, pois os ferroviários foram os únicos a atender ao chamado. A ditadura interveio, então, em 432 sindicatos e cassou o mandato de dez mil sindicalistas. A CGT foi fechada e suas principais lideranças, presas ou exiladas. Uma lei antigreve foi decretada e o governo passou a fixar os índices de reajuste salarial. Essa repressão ao movimento operário e aos sindicatos também ocorreu na cidade de Bauru e atingiu, particularmente, aos ferroviários que apoiavam João Goulart e suas reformas, como lembra o professor de História da Unesp Bauru Célio Losnak. “No dia 1º de abril de 1964, eles fizeram uma reunião na sede da Associação Profissional dos Ferroviários da Noroeste do Brasil (NOB). A polícia atacou o local e, usando bombas de efeito moral, dissolveu a reunião. Houve

Em Bauru, estudantes foram às ruas, mas sindicatos ficaram no assistencialismo por Gabriel Cortez

Foto: Pedro Romualdo

aGente

De calça clara, no meio da faixa, Fábio Negrão enfrenta os militares na Rua Batista de Carvalho

repressão e muitos ficaram presos e responderam a interrogatórios e a inquéritos”, conta. Segundo o historiador, os movimentos sindicais que ocorreram na cidade tiveram apenas uma relação assistencial com o operário: “até os anos 80, os movimentos sindicais bauruenses estavam amarrados à estrutura do Governo Federal. As negociações salariais eram submetidas ao Ministério do Trabalho e ao controle político dos militares e o espaço de manobra dos sindicatos era muito restrito. Eles não tinham uma autonomia significativa”. No período de 1979 a 1980, mesmo com as lutas dos metalúrgicos do ABC paulista, a quase

totalidade dos Sindicatos em Bauru ainda era controlada por direções pelegas (alinhadas aos interesses dos militares). Havia muita dificuldade para os trabalhadores se organizarem em virtude da repressão. Em 1984, a Associação dos Ferroviários da NOB foi transformada em Sindicato dos Trabalhadores e Empresas Ferroviárias de Bauru e Mato Grosso do Sul, e sua primeira direção também teve uma concepção pelega de ação.

Estudantes, políticos e religiosos protestam

Célio Losnak explica também que os movimentos sociais se mobilizaram em três frentes em

ENTRE E SINTA-SE EM CASA

Bauru: o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), como único movimento político organizado; as Comunidades Eclesiais de Base, ala mais popular da Igreja Católica que estudava a bíblia de acordo com a realidade de mazelas vividas pela comunidade; e o movimento estudantil, cuja principal vertente se organizou na Fundação Educacional de Bauru, a antiga FEB (atual Unesp). O movimento estudantil ressurge em 1978 e, segundo Losnak, “foi uma mobilização centrada nas questões dos alunos, mas que, em alguns momentos fazia manifestações de rua”. Fábio Negrão liderou os estudantes, entre 1978 e 1982, e conta que a principal luta política do grupo era pela anistia ampla, geral e irrestrita. No dia 21/08/1980, Negrão participou de uma manifestação a favor do ensino público gratuito e da liberdade de expressão, na Praça Ruy Barbosa. “A gente estava em menos de 100 pessoas e a polícia militar fechou a praça. Ao invés de tentarmos descer para o terminal rodoviário, que estava sendo inaugurado naquele dia, com a presença do presidente (João Baptista) Figueiredo, fomos obrigados a recuar”, recorda.

por Arthur Ferreira

O meretrício mais famoso do Brasil era muito mais que uma “casa de diversão”

Polícias Militares de SP e RJ estão entre as mais violentas do país

partir de uma lista votada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). Luiz Gonzaga Dantas, atual ouvidor de polícia de São Paulo, comenta o quadro da segurança pública no Brasil: “temos mais tempo de autoritarismo do que de democracia na história do Brasil. Nós temos uma sociedade autoritária, logo, temos uma polícia que pensa parecido com essa sociedade”.

Federalização e democratização

Caminha no Congresso o Projeto de Lei 3734/12, que busca reformular as políticas de segurança pública brasileiras ao criar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Nesse

novo sistema, o governo federal será responsável por definir as regras do modelo de segurança pública para os estados brasileiros seguirem. Alguns estudiosos do tema entendem a não federalização da segurança pública como uma das fontes dos atuais problemas enfrentados na área. É o caso de Jacqueline Muniz, professora da Universidade Católica de Brasília e conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “A falta de um pacto federativo na área de segurança pública favorece que se possa ter retrocessos na democratização da segurança, e a democratização é desejavel e necessária para que se rompa de vez com nosso passado”, analisa Jacqueline.

