Saber cuidar, saber contar

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SABER

CUIDAR, SABER CONTAR:

ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA E SAÚDE POPULAR


UDESC FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA REITOR SEBASTIAO IBERES LOPES DE MELO VICE REITOR ANTONIO HERONALDO DE SOUZA EDITORA DA UDESC ANDRE LUIZ ANTUNES CARREIRA FAED CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO DIRETORA GERAL MARLENE DE FÁVERI


SORAYA FLEISCHER CARMEN SUSANA TORNQUIST BARTOLOMEU FIGUEIRÔA DE MEDEIROS

SABER CUIDAR, SABER CONTAR: ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA E SAÚDE POPULAR

Ilha de Santa Catarina Editora da UDESC 2009


© 2009, Soraya Fleischer, Carmen Susana Tornquist e Bartolomeu Figueirôa de Medeiros

Organização Soraya Fleischer, Carmen Susana Tornquist e Bartolomeu Figueirôa de Medeiros Revisão José Renato Deitos Capa Gracco Bonetti Editoração Rita Maria Xavier Machado

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP Iraci Borszcz CRB - 14/372

F596S

Fleischer, Soraya. Saber cuidar, saber contar: ensaios de antropologia e saúde popular / Soraya Fleischer, Carmen Susana Tornquist e Bartolomeu Figueirôa de Medeiros – 1. ed. — Florianópolis: Ed. da UDESC, 2009 P. 280

ISBN 978-85-8302-139-1 Inclui bibliografia 1. Antropologia médica. 2. Saúde popular – Brasil. 3. Saúde – aspectos sociais. 4. Cura pela fé e espiritismo. 4. Curandeiros. I. Tornquist, Carmen Susana. II. Medeiros, Bartolomeu Figueirôa de. III. Título. IV. Ebook CDU 398.41 616.024

EDITORA DA UDESC RUA MADRE BENVENUTA, 2007 88.035-001 – FLORIANÓPOLIS, SC FONE: (048) 3321 8000


Tem os que passam e tudo se passa com passos jĂĄ passados

tem os que partem da pedra ao vidro deixam tudo partido

e tem, ainda bem, os que deixam a vaga impressĂŁo de ter ficado

Alice Ruiz



SUMÁRIO

POPULARIZANDO O CUIDADO COM A SAÚDE: UMA APRESENTAÇÃO Soraya Fleischer, Carmen Susana Tornquist e Bartolomeu Figueirôa de Medeiros

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SABERES DE CURA: RELATOS SOBRE UMA TENSA INTERAÇÃO ENTRE SABERES LOCAIS, SABERES OFICIAIS E PESQUISA ANTROPOLÓGICA Carmen Susana Tornquist e Tereza Mara Franzoni

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“CONVERSAS DE COZINHA”: SOCIABILIDADE FEMININA E HERMENÊUTICA EM UM CONJUNTO HABITACIONAL DA ZONA SUL DO RIO DE JANEIRO Soraya Silveira Simões

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“QUEM SABE, NÃO MEDE. QUEM NÃO SABE, MEDE TRÊS DEDOS”: A CONSTRUÇÃO DA AUTORIDADE ENTRE PARTEIRAS NA REGIÃO DE

MELGAÇO, PARÁ Soraya Fleischer

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UM PAPEL DE FRONTEIRA E SEUS (NÃO) ESPAÇOS: OS AGENTES INDÍGENAS DE SAÚDE DO ALTO XINGU

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Marina Pereira Novo TRÊS FORMAS DE CURA “ESPIRITUAL”: NA PAJELANÇA CABOCLA AMAZÔNICA, NA RENOVAÇÃO CARISMÁTICA E NA BIOMEDICINA Raymundo Heraldo Maués

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NOS (DES)CAMINHOS DA CURA: IDENTIDADES, DIFERENÇAS E DESIGUALDADES NO UNIVERSO DA PAJELANÇA NO MARANHÃO Antonio Evaldo Almeida Barros

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FÉ E DEVOÇÃO NAS FORMAS DE SE VIVENCIAR UMA DOENÇA - REFLEXÕES E ANÁLISES A PARTIR DA DEVOÇÃO AO PADRE CÍCERO ROMÃO BATISTA Antônio Mendes da Costa Braga

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A MI TUO FO: PRÁTICAS E RITUAIS DO BUDISMO CHINÊS EM PERNAMBUCO E SEUS SENTIDOS TERAPÊUTICOS Marcos de Araújo Silva e Bartolomeu Figueirôa de Medeiros

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EXPERIÊNCIA DA DOENÇA E PERFORMANCE: UMA ANÁLISE PRELIMINAR SOBRE O USO DO PARADIGMA DE PERFORMANCE NO ESTUDO DAS CURAS ESPIRITUAIS

Waleska de Araújo Aureliano

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ALGUMAS REFLEXÕES ANTROPOLÓGICAS SOBRE UMA MATERNIDADE HOSPITALAR FRANCESA

Claudia Fonseca

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AGRADECIMENTOS Esta coletânea contou com a colaboração de muitas mãos. Gostaríamos de agradecer aos autores que prontamente aceitaram o desafio de revisar e retornar seus artigos dentro do ritmo próprio do fechamento das publicações, além de cotizar despesas iniciais na preparação do material. Gracco Bonetti criou a capa, Renato Deitos cuidou da revisão dos artigos e Rita Maria Xavier Machado diagramou o livro, os três trabalharam numa orquestra ágil e afinada. Iraci Borszcz gentilmente elaborou a ficha catalográfica. O Laboratório de Estudos de Gênero e Família da UDESC generosamente garantiu a impressão deste livro, com recursos públicos. Agradecemos todos estes esforços que contribuíram para colocar essa obra na praça, complexificando a reflexão sobre os processos de doença e de saúde, a partir do olhar antropológico.



POPULARIZANDO O CUIDADO COM A SAÚDE: UMA APRESENTAÇÃO SORAYA FLEISCHER, CARMEN SUSANA TORNQUIST E BARTOLOMEU FIGUEIRÔA DE MEDEIROS

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O INÍCIO DO VERBO

Este é um livro que começa e caminha por verbos: conjugados, no infinitivo, no gerúndio, no passado e no futuro. Esta escolha não é gratuita: desejamos chamar a atenção das leitoras e dos leitores sobre a ação que as pessoas empreendem quando lidam com problemas de saúde, sejam enfermidades, doenças, desordens, sofrimentos, angústias, desajustes (Kleinman, 1980; Young, 1982; Farmer, 2007), ou quando vivenciam eventos multifacetados como o parto e o nascimento. Nós nos beneficiamos de um longo legado da Antropologia da Saúde, que veio relativizando pertencimentos excessivamente biocêntricos e hospitalocêntricos quando o caso é tratar de alguém doente (ou uma parturiente) ao mesmo tempo em que ajudou a ampliar enormemente a ideia de “saúde”, para além de estados de doença e de pessoas especializadas em assistir cada um destes estados. Além disso, nesta obra, chamamos atenção para a dimensão do popular, porque entendemos que grande parte do repertório das práticas e dos conhecimentos terapêuticos não oficiais mantiveram sua vitalidade e relevância, seja em termos de resistência ativa, como os movimentos e lutas que atravessam a história de hegemonização da biomedicina, muitos deles de cunho religioso (Foucault, 1982), seja nos processos de persistências mais fluidas e sutis, porém bem eficientes, que têm circulado entre outros grupos sociais, além dos subalternos.

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Esta coletânea reúne autoras e autores que têm pensado sobre realidades pouco visíveis no cenário oficial do cuidado com a saúde no Brasil, que, no entanto, são absolutamente relevantes e significativas para as pessoas envolvidas, tanto os(as) curadores(as) quanto os(as) curados(as). As terapêuticas e os personagens seriam acionados diariamente a partir de uma “saúde popular” justamente pelo fato de fazerem sentido para essas pessoas e não por uma suposta falta de escolha, falta de acesso, de infraestrutura, de informação ou de esperança. Este “conjunto” de faltas, definidoras inexatas das pessoas, não raro é alegado pelos profissionais bem-intencionados, adeptos dos ideais de universalização do serviço de saúde, mas pouco sensíveis às lógicas simbólicas que insistem em preponderar nos interstícios ou nas margens dos serviços. Muito embora em várias situações a precariedade dos serviços de saúde seja notável nos contextos em que vivem estes sujeitos, é notável perceber que os usos que são feitos dos serviços, quando possível, são usos estratégicos e táticos, conscientes e articulados, que denotam claramente a persistência de cosmologias específicas, mais ou menos abertas às trocas com os recursos humanos e materiais oficiais. Sua legitimidade repousa em códigos singulares que as agências de saúde estatais, herdeiras de séculos de higienismo e medicamentalização, cujas justificativas teóricas e práticas estão apoiadas na tradição racional/iluminista, chegam até mesmo a identificar, mas que estão longe de compreender e legitimar, mesmo que muitos de seus profissionais estejam de fato comprometidos com a qualidade dos serviços oferecidos, e, mais recentemente, com a sua universalização. Aqui, encontraremos análises e alusões a um conjunto de especialistas do cuidado e ainda assim nos escapará a especificidade que cada um(a) destes(as) agentes oferece quando se aproximam de outra pessoa para oferecer ajuda. Mas não pretendemos reforçar uma caricatura romantizada dessas pessoas, nem de seus contextos culturais; não pretendemos transmitir que entre esses(as) terapeutas haja uma impermeabilidade à biomedicina ou um altruísmo majestoso em suas ações. Numa via quase contrária a esta, o objetivo aqui é começar a problematizar certas escolhas teóricas que permaneceram tempo demais na Antropologia e reforçaram imagens que têm sido difíceis de desconstruir. Vejamos então quais seriam algumas dessas ideias e como um conceito de “saúde popular” pode servir para pensar os(as) cuidadores(as) reunidos(as) neste livro.

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ALGUMAS TENTAÇÕES E DESAFIOS Em especial, dois verbos conduzirão o diálogo neste livro: falar e fazer, bem

como uma infinidade de outros verbos paralelos e complementares como sussurrar, contar, esbravejar, dizer, declarar, numa ponta, e cuidar, zelar, medicar, abençoar, meditar, sarar, atentar, observar, acompanhar, embalar, benzer, orar, na outra. A eficácia da narrativa para curar nem sempre acontece “soberana e só”, como na encantação xamânica que permite o parto da jovem Cuna, analisada por Lévi-Strauss (1985), já que ali apenas a fala do xamã promove a resolução da tensão. Acompanhadas de medicamentos, performances, dietas, reclusões e tantos outros recursos que as podem acompanhar, as narrativas terapêuticas apontam para a importância da fala, um dos recursos imprescindíveis para a explicação e ordenação de sentimentos e sofrimentos dolorosos: a própria noção de itinerário terapêutico (narrado pelos sujeitos envolvidos), tão importante para a Antropologia da Saúde, tem mostrado que a experiência da doença tem que passar por processos de subjetivação, de nomeação, de comunicação entre o sujeito que dela padece e o especialista, o curandeiro, o rezador, ou mesmo, como nos mostra Soraya Silveira Simões em seu artigo, entre vizinhas que compartilham de experiências sociais. Pois a doença é “um processo construído através de contextos socioculturais e vivenciado pelos atores; (...) um processo subjetivo no qual a experiência corporal é mediada pela cultura” (Langdon, 1996). Paralelamente, a saúde, na concepção holista, que foi a concepção tradicional da medicina – encarada mais como arte do que técnica –, hegemônica antes da invasão da medicina alopática, durante o século XIX, com suas especializações e a compartimentalização do organismo humano, tem sido concebida na perspectiva do “bem-estar geral” do corpo, da mente e do espírito, do holos humano, por conseguinte. O “sentir-se bem”, percebido nas subjetividades individuais e grupais, dá a medida da percepção do “estar com saúde”. Por isso que certas pesquisas em algumas comunidades, nas quais se pergunta aos moradores quais as prioridades para seu bairro em termos de bem-estar, mostram um desacordo desconcertante entre as expectativas dos pesquisadores, geralmente pertencentes às classes médias, e as escolhas das comunidades. O que faz Rodrigues concluir: “Imaginar que um único conceito de saúde ou de doença deva vigorar para todo este país é tão precipitado

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como repetir que um bilhão de chineses comem igualmente com pauzinhos...” (Rodrigues, 1992). Quando reforçamos o “falar” empreendido por estes(as) terapeutas, estamos valorizando os textos nativos, os depoimentos, os desabafos e as confidências, as orações e os conselhos, todos tão caros para ajudar outra pessoa em apuros ou adoentada. As falas, não raro, fazem um duplo percurso: um na direção terapeutadoente, de cunho vertical, desigual, hierárquico; outro, também de cunho vertical, porém na direção oposta: do terapeuta para os poderes sobrenaturais, em estilo orante, para que lhe seja concedido o dom de identificar a raiz do mal, de intuir, por “inspiração do alto”, os remédios eficazes da cura e a correta aplicação dos mesmos. Contudo, não esperamos que estes mesmos textos e falas se encastelem em si mesmos, isto é, sejam recortados e retirados assepticamente de seu contexto e pretendam se sustentar autonomamente. Nem esperamos que sejam extirpados da vida prática das pessoas, como único componente acessível e legítimo etnograficamente. Passamos de uma ênfase exclusiva na estrutura para outra, atenta aos significados e aos sujeitos, justamente os atores da construção e da comunicação desses significados. Embora o que as pessoas narrem em campo seja valioso e geralmente bastante privilegiado em nossos escritos, não gostaríamos aqui de superestimar estes discursos, e eis, portanto, a primeira tentação a ser desafiada. A maneira como, quando, onde e com quem se age, comporta, circula evidencia explicitamente os sentidos e prioridades atribuídos por estes personagens. Seu agir no mundo lhes define e expressa. Há um vaivém intenso entre pensar, falar e fazer; entre fazer, pensar e falar; entre falar, fazer e pensar e assim por diante. Não há uma ordem predeterminada entre essas pontas, mas sim diálogo e, ainda, conflitos e incoerências e também constante inspiração e criatividade entre elas. Além disso, a cura, como muitos capítulos aqui sugerem, pode ocorrer de acordo com a fé e a diversidade de disposições do(a) enfermo(a), que fortemente despertam diferentes atitudes do curador, como resposta à solicitação. O elemento religioso, por excelência, ilustra a dimensão do fazer, o lado ativo destas práticas de cuidado. Às vezes, a cura dos males do espírito, encaradas como possessões de espíritos maus, “imundos”, demanda, da parte do(a) cuidador(a) um tipo de luta das forças do bem contra as forças adversas ao ser humano. Encontramos tal concepção

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entre os indígenas: o processo curativo encarado como “um combate aos espíritos malignos, segundo eles os grandes responsáveis pelos seus males” (Miranda, 2004). As causas espirituais da doença, segundo a concepção predominante entre os afrobrasileiros, por exemplo, são por demais recorrentes, demandando rituais curativos, nos quais as falas se conjugam com performances, nos quais doentes e babás ou iás se envolvem numa luta contra os “encostos” de entidades “malfazejas, esquerdeiras” (Medeiros, 1997). Muitas vezes, tais rituais têm seu prosseguimento com a obrigação de “dar comida ao santo” ao qual se solicita a cura. Contudo, embora os significados – em suas narrativas e seus fazeres – sejam privilegiados aqui, não pretendemos também escorregar em outras duas tentações que, mais e mais, se tornaram ilusórias. Embora estes significados precisem ser firmemente ancorados em um contexto cultural, escapamos de uma pretensão de coerência ou homogeneidade em relação a esse contexto, uma forte tentação que orientou por tanto tempo os etnógrafos. Os(As) cuidadores(as) aqui reunidos(as) reinventam a todo tempo o seu contexto cultural, com idas e vindas, com tentativas e erros e com intercâmbios e reinterpretações incessantes. Não é possível falar de “uma cultura da pajelança no Maranhão” ou que as “parteiras de Melgaço” trabalham dessa ou daquela forma. Estes sujeitos, muito mais do que uma realidade monolítica, representam algumas recorrências e similitudes de valores e práticas, em um dado momento histórico e social. Mas estas recorrências são escorregadias, nem sempre encenadas por todos os sujeitos daquele conjunto, nem sempre reproduzíveis por um longo tempo. Os antropólogos deste livro assuntam, muito mais do que definem, as possibilidades de ideias trocadas e, permanentemente, reinventadas pelos seus interlocutores em campo. “Cultura” pode ser tida como texto, sempre situado, parcial e ficcional (Haraway, 1995; Clifford, 1984), mas também ganha uma imensa e colorida dimensão de prática (Geertz, 1988). E, por fim, uma terceira tentação, que por muito tempo seduziu alguns estudiosos, foi retratar essas populações simbolicamente minoritárias e não hegemônicas como carentes de “progresso” e de “mudança”. Por isso, em vez de “sistema” ou “estrutura”, que passam a imagem de uma completude estática e autossuficiente, preferimos pensar que os significados são fabricados, repensados, reajustados a todo tempo, como tem nos sugerido a antropóloga estadunidense Sherry Ortner (1994),

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por exemplo. Não podemos mais pensar sociedades indígenas, mulheres da periferia, ilhéus ditos “isolados”, para ficar com alguns dos perfis apresentados neste livro, como personagens bonitos (se romantizados), mas simbolicamente mortos, estacionados em um mundo paralelo e heroicamente reminiscente. Não convivem na contemporaneidade por conta de uma magnânima licença concedida pelos “modernos” (na forma de “dar-lhes voz”, por exemplo) nem por uma exitosa resistência empreendida por estes grupos. Não resistem, não sobrevivem nem precisam ser resgatados simplesmente porque não estão isolados num passado irreconhecível. Suas diferenças no trato à saúde, foco aqui, não devem ser motivos para serem afastados ou, pior, estereotipados. Assim, quando consideramos a heterogeneidade e a dinamicidade da vida social, duas orientações-chave que permeiam a proposta desse livro, as regras e os sistemas passam a ser vistos como estando permeadas por um sujeito, ou melhor, sujeitos, atuantes e criativos. Nós questionamos, portanto, aquelas representações de sujeitos que somente cumprem e reproduzem as regras, que seriam “sujeitos sujeitados” sem elaboração e agency. Estamos falando de novas possibilidades que Fonseca, Ortner e outros autores discutidos abaixo têm nos oferecido para lidar com o conceito de “cultura” e, portanto, acabamos falando também de “diferença”. Cristalizar terapeutas populares e religiosos no tempo e no espaço é associar-se a uma ideia de diferença que, primeiro, elege a biomedicina, por exemplo, como uma utopia a ser alcançada por todos, da mesma forma e sem mediações, e, como consequência, reforça a caricatura, a desigualdade e a hierarquia em relação ao outro (Said, 1990), que aparece neste livro, por exemplo, como cirurgiões espirituais, santos curadores ou moradores antigos e cheios de memória sobre o bairro onde vivem. Sugerimos pensar em “diferenças” (Abu-Lughod, 1991), em vez de uma diferença estática, também na ocasião do encontro e da escrita etnográficos, quando estas diferenças surgem a cada pergunta, a cada estranhamento, a cada parágrafo, e permanecem muito tempo depois da pesquisa, nas interpretações sucessivas ao longo dos presentes capítulos, por exemplo.

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CAMINHANDO EM DIREÇÃO A UMA SAÚDE POPULAR

Ao subvertermos as tentações de coerência e permanência e valorizarmos o contexto e o processo, sugerimos que a prática – na forma de falares e, sobretudo, de

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fazeres – presente nos cotidianos das pessoas e indivíduos seja levada em conta. E é com Michel De Certeau (1996) que essa inovadora ideia de prática nutre outra forma de pensar a esfera “popular” dos significados. Vejamos esse ponto em maior detalhe. A ênfase do autor é no jogo, nos lances, nas táticas – pequenas, invisíveis, discretas e geralmente eficientes – que os atores acionam para questionar relações de poder ou instaurar novas formas de viver. Uma prática popular seria o oposto de uma prática oficial, institucional, normativa ou proveniente da elite que detém o mando. Assim, De Certeau nos ajuda a perceber que “popular” não precisa, necessariamente, equivaler a “pobre” ou à “classe social rebaixada”. Popular, nesse novo sentido, indica uma forma específica de fazer e também de falar. Seria uma maneira de fazer extremamente calcada na ação e, portanto, nada passiva ou receptiva. Consiste em uma agência subalterna e, por vezes, subversiva, mas não necessária ou evidentemente pode ser pensada como tradicionalmente excluída. É pela diferença do oficial que essa ação se apresenta como provocadora, embora nem sempre audível ou radicalmente transformadora. O popular seria o pouco disciplinado, disciplinável ou até mesmo uma antidisciplina. Por isso, podemos encontrar o popular e, mais especificamente nesse livro, os(as) terapeutas populares e as práticas populares em saúde, em qualquer contexto ou classe social; em qualquer estrutura, mais ou menos estatal ou institucionalizada. Com a reforma sanitária brasileira e o processo de consolidação do Sistema Único de Saúde na sociedade brasileira, muitos avanços têm sido observados, no sentido não apenas da universalização do direito a saúde, mas também no respeito a diferenças culturais e no controle social pela reforma, que seriam formas de garantir que esta “universalização” não se dê de forma homogênea, autoritária e contrária aos grupos outrora excluídos – de direito – dos serviços públicos de saúde. A saúde indígena nos parece ser o caso paradigmático de acesso universal e saúde diferenciada, como apontam vários pesquisadores(as) dedicados a esta área, entre os quais situamos o artigo escrito por Marina Pereira Novo, neste livro. A autora mostra, num dado contexto etnográfico do Alto Xingu, os fortes limites de operacionalização da proposta de participação comunitária nas políticas de atenção à saúde indígena, já que observou muito mais exemplos de práticas impositivas do modelo biomédico às populações indígenas, reduzidas ao papel de meros usuários do sistema de saúde

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oficial – como se os indígenas, tal qual os grupos populares, fossem ainda definidos pela falta e pela carência, conceitos que se revestem, atualmente, da roupagem da dita “exclusão”. Por outro lado, o crescimento da participação de antropólogos em agências estatais, notadamente a Fundação Nacional de Saúde, tem sido um espaço importante de intervenção antropológica, como coloca Langdon (2004), porém, bastante aquém das demandas dos povos indígenas, que não descartam elementos e tecnologias da biomedicina, mas os utilizam de acordo com seus códigos, interesses e circunstâncias. Assim como os indígenas, muito embora fármacos, profissionais e tratamentos da biomedicina gozem de certa legitimidade entre vários grupos sociais – populares, mas não só –, estes fazem parte de itinerários terapêuticos que incluem – muito mais do que tendemos a pensar – outras práticas de cura, incluindo fortemente as curas espirituais, como mostram os artigos de Raymundo Heraldo Maués, Antonio Mendes da Costa Braga, Bartolomeu Figueirôa de Menezes e Marcos de Araújo Silva e Waleska Aureliano neste livro. A busca de diálogos genuínos, entre profissionais de saúde e antropólogos, com vistas a superar o reducionismo biomédico que tantos limites apresenta, apesar de suas contribuições reconhecidas por grande parte da população quando a ela tem acesso, tem sido buscada e refletida, concomitantemente, há décadas pelos antropólogos envolvidos com os povos indígenas. É deles que vem uma série de ponderações acerca dos desafios trazidos pela presença do olhar dos antropólogos nas equipes de saúde, indo muito além do papel de “tradutores culturais” que deveriam explicar aos agentes de saúde as crenças e práticas das comunidades locais, visando um maior êxito dos programas a elas destinados, ou, no caminho inverso, traduzindo para as comunidades os ditames oficiais, que permaneciam, sempre, inalterados. Fica claro que a qualquer antropólogo que se dedica a atuar na intervenção em saúde popular, além da compreensão dos universos simbólicos específicos das populações envolvidas, dever de ofício inerente à formação antropológica, cabe ainda o desafio de compreender e “saber negociar” com os diversos outros atores envolvidos nos programas de saúde: médicos, enfermeiras, psicólogos, farmacêuticos, gestores, agentes de saúde e auxiliares de enfermagem, por exemplo. O trabalho de Hércules que se apresenta seria imenso (e desanimador) não fossem os vários indícios de que, mesmo sem a nossa “presença” antropológica nas equipes, muitas

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coisas vêm sendo feitas de forma velada mas eficiente pelos próprios profissionais de saúde, pois, também nesta categoria, há heterogeneidades e conflitos. Poderíamos quase falar de um lado popular dentro do Estado, porque aí encontraremos ações e personagens menos acometidos pelas normas e jogando nos interstícios do poder, efetuando mudanças minúsculas e perseverantes, mais ou menos intencionais. Exemplos etnográficos seriam os textos que tratam de uma maternidade pública na França (como veremos no texto de Claudia Fonseca), ou mesmo sobre cirurgia espiritual em Santa Catarina, que trafega tangencial mas inovadoramente pela biomedicina (no texto de Waleska de Araújo Aureliano). E, ao mesmo tempo, também entre os terapeutas populares, há alguns mais e outros menos populares nesse sentido certeauziano, como veremos no capítulo de Soraya Fleischer, sobre as fontes de distinção entre parteiras paraenses. Ao longo dos capítulos, também aparece a importância dos profissionais de saúde oficiais, que, por identificações e por compartilhar de experiências sociais comuns, estabeleceriam alianças – ainda que pontuais – com os(as)usuários(as) dos serviços. Com essa ideia de popular e a ênfase na prática, os pobres bem como as elites ficam menos polarizados e antagônicos porque percebemos como há táticas semelhantes nos dois grupos e nenhum deles consegue mais ser totalmente romantizado para o bem ou para o mal. Dicotomias caem por terra quando percebemos que sujeitos e ações são mais complexos e menos vulneráveis às caricaturas fáceis da antropologia, do folclore e da história. Assim, não somente demonstrações públicas e amplas, por exemplo, seriam dispositivos de resistência ao poder instituído. As microações cotidianas também podem representar pequenas resistências e propostas de mudança. O popular pode, então, ser notado em diferentes intenções e grupos mais ou menos organizados. A contribuição de análises históricas mais sofisticadas e sensíveis às dimensões culturais, como as que temos aqui, com o artigo de Antonio Evaldo Almeida Barros, nos ajuda a perceber, na média duração, o quanto as lógicas e práticas populares de cura, diretamente ligadas à religiosidade popular, resistiram às tentativas de banimento e perseguição policial, para o que contaram com sua forte legitimidade entre camadas médias e mesmo elites, o que nos alerta para evitar o riscos de confinar as práticas, os conhecimentos e as dinâmicas populares a fronteiras muito rígidas; no caso as práticas de pajelança no Maranhão, marcadamente associadas com as populações africa-

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nas aí residentes. Antonio Evaldo sugere que a permanência destas práticas deveuse também a essa capacidade das culturas populares circularem em outros meios, e as implicações (micro)políticas que atores das mais diversas origens tiveram neste processo. Também aqui, assim como nas demais instituições do biopoder, funcionários das alas menos nobres do Estado mostram condutas e escolhas mais próximas à sua experiência social do que uma servidão cega e obediente aos ditames oficiais. E também a relação dos padres católicos com os romeiros no Nordeste brasileiro, retratados no capítulo de Antonio Mendes da Costa Braga, seria uma boa ilustração dessas táticas localizadas e populares (Scott, 1985) de cura e atenção, desafiando muitas vezes as orientações da Igreja Católica.