E

ny Cezarino morreu no final de agosto de 87. Tentava, com sua última aliança de brilhantes, pagar o médico. Eny morreu aos 69 anos e não podia morrer com outra idade. Ela foi dona do bordel mais famoso do Brasil, frequentado por grandes nomes da política e grandes empresários e faz até hoje Bauru não ser só uma cidade lanche. Sua casa foi muito mais que um meretrício. Homens poderosos visitavam à Eny, pois a comemoração com chave de ouro era obrigatória após o fechamento de acordos de grandes empresas e indústrias de porte. Segundo a pesquisa de Lúcia Helena Ferraz Sant’Agostino, a Bardahl e a Dedini ali promoviam suas convenções de final de ano para diretores e representantes, além das reuniões para os delegados

das convenções políticas, no período da ditadura militar. Nicola Avallone Jr., ex-prefeito de Bauru, contou à Revista Bauru e Região (Ano I nº1, set/93) que até o candidato era definido dentro do pólo mais importante da cidade. Príncipes visitaram o bordel. Um episódio marcante na vida de Eny foi quando um delegado aliado a Jânio Quadros, derrotado nas eleições na cidade, fechou o estabelecimento, que foi reaberto horas depois por Nicolinha na presença de um juiz. “Eny era um elemento agregador e não desagregador”. As milhares de faces da casa da Eny fizeram ela ser conhecida internacionalmente, afinal a cafetina teve uma grande sacada política. Ela ajudava creches e escolas e “cedia” sua casa para encontros corporativos.

Conta Lucius de Mello, autor da biografia da agenciadora, que o segredo do sucesso de Eny era a discrição. “Ela foi antes de tudo uma grande política. Sabia se relacionar muito bem com a clientela. Conjugava de forma muito inteligente o verbo cafetinar, ou seja, percebia os desejos dos homens e das mulheres. Eny guardava segredos, era cúmplice dos clientes, eles confiavam nela. Naquela época, a prostituição tinha glamour. As prostitutas eram apontadas nas ruas, chamadas de pecadoras pela igreja e pela sociedade que era muito menos tolerante com elas do que hoje. Eny encarava isso com um certo sucesso. Aproveitava a fama para aparecer bem diante de todos. Ensinava suas meninas a se comportarem e se vestirem como estrelas

de cinema. Iam assistir filmes no cine da cidade para copiar os modelos e os trejeitos das divas de Hollywood como Elisabeth Taylor, Marilyn Monroe, Sophia Loren.” Boatos que os aposentos do Eny’s Bar já tinham sido visitados por pelo menos dois terços de todas as assembléias legislativas de São Paulo, muitos governadores de Estado e prefeitos da região, grandes agricultores do ramo sucroalcooleiro com seus filhos e até um Presidente da República. A casa da Eny foi muito mais que um prostíbulo. O diferencial dela foi a participação política de sua dona. Era uma casa que funcionava como curral eleitoral ou fonte de inspiração para artistas, sem deixar de cumprir sua função primordial: sexo pago.

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aGente

memória e verdade

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“ERA UMA RETALIAÇÃO SILENCIOSA”

ANISTIA PARA QUEM?

Irmão de Zico fala sobre sua trajetória no futebol e o que enfrentou na ditadura

Depois de 30 anos da assinatura da lei de Anistia no Brasil o debate sobre suas limitações continua

por Gabriel Cortez

Comissão de Anistia Nacional

“Na verdade, essa comissão é o reconhecimento de uma perseguição que minha família sofreu na qual o principal visado era eu. Tudo começou quando nós passamos no concurso do Plano Nacional de Alfabetização, criado pelo grande Paulo Freire. Logo em seguida estourou a Ditadura e eles consideraram o PNA subversivo. A partir dali, nós passamos a ser considerados subversivos. Mas eu já estava começando no futebol e fui obrigado a esquecer o PNA”.