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O ALINHAVO DE TANTOS VERBOS

Na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, que ocorreu em junho de 2008, em Porto Seguro, Bahia, organizamos dois grupos de trabalho: “Terapeutas, cuidadores e curadores populares: Uma interface entre Antropologia, cidadania e saúde popular”, coordenado por Carmen Susana (Susi) Tornquist e Soraya Fleischer, e “Percursos de saúde no Brasil de Hoje: Religião, corpo e saúde”, conduzido por Raymundo Heraldo Maués e Bartolomeu Figueirôa de Medeiros. Dezenas de papers foram apresentados nestes grupos que, apesar das propostas distintas, dialogavam muito entre si. Nove destes trabalhos foram, então, selecionados, em função de maior afinidade temática, e aqui aparecem em uma versão revisada pelos próprios autores e também permeados pelos comentários e sugestões que partiram dos organizadores do livro. O décimo artigo, que completa a coletânea, tem história distinta. Há muitos anos, a antropóloga Claudia Fonseca divulgou modestamente entre suas redes uma tradução em português de um relatório etnográfico que havia produzido sobre uma maternidade francesa. Até então como “mimeo”, este texto, além de considerarmos fundamental para uma antropologia da maternidade no nosso contexto, aborda de forma absolutamente séria os desafios de uma antropologia “aplicada”, comprometida com a compreensão das diferentes lógicas (sociais, culturais, profissionais) que compõe o campo da assistência na saúde pública, estimulando o debate permanente nas instituições e evitando a cristalização de rotinas que, por mais eficazes que possam ser em um momento ou contexto, precisam ser alvo da reflexividade

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permanente. Além de as parturientes e puérperas – em grande maioria migrantes de países africanos e de grupos de baixa renda – conseguirem burlar certas regras individualizantes e “modernas” durante a internação, contavam com a cumplicidade das funcionárias dos quadros inferiores da maternidade, de quem se aproximavam culturalmente. Neste sentido, o artigo revela a complexidade de uma rede de micropoderes internos aos hospitais, normativa e pedagogizante, mas que conta com o agenciamento dos sujeitos que neles atuam, o que Alberto Groisman cunhou de “cuidado dissonantemente terapêutico” (comunicação pessoal). Estas pequenas solidariedades e flexibilização de regras, muito comuns entre pessoas que partilham os mesmos códigos culturais e entre profissionais marcados por uma sensibilidade cultural bem próxima de um relativismo “amador”, porém sincero, aparecem, de formas distintas, em outros artigos desta obra, que indiretamente revelam realidades institucionais locais (como os de Waleska Aureliano, Marina Novo, Carmen Susana e Tereza Franzoni e Soraya Fleischer, por exemplo). Apesar de rígidas e herméticas, os diversos profissionais de carne e osso contribuem para produzir dissonâncias internas nas instituições e programas de saúde, em benefício direto dos próprios usuários(as), na mesma linha tática que temos sugerido de uma “saúde popular”. Além destes pontos, a presença de Claudia, conforme citamos no início, deve-se à importância que suas reflexões têm tido no campo da antropologia brasileira (para o que, talvez, contribua seu olhar estrangeiro) de chamar a atenção para a dimensão de classe como uma das mais fortemente decisivas na conformação das desigualdades brasileiras, e, ao mesmo tempo, uma das menos analisadas pela antropologia nacional, de resto, tão engajada com as demais desigualdades sociais. (Fonseca, 2004) Assim, esperamos que tanto a ideia de uma “saúde popular” quanto de uma antropologia que valorize a prática sejam notadas nos dez capítulos que se seguem. Estas duas ideias, percebemos, estão resumidas em duas outras alusões. Primeiro, no título dessa apresentação, quando destacamos o gerúndio “popularizando”, o objetivo é divulgar as diversas e criativas formas pelas quais a saúde pode ser zelada e também é aproximar, cada vez mais, a saúde de uma realidade “popular”, como pretendemos discutir nessa apresentação. Isto é, uma saúde ligada às práticas e decisões não oficiais que perpassam esferas institucionalizadas ou não, presentes

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POPULARIZANDO O CUIDADO COM A SAÚDE

em redutos explicitamente empoderados ou não. Segundo, o próprio esparadrapo que foi cuidadosamente escolhido para a capa deste livro pode ilustrar este recurso tão conhecido da medicina dos quintais, dos vizinhos e das famílias (sobretudo das crianças), também, paradoxalmente, nos remete ao processo histórico de perseguição, desqualificação e silenciamento de cosmologias diversas daquela que vigora como “a oficial”, tradição que tem calado e inibido os(as) terapeutas com mordaças, sejam elas físicas ou simbólicas. Muito mais do que fechar em um único significado, o título e a capa pretendem reforçar nosso principal ponto aqui: de que as representações estáticas ou por vezes polarizadas e dicotômicas não passam de um “ouro de tolo” e pouco contribuem para que a disciplina possa prosseguir. Ambivalências, polifonias, contradições e reinvenções – tão presentes nas práticas dos(as) cuidadores(as) populares aqui reunidos(as) – são, de fato, o melhor combustível para formularmos boas perguntas antropológicas.

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SABERES DE CURA: RELATOS SOBRE UMA TENSA INTERAÇÃO ENTRE SABERES LOCAIS, SABERES OFICIAIS E PESQUISA ANTROPOLÓGICA CARMEN SUSANA TORNQUIST E TEREZA MARA FRANZONI1

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SOBRE O PRETEXTO E O CONTEXTO

Este capítulo é fruto de reflexões atuais feitas sobre um conjunto de dados etnográficos construídos em um trabalho de pesquisa e de intervenção desenvolvido entre os anos de 1996 e 1998, intitulado “Núcleos Comunitários de Cultura”: Resgate da história e das manifestações culturais locais no bairro da Armação,2 realizado na cidade de Florianópolis. Os dados etnográficos foram coletados por quatro pesquisadoras,3 em espaços diversos de intensa sociabilidade local, especialmente na escola, posto de saúde, festas, encontros na praia e reuniões das associações comunitárias. Entendemos sociabilidade como um tipo específico de sociação, em sua “forma lúdica”, na qual a busca do outro se dá pelo prazer de socializar-se, como propõe Georg Simmel. Nesse sentido, mesmo em espaços formais, e em formas de sociação explicáveis de um pondo de vista “utilitário”, poder-se-ia encontrar algo mais que não se explica apenas de um ponto de vista racional, de uma perspectiva utilitária. Afirma esse autor: é “algo cuja concretude determinada se comporta da mesma maneira como a obra de arte se relaciona com a realidade” (Simmel, 2006:65). Foram realizadas também cerca de dez entrevistas formais, com homens e mulheres com idade superior a 60 anos. Após termos, em tese, “finalizado” esse

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trabalho, duas de nós realizamos, posteriormente, outras pesquisas no mesmo universo social. Uma tendo por foco questões de gênero (maternidade e partos), outra lançando seu olhar sobre as ações coletivas e processos de disputa política comunitários. A pesquisa tinha como objetivo “apoiar as iniciativas comunitárias4 de resgate da história e das manifestações culturais locais, através da realização de pesquisa sistemática (...) tendo em vista a criação de um espaço comunitário permanente e grupos de moradores que dessem continuidade ao trabalho de recuperação e valorização da memória e das manifestações culturais locais. O trabalho vinha ao encontro da demanda de um movimento social bastante recente naquela ocasião, tanto no bairro como na cidade de Florianópolis, chamado Movimento pela Qualidade de Vida, e que envolvia profissionais de saúde, vinculados ao posto de saúde local, educadores (professores(as) da escola pública municipal) e moradores e moradoras da região. O Movimento fora criado em função de um conjunto de problemas ambientais e sociais que passaram a ser alvo de críticas e de ações coletivas. Seu surgimento está também relacionado à criação de uma espécie de alternativa às associações comunitárias existentes, tradicionalmente vinculadas às oligarquias locais com fortes práticas clientelistas. O Movimento estava organizado em várias comissões: Saúde (focando principalmente o saneamento básico); Educação (discutia as possibilidades de mudanças nas “formas de ensinar” na escola pública local), Meio Ambiente (dedicada a fazer frente à poluição do principal rio da localidade e ao caso da contaminação da água captada e distribuída na região que provocou um surto de hepatite – caso que não só motivou a organização do Movimento como legitimou uma de suas principais lideranças, a médica do posto de saúde); Cultura (donde a ideia de criação de “museus” que “resgatassem” a cultura local, vista como ameaçada pelo processo de “urbanização” e de transformação da região em polo turístico); e, por fim, a Comissão de Cachorros Soltos, tendo em vista o problema provocado pelo excesso de cães sem dono na região. Cabe destacar que deste grupo, além dos moradores antigos, participavam também vários moradores recentes, oriundos das camadas médias urbanas, que migraram, predominantemente, de cidades do sul e sudeste do país, e que mantinham, com os antigos moradores, relações nem sempre muito amistosas. O contexto local destas relações assemelhava-se a vários outros vivenciados na cidade, e remetia

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também à história do fenômeno “migratório” de “fuga” das grandes cidades brasileiras, que desencadeou fluxos migratórios significativos para cidades de porte médio como Florianópolis e Belo Horizonte (CECA, 1996, e Fundação João Pinheiro, 1998). Um dos “sintomas” da tensão presente nas relações entre novos e antigos moradores podia ser detectado pela visibilidade que adquiriram os usos das categorias “nativo” e “estrangeiro”.5 Tanto na mídia local como nos fóruns públicos de discussão sobre planejamento urbano e políticas públicas diversas estas categorias foram sendo legitimadas ao longo dos processos de negociação desenvolvidos no espaço público (Franzoni, 2005), e no cotidiano da Armação percebíamos também o seu alcance deste processo de hiperpolitização destas duas categorias relacionais e seu uso pelas elites econômicas e políticas locais (Fantin, 1998). Nossas relações, no contexto da pesquisa, eram também marcadas e pontuadas por esta gramática relacional das categorias “nativo” e “estrangeiro”. Podíamos perceber que neste jogo relacional éramos vistas, geralmente, como “estrangeiras”. O que muitas vezes se revelava na pergunta/afirmativa: “Tu não és daqui, não é?”. Estas e outras perguntas/afirmativas que nos foram feitas durante a pesquisa podiam evocar ou enfatizar nossa ignorância em relação a fatos e conhecimentos importantes, nossos costumes urbanos e de camadas médias, nossa inexperiência em relação às agruras da vida, nossa incompreensão e várias outras diferenças construídas na relação nós-eles, que eram pontuadas por nossos entrevistados. A evocação da relação nativo-estrangeiro, contudo, não parecia apontar apenas para a diferença, mas para uma diferença pautada na ideia de “legitimidade”, na ideia de que havia pessoas mais legítimas do que outras para falar, discutir e mesmo entender determinadas coisas. Vale esclarecer que o apelo à ideia de “nato”, ou “nascido na localidade”, aparentemente fixado na categoria “nativo”, assim como o apelo à ideia de “adventício”, ou “aquele que vem de fora” aparentemente fixado na categoria estrangeiro, nada mais é, e aí sua importância, do que uma referência relacional e portanto sempre atualizada no contexto da fala, da relação. Não há, neste caso, qualquer substância. Esta tensão permanece bastante viva, nos dias de hoje, tendose estendido para dimensões outras do cotidiano local. Ao andarmos pelas ruas da cidade, encontramos recentemente pichações feitas com os seguintes dizeres: “Fora haoles” (“estrangeiro”, na gramática do “surf” corrente entre jovens da cidade). O haole, nestas pichações, pode se referir a uma nova cadeia de supermercados que

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pretende se instalar num bairro, aos estudantes de uma escola particular, ou aos surfistas de outra localidade (podendo ser esta outro “pedaço” da mesma praia). A depender do “outro”, quem é “estrangeiro” numa dada situação pode ser considerado “nativo” em outra, isto para um mesmo ego de referência, como mostram trabalhos como os de Marcia Fantin (1998) e Tereza Franzoni (2005). A década de 90 em Florianópolis, em que pese o contexto nacional de retraimento de movimentos sociais, foi marcada por uma certa onda de mobilizações similares àquela vivida pela comunidade da Armação: associações e grupos organizados em seus locais de moradia, ligados aos problemas ambientais ou de qualidade de vida, e alguns diretamente voltados às questões de saúde.6 Aliás, foi justamente a partir desta “onda” e tendo as associações ou “movimentos” dos bairros da Armação e do Saco Grande como estimuladores e, depois, parceiros, que fizemos a proposta de trabalho. Por isso nossos interlocutores eram tanto os moradores (antigos e novos) e seus descendentes como os “mediadores sociais” – no sentido indicado por Scherer-Warren (1994) –, moradores ou não, que atuavam na localidade como agentes do estado e/ou de organizações sociais diversas. Entre os mediadores havia profissionais da área da saúde e da educação, assalariados de serviços públicos, militantes de organizações comunitárias e outras de caráter mais amplo. Neste sentido, lidamos não apenas com os “nativos” (no sentido antropológico, ou seja, a encarnação imediata e clara da alteridade), mas também com esses mediadores e com suas ideias sobre “como pensam os nativos”. Lidamos também com o estranhamento destes mediadores em relação a muitas de nossas opiniões e posicionamentos, como aliás é comum acontecer com antropólogos que atuam em pesquisas realizadas sob a “demanda” de grupos de não antropólogos. A título de exemplo, citamos as discordâncias que tínhamos em relação à opinião de muitos mediadores sobre a Farra do Boi – brincadeira de boi comum, e altamente polêmica, no litoral catarinense, em especial na Armação – e as representações locais acerca da gravidez e da maternidade, ambas vistas por vários dos mediadores como manifestações que necessitavam ser modificadas, demandando processos educativos para sua transformação. Este estranhamento dava-se possivelmente pela expectativa, da parte de muitos destes mediadores, de uma certa aproximação, tanto em função das parcerias estabelecidas conosco como em função de que muitas vezes compartilhávamos da

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identificação atribuída de “estrangeiros” em relação aos moradores com os quais e sobre os quais falávamos. Antes de continuarmos, contudo, faz-se importante um alerta sobre os nossos procedimentos metodológicos. Os “nossos” entrevistados e entrevistadas prioritários foram escolhidos entre os moradores mais antigos, inicialmente, vistos por nós, como os guardiões da memória local. Ainda que Thompson (1992), Le Goff (1996) e Bosi (1995), nossos interlocutores teóricos, chamassem atenção para vários aspectos desta construção social da memória, o trabalho de campo foi marcado por uma memória construída por moradores de uma determinada geração (mais de 50 anos, na época da pesquisa) e com uma experiência, cuja característica comum, além da faixa etária, era a de ter morado na Armação a maior parte de sua vida. Atualmente, conseguimos ver como esta escolha determinou inúmeros aspectos da relação de pesquisa e das respostas que encontramos para as questões que nos preocupavam na época. Este é um dos principais limites deste trabalho e, neste sentido, é o que ele nos oferece como possibilidade para reflexão. Quando falamos dos entrevistados e dos moradores com quem interagimos, estamos nos referindo a determinado conjunto de moradores, dos depoimentos e olhares deste mesmo conjunto. Se, por um lado, foi bastante gratificante ouvir estes contadores de histórias, por outro, é preciso admitir que abrimos mão de outras perspectivas e histórias possivelmente bastante elucidativas para compreender o que nos propúnhamos. Os moradores antigos da Armação que participaram da pesquisa, na sua maioria nascidos na localidade, pautam suas vidas, como é comum às comunidades em processo de urbanização, por valores e referências de outras cosmologias que, ora se contrapõem, ora se complementam. Por um lado, advindas das relações próprias de um mundo rural, religioso e de influência ibérica, as relações pessoais determinam grande parte das regras de relacionamento e as hierarquias estabelecidas entre estes moradores. Estas vertentes aqui se traduzem nas relações de compadrio, na importância dos laços de vizinhança e de parentesco, que por vezes se sobrepõem, nas quais pais e filhos dividem a mesma terra para morar e plantar sua horta, onde os favores não são pagos ou sequer quantificados na forma monetária, mas transformados em dívidas eternas cujos filhos são consignatários. A mesma dívida que compromete o devedor, compromete também aquele que fez o favor, como uma responsabilidade/obrigação de ajuda. Esta relação se transfere para a família e se transforma

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numa relação de parentesco, através da categoria “padrinho”. O “padrinho”, tradicionalmente ligado aos rituais religiosos (batismo, casamento, festas etc.), funcionando como um mediador e facilitador das horas de dificuldade, é encontrado agora no mundo urbano, na vida púbica, tanto na política institucional como no mundo extrafamiliar no sentido mais amplo. Esta categoria, ainda que tenha perdido muitas de suas características tradicionais, permanece em síntese com sua principal função, mediar e facilitar a vida nos momentos de dificuldade (a vaga na escola, um emprego para o filho, o material da construção da casa, uma infração que precisa ser resolvida etc.), tal qual o papel dos santos na Igreja Católica: interceder, ante um poder maior, pela vida e felicidade daquele que pede e que fica dele devoto. Até hoje, essa cosmologia envolve em um modo de vida onde se trabalha muito (na horta, na renda, na quermesse, na casa dos filhos, no fazer tradicional da comida, do lavar a roupa, do cuidar a terra, do esperar o peixe, do arrastar a rede, do caminhar muito), mas onde o trabalho remunerado, assalariado, é feito, quando preciso, de forma complementar. A transformação dos “meios” em “bens”, como a venda das terras herdadas, por exemplo, se dá também nos momentos de necessidade (um filho doente, uma construção, um filho que casa). Venda esta que, num contexto de transformação do mundo do trabalho, vem acarretar processos de fragmentação familiar, que até muito recentemente operavam na lógica do campesinato, e forçam, em muitos casos, à nuclearização das famílias e dispersão de seus membros para localidades situadas fora da ilha. A outra referência na vida dos moradores antigos, mais recente, porém não menos importante, é a das relações próprias do mundo urbano, e que aqui tratamos como relações individualistas, no sentido dumontiano. As relações deste tipo são primeiramente, distantes, pois se referem ao centro urbano da cidade, local que se atingia após longas caminhadas, num processo quase sempre ritual, e para relações, quase sempre, de cunho comercial. Mesmo com a chegada do ônibus, é mais comum entre os mais velhos a utilização deste meio para visitar filhos, parentes e amigos no Pântano do Sul e em outras localidades próximas do que “ir à cidade”, um local que geralmente se vai com a companhia de alguém mais novo que se locomova bem neste meio ainda estranho e cada vez mais visto como “perigoso”. Até a data da pesquisa encontramos moradores que nunca haviam saído da Ilha “atravessado a ponto”, como dizem. Entre os mais antigos, é comum encontrar

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quem nunca tenha ido ao centro urbano de Florianópolis, só conhecendo este através de relatos e pela televisão. Posteriormente, a chegada da urbanização é também vista como algo “estrangeiro”, pois chega com os moradores vindos de fora, vários inclusive de outros estados e, mais recentemente, de outros países. São relações cujo tempo nada tem que ver com o sol e com a lua, com o inverno e com o verão,7 com métodos cíclicos de mensurar o tempo, ainda correntes na localidade, sobretudo entre os mais idosos. É o tempo do relógio de pulso, dos horários de ônibus, do fechar e do abrir dos serviços públicos (posto de saúde, posto de telefone, posto de correio); é também o tempo da entrada e da saída da escola, das férias escolares das crianças e dos jovens, que agora voltam seus olhos para um “futuro” que não se restringe àquele lugar; por fim, é o tempo do trabalho assalariado na “cidade”.8 Assim, a atividade turística e o comércio, que foram incrementados nas últimas décadas, trouxeram para estes agricultores-pescadores, bem como para outros trabalhadores que formaram grande parte da periferia urbana de Florianópolis e dos municípios vizinhos, modificações significativas nas suas vidas. Um modo de vida estrangeiro, que veio de fora, cheio de novas hierarquias nas quais os moradores locais ocupam, via de regra, as posições inferiores. Esta dura realidade contrasta com os discursos governamentais e empresariais , que desde então vem concentrando seus discursos em ideais modernizadores e desenvolvimentistas muito peculiares, enfatizando os supostos benefícios que o “desenvolvimento turístico de alto luxo poderia trazer à Ilha e a seus moradores”. Neste contexto, a venda de terras para pagar dívidas e sustentar um novo modo de vida, antigo mecanismo acionado em épocas de abundância de terras, no caso dos moradores antigos, tornou-se também um dos principais mecanismos de expulsão da população tradicional de suas localidades de origem, donde se encontrava também a rede de relações familiares. Este “novo modo de vida” foi sendo adotado pelos moradores, através da integração à sociedade de consumo e a estas novas relações de trabalho, que se colocaram como alternativas já a partir dos anos 60, face à marginalização da atividade pesqueira artesanal frente ao desenvolvimento da pesca industrial. A corrosão desta economia de pequena produção mercantil simples marca fortemente o que alguns autores chamam de modo de vida ilhéu (CECA, 1996), e contribuiu grandemente para o processo de integração à

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sociedade envolvente. Estas mudanças, no entanto, não se deram de forma absoluta e, muito menos, inconsciente por parte dos sujeitos que as vivenciaram: notamos que este processo tem sido alvo permanente de questionamentos pelos moradores(as), fazendo parte dos diversos espaços de sociabilidade e envolvendo diferentes dimensões da vida (alimentação e saúde, organização familiar, trabalho, clima etc.), como veremos depois, nas narrativas e nas entrevistas. Talvez porque a rapidez com que a modernização se deu permita que convivam, sob o mesmo teto, gerações cujas experiências de vida são bastante diversas, talvez porque os ditos “efeitos” perversos do processo de integração à sociedade de consumo revele, muito rapidamente, no plano da experiência, as falácias dos discursos oficiais e empresariais acerca do “desenvolvimento da cidade”. Este complexo processo não será aprofundado aqui, mas destacamos apenas que há aspectos desta “modernização tardia” que são rápida e voluntariamente assumidos pelos moradores mais antigos, enquanto outros parecem ter desdobramentos diversos e visíveis apenas a médio prazo (Tornquist, 1996, e Franzoni, 1993 e 2007). Além disso, a lógica especulativa de valorização do preço da terra tem sido uma das maiores responsáveis para a cisão entre área continental, para onde se expande a malha urbana, da grande Florianópolis, e a parte insular, cada vez mais ocupada pelas segundas residências, e pela elevação do preço da terra (Pimenta, 2004), isto sem falar dos altos impactos ambientais que o projeto de turistificação tem acarretado nas últimas décadas. Neste contexto, aos agricultores-pescadores que, até meados deste século, viveram distantes da modernidade em função do isolamento geográfico e histórico da Ilha, cabem agora os empregos mais repetitivos, com longas e extenuantes jornadas de trabalho, e as piores remunerações no amplo leque de serviços que vem se ampliando a olhos vistos. Por exemplo, é bastante comum encontrar, entre funcionários das empresas de segurança e limpeza privada, homens que alternam as jornadas de 24 horas neste tipo de serviço com a atividade pesqueira nos dias de folga, seja para complementar o suprimento alimentar da família, seja como forma de manter um determinado espaço de sociabilidade. A atividade turística e o comércio foram incrementados nas últimas décadas, estimulando o processo de metropolização da Grande Florianópolis (Alves e Baeninger, 2008). Em conseqüência disso, um fluxo migratório de trabalhadores empobrecidos que vêm trabalhar na construção da cidade e dos prédios públicos e autarquias, assim como na condição de trabalhado-

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res/as domésticos/as, na casa dos funcionários de nível superior, marcou a década de 70 (Franzoni, 1993). Foi possível observar uma tensão constante entre o apelo à urbanização e um outro modelo, experimentado pelos antigos moradores e/ou construído em suas memórias. Contra as “benesses” da urbanização eram contrapostos a insegurança, o medo, a indiferença. Esta percepção não estava longe daquilo que para Simmel (1989 e 2005b) define a modernidade: a perda da substância, a incerteza, a transição. No entanto, nosso desafio, como o deste autor que nos inspira na reflexão sobre a pesquisa, é o de não ver a racionalidade de forma necessariamente negativa. Para este autor, ela é valorizada como vida do intelecto e, neste sentido, a vida na pólis pode ser pensada como possibilidade da própria filosofia. Esta perspectiva pode apontar para pensarmos as relações entre sociabilidade e subjetividade, como sugere Velho (1989), além de pensarmos também a partir da ideia de Simmel sobre o desenvolvimento de culturas subjetivas (2005a). Como nossos entrevistados, atravessados pelos dilemas das violentas transformações pelas quais estavam passando, também nós, enquanto pesquisadoras, sentimos a necessidade de repensar a própria relação que estabelecemos, e as transformações que sofremos ao longo desta relação. A perspectiva proposta por Simmel, neste sentido, não só nos permite recolocar algumas questões sobre nossos “dados”, como também nos “recolocarmos” na produção destes e na agência do conhecimento que produzimos.

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A OFICINA DE CHÁS E ERVAS: ENTRE A NARRATIVA E A “ORDEM” Após cerca de um ano da observação participante e da realização de entrevis-

tas com os moradores(as), tendo por foco os momentos coletivos, passamos a nos encontrar com um grupo de mulheres da Armação, no que viemos a chamar, juntamente com os demais organizadores do evento, de Oficina de chás e de ervas. Antes da realização da oficina, quando perguntamos aos jovens nesta e em outra pesquisa (Tornquist, Clemêncio, Farias e Silva, 1996) sobre a utilização de chás e ervas medicinais, a primeira resposta era que “não sabiam nada desta coisa”. Mas, diante de nossa insistência, arrematavam: “Ah, isto é coisa dos antigos, a minha avó, ela conhece”. Depois, com o aprofundamento dos contatos, ficamos sabendo que os antigos (as avós, as tias, as mães, as sogras) utilizavam estes recursos com certa frequência, inclusive ministrando-os para aqueles que diziam desconhecer o assunto: o uso de

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chás. O uso dos chás de antigamente não era, até onde pudemos observar, incompatível com o uso das modernidades biomédicas oferecidas no posto de saúde local. Sendo inclusive o posto uma espécie de território misto, onde não apenas eram oferecidos os serviços de saúde oficiais, como também, enquanto espaço de sociabilidade muito frequentado pelas mulheres, servia como espaço de socialização de muitas das receitas dos chás e remédios de antigamente. A Oficina de chás e de ervas foi um acontecimento privilegiado para refletirmos sobre a complexidade das relações que estabelecemos no local, e foi emblemática de muitas das tensões decorrentes dos encontros entre novos e antigos moradores, entre moradores e mediadores sociais e entre estes todos e nós pesquisadoras em trabalho de campo. Após a primeira oficina, da qual participou o maior número de pessoas, as demais oficinas passaram a se desenvolver nos sábados à tarde. Este evento estava articulado com uma série de outras atividades desenvolvidas junto à escola pública local e que envolviam reflexões sobre produção artística, artesanal e constituição de um museu, ou, como preferíamos falar, um espaço comunitário de cultura. Ele era, de certa forma, um desdobramento das comissões de saúde e de educação do Movimento pela Qualidade de Vida. Apresentava-se, ao mesmo tempo, como um momento de troca e vitalização do uso dos chás e ervas medicinais, como também um momento privilegiado de coleta e registro de dados sobre os usos e costumes relativos às práticas de cura, assim como sobre as transformações e resistências de práticas tradicionais e das concepções locais acerca destas e das novas práticas. O nome “oficina” tinha relação com a proposta metodológica da pesquisa, na qual a produção de registros sobre a memória local dar-se-ia através de diferentes eventos como saraus, encontros, brincadeiras, caminhadas e oficinas (encontros temáticos com dinâmicas diversas), além das entrevistas individuais e coletivas. Os mediadores de posto de saúde também tinham um interesse especial nesta oficina, pois tinham a intenção de criar no posto uma horta comunitária de ervas medicinais para produção de remédios fitoterápicos, para serem distribuídos pelo posto, com apoio de moradores. Os mediadores da escola estavam um pouco mais adiantados neste sentido, já tendo inclusive produzido com as crianças sabão contra piolho e sarna. Eles tinham também interesse em apoiar a iniciativa e desenvolver outras

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atividades na escola. A partir das oficinas, posteriormente, veio a se formar um grupo permanente que se encontrava para produzir xaropes, pomadas, sabonetes medicinais, bem como para conhecer outras experiências de saúde popular existentes na cidade e para organizar uma espécie de herbário. No caso da primeira oficina, nossa tarefa junto ao grupo que a estava organizando era a de registrar os nomes das plantas e seus usos, a partir dos relatos das moradoras mais antigas, para fazer um compêndio das receitas. Neste sentido, nossa tarefa nesta oficina assemelhava-se muito àquela dos clássicos folcloristas (coleta, registro e socialização de saberes que todos considerávamos “em vias de extinção”). Pelo menos, era o que nós pensávamos que iria acontecer até o início dos trabalhos. No primeiro sábado, vieram mais de 50 mulheres, a maioria com mais de 50 anos, e apenas dois homens (com aproximadamente 30 anos). Se no início da pesquisa já se colocavam questões que nos faziam pensar sobre as relações de gênero, nesta oficina esta dimensão apareceu de forma privilegiada: o tema da oficina parecia ser um tema eminentemente “feminino”, a autoridade da fala estava na mão das mulheres, foram as mulheres que se sentiram convocadas a participar, era sobre suas experiências com a medicina familiar que se iria tratar, eram elas que eram reconhecidas por todos como as principais cuidadoras da saúde dos parentes e dos vizinhos. A interlocução entre “nós”, pesquisadoras, entre as “mediadoras sociais” e entre as novas e antigas moradoras era atravessada por experiências e referências comuns, em meio a diferenças outras. Uma condição predominante entre as mulheres era a de “mães”. Tínhamos, com nossos filhos e filhas, problemas que se assemelhavam: piolhos, diarreias, febres, gripes, ansiedade, angústia etc. Outra condição comum era a de mulheres com experiências de casamento. Esta também estabelecia cumplicidades diversas, em particular no que se referia às receitas caseiras para acender o desejo de sexo nos parceiros. Neste caso, as pesquisadoras solteiras, na época estudantes, eram solenemente desqualificadas nas rodas de conversas, mediante piadas e referências jocosas ao seu desconhecimento do tema. A similaridade entre este campo específico de conhecimentos feminino com outras pesquisas realizadas em outras regiões do país (Tornquist, 2004) nos apareciam como reveladores das formas como mulheres de classes populares vivenciam ativamente sua sexualidade. A dimensão de gênero, por sua vez, relacionava-se com os assuntos dos quais tratávamos (cuidados com

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familiares e com pessoas conhecidas), os quais tiveram que ver, historicamente, com a divisão sexual do trabalho familiar. Também nesta localidade, de tradição luso-açoriana e afro-brasileira, às mulheres tinham cabido os saberes e poderes ligados a esta esfera, que nós chamamos de “íntima” ou “privada”, dos partos às mortes, das doenças e das dores, do alívio e da cura. Este era um dos assuntos que – antes e independentemente da “oficina” – faziam parte da vida daquelas mulheres e da nossa própria. A médica do posto teve papel de destaque na divulgação do convite para a oficina, não medindo esforços nas suas consultas e nas suas conversas com os passantes em insistir para que todos e todas que tivessem alguma erva para mostrar comparecessem. As professoras envolvidas no projeto também lembraram seus alunos para convidarem seus familiares. Principalmente aqueles que eram conhecedores dos males do corpo. Nós contribuímos confeccionando e distribuindo pequenos cartazes em lugares públicos e comerciais no bairro. As mulheres (velhinhas, diriam alguns), chegaram na hora marcada, um sábado após o almoço, traziam sacolas plásticas, destas de supermercado, recheada de molhinhos de folhas diferentes ou maços de plantas nos braços. Algumas foram vistas colhendo estas plantas pela manhã, por uma de nós, que morava na comunidade. Esta história fazia parte de suas narrativas, que indicavam a exata procedência da erva, nome, local onde foi colhida, onde podiam ser encontradas outras iguais ou de efeitos similares, caso fosse necessário. Elas iam entrando na escola (este outro local que aqui se faz público, um território, dada a forma como é apropriado pelos moradores locais) e se dirigiam ao pátio interno, sentavam-se, conversavam e riam num encontro bastante animado. Na hora marcada, vieram pontualmente mulheres de vários locais da Armação e do Pântano do Sul, localidade vizinha com a qual muitos moradores da Armação têm laços de parentesco. Dona Florisbela foi uma delas, uma senhora que deve ter aproximadamente 70 anos, que mora no Sertão do Peri, uma das áreas de mais difícil acesso na região. Ela foi das primeiras a chegar para o evento. Após descer o Sertão do Peri caminhando sozinha durante hora e meia (“rapidinho”, segundo padrões locais), chegou na oficina muito animada, com claro e ardente desejo de falar e de ser escutada pelas “colegas” (outras senhoras, de idade aproximada). Estas outras nos contaram que há muito não viam Florisbela por perto, e que ficaram

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felizes em revê-la. Além das “senhoras”, estavam também algumas mulheres mais novas (por volta de seus 30 anos) que se identificavam a partir da escola (em função do vínculo de trabalho e/ou em função de grupos que ali se reuniam). Todas trouxeram, conforme pedido, plantas medicinais para mostrar ao grupo. Da parte das organizadoras do evento estavam presentes também a médica do posto e uma outra moradora, (ambas advindas de uma geração intermediária entre as duas anteriores); elas se identificavam como representantes do Movimento pela Qualidade de Vida da Armação. E, por fim, o grupo de pesquisadoras, uma das quais moradora da Armação. Em termos de faixa etária nos situávamos entre o grupo de mulheres mais novas. Feita a introdução sobre os objetivos e a dinâmica da oficina (tarefa dividida entre as organizadoras), a médica do posto pediu que cada uma das participantes se apresentasse, apresentando também a erva que havia trazido, falando de suas qualidades e propriedades medicinais. Enquanto cada uma das senhoras se apresentava, uma das organizadoras – assim como nós pesquisadoras – tentava anotar os nomes das ervas e suas utilidades. A médica, que coordenava as apresentações, tentava ordenar as falas, pois todo o tempo as várias senhoras – e nós mesmas, em momentos diferentes – complementavam e acrescentavam à história daquela que falava, comparavam e indicavam outras ervas e procedimentos para os casos contados, mostravam outras ervas com mesmo nome, propriedades ou indicações para aquela que falava. Apesar da tentativa de manter a vez de uma falante de cada vez, tudo acontecia como se uma teia fosse se desenhando, onde cada “nó” poderia levar a muitos caminhos e a outros nós. Utilizando um vocabulário cibernético, poderíamos dizer que era como se cada link (erva, história, situação, doença etc.) pudesse acionar outras tantas informações aparentemente autônomas e desconectadas, “lincadas” pela memória, pela curiosidade, pela dúvida e por tantos outros caminhos que escapavam à racionalidade que presidia nossos objetivos iniciais. Nossa tentativa de registrar, classificar e organizar as ervas, seus nomes, sua imagem, em uma estrutura e história lineares foi, já de início, sendo frustrada. Não havia gravador, filmadora, ou mesmo escriba (que tentávamos ser) que “desse conta” de tamanha polifonia e movimento. Além disso, como dissemos, elas não se detinham em apresentar o nome da erva, conforme fora pedido, nem tampouco trouxeram apenas uma erva (houve

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algumas que apresentaram mais de dez tipos diferentes, sem por isso omitir sua opinião e seus conhecimentos sobre as outras que as vizinhas haviam trazido), falavam dos usos, dos detalhes que as faziam distintas das parecidas, dos locais onde encontrá-las, das doenças que seriam capazes de aliviar ou de curar. Mas nada era falado como se fosse um receituário ou uma lista, cada erva tinha uma história, uma prova de que era eficaz. Cada erva tinha uma imagem, um cheiro, um detalhe que desencadeava muitas lembranças não apenas naquela que a apresentava, mas nas mulheres que a escutavam. As tentativas para ordenar e regrar a palavra foram inglórias, as tentativas para registrar e quantificar os casos em que tal ou qual erva surtia efeito, também. Mas o que nos parecia um descaminho, uma imprudência, veio a se tornar um acontecimento privilegiado para nossa própria reflexão. As histórias contadas eram sobre filhos, netos e vizinhos, curados após terem “tentado de tudo”, após serem “desenganados pelos médicos”, após estarem com “o destino traçado”. As ervas eram apontadas como algo poderoso, escondido atrás de uma aparente fragilidade. Cada história trazia uma espécie de conclusão que pode ser resumida nesta frase: “Tem que ter muita persistência, eu levei anos para curar”. Uma história após outra era contada com um roteiro que se repetia: o desafio ao “veredito” dado pelos médicos (e aos seus métodos), muitas vezes a descrença dos parentes, a persistência e a cura. Tratava-se de narrativas terapêuticas, marcadas por uma história pessoal, da qual participavam vários personagens, e nas quais a dimensão poética da “arte verbal” estava presente. Maria Lucia da Silveira (1998), ao analisar os casos de mulheres consideradas como “doente dos nervos”, em uma localidade do sul da Ilha de Santa Catarina, observou também esta forma narrativa de relatar ao outro (à antropóloga, às vizinhas, aos profissionais de saúde, ao farmacêutico) os detalhes da doença e suas prováveis causas. O que interessava a elas (as que contavam e as que escutavam, atentamente) não era o interesse quantitativo, classificatório e “científico”: ali, a especificidade de cada uso, o contexto e os sujeitos envolvido no “itinerário” do doente e da cuidadora eram a base da rememoração dos casos. O que era compartilhado era justamente a situação toda de cada evento, detalhado e performatizado. Na Oficina de chás e ervas os relatos vinham em profusão e despertavam nos ouvintes as emoções de uma boa narrativa: risos, espanto e solidariedade que aparecia em outras histórias que confirmavam as primeiras. Nossa ansiedade, contudo,

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em ouvir sobre as práticas e os desafios de um conhecimento tradicional que hoje volta a ser referência em práticas institucionais como a homeopatia, nem sempre era compartilhada pelos demais mediadores sociais ali presentes. Todas aquelas histórias, todas aquelas ervas, coexistiam com as instituições modernas de saúde (farmácias, hospitais, postos, médicos etc.), que se colocavam, muitas vezes, como formas superiores e como a superação das primeiras. Elas questionavam, em sua existência, a ideia de “sobrevivências”, comumente atribuída ao habitus popular, visto como algo que aos poucos vai desaparecendo pelo desuso ou desconhecimento dos mais novos. Os relatos falavam da coragem necessária para manter a sabedoria num mundo que ameaça com o sofrimento e a morte aqueles que não seguem os preceitos da modernidade. Da coragem ante um mundo que desacredita seus velhos enaltecendo uma juventude sem passado, um conhecimento sem valores e sentimentos, uma cidade sem memória e uma vida sem mistérios ou ilusões. Aquelas “velhinhas” eram muito mais do que aquilo que pareciam ser andando pelas ruas, às vezes cambaleando, ou esperando nas filas, que não submetem a todos, mas àqueles que estão mais frágeis. Ou “aparentemente frágeis”, porque as histórias, que depois entendemos como “narrativas”, falavam não de fragilidade e de submissão (performances não raro desempenhadas por aquelas mesmas mulheres, em outras situações), mas de seu papel quase crucial na vida familiar local. Falavam das vezes em que filhos e filhas, enteados, cunhados, genros, netos e bisnetos eram trazidos para elas, pois só elas poderiam lhes dar o alívio e a cura necessários.

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AS FORMAS TRADICIONAIS E OS SISTEMAS ESPECIALISTAS: ETHOS E

CONHECIMENTO

Aquele primeiro constrangimento que encontramos em campo, junto às pessoas mais novas (mas não só), negando a existência de “curandeiras” na comunidade, justificava-se, talvez, diante dos significados que nós, “pesquisadoras da universidade” ou “mulheres modernas”, assumíamos diante deles, em função de processos sociais mais amplos nos quais estávamos todas inseridas. Esta negativa inicial parecia assemelhar-se àquela feita pelas gerações mais novas, que, só após recorrerem ao posto de saúde e desiludirem-se com ele, apelavam ao recurso doméstico. Os itinerários terapêuticos eram certamente variados, idas diversas ao posto de saú-

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de, uso de inúmeros medicamentos, eventualmente o recurso a um médico homeopata ou um especialista de outra área, idas à “cidade” para exames de laboratório, assim como a menção às benzedeiras ou a centros religiosos apareciam nas narrativas. Elas englobavam tanto elementos do sistema oficial de saúde quanto os recursos caseiros das mulheres antigas. Não havia, neste sentido, entre “tradicional e “moderno”, ou entre conhecimentos populares e biomédicos, exclusão, ou mesmo incompatibilidade necessária. Embora, em algumas vezes, o processo de modernização venha tornar mais secretas as práticas “de antigamente”. Ilustrativo é o caso do impetigo, uma afecção cutânea inflamatória comum entre crianças na tenra idade. Várias participantes da oficina contaram sobre suas filhas que levaram primeiro seus filhos ao posto de saúde, para só depois, desiludidas com as alternativas biomédicas, recorrerem – ou às vezes apenas pararem para ouvir – às alternativas propostas por suas próprias mães, hoje avós, que haviam inclusive tratado delas quando acometidas do mesmo mal. Qual era o “segredo” daquele conhecimento, daquela tradição que permanecia viva nas folhas verdes dos quintais, nas histórias de cura, na graça e nos sorrisos? Um conhecimento que permanecia em Dona Camila, na autoridade de Dona Ana, nos conhecimentos não ditos de Dona Clarice, na curiosidade de Dona Lúcia, que de tudo levava uma pequena prova para casa, e das tantas outras senhoras cujos nomes registramos em nossas anotações. Levar, trazer, dar, oferecer parecia fazer parte desta ética de cura que ensinava a partir da construção das relações e que também não concebia a cura fora destas relações. Com elas era possível se ter muito mais do que algumas “informações” sobre uma dada erva e seus poderes de cura. Com elas era possível aprender um modo de vida, um ethos, que tem paciência em ensinar aos seus, que respeita a experiência, a fala, o fazer junto e a fé em mistérios cujas explicações não dependem apenas da razão e da sistematização formal, ainda que muito têm destas duas formas em seus conhecimentos. Os conhecimentos sobre as plantas e suas propriedades eram próprios do mundo rural – em sua peculiaridade na Armação –, e suas referências estavam intimamente relacionadas às diversas fases da vida, assim como às histórias contadas pelas mães destas, que já são avós. São conhecimentos produzidos e reproduzidos sob o ethos deste mundo, passados e repassados por diversas gerações. Nossa ansiedade em sistematizar e “divulgar” este conhecimento, assim como outras manifes-

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tações culturais locais, tinham muito que ver com nossa forma moderna e científica de conceber o mundo. Mesmo que situadas no campo de uma medicina “crítica” como a homeopatia e outras medicinas alternativas, e no campo de experiências populares como a Associação Vida Verde, do outro bairro da pesquisa, na qual mulheres mais velhas mantinham um viveiro de ervas medicinais e produziam remédios naturais,9 situávamo-nos em outro lugar. Os relatos feitos pelas senhoras da oficina eram um discurso estranho às práticas modernas de relação com a doença, com a vida e com a morte. Nossa geração, e aqui nos referimos ao grupo de pesquisa, mas também ao grupo de mulheres mais novas, em sua maioria aderiu a um corpo de sistemas especializados, “perdendo-se” das formas tradicionais de relacionar-se com o saber sobre o corpo e os processos de cura. A ideia de sistemas especializados vem de Giddens (2002), para quem a confiança nestes sistemas (entre os quais a medicina moderna) é uma característica fundamental da modernidade. Para o autor “os sistemas especializados põem entre parênteses o tempo e o espaço, dispondo de modos de conhecimento técnico que têm validade independente dos praticantes e dos clientes que fazem uso deles. Tais sistemas penetram em virtualmente todos os aspectos da vida social nas condições da modernidade” (Giddens, 2002, p. 24). A geração dos letrados, da multimídia, da informática, da globalização das culturas, não consegue curar uma gripe ou uma dor de barriga sem auxílio médico, ainda que os procedimentos, as dosagens adequadas, os sintomas, os diagnósticos, estejam disponíveis em livros, na internet, nas bibliotecas universitárias e nas enciclopédias. A confiança depositada num médico, assim como num engenheiro ou num cientista, garante uma “segurança relativa” na vida diária em relação a determinados perigos e incertezas. Esta confiança, contudo, não se estabelece a partir da experiência, das relações pessoais, ou mesmo do reconhecimento e conhecimento do saber utilizado. Ao contrário, ela é dada pela própria confiança no sistema especializado que legitima este médico, engenheiro ou cientista. As pequenas histórias, relatos de cura, provas da eficácia das plantas levadas pelas senhoras no dia da oficina, faziam uma crítica profunda à dependência moderna aos especialistas e à quase total falta de conhecimento das gerações mais novas. Estava colocado, sob muitos aspectos, o questionamento sobre o próprio modo de vida moderno, que alardeia ter tudo, saber tudo e poder tudo. Assim como o

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questionamento sobre um jeito de se viver que advoga ser o mais sábio e ter o mais verdadeiro dos saberes, colocando no exílio todas as outras formas de conhecimentos. Questionaram abertamente o poder dos médicos, que, por mais que não tenham vivido nada daquilo que leem, por mais que não tenham visto nada daquilo sobre o que falam e por mais que não tenham sentido quaisquer dos sentimentos que estudam, são, por serem especialistas, aqueles que devem dar a última palavra. Relataram o fracasso dos médicos e sua própria vitória, a vitória de um saber mais difuso, menos arrogante e mais lento em sua transmissão. A vitória de um saber mais efetivo em seus resultados e em sua permanência e que ainda são compartilhados pelas diversas gerações, ainda que de formas nuançadas. O tom comparativo e analítico dos moradores e moradoras mais velhos e a desconfiança em saber se realmente tínhamos conseguido entender como eram as coisas “naquele tempo”10 foram constantes em todas as falas. As comparações eram feitas como um rol de prós e de contras, como se fosse habitual, cotidiano, para eles(as) colocar na balança as vantagens e desvantagens entre os tempos antigos e os de “hoje em dia”. Tais movimentos revelam o quanto o processo de mudança/ modernização é recente e também o quanto estas pessoas estão implicadas e sendo reflexivas diante deste processo. Estes aspectos nos remetem a outras observações feitas em campo, não apenas focadas na temática da saúde e que incluíam informantes de várias gerações: “moderno” e “tradicional” convivem e se articulam entre si, e é impossível afirmar que a urbanização promoveu tranquilamente a modernização de comportamentos, práticas e representações. Pelo contrário, ainda que muitas sejam visíveis a “olho nu” (arquitetura, decoração, moda, relações de trabalho, onomástica) elas seguem de par com as antigas tradições, ora perceptíveis na cultura material, ora simbólicas e subjetivas.11 Mas as senhoras que participaram da oficina disseram ainda mais. Ao falar das propriedades dos chás a partir das histórias de cura, curas de pessoas conhecidas, de parentes e amigos cujas identidades se relacionam com as suas, falaram que os chás que ficam em nosso conhecimento (que não são esquecidos) são aqueles que têm trajetórias: carregam histórias de cura, cujas pessoas têm nomes, endereços, idiossincrasias, sendo que as doenças têm uma espécie de personalidade que pode ser descrita em seus jeitos e trejeitos, a sua cura é um processo e um caminho cheio

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de escolhas, adequadas e inadequadas, aquilo que chamamos itinerários terapêuticos, e que não excluem a ida ao posto de saúde nem a busca de determinados remédios ou exames, mas o fazem num contexto no qual os saberes “tradicionais” estão presentes, e, quiçá, dão o sentido mais amplo do próprio itinerário. Essas mulheres falavam-nos de como estas “manifestações culturais” se transmitem, se transformam e como podem ou não permanecer. Num primeiro momento, os relatos pareciam falar de coisas que nos eram estranhas, mas, quanto mais ouvíamos, mais eles nos soavam familiares: quantas de nós não sabíamos de algum chá para cólica, dor de cabeça ou males que acometem, depois de alguns excessos, o fígado? Os chás que lembrávamos eram aqueles que nossos pais, vizinhos e parentes nos indicaram a partir de diagnósticos feitos por eles e que nós mesmos um dia passamos a diagnosticar e receitar para os outros (filhos, vizinhos, amigos), eram aqueles que usávamos quando crianças, que temos plantados no jardim e cuja folha ou cheiro nos é familiar. As senhoras orgulhavam-se de nos passar, em voz baixa, algumas receitinhas, cujas histórias são de ocasiões nas quais cometeram excessos, principalmente em ocasiões especiais como as muitas festas em que as sociabilidades cotidianas ampliam-se, quando os parentes de longe chegam, quando as “comunidades vizinhas” reúnem-se. Muitas vezes, no afã de tudo anotar, de classificar e quantificar as plantas e suas respectivas propriedades (como pretendíamos fazer inicialmente), objetivando confirmar e generalizar aquele conhecimento, o mais importante (a trajetória da cura) se perdia. Durante o relato das senhoras, nós, as mais novas, anotávamos os nomes das ervas, suas propriedades e como eram usadas. Mas não conseguíamos captar todas aquelas memórias, a riqueza daquelas narrativas, costuradas por fios de vida, casos, nomes, sentimentos, vitórias e derrotas ante os males do corpo, e eternos questionamentos acerca dos processos de mudança em curso, não apenas os mais recentes, mas os diversos pelos quais passa aquela população. Nada se reduzia ao “preto no branco”, tudo era muito colorido, cheiroso, sonoro, personalizado, emocionante.

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OS CHÁS, AS RELAÇÕES E A PRÁTICA ANTROPOLÓGICA

O processo de troca e transmissão de conhecimento não se dá de forma linear ou organizada. Dá-se numa espécie de caos, com lógica própria, movida por neces-

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sidades múltiplas. As nossas tentativas de anotar, fazer falar uma de cada vez, fazer com que todos ouvissem ao mesmo tempo e com o mesmo interesse, não garantia que a informação (aquela que realmente tem algo a dizer ao nosso modo de vida urbano e moderno) permanecesse viva, Parece-nos hoje que é justamente o contrário. Pois este é um conhecimento fugidio, que se esvai, e pode perder o sentido (como um corpo ao morrer perde seus sentidos) ao ir para o papel, para a fita, para o filme. Muitos dos relatos transformam-se em ruído nas formas de registro asséptico, pois para este tipo de registro não interessam os sopros de vida, a capacidade de agenciamento das pessoas, as escolhas, relações etc. Quantos remédios e procedimentos desacreditados pelos especialistas – médicos, dentistas, educadores –, muitas vezes com apoio dos seus próprios filhos, netos e maridos, foram mantidos graças às práticas daquelas senhoras que nos contavam seus feitos. E aqui abrimos um parênteses para nos perguntarmos: Estas mulheres não adoeciam? Os malefícios não as atingiam, apenas aos seus? Na nossa análise, os silêncios acerca de suas prováveis doenças deviam-se ao fato de que estas narrativas, feitas neste espaço público e para outras mulheres, tinham como propósito também acentuar seus poderes e saberes, enquanto cuidadoras de sua família. E, enquanto pessoas que – apesar do crescente desprestígio de seus conhecimentos – seguiram tendo uma importância significativa no cotidiano e na manutenção da unidade familiar. Daí o tom “heroico”, comum em outras análises que fizemos (caso das parteiras, que acentuam as dificuldades encontradas na assistência ao parto e como conseguiram superá-las, conforme Tornquist, 2007) e que tem, na forma narrativa, um lugar e/ou uma forma privilegiada de expressão. Certamente, a dimensão narrativa conferia a cada história contada este tom heroico, que era reiterado pela audiência, que, naquele contexto, dirigia-se a nós, as mediadoras (vale lembrar que a coordenadora da oficina era a médica do posto de saúde local) e, por outro lado, as “colegas”, as outras mulheres da comunidade. Aliás, várias dessas mulheres frequentavam o posto de saúde, local que fazia parte do itinerário terapêutico de muitas delas, não apenas em busca de cura para seus familiares, mas também para elas próprias, provavelmente quando suas próprias receitas caseiras não funcionavam, ou na busca de uma complementaridade entre diversos tipos de medicina. Ao falar de seus conhecimentos medicinais, as mulheres falavam, inevitavelmente, de como o processo de mudança em curso era vivenciado por elas, como

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desconfiavam das promessas de melhoria e de progresso, e de como nesses processos o adoecimento e a cura eram interpretados por elas. O aparecimento de doenças desconhecidas e as dificuldades de solucioná-las deixavam várias perguntas sem resposta: o câncer, por exemplo, que já acometera muitos da região, aparecia como a mais emblemática das doenças. Ainda que mesmo este possuísse alguma explicação: era associado pela maioria a mudanças na alimentação e no modo de vida como um todo. Uma das explicações era de que “antigamente, não se guardava comida por tantos dias”. Naquela ocasião, não nos chamou atenção um fenômeno que, neste momento, está sendo alvo de pesquisa específica, a depressão (Maluf, 2006), também nesta comunidade se vê a expansão quase epidêmica dos males da depressão e, também, em que pese a sua excessiva medicalização, percebem-se explicações relacionadas às mudanças no modo de vida “em geral” e sua articulação de processos de cura biomédicos, buscados pelas pacientes, com outras formas de aplacamento do sofrimento mental. O registro e o ato de escrever, um dos deveres de oficio dos(as) antropólogos(as) talvez seja uma parte ínfima de uma miríade de possibilidades que a antropologia pode desencadear. Este foi um dos aspectos que ousamos pensar a partir da realização deste trabalho que reverberou, por algum tempo, ações diversas na região tanto por parte da escola e do posto de saúde locais como por nós mesmas, em nossos trabalhos atuais. Mas o mais importante é perceber a dinamicidade da cultura (aspecto que teoricamente nos seduz), bem como a capacidade de agenciamento e resistência dos sujeitos (aspecto político com o qual nos identificamos), principalmente em processos de mudança tão dramáticos como os que experimentam os moradores da Ilha de Santa Catarina nas últimas décadas. Aí nos parece residir o desafio para uma antropologia engajada ou “da ação”. Caberia, ainda, pensar alternativas para o tempo presente no qual isso, que, heuristicamente, tipologizamos como tradicional e moderno, convivem, de forma tensa e paradoxal, ampliando os repertórios que alimentam as escolhas realizadas pelos sujeitos. Ilha de Santa Catarina, agosto de 2009.

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NOTAS 1

Professoras dos Departamentos de Ciências Humanas e de Artes Cênicas da UDESC, respectivamente. 2 Pesquisa desenvolvida na Universidade do Estado de Santa Catarina, em parceria com o Centro de Estudos Cultura e Cidadania (organização não governamental que atuava na cidade de Florianópolis, nos anos 90) e com o Movimento Pró-Qualidade de vida do Sul da Ilha (organização não governamental, de âmbito local, que atua na Armação e no Pântano do Sul), ambas voltadas às questões de ecologia e cidadania. 3 Fizeram parte da pesquisa Maria Alice Bonilha e Ana Beatriz Bahia Bittencourt, na época estudantes de artes plásticas e bolsistas de pesquisa CNPq / PROBIC. 4 Utilizamos o termo ético “comunidade”, em função das parcerias estabelecidas pela pesquisa, mas o termo êmico seria “Armação”, nome da localidade, que também não se mostra adequado à noção urbana de “bairro” nem de “balneário”. 5 É neste sentido que percebemos a equivalência entre o par “nativo” e “estrangeiro”, com outros pares relacionais como “manezinho” e “gaúcho” e, mais recentemente, “manezinho” e “paulista”. 6 No início dos anos 90, surgem vários fóruns e articulações de organizações não governamentais e associações comunitárias, que assumem bandeiras ambientais e de qualidade de vida, revelando esta onda de mobilização (CECA, 1996). 7 Ainda que, no caso específico do verão, em função do turismo sazonal de Florianópolis, esta estação introduza também um ritmo próprio. 8 “Cidade” é o nome muitas vezes utilizado para falar do centro urbano de Florianópolis. 9 O sentido de “remédio” aqui é bastante restrito e refere-se especificamente a produtos do tipo: tinturas, sabonetes, garrafadas, pomadas e xaropes de preparo caseiro. 10 Como diz Ecléa Bosi, a partir de suas conversas com velhos, é a sensação de que as lembranças são “particularidades”, preciosidades de difícil compreensão pelos outros: “aqui vocês nada podem tocar e nada podem destruir” (Bosi, 1995). 11 Em pesquisa anterior observamos o quanto as formas de organização familiar “tradicionais” estão vivas na comunidade, agora articuladas com elementos de um ethos moderno (Tornquist, Clemêncio, Faria & Silva, 1996).

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“CONVERSAS DE COZINHA”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIABILIDADE FEMININA NUM CONJUNTO HABITACIONAL DA ZONA SUL DO RIO DE JANEIRO SORAYA SILVEIRA SIMÕES1

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INTRODUÇÃO2

Uma emoção é sempre uma “aventura coletiva”. Esse entendimento, fundamentalmente pragmático, é a base do argumento deste capítulo. Não há emoção capaz de mobilizar pessoas, seja em ações individuais ou coletivas, senão aquelas ressonantes. Do contrário, diz-se logo tratar-se de louco, profeta ou visionário aquele que sente, lembra e se mobiliza sozinho, desimpedido de qualquer comoção. A emoção deve, assim, ser formada, esclarecida, definida, canalizada, situada para ser compartilhada, compreendida. Para isso, há procedimentos. E o próprio conceito de “sociedade” pode e deve, aqui, ser interpretado como sendo o seu conjunto. Além de um repertório de procedimentos de formação e socialização, uma sociedade também se revela a partir de um acervo de lembranças, de uma memória coletiva que se cultua e cultiva através da arte narrativa. Esta, por sua vez, exige um público que saiba ouvir para captar os seus mais variados tempos e movimentos. E é precisamente este público, com o seu saber e as circunstâncias de sua formação, o objeto de nossa atenção. Pois quem conta uma história o faz para um ouvinte qualificado do qual se espera entender as razões do narrador. Histórias, afinal, mobilizam as pessoas, lembra o jurista Wilhelm Schapp em seu estudo sobre as narrativas. “E uma história bem contada, isto é, que tenha captu-

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“CONVERSAS DE COZINHA”

rado a atenção imaginativa dos seus ouvintes, faz de cada um deles candidato a recontá-la”, complementam Mello e Vogel (2000), autores que reconheceram a importância do legado sobre as narrativas deixado por Schapp. Neste processo de se contar e ouvir histórias ganha forma um tipo específico de organização social da experiência da qual “decorre o postulado segundo o qual não há nem pode haver narrativa desinteressada” (ibid.). A narrativa, portanto, tem sempre um destinatário que ajudará o narrador, por sua vez, a dar certos contornos, certos modos de dizer uma história para que esta, “suscitando a empatia, torne comunicável a experiência complexa” (ibid.). Para que as histórias, entretanto, alcancem esse estado ótimo de comunicação, é preciso, ainda, que saibamos o lugar e o momento mais adequado para que elas sejam contadas de maneira apropriada para a boa compreensão da audiência. Antes do que e por que nos lembramos, importa, aqui, como nos lembramos. Com esta abordagem original, proposta por Halbwachs, em 1925, situamos a possibilidade da anamnese – e, portanto, da memória e dos sentimentos – em um quadro social, deslocando o foco de um indivíduo em particular e da sua subjetividade em direção a um sujeito que lembra e sente a partir de um dado contexto onde encontra as condições necessárias para o enquadramento do vivido. Ao perguntar como nos lembramos, restituímos à memória e à história – individual ou coletiva, tanto faz – sua mais notável potência: a já citada organização social da experiência. Aqui, lembranças, histórias e, por conseguinte, emoções dependem de seus respectivos quadros como condições incontornáveis para a produção de um passado, mas também, e sobretudo, de modos de sentir que se manifestam e se perpetuam no presente. As narradoras e as ouvintes das histórias que vamos agora conhecer são parte de um contexto urbano onde seus “casos” ganham vida e sentido especial. Flexiono aqui o gênero – as narradoras e as ouvintes –, pois estas histórias, do modo como são contadas e interpretadas, revelam alguns dramas constitutivos do universo feminino e, mais precisamente, dessas habitantes da cidade que têm em comum não somente papéis sociais – são mães biológicas e adotivas, esposas, “mulheres”, “trabalhadoras” etc. –, mas também o endereço – o conjunto habitacional Cruzada São Sebastião do Leblon – e as experiências que ali encontram lugar.