Interferência da ditadura

“No início de 1966 eu me profissionalizei, jogando pelo Santos de Vitória (ES). Foi ali que começou a perseguição. Mas eu não quis acreditar que aquilo era verdade. Eu bem no campeonato, fomos vice-campeões do torneio da capital. O treinador caiu, inexplicavelmente. Assumiu um capitão ou major do

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exército, não me lembro. Eles começaram a entrar no futebol e, em uma semana, eu fui afastado. Voltei para o Rio e assinei contrato com o América, onde já jogavam o Edu e o Antunes. O treinador, que era o Evaristo de Macedo, falou que estava com medo de colocar no ataque três irmãos porque podia gerar uma ciumeira. Tudo bem, respeitamos. Dali eu fui emprestado ao Madureira, no campeonato de 1967. Me destaquei, mas fui, novamente, convidado a me retirar, por outro diretor. O presidente era meu amigo e falou que não podia fazer nada, como o presidente do Santos de Vitória. Aí fiquei para-

ria na virilha e o jeito foi retornar para o Brasil. Aí eu desisti mesmo, porque o Zico já estava despontando e a gente em casa tinha certeza de que ele ia ser um dos melhores do mundo. Então, a minha preocupação a partir daí foi preservar meus irmãos, que já estavam sendo prejudicados pela interferência da ditadura. E não adiantou, porque nesse mesmo ano, o Zico foi inexplicavelmente cortado da Seleção Olímpica. Há pouco tempo, tivemos a confirmação do treinador de que recebeu ordens para isso. Por isso ele não participou da Olimpíada de 72, em Munique. Foi a maior frustração da vida dele. Ele

Foto: Arquivo pessoal

N

ascido em Quintino Bocaiuva (RJ), Fernando Antunes Coimbra teve cinco irmãos, dos quais três, assim como ele, escolheram ganhar a vida com o futebol. Zeca, o mais velho, se destacou jogando no Fluminense; Edu, o do meio, no América-RJ e Zico, o caçula, no Flamengo. Nando trilhava o mesmo caminho, mas seu posicionamento político mudou um pouco os rumos dessa história. Além de jogador, o irmão de Zico foi integrante do Plano Nacional de Alfabetização (PNA), do pedagogo Paulo Freire, sendo, por isso, considerado subversivo pelo regime militar. A cada clube que chegava, Nando recebia uma desculpa diferente para não ser escalado. Ao todo, foram nove anos de carreira, passando por clubes como Madureira, Ceará, Belenenses e Gil Vicente – estes dois últimos em Portugal, onde chegou, inclusive, a receber ameaças da polícia política do ditador Salazar. No dia 30 de Agosto de 1970, Nando foi preso e passou quatro dias no DOI-CODI, onde foi interrogado e torturado. Quase quarenta anos depois, em Julho de 2011, veio a sua reabilitação pública: Fernando Antunes Coimbra se tornou o primeiro ex-jogador de futebol anistiado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Em entrevista ao Jornal aGente, Nando conta o que sentiu na pele:

Família e perseguição

Quando eu fui preso, em 1970, eu fui para o DOI-CODI, na rua Barão de Mesquita. Meus irmãos, o Edu e o Antunes, foram para a porta do quartel. O Antunes gritava que queria ficar preso comigo. Minha mãe foi para o portão também. Mas por sorte a imprensa respeitou e não divulgou nada. Era proibido mas eles davam um jeito de publicar. Não publicaram. Então, a coisa ficava assim, muito nebulosa. Agora, claro, eles foram prejudicados. O Edu não era mais convocado para a Seleção Brasileira. O Zico, a partir de 1974, depois que meu nome limpou, a carreira dele deslanchou no Flamengo e como não havia mais nada contra mim, acabou a perseguição. Parecia uma coisa sádica, era um prazer sádico de prejudicar”.

Mordaça estratégica

Nando (à direita) ao receber o pedido oficial de desculpas do governo brasileiro dos conselheiros da Comissão Nacional de Anistia, Sueli Belatto e Mário Albuquerque.