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SORAYA SILVEIRA SIMÕES

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O LUGAR “A Cruzada”, nome como hoje chamam o Bairro São Sebastião do Leblon,

foi construída nos anos 1950, às margens da lagoa Rodrigo de Freitas, pela associação católica Cruzada São Sebastião, fundada por Dom Hélder Câmara. Com o apoio dos governos municipal e federal, a iniciativa pretendia urbanizar todas as favelas da então capital federal em um prazo de dez anos e com isso fazer face à política de remoção de favelas que já se anunciava (Simões, 2008; Slob, 2002). A favela da Praia do Pinto, extinta nos anos 1960 por obra de um incêndio, foi a primeira beneficiária das obras de urbanização da Cruzada. Hoje, cinquenta anos depois de deixarem os barracos para residirem nos apartamentos dos dez prédios, erguidos pela Cruzada entre a lagoa e a praia do Leblon, os moradores se veem ainda constrangidos, em diversas situações cotidianas, por terem seu endereço associado à favela. Por conta disso, lhes negam empregos ou lhes reservam lugares subalternos. A caridade da Igreja, a responsabilidade social das empresas ou a repressão policial atualizam, a todo instante, os limites que reúnem esses moradores em uma “população”.3 Os jornais de grande circulação reforçam os estereótipos veiculando notícias que têm na Cruzada um único cenário: o de batidas policiais e “reduto de bandidos” (Cf. O Globo, 2004). Como se não bastasse, as dívidas de IPTU, também noticiadas nas manchetes dos jornais (Ver O Globo, 2007 e Simões, 2008),4 de tempos em tempos reacendem o fantasma da “remoção” que, entre os anos 1960 e 1970, impulsionou a maior diáspora compulsória de moradores da cidade, “removidos” das favelas, sobretudo daquelas situadas na Zona Sul do Rio, para conjuntos habitacionais situados nas periferias da cidade. Portanto, o nivelamento condicionado pela perspectiva da pobreza – ainda hoje associada à ideia de favela – e, por conseguinte, da dívida torna indistinta, muitas vezes, a heterogeneidade existente entre os moradores da Cruzada e as relações estabelecidas entre esses e os demais moradores do bairro. Instala-se o sentimento de usurpação de suas características singulares e de todo o esforço investido cotidianamente na condução de suas vidas pessoais. Os estereótipos que pululam no imaginário urbano carioca restituem, entre os moradores da Cruzada, a ambiguidade da falsa homogeneidade, situando o complexo de relações entre vizi-

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nhos, condôminos, parentes e amigos naquele sistema mais amplo, representado pelo bairro do Leblon, ou, ainda, pela Zona Sul do Rio de Janeiro. De acordo com uma pesquisa realizada pela Companhia Estadual de Habitação (CEHAB), em 2000, 39,35% das famílias que se mudaram da favela para os apartamentos permanecem na Cruzada; 32,26% compraram o imóvel regularizado de terceiros. Do total de 71,61% de proprietários, 63,87% residem há mais de 25 anos no local. Os imóveis em situação de aluguel somam 9,03% e 15,49% é o universo das ocupações consideradas irregulares e também nestas duas últimas categorias encontram-se pessoas que viveram ou têm parentes que vieram da Praia do Pinto. Muitas são as associações existentes no conjunto e o levantamento feito pela CEHAB mostra que 17,42% dos moradores exercem atividades no seu condomínio e/ou na Associação de Moradores; 50,70% participam de grupos religiosos, 33,80% de grupos esportivos, 5,63% de grupos recreativos e 5,63% de grupos culturais.5 Nos apartamentos também são oferecidos serviços dos mais variados tipos, em sua maioria prestados por mulheres e voltados para o público feminino. Depiladoras, manicures, cabeleireiras especializadas em penteados afro, vendedoras de cosméticos, roupas, doceiras, rezadeiras e explicadoras vendem seus serviços anunciando-os em cartazes afixados nas paredes e entradas dos prédios. As pensões também estão espalhadas em quase todos os blocos, especialmente nos primeiros,6 e atendem, para almoço e jantar, os trabalhadores da região. Também elas são administradas, em sua maioria, por mulheres que são auxiliadas, no atendimento e na cozinha, por parentes. A intensidade com que as pessoas participam da vida umas das outras, seja cedendo panelas, emprestando alimentos, vendendo produtos ou prestando serviços, acolhendo em suas casas filhos, netos ou sobrinhos de parentes e vizinhos, é, por isso, significativa. Além disso, o exíguo espaço de cada unidade propicia a extensão da casa para além de suas fronteiras, fagocitando corredores e áreas adjacentes. Plantas, bicicletas, roupas, papagaios, crianças com seus brinquedos são presenças constantes nos corredores. Portas e grades nos corredores marcam as delimitações estabelecidas pelo constante uso privado de áreas comuns. Nos peitoris, tapetes estendidos e, vez por outra, um colchão para secar ao sol. As portas e janelas frequen-

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temente abertas dos apartamentos permitem que o olhar vagueie das escadas e corredores dos prédios vizinhos e invada o ambiente doméstico. Para a intensificação desse arranjo e para a configuração da ideia de vizinhança, outros dados também colaboram. Nas genealogias abaixo podemos ver o crescimento e a permanência das famílias nos prédios da Cruzada. Embora a estatística mostre que apenas 39,35% destas que vieram da favela tenham permanecido no conjunto, é importante ainda considerar as configurações que uma família nuclear assume, seja na sua forma estendida, seja através das adoções de filhos de vizinhos ou mesmo de senhoras de idade.7 Essas redes de parentesco nos permitem não só acompanhar e remontar ponto a ponto os laços de reciprocidade que envolvem todo o circuito das trocas no local, mas também considerar com mais vagar e refletir sobre as comodidades viabilizadas pelos bens (donativos materiais e simbólicos) que circulam entre seus componentes, além de verificar como e até que ponto uma face dos conflitos da “comunidade” se articula com uma suposta transposição da moralidade privada para o gerenciamento do público. No primeiro diagrama, vemos a concentração da família de Ego numa mesma unidade da Cruzada. Essa convivência em um quarto e sala de exíguos 24m² os obriga a criar estratégias para o uso do espaço e do tempo de permanência no apartamento, tal como sistemas de rodízio para o descanso e o banho, por exemplo, além de uma separação bastante singular dos esquemas de privacidade conjugal ou mesmo celibatária.

GENEALOGIA 1

*Somente as pessoas as quais ego inclui no seu circuito de parentesco estão referenciadas nas legendas.

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A1 pai (mora na Cidade Alta, em Cordovil)

C1 sobrinha (Bloco 7)

A2 mãe (Bloco 7)

C2 marido de sobrinha (Bloco 7)

B1 irmão (falecido)

C3 sobrinha (Bloco 7)

Ego (Bloco 7)

C4 sobrinho (Bloco 7)

B2 irmã (Bloco 7)

C5 sobrinho (Bloco 7)

B3 cunhado (falecido)

C6 sobrinho (Bloco 7)

B4 irmã (Bloco 7)

C7 sobrinha (Bloco 7)

B5 cunhada (mora no exterior)

C8 sobrinha (Bloco 7)

B6 irmão (falecido)

D1 sobrinha neta (Bloco 7)

B7 (Bloco 1, madrinha de D1 junto com Ego) B8 (Bloco 4, madrinha de C4)8

O segundo diagrama também apresenta grande concentração de parentes de Ego nos prédios do conjunto, além destes estenderem-se para as favelas próximas e encontrarem-se ainda na Zona Oeste da cidade, para onde foram transferidos outros tantos moradores da favela Praia do Pinto.

GENEALOGIA 2

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MATERNO

PATERNO

A1 Tataravô

C1 Avô

A2 Tataravó (ficou em Minas Gerais)

C2 Avó (mora no bloco 1)

B1 bisavô

D4 Pai (mora na Rocinha)

B2 Bisavó

D2 Tia (mora no bloco 1 com as

C3 tia-avó

filhas E2 e E3 e o neto F1)

C5 avó (mora no bloco 7)

E1 marido da prima (mora na

D5 Mãe (falecida)

Cruzada)

D7 Tia (nasceu na Cruzada)

E2 prima (mora no bloco 1)

D9 Tio (mora na Cruzada)

F1 filho da prima (mora no bloco

D13 Tio (mora no bloco 7 com C5)

1)

Ego (mora sozinha no bloco 2/410)

E3 prima (mora no bloco 1)

E9 irmã (mora no centro da cidade)

E4 filho do pai (mora na Rocinha)

E10 irmão (mora na Cidade de Deus)

E5 filho do pai (Rocinha)

E11 primo

E6 filho do pai (Rocinha)

E12 prima

E7 filho do pai (Rocinha)

E13 prima E14 primo E15 primo E16 primo (mora no bloco 9 com a avó materna) E17 prima (mora no bloco 7)

A localização dos membros citados na segunda genealogia mostra ainda que todos moram em casas pertencentes ou geridas por mulheres, quando não moram sós. Netos e filhos residem com as avós. O pai de Ego, assim como os quatro filhos do seu segundo casamento, embora more na Rocinha, “vive na Cruzada”, domínio de sua ascendência materna. O mais importante em todo esse esquema de relacionamento é a separação entre o grupo familiar materno e o paterno. No grau dos avós, sejam pais da mãe ou do pai, Ego apresenta seus cognatos a partir da ascendência e descendência das avós, talvez porque a partir desta geração com a qual ainda se convive tenham sido elas as provedoras das gerações posteriores. Isto, no entanto, é apenas uma conjectura, ainda que plausível.9

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A partir dessa breve exposição do parentesco, dos laços de compadrio e do acolhimento de pessoas (jovens ou idosas, “nascidas e criadas” no conjunto ou imigrantes recém-chegados) nos apartamentos da Cruzada, é que ali, do mesmo modo como em Tikopia, “ninguém fica sem parente”.10 Ser afiançado moralmente, seja através do acolhimento esporádico ou constante, por pessoas (sobretudo mulheres, chefes de família) reconhecidas pela comunidade de vizinhos, pode ser muitas vezes determinante para a vida pública do novo morador. Entre os moradores da Cruzada, é possível notar a significância dessa espécie de matrilinearidade. O fenômeno é sensível em muitas outras localidades ditas de “baixa renda”, mas enveredar por essa pista significa esvaziar o seu conteúdo local, pois, conforme dizia Firth e, depois dele, Clifford Geertz, “como sempre, o contexto é suficiente para dar o sentido” (idem: 356) que de fato interessa, especialmente ao etnógrafo.

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SOCIABILIDADE FEMININA

Sociabilidade, conforme a definição de Simmel, é a forma lúdica da sociação, que, por sua vez, é a “forma pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem seus interesses”. A importância das interações que ganham a forma sociativa reside no fato de que elas conduzem o homem a viver com outros homens, agir por eles, com eles, contra eles, organizando, deste modo, de maneira recíproca, as condições necessárias para que ele influencie os outros e seja por eles também influenciado (Simmel, 1983). É importante, ainda, esclarecer que lúdico, na língua portuguesa, é algo “que se faz por gosto, sem outro objetivo que o próprio prazer de fazê-lo”. O antepositivo “lud(i)-”, possui como acepções possíveis a noção de “jogo”, “divertimento”, “recreação”, “recreio, folga”; mas também “joguete”, “insulto”, “zombaria”, “ultraje”. Supõe “divertir-se”, “gracejar”, “fazer festa”; ou, em outro sentido, “jogar com”, “fazer conluio”, “ludibriar”. Todas essas acepções são contempladas pelo inglês to play: “representar”, “brincar”, “jogar”. “Sociabilidade”, como figura em dicionários da língua portuguesa, é, por sua vez, uma “característica do que é sociável”, um “prazer de levar a vida em comum”, uma “inclinação a viver em companhia de outros”, uma “aptidão para viver em sociedade”, uma “socialidade”. O antepositivo “soci-”, presente em todos esses

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termos, significa “que acompanha”, possuindo também, como acepção, as ideias de “aliado” e de “companheiro”. O que importa para os nossos propósitos, entretanto, é ressaltar o caráter fundamental e estratégico dos vínculos, constantes ou efêmeros, do estar juntos para este conjunto de mulheres que têm em comum alguns papéis sociais, a condição de serem migrantes (que um dia chegaram ao Rio de Janeiro, indo morar na favela da Praia do Pinto) ou filhas de migrantes e o endereço.11 Portanto, chamo de sociabilidade feminina o tipo de sociação, de interação cotidiana, que tem lugar nos apartamentos – sobretudo nas cozinhas, ou seja, no domínio da casa, da domesticidade, do foyer proeminentemente regido pelas mulheres – e através da qual se transmite e se adquire uma série de medidas fundamentais para a exposição adequada de si no mundo exterior – a partir da perspectiva das mulheres. Ressalto, desde já, que o tópico que permeia e amalgama esta sociabilidade é, contudo, a convivência. Para fins estatísticos, convém ainda dizer que oito dos dez prédios do conjunto são administrados por síndicas e que a Associação de Moradores foi, até início de 2009, presidida por uma mulher, apoiada pela chapa “Mulheres em Ação”. Além disso, 59,35% das famílias residentes na Cruzada São Sebastião são chefiadas pelas mulheres, enquanto 40,65% o são pelos homens.12 Ou seja, um número considerável de conflitos coletivos e domésticos é administrado por mulheres. O acesso, entretanto, a esse tipo de sociabilidade que qualifico de feminina é franqueado pela cozinha, esse lugar, por excelência, do fazer. Mas, “de um fazer repetitivo, banal”, como assinala Sefarty-Garzon (2003). São estas qualidades de um fazer constante, justamente, as que fazem da cozinha uma oficina que em nada deve àquela do alquimista. Ambas são da ordem da transformação. Do cru e do cozido, do estranho e do hóspede, do prescrito e do interdito, do sujo e do limpo, da pedra filosofal para se converter algo ordinário em objeto de grande valor. A cozinha, recinto de entrada cotidiana das casas ocidentais, opõe o estado de natureza ao estado de cultura. E, se nela se elabora o alimento, elaboram-se, também, nesse local marcado pela oralidade, as soluções para os problemas da vida e da alma. Na língua portuguesa, o próprio verbo comer advém da ideia de comensalidade (com + edère), que, por sua vez, implica o hábito de frequentar a casa de e comer junto com aqueles que nela habitam.

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Comer junto, conversar. “A cozinha é o lugar desse duplo prazer, lugar dessa oralidade que toma inúmeras formas e se exprime de maneira irredutível através dos múltiplos e minúsculos imperativos do gosto pessoal, do estilo próprio de fazer a cozinha, de comer e de falar” (ibid.: 171). O balé de gestos, encenado por quem se ocupa da preparação do alimento na cozinha, levanta odores e sabores. Ao seu redor, uma melopeia convidativa se precipita diante do recém-chegado, envolvendo-o de modo sutil nessa hospitalidade tão significativa de uma casa, composta de dimensões sensíveis ao olfato, ao paladar e ao tato, todos esses sentidos frequentemente eclipsados pelo império da visão. Como que desprovido de uma face visível, pública, o tipo de trabalho que se exerce na cozinha para a manutenção dos corpos da família “parece cair fora do campo de uma produtividade visível, valorizável” (Giard, 1980). Mas as mulheres para cujas casas se dirigem outras mulheres têm ou já tiveram a oportunidade de mostrar, publicamente, algumas de suas qualidades, especialmente as morais. São síndicas, “barraqueiras”,13 atuam em frentes coletivas, dirigindo a Associação de Moradores da Cruzada, o Conselho de Síndicos, o Clube das Mães; criaram a creche e outras associações políticas, esportivas ou sociais no conjunto; ocupam-se com o próximo e com o bem comum14 e são chamadas pelos demais moradores de “fundadoras”, categoria local para a ideia de “velha guarda”. Aqui, porém, trata-se de uma categoria flexionada no gênero feminino. São mulheres; mães, sobretudo, que vieram removidas da favela da Praia do Pinto para os apartamentos da Cruzada São Sebastião – conjunto que, ao contrário do que ocorre com as favelas, tem uma data precisa de fundação – e que, hoje, são uma espécie de relicário dessa experiência única e original que a Cruzada São Sebastião proporcionou aos favelados da ex-capital federal. São, enfim, pessoas que guardam uma memória coletiva e que estabeleceram localmente uma identidade pública da qual emana o seu poder e autoridade. Soninha é “barraqueira” e mora no primeiro bloco da Cruzada São Sebastião, onde ficam os apartamentos menores, conjugados. Ali, o único cômodo congrega inúmeras atividades femininas em um mesmo momento. Nesse gineceu vespertino, suas parentes, amigas e vizinhas se reúnem para a realização das tarefas. Se Soninha precisa aplicar a henna nos cabelos, sua irmã, que mora no bloco 3, é quem vem lhe aplicar o produto. Munida de luvas e pincel, forra o chão com jornal de

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modo a preservar o piso claro dos respingos negros. A amiga Daisy, moradora do bloco 2, nesse momento, prepara-lhe a comida e, entre um tempo e outro de cocção, vai até o térreo levar ou trazer contas para pagar. A irmã sai para o trabalho e uma vizinha chega para substituí-la, trazendo consigo outro produto para finalizar o tratamento dos cabelos de Soninha. Nesse intervalo, ela pega o celular e telefona para o filho. Quer saber se ele está com todos os seus documentos. Na ocasião, explica que sempre lhe faz a mesma pergunta, pois tem consciência de que na cidade em alerta, como anda o Rio de Janeiro, “a cor é um problema”. A discriminação que podem vir a sofrer encontra-se intrinsecamente associada ao contexto urbano específico em que vivem. Em outra vez, quando não carecia de cuidados com a estética, as amigas presentes em sua casa apenas apreciavam a conversa e a cerveja gelada. Passamos a tarde na prosa, sem outro serviço que pudesse ausentar uma das convivas, ainda que por alguns instantes. As idades variavam entre 18 e 56 anos. Mas a tópica afirmada e reafirmada concernia ao universo feminino. Ou melhor, ao universo do cuidado feminino: era a família, filhos, maridos, namorados, afetos, convivências possíveis, impossíveis, problemáticas. Tudo sempre entremeado por palavras de estímulo, esperança, “as coisas hão de se resolver”. Na casa de Dona Teresa, moradora e ex-síndica do bloco 9, soube que sua nora havia perdido a mãe. O desconsolo era ainda maior, pois a nora não morava mais na Cruzada. Há pouco tempo mudara-se com o marido, filho de Teresa, para a Zona Oeste da cidade, lugar distante e que ainda hoje sofre com a restrição de horários dos transportes. “Quem é que vai cuidar dela? Não tem ninguém por perto nem para lhe fazer um mingau! Ela precisa de alguém que cuide dela nessa hora, ela não pode deixar de comer. Tem que comer!” Especialmente durante um momento de fragilidade, alimentar alguém é persuadir esse alguém. É “ter um olho no padre e outro na missa”, “um no sacristão, outro na sacristia”, como diz Dona Teresa. Ou seja, é transportá-lo, por meio das palavras, a um momento futuro e luminoso, fazê-lo perceber que um momento é diferente do outro, tudo acaba, tudo se transforma, enfim, entretê-lo e seduzi-lo com a esperança enquanto se mantém os olhos atentos ao ato daquele que necessita de cuidados. Há momentos como este, em especial, em que comer depende praticamente da conversa. Pressupõe, portanto, um que fale para um outro que escute.

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Em seu apartamento no bloco 6, Danusa, senhora muito ativa, vendedora de cosméticos, recebe a jovem desiludida. Descobriu recentemente uma amante do marido. A cada novo dia ela traz novidades sobre o sentimento perturbado que a move ultimamente. Conta o que fez, o que procurou, o quanto se expôs, o que ainda vai fazer “se...”. A cozinha da senhora vendedora de cosméticos transforma-se ora em uma espécie de confessionário – a moça lhe conta atitudes que ela mesma condena, e se arrepende –, ora em consultório psicanalítico – em sua narrativa, ela tenta elaborar o que se passou e mobilizar a ouvinte na tentativa de, juntas, encontrarem uma solução. Nesse depósito de palavras expurgadas a dona da casa, enfim, cumpre a função de acompanhar, através do relato, cada passo dado pela jovem martirizada pela dor da traição. As mulheres mais jovens ou que têm a vida sexual ativa são as que alimentam essa sociabilidade com suas narrativas. Seus dramas são “material de trabalho” e serão interpretados durante o preparo da comida ou do café. A anfitriã, em torno da qual essas rodas se formam, é portadora da palavra central e mestre na arte do contraponto. As idosas da audiência, vizinhas e comadres vez por outra presentes, em geral, aquietadas pelo tempo de vida, ouvem e manifestam o que pensam a respeito, esboçando-o pelo movimento da face. Sobrancelhas sobem e descem, os olhos arregalam, procuram outros olhos cúmplices, a boca se estica ou se comprime. Dependendo da narrativa do dia e da variedade etária das que acompanharão a história, uma cozinha se transforma em um manancial de sensibilidade histriônica. É o momento ideal para se adquirir conhecimento sobre a moral, a crítica, a ética, o clímax e outros parâmetros da gramática dos sentimentos, e também sobre as fisionomias que constituem modos de enunciação das inúmeras gradações entre o acordo e o desacordo a respeito do que se conta. Viria dessa forma de socialização na vida moral o sentido profundo da voz passiva “ser nascido e criado”, expressão com que, comumente, moradores do conjunto se apresentam quando pretendem realçar certas qualidades morais? A hospitalidade que encontramos nessa sociabilidade feminina equivale, em uma dada proporção, àquela caracterizada pelo trabalho dos terapeutas da Alexandria multicultural de Fílon. Contemporâneo de Cristo, esse judeu hermeneuta das Escrituras, junto com o seu grupo, trabalhava pela saúde do corpo e da alma e, assim, pela “salvação e cura do Ser”.

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Soteria, palavra grega que exprime tanto saúde quanto salvação, se faz possível, segundo os terapeutas, através do dom da escuta e do domínio da palavra. Ela, a palavra, é a chave para a interpretação da condição humana. Fílon, enraizado na tradição judaica, mas inteiramente aberto à contribuição estética e filosófica dos gregos, entendia que “o homem está condenado a interpretar” (Leloup, 2004). E é nisso, exatamente, que reside a sua liberdade. Interpretar é o jogo levado a sério pelos hermeneutas; o exercício necessário para conduzir a vida da melhor – ou pior – maneira possível. O terapeuta não cura. Ele cuida. É na figura do cozinheiro e do tecelão que, em Górgias, Platão qualifica o therapeutes somatos, aquele que “cuida do corpo”. Therapeutes possui, de fato, dois sentidos fundamentais: “servir, cuidar, render culto” e “tratar, sarar” (ibid.: 24). O corpo é cuidado quando a alma, divindade que o habita, é bem cuidada, quer dizer, “cercada de um culto sincero” que a mantenha protegida das imagens e das palavras (logoi) que possam lhe fazer adoecer. O terapeuta é quem cuida da ética, isto é, quem zela pela direção do desejo a fim de ajustá-lo para um fim adequado ao ser que se encontra desorientado em suas paixões e apegado a uma ideia (Fílon apud Leloup, 2004: 36). As mulheres em torno das quais se organiza a sociabilidade feminina na Cruzada São Sebastião cumprem um papel semelhante. São hermeneutas da convivência nesse justo sentido: ao escutarem os pequenos dramas cotidianos das que as visitam e colocarem em circulação, na oralidade praticada em suas cozinhas, suas medidas a propósito de cada tema, elas as conduzem à apreciação de um novo quadro diferente daquele presente, motivo de suas angústias e inquietações. Como ensina Platão, a quem Fílon apreciava, o terapeuta não cura – ele cuida. Saber ouvir é cuidar da palavra. E sobre isso é importante lembrar a observação feita por Rebeca, senhora romena, que há alguns anos mora na Cruzada e é vizinha de Dona Teresa: “Minha vida aqui dentro mudou muito quando aprendi a ouvir o que Teresa me dizia”.

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MIGRAÇÃO E ADAPTAÇÃO: DUAS TÓPICAS INCONTORNÁVEIS PARA UMA

ETNOPSIQUIATRIA

Em um estudo publicado em 1996, Ferreira (1996, apud Prado, 1998) constatou que no Rio de Janeiro grande parte das internações psiquiátricas se davam com

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pacientes migrantes, que sofriam a perda de seus referenciais culturais e que passavam por um processo particularmente adverso e agressivo de aculturação, levando-os muitas vezes a descompensações psicóticas. Então, corriam o risco de se verem “psiquiatrizados”, já que sua situação existencial carecia de compreensão e eram desconsiderados seus valores culturais em choque com a cultura na qual estavam inseridos e que tendia a desqualificá-los e denegri-los, fazendo com que a perda de referenciais identificatórios valorizados se acentuasse ainda mais.

Em 1979, na França, o Serviço de Psicopatologia do Hospital Avicenne de Bobigny passou a oferecer uma terapia nova, chamada, então, de etnopsiquiatria.15 Seus pacientes eram, em sua grande maioria, originários do Magrebe, da África e das Antilhas, e sofriam as dificuldades de adaptação sem responderem positivamente ao tratamento terapêutico tradicional. Esta nova abordagem terapêutica, segundo Prado, passou a ressaltar “o valor dos recursos terapêuticos das sociedades ditas tradicionais” (Prado, 1998: 121), considerando, como um de seus enunciados teóricos fundamentais, que “a psicoterapia, em senso estrito, não existe” (ibid.: 122). Seguindo o mesmo pressuposto dos terapeutas contemporâneos de Fílon, habitantes da Alexandria multicultural da era cristã, o que existe são, pois, “autoterapias suscetíveis de serem deslanchadas por ‘indutores’ ou ‘operadores’” (ibidem), o que, enfim, traz à luz a importância da interação terapêutica e, com ela, modificações técnicas consideráveis no modo de acolhimento dos pacientes. O atendimento etnopsiquiátrico é feito em grupo “de diferentes origens culturais”, como sublinha Prado, mas todos profissionais: “médicos, psiquiatras, psicólogos, antropólogos, assistentes sociais e/ou outros profissionais que por alguma razão estejam envolvidos com o caso” (ibid.: 123). No entanto, a autora assinala que deste grupo devem participar pessoas que partilham do mesmo grupo étnico do paciente ou que conheçam o seu contexto de vida cotidiana, ou seja, as grandes expectativas, as rupturas e os confrontos de valores próprios da experiência de migração e, por conseguinte, de adaptação (ibid.: 126). Prado observou ainda, em sua experiência em etnopsiquiatria no contexto urbano carioca, que o atendimento funcionava até o momento de se propor uma prescrição. A partir daí os pacientes abandonavam a consulta. Isso a levou a considerar que as prescrições não se mostravam convincentes, pois condensariam “no imediato de sua representatividade a ambiguidade do processo transferencial” (ibid.:

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127). A narrativa do paciente e seu modo de interagir com o terapeuta seriam, por assim dizer, interrompidos por uma prescrição. Esta antecipação, partindo do terapeuta, jogaria por terra a eficácia terapêutica, que é, fundamentalmente, a “capacidade de contatar e de dar sentido às vivências, psíquicas e culturais, deslanchando a possibilidade de elaboração” (ibid.: 129) do vivido pelo próprio paciente, através de suas narrativas. Quando Dona Teresa veio para o Rio de Janeiro, com apenas 14 anos, em 1952, os sintomas que sentiu tão logo veio morar na favela da Praia do Pinto foram diagnosticados por um médico como depressão. Até hoje, quando discorre sobre sua chegada ao Rio de Janeiro, vindo de Guaraciaba, interior do Ceará, Dona Teresa contrapõe a lama que encontrou na favela da Praia do Pinto com o terreirão bem varrido e arejado à sombra de árvores frutíferas de sua casa cearense. A romena Rebeca, por sua vez, não partilha de um passado vivido na favela da Praia do Pinto, lugar de onde vieram a maior parte dos moradores dos prédios da Cruzada São Sebastião do Leblon. Mas, como muitos de seus vizinhos, encontrou em um núcleo residencial dito “de baixa renda” a possibilidade de morar na cidade, sobretudo em um bairro bem equipado e, portanto, valorizado, após empreender uma viagem migratória igualmente provida de muitas vicissitudes e adversidades. Rebeca hoje está com 61 anos e chama algumas senhoras da Cruzada pelo apelido carinhoso de “mãezinha”. Estas senhoras, segundo conta, a ajudaram a adaptar-se no conjunto, “inclusive dando conselhos”. Antes de ir morar na Cruzada, Rebeca morou em um conjunto residencial vizinho – o “Conjunto dos Jornalistas” –, mas, embora contemporâneo daquele construído pela Igreja, o Jornalistas, como hoje é chamado, foi erguido com os fundos de um dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs)16 que beneficiavam categorias profissionais. A mudança do Jornalistas para a Cruzada transformou a sua vida de maneira incomensurável. Muitas de suas clientes – Rebeca é esteticista e cabeleireira – recusaram-se a entrar em seu novo local de moradia. Na Cruzada, muitas suspeitas recaíram sobre a mulher que “desceu” do Jornalistas para a Cruzada. A estrangeira se viu ainda mais só, sem os filhos, sem o marido e, por fim, sem as clientes. Por isso o termo “mãezinha”, já que com essas protetoras aprendeu “a observar mais do que se expor em conversas na rua”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS “Essa vai ser difícil consertar.” Com tal observação Dona Teresa surpreen-

deu a etnógrafa, que já vinha elaborando o presente texto, durante uma conversa certa tarde em sua cozinha, a respeito da moça, proveniente de Goiânia, há meses acolhida em sua casa. A moça trabalhava como empregada doméstica em um dos prédios do entorno e, por indicação de outras mulheres, voltou a procurar Dona Teresa, pedindo-lhe acolhimento. Estava com sérios problemas relacionados a bebida, e há pouco havia sido dispensada do serviço pela namorada do seu patrão. O acolhimento de mulheres, feito por outras mulheres em torno das quais – e em cujas cozinhas – esse tipo de sociabilidade se constitui, aparecia mais uma vez como um procedimento bastante difundido entre as populações urbanas “de baixa renda”.17 E isso por diversas razões que são comumente atribuídas (e reduzidas) a uma mera necessidade de ajuda mútua na prestação de serviços domésticos. A pesquisa empírica, no entanto, nos mostra que este tipo de acolhimento feminino, que, conforme vimos, ocorre sobretudo nas cozinhas desse conjunto habitacional, possui a dimensão de uma propedêutica, de uma instrução, de uma preparação para a plena compreensão, neste caso, dos meandros da vida social local. Assim, este acolhimento, seja por momentos breves de conversa, seja por uma frequência de coabitação no mesmo espaço doméstico por dias ou até mesmo meses, revela-se plenamente na sociabilidade da cozinha. Esta é, ela mesma, uma técnica, um método, um modo de proceder que define, através desse contar e ouvir histórias privadas em ambiente privado, quais são os problemas, os papéis e os comportamentos observados pelas mulheres e, com eles, os sintomas que podem anunciar os desdobramentos positivos ou negativos de cada caso narrado. Talvez seja importante também considerarmos o significado mesmo da palavra acolher, aludindo a “refúgio”, “proteção” e “conforto” físico e moral (Cf. Houaiss). Além disso, seu antepositivo, cuja origem está no verbo latino lego, possui como derivados collìgo, de onde provém o verbo acolher, mas também o verbo escolher e o substantivo cole(c)tivo; e dilìgo, que significa “amar com escolha”, “considerar”, “honrar”, “gostar”; enfim, dileção, diligência. Todas essas noções sustentam uma identificação entre essas pessoas que exercem funções semelhantes no âmbito da vida doméstica, mas também no espaço social e moral da vida comu-

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nitária que partilham enquanto habitantes do mesmo conjunto habitacional, ou da mesma vizinhança. Outro fator relevante é que todas essas mulheres que conhecemos, e que acolhem outras em suas casas, são devotas de alguma fé e frequentam igrejas – majoritariamente a católica. O viés através do qual se interpretam as narrativas veiculadas nas cozinhas, com isso, não é isento da lógica regida pelos credos. Daí a ideia de “cura”, ou de restabelecimento, ou restauração de um fluxo de vida interrompido ou impedido pelos problemas identificados ou redefinidos pela prática narrativa em curso nesses encontros privados. Ao recorrerem às casas dessas mulheres, cuja capacidade interpretativa se legitima de várias maneiras, especialmente pelos papéis que têm a oportunidade de desempenhar publicamente no âmbito da comunidade, aquelas que a elas recorrem afligidas por problemas financeiros, afetivos, instabilidade na família e, nesse aspecto, pelas hesitações experimentadas na educação dos filhos, acreditam na eficácia terapêutica da conversa, mas de um tipo de conversa cujo interlocutor é pessoa em quem se confia. E se, como dissemos, a fé é elemento presente, sugerimos que nos casos que pudemos observar ela é um dos fatores determinantes mais proeminentes, para essas hermeneutas da convivência, na prescrição de medidas a serem tomadas. Emoções são antes experiências do que objetos próprios e delimitados, como William James propôs compreendê-las. São fluxos que nos arrebatam e nos unem em um mundo social no qual existimos. O tratamento dos anseios femininos, definidos em um contexto social e urbano preciso, através de uma sociabilidade levada a termo em âmbito privado e doméstico é, em última análise, um modo de administrar problemas coletivos, até mesmo públicos, de uma perspectiva particularíssima preservada nos exíguos quatro ou cinco metros quadrados das cozinhas dos apartamentos de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro.

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NOTAS 1

Doutora em Antropologia e pesquisadora associada ao LeMetro/IFCS-UFRJ e ao CLERSÉ/ Université de Lille 1. 2 Uma primeira versão desse capítulo foi também publicado na Revista Comum n. 31, 20082009. 3 Segundo dados do censo demográfico do IBGE, obtidos pelo Sistema Morei, do Instituto Pereira Passos, em 2000 a população do Leblon era de 46.670 habitantes distribuídos em 18.004 unidades residenciais, das quais 50% eram ocupadas por até duas pessoas e quase 60% de seus responsáveis ganhava mais de 15 salários mínimos. Além disso, cerca de 75% dos responsáveis possuíam curso superior e apenas 967 pessoas não eram alfabetizadas, sendo que 468 tinham entre cinco e nove anos. O apartamento, como já podemos supor, é a unidade residencial que predomina no bairro e em toda a Zona Sul da cidade. No Leblon são 17.447 unidades deste tipo, e, do total de domicílios, 12.320 são propriedade de seus residentes. A maior parte dos responsáveis por cada unidade domiciliar tem entre 40 e 69 anos, e o número daqueles com mais de 70 anos é superior aos que estão entre os 20 e 39 anos. Neste universo, os 2.957

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moradores da Cruzada São Sebastião representam uma população de baixa renda e de baixa escolaridade, constituída majoritariamente por jovens e negros, exercendo serviços de baixa qualificação e apresentando índices de até 60% de desemprego. Esses dados são apresentados em um artigo eletrônico por Ribeiro, Cruz e Maberla que se referem ainda à categoria “desocupação”, sem oferecerem, no entanto, maiores esclarecimentos sobre essa utilização. Já a amostragem feita pela CEHAB-RJ em 155 apartamentos (16% do total) indica que 39,56% dos moradores têm situação empregatícia com vínculos; 26,45% são aposentados e 11,61% intitulam-se donas de casa. As demais situações encontram-se dispersas. Ver Ribeiro et alli e Mascarenhas (2005). 4 Ver especialmente O Globo do domingo, dia 13 de fevereiro de 2007, cuja manchete, supostamente comemorativa dos 50 anos do conjunto Cruzada São Sebastião, noticiava: “Uma ilha que destoa na Zona Sul: Cruzada São Sebastião faz 50 anos com um problema: a dívida do IPTU pode levar 676 imóveis a leilão”. Uma análise etnográfica do impacto dessas notícias está em Simões, 2008, sobretudo na terceira parte da tese. 5 A pesquisa não define a distinção entre os grupos recreativos e culturais, mas, em uma conversa com o ex-presidente da Associação de Moradores, foram enumeradas as seguintes associações locais (esportivas, religiosas e sociais): o Clube da Malha; o Liverpool e o Grêmio, os dois times de futebol; o Grupo Evangélico da Cruzada; a ONG Vivendo em Graça; o Grupo de Senhoras e os extintos Clube das Mães e Bloco Carnavalesco Baba do Quiabo, além do Conselho de Síndicos e, é claro, a Associação de Moradores. 6 Nos blocos 1, 2 e 3 da Cruzada ficam os apartamentos conjugados, de 18m². Em relação aos outros sete blocos, constituídos por apartamentos de sala, um ou dois quartos, banheiro e cozinha, os três primeiros apresentam um grande número de locatários, e as pensões também funcionam majoritariamente em apartamentos alugados. 7 A circulação de pessoas, sejam jovens ou idosas, na forma de “adoção”, é prática bastante difundida entre famílias vizinhas, residentes no conjunto. A trajetória residencial, da favela para os apartamentos, e a experiência partilhada durante o período de remoção de favelas as reúne, em parte, em torno de um mesmo acervo biográfico. Essa memória, e o acolhimento deste acervo na forma, também, das “adoções” de pessoas idosas, é parte da pesquisa de doutorado da autora. Ver Simões, 2008. 8 Todos os moradores citados que habitam o bloco 7 residem no mesmo apartamento. 9 Para uma análise mais completa dessas e de outras genealogias de moradores do conjunto, ver Simões, 2008. 10 Firth, em sua monumental etnografia Nós, os tikopia, trata das categorias locais utilizadas para a incorporação de homens e mulheres dentro da nomenclatura de consanguinidade e considera que esse tipo de mecanismo terminológico, que “não permite que o parentesco fique vago, mas o mantém nítido e preciso”, expressa, sobretudo, que as pessoas não são “apenas parentes umas das outras, não importa quão distantes sejam; são sempre uma espécie definida de parente, pronto a assumir as funções recíprocas apropriadas com os outros, em respeito a seu parente comum” (1998: 354). Tamana, por exemplo, referia-se não só ao pai e a seus irmãos masculinos, mas também ao marido da irmã do pai. Tinana, por sua vez, destinava-se a contemplar o parentesco com a esposa do irmão da mãe, ou seja, a mulher do tio paterno, e com a mãe e as irmãs dela. 11 O emblemático conjunto habitacional Cruzada São Sebastião, construído nos anos 1950 para abrigar moradores da favela, bode expiatório dos bairros chics da Zona Sul do Rio de Janeiro. O drama social engendrado pelos processos de urbanização e a sociabilidade cultivada entre mulheres residentes nessas localidades visadas pela especulação imobiliária e pelo planejamento urbano são também elementos que o leitor encontra no artigo de Tornquist e Franzoni (2009, neste volume). 12 Do mesmo modo, grande parte dos “barraqueiros” (ou seja, das pessoas que vendem comida e bebida na rua do conjunto ou nos halls de entrada dos prédios) são mulheres, e igualmente o

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número de olhos que se voltam das janelas para a rua e para os corredores também são femininos. 13 Ver nota 12. 14 No livro Les Sens du Public, M. Lecrerc-Olive faz a distinção entre o “bem comum”, que seria uma propriedade partilhada por grupos determinados e exclusivos, e o “bem público”, que seriam bens inapropriáveis, inalienáveis e imprescritíveis. (ver Cefai & Pasquier, 2003: 31). 15 George Devereux foi quem desenvolveu os fundamentos desta abordagem terapêutica. Sobre isso, ver Nathan, 1998. 16 Institutos esses criados por Getúlio Vargas. Sobre os IAPs, ver especialmente Augusto, 1996, e Bonduki, 1998. 17 O importante estudo Aspectos Humanos da Favela Carioca , realizado pela equipe de SAGMACS e publicado no jornal O Estado de S. Paulo , em 10 e 13 de abril de 1960, foi o primeiro estudo a considerar esse tipo de filiação doméstica nas favelas cariocas como um fenômeno sociológico. Antes dele, somente as fichas preenchidas pelas assistentes sociais ligadas às instituições católicas, como a Fundação Leão XIII, prestadoras de serviços aos moradores de favelas, sobretudo a partir dos anos 1940 até final dos anos 1950, apresentam dados detalhados a respeito desse tipo de acolhimento, porém tratando-os pelo viés de uma “desorganização social”. Cf. a respeito, sobretudo Simões, 2008 e Slob, 2002.

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“QUEM SABE, NÃO MEDE. QUEM NÃO SABE, MEDE TRÊS DEDOS”: A CONSTRUÇÃO DA AUTORIDADE ENTRE PARTEIRAS NA REGIÃO DE MELGAÇO, PARÁ SORAYA FLEISCHER1

Recentemente, um interesse pelos terapeutas populares tem ressurgido entre os pesquisadores e os profissionais de saúde no Brasil. Uma das expectativas de vários desses estudos é encontrar e “resgatar” práticas e atitudes mais humanizadas no trato com pacientes e enfermos, tanto para “visibilizar” esses atendentes supostamente “esquecidos” quanto para inspirar uma nova maneira de proceder dentro dos hospitais e serviços de saúde. No caso específico dos estudos sobre as parteiras, ideias e representações de magnanimidade, pureza, autenticidade e até uma sororidade feminina são facilmente encontradas. 2 Minha pesquisa com as autointituladas aparadeiras da cidade de Melgaço, região marajoara e ribeirinha do estado do Pará, demonstra que é preciso, antes de tudo, conhecer um pouco mais da realidade – contexto histórico, posição social e relações micro e macroscópicas – dessas mulheres para, só assim, começar a entender o lugar que o partejar ocupa em suas vidas. Além disso, sugiro que, mais do que uma uniformidade de prática e ofício, há muitos conflitos e fissuras entre as parteiras, e esse dado, antes de “desmitificá-las” apressadamente, nos auxilia a complexificar as definições que, de forma um pouco automática, têm sido atribuídas ao partejar e ao parto domiciliar nesse país. Durante minha estada em Melgaço em virtude de minha pesquisa de doutorado, entre 2004 e 2005, presenciei várias situações de solidariedade e boa convi-

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vência entre elas. Vi parteiras atendendo a um mesmo parto. Acompanhei mulheres ensinando suas filhas na maestria do partejar. Em casos de doença, viagem ou ausência por conta de um curso, uma parteira poderia passar o serviço para outra colega. E estas mulheres tentavam, juntas, boicotar maus pagadores e partos fiados, socializando informações sobre as lobas (calotes) tomadas. Havia, portanto, variadas ocasiões em que opiniões e serviços eram compartilhados pelas parteiras da cidade. Além do trabalho em comum, muitas delas eram vizinhas, parentas e comadres. D. Dinorá,3 minha anfitriã, e D. Maria tinham casado seus filhos e, nos tempos da pesquisa, ajudavam a sustentar um neto, já que o casal havia se separado. D. Pequenina era tia de duas noras de D. Dinorá. D. Benta tinha aparado filhos de D. Dinorá e, sendo ambas católicas nessa época, a primeira parteira batizou os filhos da segunda. Mais recentemente, D. Dinorá e D. Julieta participavam da mesma igreja e aos domingos caminhavam juntas para o culto matutino. Muitas participavam das reuniões do grupo da terceira idade, organizado pela prefeitura. A maioria se reunia mensalmente na casa da Associação das Parteiras Tradicionais de Melgaço4 para discutir a falta de material na Unidade de Saúde, as atividades para angariar recursos ou a participação no próximo curso de treinamento. As variadas oportunidades de apoio mútuo e solidariedade se estendiam por muitos outros assuntos e searas, além do cenário obstétrico. Mas a cooperação não vigorava sempre nem continuamente e passarei a discutir algumas das principais tensões que estavam presentes. Dentre elas, notei que participar ou não dos cursos foi um dos principais focos de discórdia ou, pelo menos, era uma poderosa metáfora para tal. Assim, na primeira parte, apresentarei uma classificação “nativa” correntemente utilizada localmente para estabelecer as distinções entre estas atendentes, depois apresentarei a relação entre três parteiras bastante significativas de Melgaço para, por fim, alinhavar uma análise sobre as repercussões dos dissensos nesse cenário obstétrico não oficial, no que diz respeito à definição ontológica do termo “parteira”.

1 PARTEIRAS JOVENZINHAS, ANTIGAS E APOSENTADAS: UMA HIERARQUIA À BASE DA PRÁTICA

À época da pesquisa, 22 mulheres eram identificadas como parteiras pela pequena população de 3.500 habtitantes de Melgaço. Fui conhecendo a maior parte

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dessas atendentes aos poucos, à medida que D. Dinorá, parteira que gentilmente concordou em me receber em sua casa, foi me apresentando a cada uma delas. Por indicação e insistência de conhecidos, fui visitar outras, menos atuantes e, por vezes, inativas. Ouvindo todas essas histórias de vida e atendimento e observando quando e por meio de que demanda essas mulheres entravam em cena, percebi que formavam um grupo bastante heterogêneo em termos de atendimento, prestígio, trânsito pelos espaços de poder local etc. Para melhor conhecer essas diferenças entre elas, passei a atentar para uma classificação nativa que vigorava e que pode indicar como, em seus próprios termos, acomodavam essas diferenças em sua convivência diária. De fato, havia muitos fatores que poderiam contribuir para o prestígio de uma mulher – ser casada, ter um marido trabalhador, ter filhos escolarizados, ostentar um nível de vida material mais confortável etc. Mas a disputa em torno da legitimidade da parteira, que também poderia se beneficiar inicialmente desses fatores, se dava mesmo em outro patamar, em torno da ideia de sua capacidade técnica referente aos partos. Muitas mulheres dessa região tinham uma experiência obstétrica mínima, mas só algumas delas se destacavam realmente como parteiras. Aquelas referidas como parteiras antigas, velhas ou idosas eram as mulheres com centenas de partos no currículo, com muita demanda de trabalho e geralmente já perto dos 60 anos. D. Dinorá, D. Teteia, D. Dandara, D. Mirna, D. Lavínia e D. Marilda eram, à época da pesquisa, as parteiras antigas de Melgaço, conhecidas por toda a cidade e, especialmente as três primeiras, com uma média de dois partos por mês. As jovenzinhas, com talvez até meia dúzia de partos realizados, eram também chamadas de parteiras verdes ou novas. Era o caso de Julieta, Nininha e Sandra, que não tinham ainda 40 anos e nem eram tratadas como senhora ou dona. As jovenzinhas tinham menos experiência obstétrica e, portanto, sabiam menos, como explicou D. Dandara: “A parteira nova não decifra onde tá todo os ingredientes da criança”. Dizia-se que a jovenzinha, ao puxar uma buchuda, não seria capaz de identificar, por exemplo, tamanho, sexo, posição do feto. Puxar, essa massagem abdominal tão comum em toda a região amazônica,5 era uma forma de saber fundamental para qualificar a atuação de uma parteira, para que ela pudesse identificar e prevenir um aperreio, uma dificuldade extrema em termos obstétricos.

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Uma tarde, enquanto D. Dinorá remendava alguma peça de roupa e eu registrava acontecimentos em meu diário, perguntei-lhe se as parteiras que atendiam pouco (como as novas) poderiam ser consideradas parteiras. Ela soltou uma bela gargalhada e respondeu: É, minha filha, eu já pensei nisso. Muitas são parteiras só no nome, né? Eu também já pensei se elas podem participar da Associação mesmo se atendem pouco. Eu já conversei com as meninas [do Grupo Curumim] sobre isso, e acho que podem sim. Eu, se eu ficar um ano sem atender, eu não vou mais atender não. É como estudante. Se você passa um ano sem estudar, quando você volta, você esqueceu tudo. Vamos supor: você passou na terceira série e parou de estudar. Aí, você quer voltar a estudar e acha que pode ficar na quarta série. Vai dar com a cara na porta. Vai ter que voltar pra terceira série. O trabalho de parto é como se fosse um estudo. Cada parto que você faz é uma experiência nova que você pega. É como uma nova prova que você faz. Tem prova difícil, tem prova que você tira fácil.

Assim, pelo que entendo desses depoimentos, somente quando as parteiras jovenzinhas passassem a atender mais e, com isso, ganhassem experiência prática – essa espécie de estudo, segundo D. Dinorá, ou uma capacidade refinada de deciframento, segundo D. Dandara –, é que começariam a ascender ao status de parteira antiga. E, acrescento, seria necessário que acertassem os diagnósticos e que não perdessem mulher (isto é, a paciente não morresse no parto). Se os atendimentos fossem muito espaçados e sem nenhuma dificuldade excepcional e iniciática, Julieta, Sandra e Nininha permaneceriam como parteiras verdes por muito tempo até que fossem esquecidas como atendentes disponíveis e seriam tidas, segundo D. Dinorá, como parteiras só no nome. Além das jovenzinhas e antigas, vejamos o terceiro tipo. De certa forma, as

parteiras aposentadas eram todas antigas, isto é, seniores em termos etários e técnicos, muito conhecidas e com amplo lastro de atendimentos. E até um passado recente, estavam atuando. Porém, em virtude de problemas de saúde e de idade, não tinham mais condições físicas de continuar na labuta dos partos. Mas seu nome era facilmente lembrado por toda a comunidade e, portanto, continuavam famosas, apesar de inativas. Esse era o caso de D. Benta, D. Camila, D. Ramira, D. Socorro. As parteiras aposentadas queriam continuar sendo lembradas pela sua contribuição à população e, para tanto, muitas manifestavam interesse nos cursos, nas reuniões da Associação e nos eventos promovidos pela prefeitura local.

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Temos aqui uma visão “nativa” da hierarquia das parteiras,6 avaliadas à base da quantidade e qualidade dos partos realizados, da idade da parteira e do saber obstétrico (angariado pelo dom divino, experiência prática, herança recebida de uma parteira mais velha na família, cursos de orientação biomédica etc.). As categorias eram fluidas o bastante, contudo, para combinar esses critérios, que nem sempre eram proporcionais. Por exemplo, uma parteira poderia ter enfrentado logo no início de sua carreira poucos partos, mas todos muito difíceis. Outra parteira, como D. Dinorá e D. Teteia, poderia ter acumulado centenas de partos, com ou sem aperreio, e já estar entre 60 e 70 anos de idade. Ambos os cenários poderiam ajudar a classificar essa mulher como uma parteira famosa, mas só aquelas no segundo grupo seriam também antigas. Idade não correspondia exatamente ao status, mas ajudava a localizálo. Passemos agora para a repercussão dessas classificações sobre as relações com suas colegas, profissionais de saúde e visitantes.

2 TRÊS EXEMPLOS PARA PENSARMOS AS RELAÇÕES ENTRE AS PARTEIRAS DE MELGAÇO 2.1 D. DINORÁ, PARTEIRA ANTIGA QUE FICOU FAMOSA PELA EXPERIÊNCIA E PELOS CURSOS D. Dinorá Bernardes da Silva, conhecida localmente como dona, irmã ou tia Dina, nasceu em 1941. Depois de uma infância nos igarapés do interior, a família Silva mudou-se para a cidade de Portel, município vizinho a Melgaço. Lá, como muitas moças do interior, D. Dina foi trabalhar em casa de família. Anos depois, se casou com Almeida, também da região, mas muito mais velho do que ela. Dos seus 10 filhos que vingaram, ela criou a maioria. Mas, como muitos em Melgaço, alguns de seus filhos foram criados por parentes próximos, principalmente nos momentos de maior dificuldade financeira e familiar (Cf. Fonseca, 1995). No início da década de 1980, o casal resolveu migrar, como tantos outros, para a sede urbana de Melgaço, como ela me explicou: “Na cidade, tem duas coisas que lá fazia falta: saúde e escola. Lá, os professores não davam aula e a saúde era muito difícil de cuidar no interior. Tinha remédios caseiros, a gente tirava ervas da mata. Mas se alguém realmente precisasse, não tinha o recurso”. Durante o casamento com Almeida, seus dias não foram fáceis. Ela criou a dezena de filhos sem muita ajuda financeira do marido e, segundo ela, ainda tinha que protegê-los deste homem beberrão e violento. Esse passado difícil se compensara discretamente com

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o tempo. Depois da separação de Almeda, ela havia se recasado com S. Bola, agricultor que contribuía para o orçamento doméstico com a venda da farinha de mandioca e sua aposentadoria rural. Ela própria tinha sua renda com uma aposentadoria rural; cerca de R$ 20 semanais em razão das puxações realizadas; e uns R$ 100 por mês pelos partos atendidos. Vendia ainda balas, patos e ovos, revendia cosméticos e trocava com seus vizinhos o uso de seus eletrodomésticos (batedeira de açaí, máquina de lavar roupa, liquidificador, bomba do poço d’água) por porções de comida e eventuais favores (como emprestar o telefone em momento de necessidade, carregar uma caixa ou uma mala até o trapiche na falta de um carreteiro etc.). Dinorá já tinha atendido algumas grávidas no interior. E, nos anos 1980, quando chegou a Melgaço, ela conta, “Eu já pegava menino, mas ninguém sabia. (...) Eu comecei assim. Eu ficava com a mulher enquanto iam chamar a parteira. Eu ficava dando chazinho, cuidando dela. E aí, não dava tempo da parteira chegar e era eu mesmo. E depois me chamavam para atender as cunhadas, as irmãs e as vizinhas também. Foi assim que eu comecei. O primeiro parto que eu fiz foi da minha mãe”. E D. Nilma, à época da minha pesquisa com mais de 80 anos e primeira “paciente” de D. Dinorá, também fora parteira. Muitas das parteiras que conheci e entrevistei aprenderam a pegar menino observando suas mães e avós, também parteiras. Imagino que, durante esse parto, a mestra, mesmo em meio a dores e puxos, foi dando algumas dicas concretas à filha. Assim, o batismo de fogo se dá geralmente com um parto no susto, enquanto a parteira “oficial” era buscada. Aprender na precisão, como me diziam, era o aprendizado mais comum. Mas foi na cidade de Melgaço que, ao atender sua filha Maria Auxiliadora, D. Dinorá ficou mesmo conhecida. Ela recorda do grupo de parteiras disponível à época: O primeiro que eu peguei aqui na cidade foi o da Maria Auxiliadora. Ninguém queria atender ela. A Benta e a Alma mandaram dizer que estavam viajando. Marido de Clotilde não deixou jogar osso aos cachorros, como se diz. Não deixou ela vir. D. Teteia estava num parto. Eu não ia deixar minha filha morrer. Diziam que ela era de risco, que era jitita [pequena] demais, tanto é que ela é jitita até hoje. Queriam levar ela pro hospital de Breves. Quando deu as dores, eu atendi ela. Foi um parto difícil. Depois, a enfermeira mandou me chamar para conferir o umbigo, ver a criança. Ver se eu tinha feito certo. Ela ficou impressionada com o meu trabalho.

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Parece que o destemor e a competência foram reconhecidos pelas colegas parteiras e pela enfermeira local. Além disso, no momento deste parto iniciático, D. Amorosa, a mais famosa na cidade à época, tinha acabado de falecer e acredito que esse “vácuo” momentâneo aliado à provação desse parto difícil compuseram um momento oportuno. E D. Dina explicou, numa das viagens que fizemos juntas até Breves, ela deitada na rede, eu sentada no convés: “Eu atendi para mais de 200, minha filha. Eu tô em Melgaço há 22 anos e, desde então, raramente passou um mês sem eu pegar um menino. Mas tem mês que eu atendo bem mais que um parto, você sabe. Desde que peguei o menino da Maria Auxiliadora, nunca mais parei”. No final da década de 1990, D. Dinorá foi convidada a integrar um grupo de dezenas de parteiras da região que partiram para um primeiro curso realizado na Floresta Nacional de Caxiuanã, ali mesmo no extenso município de Melgaço. Esse foi o primeiro curso oferecido pelo Ministério da Saúde em parceria com as Secretarias Estadual e Municipal de Saúde, a UNICEF e o Grupo Curumim, ONG feminista de Recife para quem tem sido terceirizada a tarefa de organizar e conduzir esses treinamentos oficiais no Nordeste e Norte do país.7 Desde então, D. Dina esteve em quase todos os 30 cursos oferecidos na região como presença constante, participante dedicada, liderança local em ascensão. E, quando era preciso reunir as parteiras da região, listar os nomes daquelas que precisavam das bolsas de material, hospedar uma antropóloga em trânsito, era à D. Dina que o Grupo Curumim recorria. Os cursos eram lembrados com frequência por D. Dinorá, principalmente por meio da bolsa de material, o dinheiro recebido e a relação com as meninas do Curumim. D. Dinorá não saía de casa sem o vidro de óleo de cozinha (para besuntar e puxar as pacientes), mas sua bolsa de material8 ficava pendurada em casa, como vi em tantas outras casas de parteiras. O iodo ou a tesoura, como também outros bens (utensílios de cozinha, roupas, revistas etc.), eram poupados em vez de ingressarem no uso imediato, e as parteiras, como outras donas de casa da cidade, tinham nesses bens uma poupança para levantar dinheiro em espécie, nos momentos agudos de penúria. Mas, principalmente, familiares e vizinhos, cientes do conteúdo dessas bolsas, frequentemente recorriam às parteiras em busca de um pouco de álcool ou da bacia de inox, tornando todos menos dependentes do hospital local. As participantes dos cursos também ganhavam ajudas de custo e diárias para participar dos mesmos, já que, ao viajarem, estariam sendo privadas das fontes de

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renda com que geralmente contavam ao produzir farinha, faxinar uma casa, lavar roupa etc. O dinheiro trazido dos cursos era muito valorizado, como me contou D. Dinorá: “[Os cursos são] a minha fonte de renda. Eu arrumei a minha cozinha com os R$ 300 que ganhei de diária no curso em Belém. Comprei as telhas, as dobradiças pras portas e os pregos. As madeiras das paredes e a mão de obra paguei com um empréstimo que fiz”. “A Norma me convidou”, “Estes são os presentes que a Patrícia me deu”, “Eu participei do curso da Patrícia”, por exemplo, como D. Dina se referia às duas principais professoras do Grupo Curumim. E quando se associava à imagem do Grupo, ela parecia estar criando uma espécie de “armadura simbólica”, potencialmente resistente às críticas por parte de outras parteiras, de pacientes ou das autoridades sanitárias locais. Quando perguntei à D. Dandara, outra parteira antiga da cidade, o que ela havia aprendido no curso em Caxiuanã, ela disparou: “A gente tá acostumada a trabalhar como aprendeu lá. A gente faz o que eles mandam. É a obrigação da gente, né? Se acontecer alguma coisa, a gente não tem culpa”. Além disso, positivar a relação com as doutoras de Recife desviava a atenção do interlocutor (no caso, também a antropóloga em campo) de eventuais discordâncias com o Grupo. Permitir o marido como acompanhante do parto, respeitar as vontades da parturiente, não bater no recém-nascido para chorar, evitar episiotomias (excepcionalmente, feitas de forma caseira) eram algumas das sugestões dos cursos, alinhadas com o movimento de humanização do parto (Tornquist, 2004). Discordar dessas “novas” práticas demonstrava, por um lado, como essas parteiras não seguiam exatamente o perfil de parto domiciliar que as militantes promulgavam e, por outro, revelava um vínculo menos absoluto e acrítico com os cursos e a ONG do que se poderia supor à primeira vista. A antropóloga Brigitte Jordan, que etnografou cursos de parteiras no interior do México, comentou que “uma importante mensagem dirigida às parteiras [nos] cursos é que há certos artefatos que são indispensáveis para uma performance competente aos olhos da equipe médica (...) Assim, os instrumentos se tornam crescentemente importantes para elas, não pelo seu real valor de uso, mas definitivamente como símbolos visíveis de sua expertise” (1993: 180). Contudo, a meu ver, as fotografias e certificados (cuidadosamente afixados nas paredes da sala da casa), a bolsa de material e o dinheiro recebidos nos cursos não serviam apenas junto

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às autoridades político-sanitárias da cidade. Estes “artefatos” eram bastante importantes nas disputas entre as parteiras, sobretudo na definição do que deveria ser considerado como fonte prioritária de legitimidade de sua práxis. Essas mulheres percebiam que estavam sendo valorizadas pelo seu trabalho, traço que antes tinha lhes gerado pouca positividade ou que se sobrepunha muito discretamente às suas outras atribuições como mãe, agricultora, vizinha, vendedora de açaí, por exemplo. Ao reconhecer e visibilizar publicamente a experiência que elas já acumulavam, a ONG contribuía para legitimá-las local e, em alguns casos, nacionalmente. E era essa chancela que D. Dinorá acionava com eficiência, sobretudo perante suas colegas. Como será mostrado a seguir, os cursos e outros fatores ajudavam a incentivar uma certa mobilidade social dentro do grupo das parteiras, levando a diferenciações internas antes pouco visíveis.