do, até começar o campeonato do ano seguinte. Em 1968 eu fui para o Ceará Sport. Lá não houve nada. Sempre fui tratado maravilhosamente, inclusive o livro da minha história é feito pelo Centro Cultural do Ceará. Mas a proposta do Belenenses era muito boa e fui para Portugal. Cheguei lá, a PID foi atrás de mim, a Polícia Política. Consegui voltar fugido para o Brasil. Mas eu fiquei sem campo de atuação, tanto lá, quanto aqui. Até que, em 1971, meu pai falou com o presidente do CND, que era o general Sizeno Sarmento, e disse que não aguentava mais a perseguição que eu estava sofrendo. O Edu já tinha deixado de ser convocado para a Seleção de 70. Esse general prometeu ao meu pai que iria estudar o caso. Um mês depois eu mesmo atendi o telefone, era ele, dizendo que estava “tudo ok” comigo. Eu estava com uma proposta do Gil Vicente de Portugal e fui para lá, em 1971. No aeroporto eu passei normalmente, porque não passava, né. Cheguei lá em um inverno rigoroso e comecei a ter uma distenção atrás da outra, até que tive uma muito sé-

quis parar de jogar. Meus irmãos não deixaram, convenceram ele. Mas, realmente, é uma mágoa grande, porque se cortou o talento de um garoto de 18 anos que não cometeu crime nenhum”.

Retaliação sofrida

“Muita! Quando eu estava no Belenenses fui procurado no hotel por dois agentes da PID. Eles disseram que sabiam muita coisa da minha vida no Brasil e que queriam meus documentos. Eu disse que estavam na embaixada. Foi a minha sorte. Eles falaram que iam voltar, porque estavam me acompanhando. Eu fiquei apavorado. Eu estava demorando para assinar o contrato por uma questão de cifras. No dia seguinte, um diretor comentou a visita que eu recebi no hotel e disse que como eu era filho de português eu poderia até ir para a Guerra na África. Pô, eu tomei um susto. Eu sozinho, com 22 anos, em outro país, em uma época em que a comunicação era praticamente zero. Me apavorei e voltei para o Brasil”.

“Era uma retaliação silenciosa. Você não tinha como reagir, você tinha que enfrentar aquilo. Eu tenho amigos na imprensa que nunca souberam de nada. Isso foi um segredo guardado quase quarenta anos, que pegou de surpresa a opinião pública. Em compensação, veio o reconhecimento, o reconhecimento de quem não tem culpa no cartório, que apenas foi prejudicado. Um reconhecimento que demora mas chega, e chegou em vida, graças a Deus”.

por Jéssica Frabetti

A

lei da Anistia no Brasil foi criada no último governo da ditadura militar, no dia 28 de agosto 1979, pelo presidente João Figueiredo. A lei visava atender as diversas reivindicações da população, que já se manifestava para uma abertura política desde a segunda metade da década de 70. Ela concedeu perdão aos crimes políticos cometidos no regime militar, mas com uma clara limitação. O povo clamava por uma anistia que fosse ampla – para todos os crimes políticos; geral – para todas as categorias de atingidos pelos atos de exceção do governo militar; e irrestrita – sem nenhuma restrição para sua aplicação. No entanto, isso não aconteceu. A lei foi restrita, excluía os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. E também se estabeleceu que a anistia fosse recíproca. Esse acordo, na qual se usou a expressão “crimes conexos aos políticos”, fez com que os agentes da ditadura não viessem a ser punidos. Os temas

referentes a esclarecimento de mortes, desaparecimentos e à responsabilização do governo ditatorial quanto a esses atos não foram levados em conta. Paulo Abrão, secretário Nacional da Justiça e Presidente da Comissão da Anistia, entende que “a lei é ambígua por representar, ao mesmo tempo, a vitória do governo militar que impôs um projeto de lei que teve a pretensão do esquecimento e da impunidade, e também é marco jurídico do processo de redemocratização no Brasil”. Mas, essa questão ainda não se encerrou. Significativos passos foram dados nos últimos anos para reviver essa questão.

Comissão de Anistia

A Comissão da Anistia foi criada em 2001, com o real propósito de anistiar e reparar a todos aqueles que foram atingidos por atos de exceção entre 1946 e 1988. O presidente da comissão, Paulo Abrão, explica que “é principio basilar do estado de direito que quando o Estado causa prejuízos a terceiros por

sua própria iniciativa, ele tem o dever de reparar. Então a Comissão da Anistia leva adiante essa obrigação”. Mas os julgamentos não levam à punição dos agentes do Estado que cometeram atos de exceção. A comissão funciona a partir de requerimentos de cidadãos que gostariam ter sua história reconhecida como parte da narrativa oficial da história, e, a partir desse requerimento inicial, a comissão promove algumas diligências visando encontrar documentos públicos oficiais que possam vir a comprovar as alegações. “Com esse conjunto documental, a comissão delibera e esse ato de deliberação corresponde à um pedido de desculpas oficiais a pessoa pelos erros que o Estado cometeu no passado. E, se for o caso, há algum tipo de reparação econômica pelos termos previstos na lei”. A comissão, desde 2007, trabalha com o projeto Caravana da Anistia, na qual acontecem sessões reais do julgamento da comissão, itinerantes pelo país. Paulo Abrão conta que com a caravana foi possí-