2.2 D. TETEIA: UMA PARTEIRA FAMOSA QUE PREFERIA IGNORAR OS CURSOS Assim que cheguei a Melgaço, ouvi dizer que D. Dinorá e D. Teteia eram as duas parteiras mais procuradas para atender partos, fazer puxações, ajudar nos acometimentos ginecológicos. Quando perguntei à minha anfitriã quem era essa outra afamada parteira, D. Dina começou assim: “[Ela] mora pra lá, ela nunca quer participar de treinamento, acha que não precisa aprender mais nada”. Levei um susto. D. Dinorá, naqueles meus primeiros dias, ainda não havia tecido qualquer comentário negativo em relação às pessoas da cidade. Em seguida, D. Dina concluiu a frase: “É, eu já fui convidar ela duas vezes para participar de reunião, de curso. Ela fica falando lorota. Diz que o que ela aprendeu é pro resto da vida. Diz que antes de existir essa coisa de reunião ela já trabalhava. O marido dela não gosta que ela saia; não tem quem faça nada na casa dela – ela dá as desculpas dela”. Uma tensão existia entre as duas e participar ou não dos cursos de treinamento parecia ser uma importante forma de demonstrar isso. D. Dinorá disse ainda: Vou te contar uma história para você entender quem ela é. Foi assim. O rapaz tinha falado para eu fazer o parto da mulher dele. Foi o dia que deu a dor na Olívia também. Como eu tava lá [com a Olívia], ele foi chamar a Teteia. Quando foi de tarde, ele disse pra eu ir lá. A esposa dele tava aperreada e nada de ter o filho. A Teteia tava lá e não dizia nada. A mulher tava deitada lá, se esforçando e nada. Eu disse: “Bora, minha filha, levanta. Deixa eu te ajudar. Vamos dar uma caminhada”. Caminhou, caminhou até que disse que não podia mais. Eu fiquei segurando por trás e a D. Teteia pegou o menino. (...) Elas fazem assim, querem que a mulher tenha o filho antes da hora de nascer. (ênfase minha)

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D. Dinorá ficava sabendo da concorrente por essas experiências compartilhadas, mas também pelos comentários alheios. Algumas mulheres haviam sido atendidas por D. Teteia bem como por outras parteiras, antes de baterem à porta de D. Dina (e vice-versa, por certo). Trocava-se de atendente por vários motivos, como conflitos entre as duas famílias, diferenças de estilos e preços, proximidade geográfica, disponibilidade etc. Uma noite, uma moça veio pedir para D. Dinorá lhe puxar. Assim que saiu, a parteira comentou comigo: “Essa daí está grávida de três meses. Ela me procurou para eu puxar ela. Ela me disse que sentia uma bola de sangue dentro do corpo. Era gravidez mesmo. É a terceira gravidez dela. A Teteia disse pra ela que não era gravidez”. Ao acertar o diagnóstico, D. Dina tentava, ao mesmo tempo, evitar problemas inesperados, atender esse parto e ampliar sua clientela. E, claro, me contar de um “insucesso” de outra parteira servia para D. Dina se diferenciar e se sobrepor às concorrentes. Além dos comentários de ordem técnica, notei um segundo perfil de comentários sobre D. Teteia, como na história abaixo: Quando a criança nasce sufocada, a Teteia bate no pé da criança. Ela não faz como eu, que chupo na boca da criança, faço respiração boca a boca. Ela bate prato, penico em cima, que é pra criança espantar. Queima o umbigo com azeite – não sei se ela já parou com isso. Eu disse pra ela que é proibido queimar umbigo de criança. (D. Dinorá).

D. Dina construía a imagem da colega na contramão da “modernidade” e ao que considerava como corretamente aprendido nos cursos. Ao ser associada a práticas tidas como antigas, do interior, perigosas, D. Teteia deveria parecer, a mim ou a outro interlocutor, como “retrógrada”. Várias vezes, ela me disse que a casa de D. Teteia era imunda. E é bom lembrar que “sujeira” e “ignorância” têm se constituído como denegritivos clássicos atribuídos às parteiras (Mott, 1999a). “Eu já fui em casa de outras parteiras. Tem umas mais sujas ainda. D. Teteia, agora não sei, porque mudou de casa, pra uma casa quase toda de alvenaria.9 E naquela que você conheceu, tá morando o filho dela. Mas aquela era bem imunda”. Essa frase me foi dita em circunstância interessante, que nos ajuda a localizar como D. Dinorá classificava de forma ambígua a concorrente. Num curso de alimentação infantil, D. Dina e eu ouvimos a secretária de saúde dizer que seria capaz de conhecer uma pessoa pela limpeza da cozinha e do

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banheiro de sua casa. De noite, eu não pude deixar de perguntar à D. Dina sua opinião sobre tal comentário. Ela começou dizendo que sua própria casa não ficava arrumada como gostaria “porque agora é muita gente morando aqui e tudo fica revirado o tempo todo”. Mas, logo em seguida, lembrou que a esposa do pastor de sua igreja, a esposa do prefeito e D. Teteia também tinham casas bagunçadas e sujas. D. Dina reconhecia que poderia ser julgada pela situação de sua própria casa, mas não sem colocar em questão a casa de outras três mulheres que, para ela, estavam dotadas de proeminência na cidade. Por mais que D. Dina tentasse desvalorizar D. Teteia pela sujeira de sua casa ao agrupá-la com a esposa do pastor e a primeira dama, sua tentativa não era de todo exitosa: era num cenário de destaque que ela localizava a concorrente. Em minhas andanças pela cidade, pela sala de espera do hospital e pelos corredores da prefeitura, conheci muitas moças que haviam parido com a assistência de D. Teteia. Então, minha curiosidade em conhecê-la só crescia. Só na terceira vez que lhe visitei, ainda em 2004, me atendeu. Eu a encontrei estendendo roupas lavadas no varal à frente de sua casa de taipa. Ela pareceu um pouco hesitante a princípio e depois soltou um sorriso tímido. D. Teteia era uma mulher na faixa dos 60 anos com a pele maturada pelo sol. Grandes olhos brilhantes e as sobrancelhas bem pretas contrastando com os cabelos brancos lhe davam um ar amedrontador. Ela me convidou a entrar. “Vamos aproveitar que o meu velho tá pra roça e vamos bater um papinho aqui dentro.” Passamos pela lateral da casa e entramos pelos fundos. Sua casa era maior do que a de D. Dinorá, com vários eletrodomésticos, móveis e cômodos. Na sala, ela conversou comigo por quase duas horas de forma muito amável e serena. Como D. Dina, ela era chamada para desenrolar partos difíceis, numa clara expressão de sua ascendência sobre as demais atendentes: Eu tenho vergonha de entrar quando tem outra parteira. Mas, uma vez me chamaram. A coisa tava complicada e me chamaram. Eu cheguei e vi a outra parteira. Ela dizia para a mulher: “Essa besta tá levando tempo demais para ter esse filho”. Eu fiquei de lado, não queria me meter no trabalho da outra. Mas a coisa não andava. Aí, eu falei pra parteira: “A senhora deixa eu puxar a mulher?”. O problema é que não tava na hora e ela já tava pedindo para a moça fazer força. Não ia sair nunca. Quem sabe não mede. Quem não sabe, mede três dedos. Eu levantei a moça e fiz ela caminhar. Andou até não dar mais conta. Pediu para deitar e eu ajudei ela a deitar. Foi ela deitar que o menino começou a nascer. Eu deixei a parteira pegar. Eu não tenho imbição. Ela ficou mordida, mas depois ela ficou bem comigo.

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Neste relato, D. Teteia me ajudou a entender o valor do saber. Quem sabe,

não mede, quer dizer, a parteira experiente não precisa contar a centimetragem da dilatação ou a minutagem das contrações. Quem sabe, não precisa quantificar o parto. Basta conhecer aquela buchuda, tocar e puxar sua barriga, observar o grau de seu aperreio. Basta ter experiência prática para saber. E, nesse trecho, notei três importantes semelhanças com D. Dinorá. Primeiro, o saber que diferenciava as parteiras nem sempre provinha dos cursos (e, se fosse este o caso, nem sempre era necessário ou estratégico admiti-lo). Segundo, quem sabia não precisava competir com outra parteira, passar na sua frente para atender uma paciente, nem correr para terminar o serviço. Quem sabia não precisava alardear sua disponibilidade, já que sua capacidade facilmente seria divulgada pelas pacientes satisfeitas a futuras pacientes. Assim, quem sabia não precisava ter ambição, ou imbição, nas palavras de D. Teteia. E, terceiro, sua ajuda nesse parto foi estruturalmente idêntica à ajuda que D. Dinorá lhe ofereceu no parto por ela descrito acima. Como vimos, ao final do seu depoimento, D. Dina ensinou: “As parteiras querem que a mulher tenha o filho antes da hora de nascer”, e D. Teteia, nesse último depoimento, repetiu quase o mesmo: “A parteira tava querendo que ela fizesse força antes da hora”. Por mais que diferenças estivessem sendo traçadas entre elas, quando tive chance de conviver um pouco mais com as duas, pareciam atuar de forma semelhante. Nas conversas com D. Teteia, descobri que ela sabia exatamente quem tinha feito cursos do Grupo Curumim; que a Associação se reunia mensalmente; que na ocasião em que D. Zica ficou doente, a Associação lhe emprestou dinheiro para chegar até Belém; que havia uma expectativa de “sair um pagamento pras parteiras na prefeitura” etc. Sabia dos bastidores deste coletivo, embora nunca tivesse estado presente em uma reunião. Além disso, ela tinha livre trânsito pelo hospital local, inclusive para apanhar material obstétrico, incentivar as mulheres até as consultas de pré-natal e denunciar procedimentos oficiais tidos por ela como equivocados (“Esses dias queimaram muita injeção vencida na Unidade”). Contudo, talvez por conhecer os limites da Unidade, D. Teteia não encaminhava partos para o hospital: “Eu nunca levei mulher para o hospital. Nunca foi preciso. Se elas querem ir, elas vão sozinhas. Se querem levar, levam. Eu não posso ir porque tem outros partos aqui. Tô contratada e não posso deixar minhas pacientes. E fora as que aparecem de surpresa”.

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D. Teteia certamente precisava ser relativizada. Ela não era avessa a todo contato com a biomedicina e seus representantes, como me era alegado por D. Dina e algumas enfermeiras. Ela conhecia bem as outras parteiras, principalmente as antigas, e sabia das críticas que lhe direcionavam. E, em minha última visita, ouvi dela: A minha vontade é largar esse serviço de parto. É que falam muito mal de mim. Não gosto disso de jeito nenhum. Eu faço meu trabalho direito. Por que reclamam? Só porque eu não faço os cursos. Eu não quero fazer. Eu já fiz em Santarém.10 Já sei o que devo e não devo fazer. Me deixem trabalhar! A Dina e a Mirna é que falam mal de mim. Eu não falo delas. Acho que é tudo inveja porque eu atendo muito mesmo. Me chamam sem parar.

Aos 70 anos e, conforme seus próprios cálculos, com mais de 1.200 partos realizados, conhecia muito bem o cenário obstétrico oficial e não oficial da cidade. Ressabiada com as fofocas e a convivência entre as parteiras, D. Teteia procurava evitar situações em que se sentia exposta. Reservava-se a um nicho de segurança: suas pacientes, que há muito já a conheciam, sabiam que nunca havia morrido ninguém em sua mão e, por isso, lhe chamavam sem parar. Mas é bom lembrar que, como disse acima, D. Teteia não acompanhava suas pacientes que desejavam recorrer ao hospital e, com isso, ela tentava se dissociar dos resultados obstétricos negativos que porventura se passassem neste outro espaço.

2.3 D. BENTA: UMA PARTEIRA APOSENTADA QUE APROVEITAVA PLENAMENTE (D)OS CURSOS No segundo dia em que eu estava em Melgaço, ainda em 2004, D. Dinorá disse que queria me levar à casa de D. Benta. Ao contrário da abordagem que tive que tecer solitariamente com D. Teteia, à D. Benta eu fui oficialmente apresentada pelas mãos de minha anfitriã. D. Benta foi a primeira de toda uma rodada, planejada por D. Dina, a quase todas as parteiras da cidade. No início, achei muito dadivoso ela me referenciar dessa forma. Ela parecia ter compreendido os intuitos de minha pesquisa e me abria as portas em campo. Aos poucos percebi que meus objetivos não eram a única motivação que a orientava nessas visitas. Ao escolher uma ordem e um número específico de mulheres para visitar, D. Dinorá estava me informando que se dava com um grupo circunscrito entre as 22 parteiras da cidade e, dentro deste raio, se dava mais com umas do que com outras. D. Benta, pelo que entendi, encabeçava este rol de relacionamentos ou, como vim a entender, assim deveria ser considerada.

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Ao contrário das outras parteiras (que viviam na parte posterior da cidade, onde havia muito menos infraestrutura urbana), D. Benta morava numa casa de madeira na praça do trapiche. Local privilegiado da cidade, ela recebia a brisa que vinha da baía e contava com a visão panorâmica de toda a movimentação portuária. Assim que chegamos e cadeiras nos foram oferecidas, D. Dina disparou: “Hein, Benta, a Soraya é a moça que a gente tava esperando”. D. Benta disse: “Ah, eu pensei que fosse a Amelie. Ela é tão boazinha, sempre traz tantos presentes para mim”. E passou a apontar para os itens, ainda embalados, que ornamentavam estantes e paredes da casa e que lhe tinham sido ofertados por Amelie, cineasta francopaulistana que realizara, naqueles anos, um filme sobre as parteiras melgacenses. D. Benta me identificava com as pessoas que vinham conhecer as parteiras da cidade e, mais importante do que isso, pontuava como era reconhecida na forma de agrados e regalos. Senhora de cabelos ondulados muito brancos, sorriso largo e poucos dentes, D. Benta era falante e risonha, mas caminhava com dificuldade sobre suas pernas levemente arqueadas. Ela tinha 11 filhos vivos dos 15 nascidos. De um ano a outro da pesquisa, ela enviuvou e lhe ficaram evidentes as marcas do luto: ela minguara e perdera o brilho no olhar. Com o companheiro, havia migrado para a cidade aos 15 anos em 1945 e muito ajudaram na construção física e simbólica de Melgaço. Com o tempo, sua família passou a ser considerada como uma das três mais importantes do local. À época da pesquisa, muitos de sua parentela tinham profissão (como eu notara na família de D. Teteia e não entre a prole de D. Dinorá): dois filhos eram professores, uma era auxiliar de enfermagem, um neto era proprietário de um açougue, uma sobrinha era funcionária do fórum de justiça e outra tinha sido a secretária municipal de saúde – eles se espraiavam pelas linhas do poder local. E, por fim, D. Benta herdara o ofício do partejar da mãe, irmã, cunhada e sogra e contava com um “currículo” respeitável. Pertencer a uma família “tradicional” e ter ajudado centenas de melgacenses a nascer (inclusive vários filhos de D. Dina) lhe garantiam prestígio e era difícil alguém não conhecer D. Benta. D. Benta não era do tipo modesto. Sempre que eu a visitava, havia dois assuntos que pautavam nossas conversas e ela fazia questão de figurar como protagonista central destas narrativas. Por um lado, ela recordava os partos difíceis (retórica comum entre outras parteiras também). E, por outro, ela listava todas as pessoas

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que haviam vindo visitá-la em razão de sua experiência como parteira. Se a conversa desviasse de ambos os temas, ela rapidamente conseguia – falando mais alto, tocando insistentemente no joelho alheio, interrompendo bruscamente – que voltássemos a eles, já que claramente contribuíam para que ela construísse sua imagem como parteira famosa. Assim, lembrou: “Depois do curso, veio muita gente aqui”; “A Norma [do Grupo Curumim] veio perguntar se eu conhecia uma tal oração”; “Tinha uma freira lá na unidade, a irmã Léa. Ela tava doida para fazer partos. Fez uns quantos comigo” etc. E cada visitante deixava o que ela considerava um presente especial, e eram todos cuidadosamente mantidos ainda dentro de suas embalagens, servindo como provas concretas de suas influentes relações dentro e fora da cidade. Importante ficar claro que D. Benta era uma mulher pobre, vivendo da parca aposentadoria do marido, que fora funcionário braçal da prefeitura. Mas parecia desejar se elevar sobre as demais parteiras da cidade pelo seu capital social tanto como atendente famosa quanto como matriarca de uma família capilarizada em posições oportunas pela cidade. Apesar de sua legitimidade histórica na cidade, D. Benta já se considerava aposentada e era comum que as pessoas se referissem a ela no passado: “D. Benta foi uma boa parteira”, “Ela atendia muitos partos quando mudei pra cá” etc. Nos últimos anos, os cuidados com o marido moribundo, problemas de vista e nas pernas lhe indisponibilizaram para os partos e seus atendimentos diminuíram bastante. Muitas buchudas me explicaram que não mais a chamavam; enquanto D. Benta dizia: “Me chamam sempre, mas não posso mais ir”. Deixava claro que escolhera se aposentar e não fora aposentada pelo ostracismo. Apesar de mais antiga e talvez mais experiente do que D. Dinorá, era esta última que agora se destacava como uma das principais parteiras locais. Apesar de serem comadres e compartilharem história e profissão, ficava claro como disputavam a referência no cenário obstétrico não oficial da cidade. Das duas, D. Dina era, de fato, a parteira contratada, mas D. Benta só muito lentamente ia perdendo o lugar privilegiado de parteira famosa. D. Benta ocupava um lugar especial: era consultada como a “última palavra” em casos complicados. Isso poderia significar que fosse chamada para finalizar um parto já iniciado por outra(s) parteira(s) ou, mesmo que não conseguisse ir até o cenário do parto ou da puxação, alguém era enviado até sua casa para descrever a situação e ouvir o que ela sugeria ser feito. Era sua larga experiência que lhe garan-

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tia este posto que denomino de “conselheira obstétrica”, função que, aos poucos, ia incomodando D. Dina, como ela comentou com outras parteiras que a visitaram no dia seguinte a um parto difícil, atendido conjuntamente por ela, D. Pequenina e D. Benta: Quando chamaram a cumadre Benta, era como se eu não tivesse dado conta. Ela pode ter mais experiência que eu, mais anos de trabalho. Mas ela tava mais nervosa. A mão dela tremia. A Benta deixou o bebê arreado. Não podia. Tinha que ter puxado o bebê para cima. Ele prendeu o ombro. Se não, já tinha saído. (...) Mas esse caso foi culpa de ter tido muita parteira. Se fosse só eu, eu tinha dado conta.

Além de desmerecer a atuação de D. Benta, D. Dina também relativizava a onipotente imagem que a colega havia consolidado. Neste exemplo, D. Dina parecia tentar fazer valer sua substituição à D. Benta. Porém, o que mais gravemente questionava o renome de uma parteira era perder mulher. Esses casos eram tabus e dificilmente consegui que me contassem de mortes maternas. Portanto, relembrá-los publicamente significava infringir o decoro local e a gravidade dessa infração se pronunciava conforme o interlocutor. Uma tarde, tentando entender algumas palavras recorrentes que eu ouvia, perguntei à D. Dina o que era albumina: Albumina é um cansaço, é inchaço nas pernas, é dor de cabeça, tontura. A mulher enrola e morde a língua. Nunca atacou uma mulher comigo, graças a Deus. Com a cumade Benta atacou duas mulheres e uma morreu. A mulher e o bebê morreram. Ela expirou no trapiche mesmo. Foi um só caixão.

Mas estas mulheres também reconheciam que dificilmente a parteira era a única responsável por um parto que desandasse. Dias depois do relato acima, D. Dina lembrou que a moça em questão tampouco havia cumprido as consultas de pré-natal. Portanto, quando colocavam a ênfase na parteira (a despeito dos outros atores e elementos), pareciam explicitar as disputas em jogo. No caso de D. Benta, D. Dinorá maculava o currículo já concluído da parteira aposentada. Diferente do que notamos na relação entre D. Dina e D. Teteia, aqui não eram exatamente as pacientes que se disputava diretamente, já que D. Benta se considerava e também era considerada como uma parteira aposentada. A meu ver, a eficácia terapêutica cristalizada durante sua atuação, contudo, permanecia como importante dispositivo de autoridade, sobretudo para alçar uma legitimidade como “conselheira obstétrica”. D. Benta ressaltava as vezes em que ajudou a resolver

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complicações; D. Dinorá atenuava a centralidade desse desempenho. D. Benta lembrava como era recorrente que a viessem visitar e consultar; mas era D. Dina que vinha atendendo de fato muitos dos partos da cidade e que, por exemplo, me abrigava em sua casa e decidia quando visitaríamos as outras parteiras, inclusive D. Benta. Esta não se abalava com a diferença entre sua fama e o desempenho concreto de D. Dinorá. Seu capital social lhe rendia ainda muita estabilidade. Mas havia um ponto que lhe desconcertava diante da colega. Era D. Dina quem vinha participando com mais frequência dos cursos e viagens oferecidos na região. D. Benta se frustrava ao não ser convidada, pois reconhecia que sua popularidade entre os visitantes e as autoridades sanitárias locais provinha também dessa participação, quando teria a chance de receber presentes, material, entrevistas, visitas de pessoas vindas de longe. Não estar nos cursos, portanto, gradativamente a faria ser esquecida e isso muito a contrariava. Nos primeiros cursos na região, há muitos anos, as parteiras que apareciam eram cadastradas e era a partir deste rol de nomes que se organizava um próximo curso. Hoje, a maior parte das parteiras da cidade é facilmente identificável e há em média dois cursos na região por ano. Por isso, ao contrário de amplo anúncio, a prefeitura, o governo do estado ou mesmo o Grupo Curumim precisavam escolher quem participaria dos eventos. Assim, para os cursos mais recentes, só algumas eram convidadas. E, às parteiras, essa seleção necessariamente gerava “exclusão”, como vemos com a frustração de D. Benta, no exemplo a seguir. Em 2005, o Grupo Curumim organizou um encontro de parteiras pernambucanas e, contando com uma flexibilidade financeira, convidou algumas parteiras do Marajó. O intuito era promover o intercâmbio entre as regiões e ampliar a compreensão dos problemas comuns aos dois grupos. De Melgaço, a ONG convidou D. Dinorá e D. Mirna (parteira antiga, mas pouco famosa) e aproveitou que eu estava na cidade para acompanhá-los na longa viagem até a praia de Maracaípe, sul de Pernambuco. Quando D. Benta ficou sabendo do evento, disse, ao nos encontrar em frente ao mercado: “Contei pros meus filhos que eu fui convidada pra ir pra Recife, mas não posso ir porque estou doente. Eles disseram que era pra eu ir mesmo assim. Lembraram que a Dina foi doente pra Belém da última vez. Então, que eu aguentava também. Mas disse pra eles que eu não queria dar trabalho pra Soraya”. Eu e D. Dinorá nos entreolhamos assustadas. Percebi que a matriarca, e possivel-

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mente as demais parteiras, tinham uma percepção muito específica dos cursos e encontros. Primeiro, ao contrário do que eu imaginava, não era necessário que as participantes fossem parteiras ativas na profissão e saudáveis o suficiente para replicar na forma de atendimentos o que haviam aprendido nos cursos. Mais do que isso, a prioridade era estar presente, era manter o laço com a ONG Curumim, era continuar a ser convidada, principalmente aos olhos dos conterrâneos em Melgaço. Segundo, parece que ela se ressentia porque a escolha dos participantes não respeitava as prioridades locais, isto é, ela continuava detendo sua legitimidade apesar de não mais atender. Portanto, mais do que ninguém, era ela quem deveria participar do encontro em Pernambuco justamente pelo seu status de “conselheira obstétrica”. E, terceiro, era este mesmo status que lhe dava autoridade para criticar o “monopólio” de D. Dina na participação dos cursos. Talvez as outras parteiras preteridas nesta viagem concordassem com D. Benta sobre os critérios de escolha, mas só admitiriam essa opinião à boca pequena. D. Benta ficava mordida tanto pelo trânsito de D. Dina pelos cursos quanto pelo seu posto como presidente da Associação de Parteiras Tradicionais de Melgaço. “Eu tô muito triste. Não tô sabendo das coisas da reunião. A Dina, eu gosto muito dela, ela é minha comadre e tudo. Mas ela tá de escrotice comigo. Ela sabe que eu tô doente. Podia vir aqui depois da reunião pelo menos pra me avisar o que aconteceu. Nem isso. Nem fico sabendo.” Assim, D. Dina não podia recriminar D. Benta pela sua ausência nos eventos coletivos dirigidos e organizados pelas parteiras, como fazia, a todo tempo, em relação à D. Teteia. D. Dina e D. Benta compartilhavam do apreço por estes encontros na consolidação de seu capital social local. Aqui, era a experiência e o renome que estavam sendo disputados, e monopolizar informações sobre o encontro de Pernambuco ou a última reunião da Associação, por exemplo, era um passo à frente que D. Dina dava nesta disputa. D. Dina parecia, mais e mais, desejar imbuir-se do status de “conselheira obstétrica”, tão conveniente para parteiras idosas que se aproximavam do final de sua carreira. Era uma forma de se aposentar sem sair completamente de cena. Assim, D. Teteia, quase tão pobre quanto D. Dinorá, não podia contar com a distinção social de uma vasta e bem-sucedida parentela, como vimos ser o caso de D. Benta. A larga experiência com centenas de partos realizados na cidade era o melhor cartão de visitas de D. Teteia. Não envolver-se com os cursos biomédicos

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oferecidos, não conviver com as parteiras e não passar ilesa pelos comentários das mesmas eram aspectos que pouco interferiam em sua relação com as buchudas de Melgaço. No entanto, conheci uma ou outra gestante que havia decidido deixar D. Teteia em razão de sua vista que fraquejava aos 70 e poucos anos. Suspeito que, se D. Teteia começasse, por uma razão ou outra, a equivocar-se nos diagnósticos obstétricos e/ou a perder mulheres, a frequência de seus atendimentos diminuiria bastante. É justamente pelo seu desempenho – e não pela sua circulação na Unidade de Saúde nem pela rememoração dos cursos – que era avaliada pelo público. D. Dinorá não se conformava que a outra lhe fosse uma concorrente tão significativa sem que tivesse acompanhado os treinamentos. Quer dizer, aos olhos de D. Dina, D. Teteia tinha clientela apesar de não ter feito curso (e, talvez, aos olhos de D. Teteia, sua clientela derivasse do fato de justamente não haver sentado nos bancos de escola). Em relação à D. Teteia, o estudo não alcançava ascendência suficiente porque o peso do autodidatismo ou do aprendizado pela experiência prática garantiam-lhe o posto de parteira famosa e demandada na cidade. E a ausência de D. Teteia dos cursos, de certa forma, fazia com que a participação das demais parteiras nos mesmos se esvaísse de sentido, pois criava a imagem de que mesmo parteiras experientes como D. Dina precisavam “aprender”. O sucesso de D. Teteia fazia com que a balança pendesse para o lado do “saber sem ser ensinada” em vez de “ter o caminho mostrado”, como me diziam. O “dom” e o “aprender sozinha” marcavam o mérito próprio da parteira, ao contrário dos cursos e da “herança” (como D. Benta e D. Dina haviam aprendido com suas mães), em que se aprende por meio de outrem. Contudo, em relação à D. Benta, D. Dina saía em vantagem ao continuar sendo convidada para os cursos. Só em 2005, ela havia estado em Breves, Belém e Maracaípe. Perante a legitimidade histórica de D. Benta, as viagens eram o diferencial de D. Dina. Esta não fazia qualquer esforço para inteirar aquela de suas andanças porque sabia que as notícias lhe chegariam rapidamente. E quando isso acontecia, D. Benta muito se ressentia, como já vimos aqui. No fundo, creio que D. Benta nem queria saber dos detalhes do curso, apoquentava-se, de fato, por não ter sido incluída. Os cursos serviam como fonte de legitimidade limitada e circunstancial, isto é, serviam nas disputas de D. Dinorá com D. Benta, mas não com D. Teteia.

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E, por fim, qual era o impacto dos cursos para as parteiras jovenzinhas? Segundo Tornquist (2004: 228), para o Ministério da Saúde, “ser reconhecida pela comunidade como parteira” é o critério fundamental para participar dos eventos de treinamento. Embora tivessem atendido um ou outro parto, eram poucas as pessoas que sabiam dessa pequena experiência das parteiras verdes. Geralmente, estas chegavam aos cursos indicadas por uma parteira que tentava amadrinhá-las ou com quem tivessem alguma relação de parentesco ou vizinhança. Para elas, os cursos representavam uma chance de ganhar alguma visibilidade para sua vontade de trabalhar como parteira e, mais do que isso, usufruir dos benefícios que daí advinham como a bolsa de material, viagens, possibilidade de empregos e contatos etc. Porém, se outras fontes de legitimidade – e.g. partos difíceis, capacidade diagnóstica, coragem – não fossem por ela reunidas, dificilmente elas ascenderiam no cenário obstétrico não oficial da cidade. Apenas um parto na precisão ou aprender a cortar o cordão umbilical não era suficiente para que deixassem de ser parteiras só no nome. Uma longa estrada precisava ser percorrida para se assemelharem à D. Dinorá, D. Benta ou D. Teteia, parteiras que qualquer morador da cidade sabia exatamente onde morava e certamente tinha algum parente próximo que havia se tornado filho de umbigo de uma delas, isto é, tinha nascido por meio de suas mãos.