Alerta à juventude

“Não esqueçam de amar profundamente a democracia. A democracia e a liberdade de expressão. O que é mais importante, é valorizar essa democracia que a nossa geração deixou para eles, para que nunca mais volte o sofrimento que nós passamos. Viver numa democracia é a melhor coisa do mundo. E hoje, uma das melhores que existe é a do Brasil. Viva essa democracia!”

Corte Interamericana de Direitos Humanos

A corte é um órgão judicial que visa interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos. Os países que assinaram essa convenção se “comprometem a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que está sujeita a sua jurisdição, sem qualquer discriminação”. O Brasil faz parte da convenção e foi condenado pela incompatibilidade da Lei da Anistia com o direito internacional e a Convenção Americana. Para o julgamento dos crimes do Estado e seus agentes, o sistema de justiça brasileiro precisa reconhecer essa sentença. “Essa é uma questão juridicamente em aberto”, alerta Paulo Abrão.

O HOMEM QUE DORMIU COM O INIMIGO por Arthur Ferreira

Tortura premeditada

“A tortura existiu. Por exemplo, nós chegamos em uma quinta-feira, à noite, no DOI-CODI e ficamos dois dias em pé, com as mãos na cabeça, num corredor que parecia mais um curral do que outra coisa. Quando o braço começava a cansar e descia, eles vinham com a espingarda e cutucavam as costas da gente. Era uma dor intensa. Toda hora eles enterravam um capuz para interrogatório. Era só humilhação, uma coisa terrível.”

vel difundir o assunto “criando conscientização, permitindo encontros com a nossa história e gerando um processo pedagógico para a nossa juventude, para que ela possa se apropriar desse legado e aprofundá-lo no futuro”.

O

A história de quando a esquerda começou a matar a própria esquerda

s anos setenta no Brasil foram de muito sangue. Muito. Tanto que grupos armados da esquerda começaram os “justiçamentos”, execuções de possíveis militantes traidores. O primeiro deles foi um dos comandantes da ALN, Márcio Leite de Toledo que, com 26 anos, foi morto com mais de dez tiros. Estava descontente com os destinos da luta armada, a qual se distanciava do povo passo a passo. Após a morte de Carlos Marighella, em 69 e a morte seguida de tortura do jornalista Joaquim Câmara Ferreira, ambos delatados por companheiros, a ALN decidiu começar com os justiçamentos, afim de evitar mais perdas. O justiçamento fazia parte da cartilha revolucionária dos anos da ditadura e em Cuba era uma

prática rotineira. Che Guevara conta, com precisão científica, em seus diários como matou um colega que fraquejara. Um caso semelhante a um justiçamento já tinha acontecido em 1936, quando Elza Fernandes, 16 anos, foi enforcada a mando de Luis Carlos Prestes por suspeita de trair os comunistas. Filho de integralista, da família dona do Instituto Toledo de Ensino em Bauru, Márcio Leite de Toledo já havia treinado guerrilha em Cuba. “Ele era o ‘matraqueiro’, responsável por dar cobertura aos colegas na ação com uma metralhadora”, diz Lídia Guerlenda, em entrevista à Folha. “Éramos quatro, e ele deixou a metralhadora no banco do carro, pôs a mão no bolso e ficou assobiando. Talvez fosse uma maneira de aliviar a tensão, sei lá, mas a atitude dele

deixou todos indefesos”, mostrando a displicência de Márcio. Como comandante da ALN, Carlos Eugênio Paz participou da morte de Márcio. “A ALN estava vivendo anos terríveis, começamos a perceber que tínhamos que tomar medidas de defesa”, Carlos Eugênio contou na sede estadual do PSB, no largo da Carioca para a Folha. “Se fosse detectado que uma pessoa ia ser presa ou cair, ajudando com informações que levassem à derrubada da organização, oferecíamos a oportunidade de deixar o país, como fizemos com Márcio. Como ele não aceitou, a organização iria justiçar”. “Márcio foi o primeiro. Não havia maneira de enfrentar a questão. A ALN tomou essa medida corretamente, medidas que só se tomam em tempos de

guerra. É uma medida extrema e irreversível, temos que conviver com ela”. Márcio não queria mais luta armada. Deixara uma carta em um dos seus bolsos manifestando essa vontade. O cadáver era então um argumento da esquerda para que a organização fosse resguardada. Dois dias antes de morrer, Márcio visitara um primo, que disse à Folha que ele queria juntar todas as oposições contra a ditadura: “E comentou o desejo de, antes do recuo, armar uma operação contra o delegado Sérgio Fleury, o grande carrasco da esquerda brasileira”, disse Francisco José de Toledo, primo do militante justiçado, considerado um herói por seu irmão, já que tinha consciência das circunstâncias e mesmo assim continuou na opção que havia tomado.

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aGente

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memória e verdade

INDIVIDUALISMO OFUSCA POLÍTICA NAS ESCOLAS por Fernando Martins

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Para professores, livros explicam a ditadura mas há pouco interesse

esta edição do aGente são apresentados vários aspectos do período da ditadura e a sua importância. Mas será que esse assunto é tratado com o devido cuidado e relevância nas escolas? A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo explicou, em entrevista ao aGente, que em 2008 foi proposto um currículo básico para as escolas da rede estadual nos níveis de Ensino Fundamental II e Médio. O objetivo era apoiar o trabalho do professor em sala e contribuir para a melhoria da qualidade de aprendizagem, para garantir uma base comum de conhecimentos e competências de acordo com a realidade da rede, orientando as escolas no que concerne à promoção das competências necessárias para enfrentar os desafios sociais. O currículo articula, dessa forma, competências com conteúdos disciplinares.

A Proposta Pedagógica contida no currículo prevê ações entre as disciplinas, estímulo à vida cultural da escola e o fortalecimento de suas relações com a comunidade. Um dos materiais de apoio para o professor trabalhar em sala são os Cadernos do Professor e Aluno, organizados por disciplina/série (ano) nos quais são apresentadas as Situações de Aprendizagem com métodos e estratégias de trabalho e sugestões para avaliação e recuperação. Lucia Isabel Aparecida Soares, responsável pelo conteúdo de História na Diretoria de Ensino de Bauru, comenta sobre esse currículo proposto e os cadernos do professor e do aluno e destaca sua eficácia: “esse currículo foi pensado de forma que, ao final dessa abordagem, esses jovens tenham a compreensão exata do significado desse período de regime militar e de qualquer outro de nossa história e o que cada época repre-

senta no presente para todos os brasileiros”. Para Luis Fernando Cerri, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, a importância de um estudo sobre o tema sem escolha de lado é essencial. “Não se trata de defender esta ou aquela versão, deste ou de outro personagem da época ou seus discursos, mas de abrir espaço para os estudos sérios que surgiram na ciência política e na história e que caracterizaram e definiram o papel histórico do regime militar”, observa.

Os livros e os estudantes

Luis Cerri acredita que o material didático tem melhorado na sua qualidade sob a vigilância ativa dos especialistas recrutados pelo Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação, que cria um guia para ser encaminhado às escolas, que escolhem, entre os títulos disponíveis, aqueles que melhor atendem ao seu projeto

político pedagógico. Outra questão importante para entender como o assunto é tratado nas escolas, é reconher que o jovem, hoje, é afastado de questões políticas. Para Fabio Pallotta, professor de História da Universidade Sagrado Coração, isso é um problema da geração: “o jovem realmente está cada vez mais distante de assuntos políticos, e parte disso eu atribuo ao individualismo das novas gerações, ao uso abusivo das redes sociais e também pelo ensino nas escolas ser direcionado apenas para o vestibular, não se voltando para questões políticas. A solução mais próxima para essa situação, encontrada por Luis Cerri, seria convencer esses cidadãos do presente e do futuro de que não há saída individual para os nossos problemas, mas apenas saídas coletivas e solidárias, só assim será possível aproximar esses jovens da política.