3 AS DIFERENTES FONTES DE LEGITIMIDADE E A (CONSTANTE) CONSTRUÇÃO DA DEFINIÇÃO DE “PARTEIRA” Nem sempre D. Dinorá usava luvas em seus atendimentos, nem sempre havia curado umbigos com iodo ou mertiolate. Ela já havia perdido bebês e havia errado diagnósticos. E frequentemente criticava os critérios utilizados por médicos e enfermeiras nos problemas de saúde enfrentados no Postinho. Apesar disso, ela também considerava critérios biomédicos para condenar D. Teteia e D. Benta. Embora talvez já tivesse enfrentado aperreios muito similares às concorrentes, nem toda audiência os conhecia e o importante era marcar as diferenças entre elas, ao menos de forma retórica. Era uma aguda disputa de saberes que se estabelecia entre estas parteiras. Ora o saber biomédico era mais valorizado, ora a experiência prática da obstetrícia não oficial garantia a vida das pacientes. O importante, ao que parece, era estabelecer o melhor argumento conforme o que se supunha ser esperado do

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interlocutor em questão. Aqui, o quadro se parece bastante com o que Jordan encontrou entre parteiras mexicanas que participavam de treinamentos: O que eu observei ao trabalhar com parteiras que haviam participado de cursos de treinamento é que elas tinham aprendido a como falar com os representantes do sistema de saúde oficial. Elas tinham aprendido que tipo de coisas são “boas” e que tipo de coisas são “más”. Elas haviam sido expostas a uma ideologia que elas sabiam ser poderosa, que comandava recursos e autoridade. (...) Eu acredito que o maior efeito dos cursos de treinamento do tipo que eu descrevi é uma nova facilidade de falar na linguagem da biomedicina. (1993: 178-179)

Embora, claro, alfinetadas e discordâncias tenham sempre existido, notava alguns pontos de mudança, possivelmente nas últimas duas décadas, quando a maior parte destas parteiras migrou para a cidade. Primeiro, no cenário urbano, a convivência mais estreita entre um maior número de parteiras talvez tivesse colaborado para incrementar o falatório mútuo entre elas. Segundo, falar, mais do que fazer ou mostrar, ganhava proeminência dado o monopólio dos partos por algumas poucas parteiras famosas. Assim, havia menos chance da maior parte se sobressair pelo exemplo prático. Claro, os partos realizados por D. Dinorá, D. Teteia, D. Benta, por exemplo, continuavam a ser motivo de demonstração concreta do saber fazer, mas eram poucas aquelas que, como elas, poderiam ganhar ascensão pelo que, de fato, havia sido testemunhado por todos. E, terceiro, eu notava como D. Dinorá e outras que participavam assiduamente dos cursos aprendiam sobre o que falar quando o objetivo era projetar o próprio trabalho sobre o trabalho alheio. Jordan propôs pensarmos os treinamentos como espaços privilegiados em que a obstetrícia biomédica e cosmopolita é apresentada como um authoritative knowledge, quer dizer, “o conhecimento que, em um contexto particular, é visto como importante, relevante e consequente para a tomada de decisões” (1989: 925). D. Dina escolhia me contar o que julgava “equivocado” na conduta obstétrica alheia para, ao mesmo tempo, contrastar com sua própria prática. Construía, por oposição, dois estilos de partejar. E, a meu ver, quando dizia frases como, por exemplo, “O estudo diz que o primeiro filho leva mais de 24 horas para nascer” e “A enfermeira Patrícia do Curumim me ensinou a cortar o umbigo desse jeito”, ela se imbuía do authoritative knowledge que havia reconhecido nos cursos e se colocava na posição de quem sabia e, por isso, lhe cabia ensinar a “prática correta” às demais colegas e também anunciar a “melhor decisão” nos momentos de apuro obstétrico.

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As parteiras de Melgaço aprendiam muito mais do que identificar um parto “arriscado” ou esterilizar uma tesoura. Nos cursos, elas angariavam uma expertise do que, como, com quem e quando falar sobre partos. Falar parecia ser uma das principais estratégias de um empoderamento específico, talvez muito mais individual e familiar do que o previsto pelas feministas do Grupo Curumim; talvez muito mais político do que o investimento técnico-obstétrico feito pelo Ministério da Saúde e pelas agências internacionais. Falar que D. Teteia não diagnosticara a gravidez de uma moça que, de fato, estava buchuda, que sua casa era “imunda”, que “a vista dela estava ficando cansada”; ou então, falar que D. Benta “já perdera mulher”, que “sua mão tremia de nervoso” ou que “ela não estava aguentando caminhar até os partos” eram formas de colocar à prova a capacidade obstétrica destas atendentes, sobretudo se os interlocutores fossem potenciais pacientes, o médico do Postinho, as instrutoras de cursos. É bom lembrar que, durante minha estada, D. Dina comentou sobre o trabalho não só de D. Teteia e D. Benta, mas de muitas outras parteiras com quem convivíamos: “A Zica atendeu um parto gripada outro dia, não pode, a gente sabe”, “A Pequenina não deu conta de puxar a Acácia [parturiente], você viu? Nem topou que o bebê vinha de pé” etc. Mas, também como vimos, D. Dinorá e estas parteiras não falavam apenas a partir de uma matriz biomédica, como sugeriu Jordan. Os cursos lhes subsidiavam com mais uma fonte de legitimidade nesses mexericos difamantes, nessas disputas por autoridade. E, além de aprender a falar, D. Dinorá contava com sua proximidade com as representantes da ONG como uma outra fonte de legitimidade sobre a qual respaldar sua reputação e se diferenciar das demais parteiras, como uma “rota alternativa de reconhecimento”: Jordan está correta quando ela argumenta que o que as parteiras tiram dos breves treinamentos didáticos é uma forma de “falar”, não uma maneira de “fazer”, pois é justamente disso que se trata a instrução didática. Portanto, talvez as parteiras procuram tão avidamente tais treinamentos ao vê-los como uma rota para enaltecer autoridade ou prestígio. Quando as mulheres são excluídas das fontes tradicionais de poder em suas comunidades, prestígio e autoridade podem ser derivados de programas de treinamento ou atividades orientadas para a mudança, porque elas prometem uma rota alternativa de reconhecimento. Se elas serão bem-sucedidas em forjar um status hierárquico alternativo dependerá, claro, das condições locais. (Browner, 1989: 938)

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Para acontecerem, os cursos precisam de uma comunhão de esforços que começam na Esplanada dos Ministérios em Brasília, passam por Recife e Belém, depois por Breves (cidade que sedia a Regional da Saúde) e só então chegam à prefeitura de Melgaço. Apesar desse trajeto e variedade de atores, as parteiras se identificavam de forma mais pronunciada com as doutoras do Grupo Curumim. Revelavam, então, como reuniam, de forma diversa e criativa, novos elementos para compor sua própria ideia de “reconhecimento”. Havia, portanto, um conjunto de atributos e saberes de onde escolher as informações que ajudariam a formar seu perfil como parteira. Como vimos ao longo deste capítulo, esse conjunto, por certo, era limitado. Mas havia um espaço de negociação, cada parteira se associava a um arranjo específico de fontes de legitimidade. Uma poderia basear sua fama na capacidade preditiva durante as puxações, outra poderia ser conhecida por estar sempre disponível para acompanhar parturientes até os hospitais vizinhos ou ficara famosa por nunca ter perdido mulher e assim por diante. Julgo que esses arranjos eram também mais ou menos flutuantes, pois derivavam, por um lado, do panorama do grupo de parteiras atuantes na cidade em um dado momento e, por outro, do interlocutor a quem o discurso de autoafirmação se dirigia. Quer dizer, se houvesse algumas boas parteiras antigas, as demais talvez precisassem desenvolver outras fontes de legitimidade para serem chamadas e contratadas. Se estas famosas tivessem morrido há pouco, era possível aproveitar o momento e ascender, como foi o caso de D. Dina. Antes de tudo, a ideia de “parteira” era múltipla em Melgaço e havia uma clara hierarquia entre as 22 parteiras que conheci. Além disso, o status de uma atendente não era fixo e mudava com o tempo e com sua capacidade de reunir significativas fontes de legitimidade para consolidar e constantemente alimentar sua autoridade obstétrica. Os cursos de treinamento eram uma dessas importantes fontes, embora, como também notei, nem todas as parteiras compartilhassem desse atributo distintivo. Os cursos poderiam servir, como nos sugeriu Jordan (1993), para, retoricamente ao menos, manter distinções e estilos de trabalho ou como mais um aspecto considerado na contabilidade de autoridade. Ser uma parteira famosa era importante para lhes abrir portas entre os poderosos da cidade, mas principalmente para alçar autoridade entre os seus. Uma parteira conhecida, com pacientes a sua espera, com dinheiro no bolso, com viagens marcadas, ganhava mais espaço dentro

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de casa, com o marido, os filhos e netos. Seria mais fácil delegar tarefas domésticas ao sair; talvez facilitasse que uma nora lhe escutasse os conselhos numa briga conjugal; ajudava na negociação com o marido para comprar uma máquina de lavar roupa. Não são os cursos que lhes abrem as portas automaticamente, mas a forma como os cursos são por elas apropriados que estas portas podem ser abertas, dentro e fora de casa. O seu trabalho como parteira, com novas configurações de legitimidade, se tornava mais um aspecto a ser considerado na micropolítica familiar e vicinal. Os desafios apresentados pelos cursos, pelo contato com as políticas mais abrangentes do parto domiciliar e com os personagens das instituições públicas e privadas faziam esse grupo de parteiras rever suas categorias classificatórias e, para deleite da antropóloga, evidenciar o que lhes era prioritário em sua prática obstétrica e no convívio dentro deste grupo. Os cursos não eram decisivos na definição de quem era ou não parteira, mas contribuíam para complexificar este quadro em Melgaço. Era nesse cenário atual que despontava a diferença entre quem sabe sem medir e quem não sabe e mede três dedos, como D. Teteia explicou, no início, sobre a relação estreita e delicada entre dilatação uterina, dores de puxo e momento de expulsão do feto. Notei, de fato, como os cursos têm contribuído para incrementar a visibilidade das parteiras na cidade e região contígua. Mas também pretendi pensar a partir de duas outras perspectivas de análise. Primeiro, sugeri que invertamos nossa mirada, isto é, em vez de partirmos dos cursos para compreender como estes têm afetado a comunidade de parteiras, partir das próprias mulheres e, só então, perceber se e como os cursos são uma realidade relevante. Segundo, para além da repercussão dos cursos em sua relação com as autoridades político-sanitárias locais, pretendi observar como os cursos são mais um dos elementos considerados pelas parteiras para negociar as relações que elas estabelecem entre si e com suas pacientes e, mais importante para nosso ponto de vista analítico, como tais relações repercutem e complexificam os contornos que elas têm construído para seu trabalho de partejar. Na manipulação desta complexa miríade de fontes de legitimidade, eram revelados os conflitos locais e as definições que elas construíam sobre seu próprio trabalho.

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NOTAS 1

Professora do Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. Contato: sorayafleischer@hotmail.com. Uma primeira versão desse capítulo foi publicada na Revisa Pós - Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 10, Brasília, 2006. 2 Para alguns exemplos recentes, ver Chamilco, 2001; Costa, 2002; Dias, 2002; Freitas, 1997; Pinto, 2002; e Silva, 2004. 3 Os nomes originais foram substituídos por pseudônimos. Aproveito para agradecer pela generosidade e delicadeza com que D. Dinorá, sua família extensa e suas pacientes sempre me receberam durante minha estada em Melgaço. Agradeço ao apoio que recebi do Grupo Curumim Gestação e Parto, de Recife, ao longo da pesquisa e na interlocução que vem se desdobrando desde então. Este texto também se beneficiou dos comentários críticos recebidos de Susi Tornquist, Michael Swioklo, Claudia Fonseca, Antonádia Borges e do simpático público dos Seminários do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. 4 Essa Associação tinha sido criada, há alguns anos, pelo incentivo simbólico e político de ONGs feministas que têm trabalhado há mais de uma década com parteiras no país. A ideia era que, neste novo espaço, as parteiras pudessem se organizar juridicamente para acessar uma institucionalização, financiamentos públicos e privados e representatividade perante o Conselho Municipal de Saúde, por exemplo. A Associação geralmente sediava e ajudava a divulgar os cursos de treinamento que chegavam à região. 5 Ver o segundo capítulo de Fleischer, 2007, para uma análise pormenorizada da puxação. 6 Outras pesquisas também notaram distinções internas ao ofício. Ver Tornquist entre as parteiras do nordeste mineiro (2004: 213). 7 Agências internacionais como a OMS e o UNICEF têm recomendado os treinamentos de parteiras há várias décadas (Rozario, 1998: 144) e, mais expressivamente a partir dos anos 1950, têm produzido documentos para “orientar” as autoridades sanitárias terceiro-mundistas sobre como aproveitar essa mão de obra “culturalmente apropriada”, “barata” e “participativa” (Velimirovic e Velimirovic, 1981; Greenberg, 1982; Parra, 1993; Pigg, 1997; Tornquist e Lino, 2005). Em geral, os cursos são tidos como uma dentre várias estratégias para diminuir a mortalidade materna e neonatal (Abouzahr, 1997: 262) e não visam estimular necessária e diretamente o parto domiciliar, mas capacitar as parteiras para práticas “mais limpas” e “menos perigosas” e convencê-las de encaminhar “casos complicados” para os hospitais das redondezas. Há uma ideia geral de que as parteiras têm utilidade provisória enquanto a hospitalização não for universalmente democratizada (Parra, 1993: 1322) e, assim, os treinamentos têm sido utilizados em vários países do sul econômico, principalmente (e.g., Kelly, 1955; Cosminsky, 1977; Jordan, 1989; Stephens, 1992; Rozario, 1998. Ver Mendonca, 2004, e Tornquist, 2004, para bons relatos sobre o cenário brasileiro). 8 Na bolsa de material, ou kit , constam os seguintes itens: duas tesouras, caixa de inox para guardar a tesoura limpa, escova e sabão para lavar as mãos, gaze, um par de luvas de látex descartáveis, lanterna, sombrinha, bacia de inox, lençol de plástico, fio para amarrar o cordão, pinard , balança com alças, três fraldas, fita métrica e uma camiseta com os logotipos das instituições envolvidas. O conteúdo programático dos cursos e o conteúdo das bolsas são similares em outros países (e.g., Greenberg, 1982, na Guatemala; Pigg, 1997, no Nepal). Esta padronização reflete a dimensão da influência das agências internacionais de desenvolvimento, bem como a definição que estas últimas têm tentado consolidar para a ideia de “parteira”. 9 Quando voltei a visitar D. Teteia, em 2005, ela não mais morava na casa de madeira. No terreno ao lado, uma casa de tijolos e telhas havia sido erguida. Restava somente o reboco, a

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pintura e a cerâmica no piso, todos itens muito valorizados na cidade. D. Teteia ascendia a olhos vistos, talvez como resultado de um ano profícuo em partos, talvez como resultado dos bons contatos que mantinha com a elite local (uma de suas filhas, por exemplo, era casada com o secretário municipal de obras). 10 Segundo me contou, ela havia recebido um curso de um mês pelas mãos de um tutor biomédico, numa espécie de discipulado individual, sem a presença de outras “alunas”. Ao que parece, D . Dinorá e suas colegas mais próximas não sabiam dessa informação, que não era muito divulgada por D. Teteia.

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1.

INTRODUÇÃO

A criação do papel de Agentes Indígenas de Saúde (doravante, AISs) e sua decorrente formação são processos que ocorrem como fruto do movimento de Reforma Sanitária que toma lugar no Brasil desde a década de 1980, estando em acordo com as determinações da Organização Mundial de Saúde (Cf. Política de Cuidados Primários de Saúde descritos na Declaração de Alma-Ata, OMS, 1978), que visam à ampliação da cobertura dos serviços primários de saúde para os povos indígenas. A implementação desta política de saúde para povos indígenas no Brasil teve amplo apoio de setores governamentais empenhados no processo de Reforma Sanitária, além de instituições como ONGs e Universidades que atuam na área da saúde. Tais modificações culminaram no atual modelo do Sistema Único de Saúde/SUS em vigor desde 1990 (cf. Verani, 1999). Todavia, a efetivação desta política, especialmente no que diz respeito à saúde indígena, não está isenta de contradições, como pretendo mostrar ao longo deste artigo.2 A inserção dos AISs em contextos de interculturalidade e de intermedicalidade é ainda muito pouco discutida, restringindo-se na maior parte dos casos à exposição dos modelos biomédicos que subjazem aos projetos de atenção à saúde, colocados em prática tanto nos cursos de formação de AISs (e, consequentemente,

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na maneira como decorre sua atuação direta nas aldeias) quanto na atuação dos profissionais não indígenas em áreas indígenas. Todavia, poucos pesquisadores se preocuparam em apresentar de que forma esta interação entre profissionais de saúde não índios e os agentes indígenas de saúde se dá na prática e de que forma se constroem os espaços de atuação, de legitimidade e de poder nesta relação (Cf., por exemplo, Dias-Scopel, 2005; Erthal, 2003; Langdon, et al., 2006). O debate proposto neste artigo tem como pano de fundo, segundo as diretrizes das políticas públicas nacionais, a noção de atenção diferenciada no âmbito da saúde e suas distintas concepções e apropriações em um contexto específico de intermedicalidade (conforme definição de Follér, 2004). Minha intenção será, a partir da apresentação de alguns dados que ilustrem esta situação intercultural, colhidos durante minha pesquisa de campo realizada no Alto Xingu, problematizar o papel que os AISs assumem dentro deste modelo, bem como o processo de formação a que são submetidos e que acarreta em uma inserção ambígua destes agentes nas equipes de saúde multidisciplinar – responsáveis pelos atendimentos na região.

2.

UMA APRESENTAÇÃO GERAL DO ALTO XINGU

O Parque Indígena do Xingu (PIX) é uma reserva federal criada em 1961 e que abrange uma área de aproximadamente 2.750.002 hectares. Situa-se no noroeste do Estado do Mato Grosso, em torno dos principais formadores do rio Xingu – rios Ronuro, Culuene, Curisevo e Batovi –, afluente do rio Amazonas. É uma região de transição ecológica, entre o cerrado do Planalto Central e a Floresta Amazônica. Em seus aspectos sociopolíticos, o PIX pode ser dividido em três partes, tendo em vista os povos que lá habitam: uma ao norte, conhecida como Baixo Xingu, habitada pelos povos Suyá, Juruna e Kayabi; uma na região central, o chamado Médio Xingu, onde se localizam os povos Trumai e Ikpeng; e outra ao sul, o Alto Xingu, região que, apesar das diferenças linguísticas, apresenta certa homogeneidade no que diz respeito à sua forma de organização sociopolítica, estabelecendo relações inter e intratribais pelas quais estas sociedades se definem, podendo-se falar em um sistema cultural (Basso, 1973, p. 3-4) ou uma comunidade moral (Heckenberger, 2001, passim). Para Heckenberger, a sociedade xinguana é um exemplo de uma “comunidade moral” na medida em que as comunidades que dela participam são incapazes de se reproduzirem simbolicamente de forma indepen-

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dente (id. ibid., p. 92), mantendo entre si um complexo sistema de comunicações e trocas econômicas, matrimoniais e, sobretudo, cerimoniais. Compõem a região do Alto Xingu nove povos distintos, que podem ser divididos em quatro grupos de acordo com sua variação linguística: línguas da família Aruak – Yawalapiti, Mehinaku, Waurá; línguas do tronco Tupi – Kamayurá e Aweti; e línguas da família Karibe – Kalapalo, Kuikuro, Nahukuá, Matipu.3 O modo de vida destes povos se modificou intensamente desde a criação do PIX, com o surgimento e o crescimento das cidades e fazendas em seu entorno, com a introdução em seu cotidiano de novos hábitos de convivência e de alimentação, criando, desta forma, novas demandas das comunidades indígenas por bens e serviços advindos da sociedade nacional, dentre eles os serviços biomédicos.4 Como forma de suprir (ainda que parcialmente) estas demandas, uma das principais estratégias adotadas atualmente nas políticas públicas é a capacitação de pessoas oriundas dos agrupamentos indígenas para atuarem na área da saúde. Esta estratégia aparece como uma forma de garantir a participação comunitária na formulação dos projetos de atenção à saúde, além de garantir também um atendimento que seja condizente com os princípios constitucionais de direito à diferença e ao mesmo tempo de acesso integral aos serviços de saúde, além de suprir (mais uma vez parcialmente) uma grande deficiência de profissionais presente nas áreas indígenas.

3.

O (NÃO)ESPAÇO DO AGENTE DE SAÚDE NO ALTO XINGU

Não existe uma legislação específica que regulamente o trabalho dos AISs – que são enquadrados na categoria mais geral de Agentes Comunitários –, o que dificulta muitas vezes uma negociação específica a respeito de suas condições de trabalho e formação. O papel do Agente Comunitário de Saúde surge nas discussões a respeito das políticas públicas de saúde a partir da declaração feita na conferência internacional sobre cuidados primários de saúde, realizada em Alma-Ata, Cazaquistão, em 1978, patrocinada pela OMS. A argumentação principal deste documento é que os “cuidados primários de saúde sejam desenvolvidos e aplicados em todo o mundo e, particularmente, nos países em desenvolvimento, num espírito de cooperação técnica e em consonância com a nova ordem econômica internacional” (OMS, 1978, p. 3). Além disso, dentro do processo de reordenamento do sistema de saúde brasi-

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leiro proposto pelo SUS tem-se como uma estratégia prioritária de atenção básica a Saúde da Família, que se caracteriza por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. (Brasil, 2006, p. 10)

Dentro desta perspectiva, os agentes comunitários são considerados uma parte fundamental na efetivação das políticas de saúde básica, na medida em que há uma pressuposição de que estes agentes realizariam a intermediação entre os saberes locais e a prática médica ocidental, e garantiriam, desta forma, a participação das comunidades nas propostas colocadas em prática pelas agências governamentais na área da saúde. Além disso, por meio do trabalho destes agentes, pretende-se estender o atendimento primário de saúde a todas as populações consideradas periféricas em relação ao sistema médico oficial. No Brasil, os agentes comunitários tiveram seu reconhecimento legal como profissionais da saúde no ano de 2002, através da lei nº 10.507, posteriormente revogada e substituída pela lei nº. 11.350 de outubro de 2006, atualmente em vigor. De acordo com esta legislação existente, a atuação dos agentes de saúde caracteriza-se pelo exercício de atividades de prevenção e promoção de saúde, mediante ações domiciliares ou comunitárias, individuais ou coletivas, de acordo com as diretrizes do SUS de busca do acesso universal e igualitário às ações e serviços para prevenção e promoção de saúde, através da participação comunitária, o chamado “controle social” (Langdon et al., 2006, p. 5). Ao mesmo tempo, na medida em que compõem as equipes multidisciplinares de saúde indígena (doravante, EMSI) atuantes nos territórios indígenas, os AISs são concebidos como um elo entre os serviços de saúde e a comunidade indígena, como estratégia de ampliação da cobertura da assistência médica e, ao mesmo tempo, como estratégia do movimento indígena em busca de uma inserção no mercado de trabalho e de algum controle com relação às questões de saúde-doença. (Mendonça, 2005)

Esta definição dos AISs enquanto “elos de ligação” e, muitas vezes, como “tradutores”5 entre diferentes sistemas terapêuticos pode ser problematizada, na medida em que estes agentes nem sempre possuem espaços determinados de atu-

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ação – na prática verifica-se com muito mais frequência estes AISs assumirem a função de “transmissores” dos conhecimentos e práticas biomédicas às comunidades. O fluxo de conhecimento, que deveria ser de mão dupla – por meio de uma suposta complementaridade de conhecimentos e práticas –, acaba se tornando uma via de mão única, havendo uma sobrevalorização da biomedicina em detrimento das práticas locais. Estas e outras questões que serão apresentadas ao longo deste texto fazem com que os diferentes atores envolvidos na atuação dos AISs (indígenas e profissionais) criem diferentes expectativas e, por esta razão, se utilizem diferentemente do trabalho e do espaço político ocupado pelo AIS, o que gera ambiguidades e mesmo paradoxos com relação a seu papel. Os dados aqui apresentados foram colhidos durante pesquisa de campo realizada em diferentes momentos entre os anos de 2006 e 2007, totalizando um período de aproximadamente seis meses. Nestas viagens acompanhei a atuação dos AISs diretamente em algumas aldeias, além de diversos momentos de interação entre estes agentes e a equipe multidisciplinar de saúde indígena, seja nas aldeias, seja no polo-base Leonardo.6 Pude também acompanhar o quarto módulo do curso de formação de AISs que acontece atualmente, organizado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena/DSEI Xingu, tendo a chance de conviver e conversar com a quase totalidade de AISs do Alto Xingu. É possível observar nas aldeias alto xinguanas que a procura e a utilização dos recursos biomédicos pela população indígena está condicionada a diversos fatores, que vão desde a proximidade e a consequente facilidade ou não de acesso a estes bens – o que se verifica na alta procura por profissionais no polo-base de pacientes provindos das aldeias muito próximas a este –, passando pela disponibilidade e o conhecimento de práticas e técnicas curativas nativas, através da utilização tanto de raízes, ervas e demais remédios e eméticos quanto do trabalho dos pajés. É muito comum nesta região, como já registrado em diversos outros grupos sul-ameríndios, uma utilização concomitante da biomedicina e do sistema terapêutico nativo, remetendo a distintos níveis explicativos que muitas vezes se sobrepõem durante o processo de adoecimento e de escolha de tratamentos. Neste artigo o enfoque é especificamente a respeito da utilização da medicina ocidental por parte dos alto xinguanos, na medida em que é neste contexto que os AISs são acionados e cobrados por ambas as partes: a população local e os profissionais de saúde não indígenas.

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3.1

AIS: ATRIBUIÇÕES E PRÁTICAS O trabalho dos AISs nas aldeias envolve diversas tarefas contidas em uma

“agenda de trabalho”, que vão desde o acompanhamento mensal das crianças e dos idosos, os atendimentos diários e o acompanhamento dos pacientes atendidos pela EMSI, através do cumprimento dos horários de medicação, passando pelas visitas domiciliares, além de ser o responsável pela “hora da saúde”, momento diário em que os AISs se comunicam pelo rádio com os enfermeiros do Posto Leonardo e da Casa de Saúde do Índio/CASAI,7 localizada na cidade de Canarana, quando é realizada a maior parte dos encaminhamentos. Os AISs devem ainda entregar relatórios mensais dos atendimentos e procedimentos realizados, que são utilizados com a finalidade de facilitar a organização de um banco de dados a respeito das condições de saúde da população em geral e que deveriam nortear os encaminhamentos das políticas de saúde na região (sobre estas questões, cf. Novo, 2008). No entanto, muitas vezes sua atuação nas aldeias não cumpre com estas determinações, inclusive devido à falta de pessoal qualificado para realizar tarefas mais específicas e que não caberiam aos AISs – já que a maior parte das aldeias não possui técnicos ou enfermeiros, somente AISs – o que impede também que se efetive a pressuposta supervisão constante da atuação destes agentes. Uma das atividades considerada fundamental para garantir um atendimento primário diferenciado, que, no entanto, não é realizada regularmente em praticamente nenhuma das aldeias das que visitei, é a de visitas domiciliares. Seja por motivos de disputas políticas envolvendo a população local, que muitas vezes impedem o acesso a determinados espaços por parte dos Agentes de Saúde, por incompreensão das razões destas visitas, ou pela real falta de necessidade – uma vez que não é imprescindível que se faça visita familiar para que se cumpra com os princípios determinados pela Funasa de “identificar as famílias expostas à situação de risco” (Funasa, 2005) – são poucos os AISs que as realizam regularmente e, quando o fazem, visitam casas de pessoas que sabem que já se encontram doentes, somente para realizar o acompanhamento do tratamento e fazer a “medicação de horário”, ou seja, a medicação prescrita por médico ou enfermeiro para ser administrada em horários específicos. Uma reclamação constante por parte tanto da população local quanto dos profissionais (indígenas e não indígenas) que pode ser ouvida e verificada nas visitas às aldeias e que interfere diretamente na atuação dos AISs é a falta de material e

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recursos para os atendimentos e encaminhamentos, gerando uma situação muitas vezes tensa na relação das aldeias com a Funasa e o DSEI. Somente duas aldeias até o momento possuem postos de saúde definitivos, construídos em alvenaria e com uma infraestrutura básica; nas demais aldeias o atendimento é feito em postos construídos com uma estrutura de madeira e cobertura de palha, nos moldes das casas tradicionais, o que gera muitas reclamações, já que os ventos e as chuvas causam grandes estragos em sua cobertura com frequência, danificando os materiais e medicamentos que ficam ali estocados;8 em outras aldeias nem este posto provisório existe, sendo usada a casa dos AISs como local de armazenamento dos materiais e medicamentos, e mesmo de atendimento a pacientes. Além da estrutura física dos postos, algumas aldeias não possuem rádio, elemento fundamental para a comunicação com o Posto Leonardo, sendo a principal forma de “supervisão” e de suporte do trabalho dos AISs por parte da equipe de saúde, devido à distância entre o polobase e as aldeias. Muitos dos rádios e outros materiais de uso fundamental nos postos de saúde das aldeias, como inaladores e geradores de energia, são presentes de turistas, descaracterizando a atuação da Funasa e a desobrigando de certos compromissos fundamentais determinados pela legislação (para as atribuições da Funasa, DSEI e entidades conveniadas, cf. Brasil, 2004, portaria n.70). “Eu tenho dificuldade aqui, é falta de material. Não tem aparelho de pressão, fita métrica, não tem... Não tinha, agora que eu ganhei de presente um inalador.” Falas como esta, de um AIS, são comuns e externalizam uma relação com estes equipamentos marcada pela “doação”: turistas e pesquisadores acabam comprando os materiais e dando como presente para as aldeias, como uma forma de pagamento pela estadia em campo. Na medida em que estes materiais de uso coletivo para a saúde são vistos como “presentes” – e às vezes o são de fato –, acabam sendo manipulados e mesmo monopolizados por famílias de prestígio (as famílias dos caciques) que os adquirem através de suas relações de “amizade”, seja com políticos locais, antropólogos ou mesmo turistas que visitam a região. Cabe aqui numa nota explicativa da estrutura política – no sentido das esferas de distribuição de poder e status – alto xinguana, que interfere diretamente nestas questões. Esta estrutura pode ser definida em termos de constantes disputas entre distintas facções – que são redes de apoio simbólico formadas em torno de pequenos chefes (cf. Figueiredo, 2006). Estas disputas faccionais, por sua vez, giram em

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torno do controle do acesso a bens que necessariamente devem circular de acordo com uma lógica própria de distribuição e redistribuição através das redes de reciprocidade. Os caciques são vistos como “distribuidores de bens” de acordo com o ethos local que afirma a primazia da generosidade e da afabilidade relacionadas à “boa fala”, o que acaba por reger a relação que se estabelece com os bens (para esta discussão, cf. Viveiros de Castro, 1977). Desta forma, apenas na medida da necessidade, os materiais de uso coletivo da saúde recebidos como “presentes” são coletivizados, o que é interpretado, todavia, como uma “generosidade” por parte da pessoa (ou família) que o “detém”, corroborando com a compreensão local do ideal de chefia enquanto pessoas gentis, de “fala boa” e que não negam o que lhes é pedido. Esta utilização política (no sentido mais amplo do termo) dos materiais “da saúde” contrasta, por sua vez, com a visão e as expectativas da Funasa e do Instituto de pesquisa Etno-Ambiental/ IPEAX (ONG conveniada com o DSEI Xingu para prestação de serviços de saúde na região do Alto Xingu), que os consideram bens puramente técnicos. As distintas concepções a respeito destes materiais muitas vezes geram situações de incompreensão e cobranças mútuas, assim como ocorre em relação ao papel do AIS. A concepção do AIS como um técnico (por parte da Funasa e do IPEAX, representados especialmente pelos profissionais de saúde não indígenas) também cria conflitos, na medida em que estes agentes são considerados desqualificados para o trabalho na saúde pela EMSI (e também nas próprias aldeias9), muitas vezes devido à formação incipiente, conforme será discutido adiante.10 É estabelecida desta forma uma relação hierárquica entre os diversos profissionais que atuam na área indígena, o que contraria os princípios que envolvem a constituição de uma equipe multidisciplinar, sinalizando a subordinação dos AISs ao restante da equipe.11 Na prática, os AIS são tratados tanto pelos profissionais não indígenas quanto pelas comunidades nas quais atuam, enquanto auxiliares desqualificados em relação ao restante da equipe – uma vez que o modelo biomédico privilegia os critérios de formação –, não possuindo qualquer poder de decisão sobre o encaminhamento das ações curativas e preventivas. Porém, esta não é a única razão pela qual os AISs são desvalorizados dentro de suas comunidades, sendo muitas vezes descritos como “preguiçosos” ou “in-

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competentes”. Os próprios AISs percebem que a população indígena não valoriza o “trabalho com a saúde” e reconhecem as dificuldades que enfrentam. Trabalhar na comunidade é muito duro. A comunidade reclama, não acredita no trabalho. Nós temos muita dificuldade para trabalhar na comunidade. Quando eles falam mal, eu não ligo, não respondo pra eles não. (...) Eu trabalho pra ajudar a comunidade. A aldeia não tem preocupação com a saúde. (AIS Kalapalo.)