O QUE RESTOU DA DITADURA EM BAURU

O

regime militar no Brasil vigorou entre 1964 e 1985, mas suas marcas ainda estão expostas em diversos lugares da socidade. Além das histórias que marcam vidas, ficaram ruas, praças e bairros com nomes de ex-militares e construções que, na época, foram financiadas pelo regime. O jornalista Zarcilo Barbosa lembra que a amizade entre os administradores da cidade e os membros da Presidência da República rendeu bons frutos ao setor financeiro da cidade: “graças a esse bom convívio político, Bauru conseguiu muita verba para obras como a continuação da avenida Nações Unidas e a construção da rodoviária”. Olhando para o mapa da cidade, também encontramos alguns desses resquícios da ditadura e algumas ruas ainda homenageiam pessoas ligadas a essa turbulenta fase do país, segundo o historiador Irineu Azevedo Bastos, que pesquisa em parceria com o Departamento de Água e Esgoto (DAE) os nomes de ruas da cidade. “Há endereços em referência tanto a pessoas que bateram, quanto também as que apanharam durante a ditadura”. No Jardim Quinta Ranieri, há a

por Fernando Martins

rua Irmãos Petit, que remete à história de Lúcio, Jaime e Maria Lúcia Petit, mortos na Guerrilha do Araguaia pela repressão militar. A rua Hermes Camargo Batista, localizada no bairro Jardim Europa, também leva o nome de um ex-guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária. Também até hoje há homenagens feitas a torturadores, militares e pessoas com ligações negativas ao período da ditadura. Antônio Pedroso lembra de um caso peculiar. “Um dos nomes de logradouros mais polêmicos é o que leva o nome de Sílvio Marques Júnior, localizado no bairro Novo Jardim Pagani. Sílvio era professor de Direito no Instituto Toledo de Ensino, a ITE, e foi o fundador da Frente Anticomunista na cidade na década de 60”, explica. Antônio Pedroso cita ainda outro caso que gera discussão: “uma dessas menções inexplicáveis está no Instituto Médico Legal de Bauru, que leva o nome de Jair Romeu, legista do exército que assinava autópsias de torturados, amenizando as agressões ou alterando a causa da morte”. Outro local bem conhecido é o bairro Geisel, que faz homenagem ao presidente Ernesto Geisel, penúltimo presidente militar, um

dos responsáveis pela abertura política do país durante seu mandato.

Erro Corrigido

Em 1980, na cidade de São Carlos, um decreto assinado pelo prefeito Antonio Massei mudaria o nome da rua de “travessa G” para “Rua Sergio Paranhos Fleury”, homenageando um dos maiores torturadores que o país já teve. Só em 2009, Lineu Navarro, presidente da Câmara na época, apresentou o projeto que mudou o nome do logradouro para “Dom Hélder Câmara”, justamente por ser um bispo que sempre lutou a favor dos direitos humanos.

Não foi atentado

Muitos não sabem, principalmente os mais jovens, mas a avenida Nações Unidas já explodiu quase que por inteira. E mais, quase causando um acidente com o presidente da república, Ernesto Geisel, que visitava Bauru no dia. Era 13 de agosto de 1976, depois de um acidente, um caminhão de combustível que tombou na avenida Otávio Pinheiro Brizola, próximo à USP, derramou óleo pela tubulação de toda a avenida Nações Unidas. Por volta das 13 horas, uma

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hora depois de Ernesto Geisel ter acabado de sair da cidade rumo a Jaú, a Nações Unidas explodiu, literalmente, como lembra a professora doutora Terezinha Zanloch: “foi tudo pelos ares e na época houve toda aquela desconfiança de atentado, tanto que Bauru ficou sob investigação da Polícia Federal por cerca de um mês, mas o caso foi confirmado como apenas um acidente”. Rogerio Pereira Arcangelo, proprietário da lanchonete Lelo’s, fundada meses antes da explosão, conta sobre esse dia e como a explosão o forçou a trocar de endereço: “eu acompanhei a passagem do presidente pela cidade, mas na hora da explosão eu já estava em casa. Ouvi um estrondo e depois vi que danificou o asfalto todinho da avenida, formando crateras. Os coqueiros caíram, os bueiros estouraram, assim como os canos d’água. Assim, mesmo sem danificar o trailer, tive que mudar para a Nuno de Assis, onde fiquei até a Nações Unidas ser recuperada, quando me instalei embaixo do viaduto da avenida Duque de Caxias, onde trabalhei durante 17 anos”, recorda-se o comerciante que há mais de 32 anos serve Bauru com seu cardápio de lanches e batidas.


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