Esta fala de um AIS representa de forma significativa alguns conflitos inerentes ao papel do AIS, quando afirma, por exemplo, que “a aldeia não tem preocupação com a saúde”, fazendo uma referência a uma noção de saúde vinculada diretamente ao conceito biomédico e às noções a ele vinculadas de higiene e cuidados, e não necessariamente às concepções nativas de saúde e atenção. O que se percebe é a reprodução de um discurso veiculado pelos profissionais e as agências responsáveis pelas ações de saúde que, no entanto, não condiz com as ações e as escolhas feitas durante o processo de tratamento. Os AISs e as comunidades muitas vezes recorrem às práticas de cuidado tradicionais, criando uma teia hierárquica no processo de escolha de tratamentos, como se percebe no caso descrito a seguir. Acompanhei na aldeia Aiha (etnia kalapalo) todo o itinerário terapêutico de um bebê, recém-nascido (cerca de dois meses na época), filho de um dos AISs da aldeia. A casa deste AIS é vizinha à casa onde me hospedei e, por isso, era possível escutar o bebê chorando todas as noites ininterruptamente. Após duas ou três noites sem que a situação se modificasse, procurei o AIS, pai da criança, para perguntar o que estava acontecendo. Encontrei-o voltando de bicicleta para sua casa, carregando a rama de uma planta. Perguntei para que era a planta, e ele me disse: “É pro bebê parar de chorar. Ela deixa criança mais calma”. Ainda me disse, quando perguntado a respeito dos sintomas apresentados pela criança, que ele tinha “IRA leve”.12 Este diagnóstico é feito pelos AISs quando o paciente apresenta alguma irritação nas vias respiratórias, causando desconforto e dificuldades na respiração, e é a causa da maior parte das incidências de visitas ao posto de saúde das aldeias. O tratamento geralmente é feito com o uso combinado de um anti-histamínico e sessões de nebulização. Perguntei ao AIS se já havia seguido algum destes procedimentos padrão com seu filho, ao que me respondeu que havia feito somente a nebulização, mas que agora, usando esta planta, seu filho ficaria “mais calmo”. Mais dois dias se passaram sem que houvesse alguma mudança significativa no quadro geral da criança. Preocupados com seu estado, os familiares

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resolveram que o AIS deveria levar o filho ao Posto Leonardo para uma avaliação. Somente fiquei sabendo que o diagnóstico era de pneumonia cinco dias depois, quando o pai retornou à aldeia trazendo seu filho consigo. Exatamente neste período fazia muito frio e os enfermeiros deram alta à criança por falta de um local adequado para que eles se alojassem no polo Leonardo, mas com a recomendação de que a criança deveria continuar sendo medicada e que fossem evitadas as fogueiras em sua casa durante todo o período de tratamento, pois a inalação de fumaça poderia agravar a situação da criança. “Mas está muito frio. Tem que fazer fogueirinha à noite”, foi o que o AIS me disse a respeito da recomendação. Pode-se perceber por este relato a dificuldade que os profissionais têm de lidar com algumas questões que interferem diretamente no tratamento sob o ponto de vista biomédico, e acabam por avaliar o comportamento dos índios como incoerente com o tratamento proposto. Tive que dar alta pra ele. Não tinha jeito de ficar com ele aqui no Polo. (...) Mas não adianta ir pra aldeia e fazer fogueira lá. [Mas tem feito muito frio, eu disse] É, mas aí não adianta de nada tomar o remédio que não vai melhorar. (Enfermeira responsável pelo caso.)

Pode-se perceber a complexa teia de relações hierárquicas que se estabelecem neste contexto de intermedicalidade. Não há somente uma hierarquização dos profissionais que atuam na área da saúde (sejam médicos, enfermeiros ou AISs), mas há também uma hierarquização na maneira como a etiologia das doenças é pensada, possibilitando a escolha de diferentes tratamentos ao longo do processo de adoecimento. Para a biomedicina, pautada em diagnósticos técnicos através da afecção de sintomas, esta possibilidade múltipla de itinerários terapêuticos torna-se problemática, criando uma interação complexa – e algumas vezes tensa – entre estes dois sistemas de saúde. Esta capacidade de junção de modelos explicativos está presente, contudo, na exegese nativa. As diferentes técnicas de tratamento e cura são utilizadas com referência a distintos planos explicativos de causalidade da doença, possibilitando que sejam utilizadas de forma conjunta e, muitas vezes, complementar. Desta forma, pode-se problematizar o papel (e a importância) dos AISs enquanto “técnicos de saúde”, como pretende o modelo implementado pela Funasa, sendo, por outro lado, foco de constantes disputas políticas por parte das lideranças e caciques locais.

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3.2

POSIÇÃO DE DISPUTA: O CONTROLE E O ACESSO A BENS E SERVIÇOS Existe uma grande distância entre as expectativas do trabalho do AIS por

parte dos diversos atores relacionados à sua atuação e formação. A equipe multidisciplinar de saúde indígena prioriza o papel pedagógico dos AISs como transmissores e tradutores dos conhecimentos biomédicos às aldeias, enquanto que as comunidades os enxergam como fonte de benefícios, possibilitando o acesso direto ao atendimento de saúde realizado nas referências de atendimento, especialmente nas cidades próximas, além de serem “distribuidores” de medicamentos13 e intermediadores na distribuição da “cota de combustível da saúde” para as aldeias – combustível este utilizado para as mais diversas finalidades e não somente “para a saúde”. Além dessa questão, as contradições relacionadas à introdução de cargos assalariados nas aldeias também geram conflitos. A posição de AIS é transformada em elemento de disputas faccionais internas às aldeias, uma vez que as únicas possibilidades de assalariamento são para os cargos de AIS, AISAN (Agente Indígena de Saneamento) ou de professor indígena, cargos estes preenchidos mediante indicação da própria comunidade, sendo ocupados em grande parte por pessoas diretamente ligadas às parentelas das lideranças, garantindo, desta forma, o controle do acesso e da distribuição destes bens.14 Por essas razões, a permanência ou não dos AISs em seus cargos está muitas vezes submetida ao interesse direto dos caciques e das lideranças, tornando-se elemento de negociação constante. Não há uma relação direta entre as “capacidades técnicas” e a permanência ou não dos AISs em sua função. É possível perceber, portanto, as grandes dificuldades e os conflitos existentes na atuação dos Agentes Indígenas de Saúde no Alto Xingu, percebidos pelas lideranças como fontes de acesso a bens “brancos”, e pela EMSI como elementos técnicos importantes na atenção primária à saúde nas aldeias. Desta maneira, estes agentes podem ter sua posição neste contexto definida como uma “posição de fronteira” marcada por uma confluência de valores numa relação de contato interétnico, que permite um fluxo de conhecimento e a definição de diferenças sociais (Tassinari, 2001, p. 50). Os AISs possuem um status específico no sentido de que esta posição que ocupam é fonte de constantes disputas por parte das lideranças, pelo controle e pelo acesso a certos bens na relação que se estabelece entre os índios e os não índios, possibilitando a demarcação de diferenças étnicas e a explicitação de conflitos. O papel do AIS é, portanto, muito mais do que um “elo

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entre os serviços de saúde e a comunidade indígena”, uma fonte de disputas políticas neste processo de negociação constante de identidades e espaços de intervenção que ultrapassam as “questões de saúde”.

4.

O CURSO DE FORMAÇÃO DE AGENTES INDÍGENAS DE SAÚDE

A formação de Agentes Indígenas de Saúde no Xingu se iniciou já no final da década de 1980 através da atuação da então Escola Paulista de Medicina (EPM), atual UNIFESP, entidade responsável pelo atendimento de saúde na região até o ano de 1999. Durante todo o período em que a EPM esteve responsável pela atenção à saúde no Alto Xingu, esta formação permaneceu incipiente, devido à falta de regularidade dos cursos realizados que priorizavam temas relacionados às patologias mais frequentes na área, com enfoque sobre a prevenção e as ações emergenciais; além disso, a ausência de profissionais atuantes em quantidade suficiente para poder supervisionar e auxiliar nas atividades dos AISs também colaborou para as reclamações a respeito de sua formação (sobre a formação de AIS nesse período, cf. Mendonça, 1996). A Funasa, através do DSEI Xingu, é a atual responsável pelo curso de formação de AISs que teve início no ano de 2006 e está previsto para se encerrar em meados de 2010. O curso de formação foi inicialmente programado para atender 35 AISs das diferentes etnias que compõem o Alto Xingu, mas conta hoje com 53 Agentes de Saúde regularmente matriculados, além de outros dois que acompanharam o último módulo na qualidade de ouvintes. Este aumento considerável na quantidade de AIS do início do curso até hoje pode ser explicado por algumas questões: o fato de ter sido acordado entre o IPEAX e o Conselho Local de Saúde15 que só seriam contratados AISs que estivessem acompanhando o curso de formação desde o início. Além disso, o aumento do número de aldeamentos na região nos últimos anos devido a desmembramentos de aldeias maiores teve como consequência o aumento da demanda por novos AISs nestas novas aldeias. Este ponto concorda com o argumentado na seção anterior a respeito das disputas políticas que envolvem a posição destes agentes enquanto fonte de acesso a bens e enquanto cargo assalariado, havendo pressões constantes para contratação de novos AISs.

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Até o final do ano de 2007, haviam ocorrido quatro dos sete módulos previs16

tos. Este curso modular é uma proposição da Funasa em seu projeto nacional de formação de Agentes Indígenas de Saúde, “enfocando a promoção da saúde e prevenção das doenças e agravos de maior impacto epidemiológico entre os povos indígenas” (Funasa, 2005), que tem como objetivo norteador “(...) uma estratégia que visa favorecer a apropriação pelos indígenas de conhecimentos e recursos técnicos da medicina ocidental, não de modo a substituir, mas de somar no acervo de terapias e outras práticas culturais próprias, tradicionais ou não” (Brasil, 2002b, p. 15). A ideia é transformar os AISs em multiplicadores, “promotores da informação e da educação em saúde” (Cardoso, 2004, p. 202). Todavia, a programação de conteúdos não prevê distinções relativas, por exemplo, às diferenças existentes nas condições sanitárias e de saúde existentes nas diversas populações indígenas espalhadas ao longo do território nacional, desconsiderando também as necessidades específicas de atuação dos AISs nos atendimentos primários, relativas às distintas condições de trabalho. No Alto Xingu, por exemplo, os AISs acabam sendo obrigados a realizar tarefas que não são de sua competência – e que, portanto, não constam na programação dos cursos prevista pela Funasa – em função da ausência de profissionais nas aldeias para supervisionar e realizar estas tarefas. Estes conteúdos “extras” referentes a uma atuação técnica de maior complexidade – que envolvem desde um conhecimento aprofundado de sinais e sintomas de doenças, do funcionamento dos medicamentos e aprendizados práticos como suturas, aplicação de injeções e outros – acabam sendo trabalhados nos cursos, uma vez que são considerados fundamentais pelos profissionais responsáveis pela formação e pelos atendimentos. Os instrutores do curso solicitaram ao MEC a publicação de um livro produzido com um compêndio dos conteúdos trabalhados nos três primeiros módulos, tendo uma resposta negativa exatamente devido à constatação de que os conteúdos desenvolvidos “não condizem com a atuação dos AISs”. Uma das representantes do MEC que discutiu esta questão com o DSEI afirmou, durante conversa com os AISs, que O MEC achou o livro muito técnico, com as palavras muito difíceis. Porque o AIS, o trabalho dele, não é o que está naquele livro. Aquele livro é mais pra consulta, é mais pra leitura, pra vocês aprenderem mais. Mas não está escrito o trabalho de

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vocês. Igual assim, o que é uma visita domiciliar, “visita domiciliar é isso, pega ficha de saúde bucal, faz ficha da família...”. Assim eles pensavam que era o livro. Mas esse livro está um livro mais técnico. (Representante do MEC.)

Apesar desta concepção do trabalho dos AISs por parte das agências governamentais, os profissionais responsáveis pelo curso argumentam que esta formação técnica é necessária para a realidade do Alto Xingu, e os próprios AISs requisitam esta formação, na medida em que muitos deles pretendem, inclusive, continuar a formação através de cursos técnicos após o término destes módulos. No meu entender, todavia, a sobrevalorização do conhecimento técnico faz com que os profissionais (inclusive os AISs) deixem de reconhecer e ressaltar a importância das tarefas preestabelecidas para a função de AIS, consideradas “superficiais” e “muito básicas” – e que, no entanto seriam fundamentais dentro dos princípios de atenção diferenciada (Cf. Novo, 2009). Se eu fosse passar só as funções do AIS, do Agente Indígena de Saúde, que é só o básico do básico, que é o básico que vocês têm que saber, eu acho pouco. Por quê? Na nossa realidade vocês estão lá na aldeia de vocês, a maioria do tempo sozinhos. Não têm supervisão, não tem alguém direto lá acompanhando vocês. Então vocês são o elo entre nós, né, e é quem cuida diretamente da saúde do povo de vocês (...) Então, além, de fazer as coisas básicas que vocês têm que fazer, vocês têm que saber um pouco (...) Na realidade que eu vejo vocês aqui. Se tivesse alguém, se tivesse lá um auxiliar, um técnico de enfermagem que ficasse lá na aldeia, ou se a gente ficasse mais tempo com vocês, vocês não teriam que saber tanto. O básico, do básico, do básico estava de bom tamanho. (...) Vocês fazem coisas de auxiliar de enfermagem (...) e essa nem é a obrigação de vocês, vocês não tinham nem que saber, mas, como a nossa realidade é muito diferente das demais, a gente acaba capacitando vocês. (Enfermeira da EMSI e instrutora do curso de formação de AISs.)

Além desta desvalorização do papel específico do AIS e da necessidade de uma formação mais técnica, existem outras questões que considero importantes ressaltar a respeito do curso de formação. Um problema enfrentado neste curso é com relação à língua portuguesa. Considerando-se a grande variedade linguística na região, torna-se inviável realizar um curso que envolva índios provindos de diferentes etnias sem que se use o português. No entanto, é perceptível que isso se torna um entrave ao processo de formação destes índios, que muitas vezes não compreendem o conteúdo que lhes é transmitido. “Às vezes não entendo português, eu fico perdido”, “É muito difícil falar português, entender a palavra”. Estas falas de dois AISs são representativas desta situação, ilustrando uma dificuldade que ultrapassa as ques-

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tões linguísticas, englobando também o conteúdo e a forma como este é transmitido, o que acaba refletindo posteriormente na atuação destes índios em suas aldeias. Com relação aos conteúdos transmitidos e trabalhados, cujo enfoque está em questões voltadas para a prevenção de doenças, baseada especialmente na necessidade de mudanças de hábitos de higiene e cuidado de acordo com os princípios biomédicos de saúde, torna-se ainda mais complexa a possibilidade de uma “convivência complementar” entre diferentes esquemas lógicos de significação a respeito de noções como saúde, corpo e doença propostas pela legislação referente à saúde indígena, bem como à efetiva participação dos AISs na elaboração dos conteúdos ou na construção dos conhecimentos como se pretende. Ao proporem esta ênfase, os profissionais não indígenas responsáveis pelo curso deixam de considerar os procedimentos terapêuticos tradicionais que explicam o adoecimento através de questões outras que não envolvem e até mesmo impossibilitam a aplicação desta noção de prevenção. O que pode ser percebido, portanto, é uma convivência complexa entre duas distintas concepções de saúde e dos processos de adoecimento, uma veiculada pelos representantes da medicina ocidental e que é vagamente evocada pelos AISs em determinadas situações (por exemplo, ao afirmarem a “despreocupação com a saúde”) e as concepções nativas referentes a estes processos e que estão relacionadas a todo o sistema sociocosmológico alto xinguano. Como exemplo desta “convivência complexa”, em um dos momentos do módulo sobre DST/AIDS, ao ser trabalhada a necessidade de prevenção através do uso de camisinha, um AIS afirmou ser “perigoso usar camisinha pra quem tem filho pequeno, com menos de um mês, porque sufoca o bebê, incha a barriga, e faz vomitar”. Este comentário pode ser compreendido a partir do entendimento de corporalidade dos alto xinguanos, na medida em que consideram o corpo como um elemento em constante processo de fabricação através da manipulação de fluidos corporais como o sangue e o sêmen, além da ingestão de alimentos e eméticos especialmente durante os períodos de reclusão – que incluem tanto a reclusão pubertária quanto o período de couvade (Viveiros de Castro, 1979). Desta forma, fala-se na existência de “grupos de substância” no sentido de grupos que compartilham destas substâncias acima citadas e que, portanto, são considerados como pertencentes a uma mesma matriz corpórea e por isso os comportamentos de um interferem diretamente sobre os corpos dos demais, especialmente na relação entre pais

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e filhos (Seeger; Da Matta; Viveiros de Castro, 1979). De acordo com esta concepção de corpo, pode-se compreender o comentário do AIS a respeito do uso da camisinha e do perigo que isso representa ao bebê, uma vez que esta “aprisiona” o sêmen, interrompendo o processo de formação da criança, mesmo após seu nascimento, podendo se tornar um enorme perigo para a saúde desta criança. Todavia, a reação dos instrutores, quando feito o comentário, foi de incompreensão e de contestação, uma vez que “antigamente não usava, não tinha preservativo”, como disse um deles, comentário este que traduz a compreensão de “cultura” enquanto um elemento estático e não passível de reelaborações e (re)incorporações. O argumento utilizado pela enfermeira para tentar “convencer” os AISs de seu “erro de interpretação”, com base nos conhecimentos biomédicos, foi de que Esse espermatozoide que fecundou esse óvulo e formou aquela criança não é o mesmo que está aqui. É isso que eu quero que vocês entendam. Cada pessoa é uma pessoa. Cada espermatozoide é um espermatozoide. Eu nasci do espermatozoide do meu pai com o óvulo da minha mãe. (...). Todo mundo aqui foi assim. E se tapar o meu nariz, quem vai morrer sufocado sou eu, não é ela, que é outra pessoa. (...). Então, o fato de vocês amarrarem a ponta [da camisinha] e esses espermatozoides ficarem aqui, não vai prejudicar a criança de vocês. Pode acontecer de ter uma gripe, de ter uma IRA, mas porque coincidiu. É época de IRA, a criança teve IRA, está com dificuldade respiratória (...). Porque vocês sufocaram o espermatozoide, é outro espermatozoide. A criança já nasceu, a criança já tem pulmãozinho, ela já consegue respirar sozinha (...). Cada corpo é um corpo. (...) Então a gente tem que respeitar a cultura e o modo de pensar das pessoas. Isso é uma coisa... Agora, não impede a gente de explicar e orientar como que acontece cientificamente. O que é isso, o que foi estudado. Alguém foi lá, ficou anos e anos estudando, e comprovou que aquilo não vai fazer mal. (Instrutora durante aula sobre o uso da camisinha. Os destaques são meus.)

Percebe-se nesta fala grande dificuldade de relativização e de “problematização” a respeito dos conhecimentos e práticas nativas por parte dos profissionais de saúde – seja pela ausência de uma formação antropológica, seja pelas características da formação biomédica, e pelo amplo desconhecimento acerca destas práticas no senso comum. Estas dificuldades fazem com que o curso de formação se torne um mero instrumento de transmissão impositiva de conhecimentos biomédicos, sendo possível se falar em uma relação de poder no sentido foucaultiano do termo (Foucault, 1987; [1979] 2007), na medida em que constrói (ou ao menos pretende construir) uma noção de verdade universal que intervém diretamente

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sobre os corpos – e sobre a concepção que se tem a respeito do corpo, e da corporalidade, através da produção de saberes. Considero fundamental nesta argumentação ressaltar o fato de os profissionais contratados para atuarem na EMSI no Alto Xingu não possuírem nenhum tipo de formação antropológica, ou mesmo algum acompanhamento, uma vez que não há nenhum antropólogo ou outro profissional contratado nem pelo IPEAX, nem pelo DSEI que possa fornecer este suporte aos profissionais. Tal acompanhamento, todavia, é preconizado na Política Nacio-

nal de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas: As equipes de saúde dos distritos deverão ser compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e agentes indígenas de saúde, contando com a participação sistemática de antropólogos, educadores, engenheiros sanitaristas e outros especialistas e técnicos considerados necessários. (Brasil, 2002a, p. 14. O grifo é meu.)

De modo geral, os profissionais de saúde que atuam no Alto Xingu estão despreparados para perceber a necessidade de uma atuação específica junto aos AISs e às comunidades, o que dificulta uma postura aberta para entender e aceitar os itinerários terapêuticos utilizados pelos indígenas, bem como suas interpretações a respeito do processo de adoecimento e de cura. Por causa desta falta de preparo, permitem a “incorporação das práticas da medicina tradicional apenas na medida em que estas se aproximem da utilização, pela população nacional, de chás e benzeduras para doenças consideradas de menor importância” (Erthal, 2003, p. 208). Os conhecimentos tradicionais são tratados como “crendices”, como pude notar em outro momento do curso. Quando se falava a respeito das práticas tradicionais de sexualidade, os AISs diziam que os pais os aconselham a não manter relações sexuais muito jovens, especialmente durante o período de reclusão, porque isso interromperia seu crescimento e desenvolvimento, uma vez que “a perda de sêmen enfraquece”. A explicação da instrutora sobre este fato foi que Tem várias coisas que também são coisas relacionadas, são tabus. São coisas que os pais passam (...). São tabus, são coisas que não têm nada a ver, são coisas que não vão interferir. Mas são coisas que são passadas de pai pra filho. Que não pode ter relação sexual jovem, porque não vai crescer. Mas isso não interfere no crescimento, desenvolvimento (...). Isso são talvez coisas que eles [a comunidade] vão perguntar pra vocês e vocês podem esclarecer. “Olha, no nosso costume, eles falam que é assim, que você não vai crescer. Mas pelo que eu estudei, não interfere.” (Enfermeira e instrutora do curso de formação de AISs.)

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Este tipo de instrução que é passada nos cursos não articula em nenhum grau os diferentes conhecimentos da relação intercultural estabelecida como a programação da Funasa pretende que ocorra através de uma “pedagogia problematizadora” (Funasa, 2005). Ao “problematizar”, a tentativa que se faz é de reeducar; as “problematizações” acabam se restringindo a considerações a respeito de “como as coisas eram feitas antigamente” ou “como eram as práticas dos antigos”, ressaltando novamente uma visão estática da cultura e desvalorizando os conhecimentos tradicionais frente aos conhecimentos hegemônicos ocidentais, estes sim considerados “verdadeiros”. Conversando com o médico que atuava na região até a metade do ano de 2006, me foi relatado um atendimento que reflete esta situação de sobrevalorização da ciência biomédica por parte dos profissionais não indígenas. O paciente era um bebê recém-nascido que chorava incessantemente fazia algumas noites. O pajé foi chamado pela família para realizar o tratamento, após o qual o bebê apresentou melhoras significativas, deixando de chorar. O médico acompanhou o tratamento e, posteriormente, me disse ter explicado ao AIS que “o bebê estava com gases e por isso estava chorando tanto. Quando o pajé sopra a barriga dele fazendo massagens, isso alivia a dor. O remédio teria a mesma função do pajé”. Esta instrumentalização através da “cientificização” do trabalho dos pajés (ou mesmo das raízes e ervas utilizadas nas terapêuticas tradicionais) por parte dos profissionais não indígenas caracteriza a forma como a articulação da biomedicina com os saberes terapêuticos das diferentes populações tem sido realizada, com base nos parâmetros de eficácia estabelecidos pela biomedicina (Buchillet, 1991). As práticas xamânicas são toleradas pelos profissionais de saúde sendo, entretanto, vistas como “misticismo ineficaz” cujos resultados, quando aparecem, são vinculados a efeitos psicossomáticos. Valoriza-se as técnicas vistas como eficazes e [se rejeita] as consideradas nocivas, perigosas ou ineficientes, tomando como parâmetro, evidentemente, a eficácia biomédica. (...) [Pode-se dizer, portanto,] que a chamada valorização das medicinas tradicionais (...) opera-se mais na base de uma redução ou desvalorização destas. (id., ibid., p. 245)

É muito difícil perceber os profissionais de saúde não indígenas relativizando a biomedicina e seus princípios, e acabam por manter uma atitude de hierarquização de valores, ressaltada anteriormente, que desqualifica os conhecimentos e práticas locais.

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Estes valores biomédicos transmitidos, por sua vez, são reproduzidos pelos AISs, mas também são feitas reelaborações de acordo com a estrutura lógica do pensamento e da cosmologia local, como se percebe na fala de um AIS, durante o curso, que traduz esta argumentação: “Na raiz deve ter anticorpos que a gente não vê”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com o material exposto ao longo deste artigo, é possível notar as imensas dificuldades que ocorrem na implantação do modelo de atenção diferenciada proposto pela Constituição Federal e implementada através dos projetos de saúde da Funasa, especialmente no que diz respeito a uma “convivência complementar” entre diferentes práticas terapêuticas no contexto de intermedicalidade. Os Agentes Indígenas de Saúde têm papel fundamental nesta política, considerando que representam um vínculo possível entre esses diferentes modelos de atuação, o que, todavia, nem sempre se efetiva, uma vez que sua formação acaba por privilegiar somente os elementos provenientes da medicina ocidental, descaracterizando completamente seu papel de intermediação e mesmo de tradução. Não pretendo aqui desvalorizar os esforços da equipe responsável pela formação e pelo acompanhamento do trabalho dos AISs e pelos atendimentos nas aldeias, reconhecendo suas dificuldades e as deficiências estruturais existentes. O que pretendi neste espaço foi repensar o modelo de atuação que tem sido proposto e as condições de implementação dessas políticas atualmente. Neste sentido, é importante ressaltar que, apesar das propostas de implantação de modelos de atenção à saúde indígena virem acompanhadas de um discurso de participação comunitária (e aqui, mais uma vez entra a figura do AIS), o que se observa são práticas impositivas do modelo biomédico, sem haver espaço para a construção de conhecimentos e de práticas conjuntas, relegando desta forma as populações indígenas ao papel de meros usuários do sistema de saúde oficial. Ao mesmo tempo, a utilização política deste espaço pelas lideranças entra em conflito com a utilização técnica dos bens e serviços biomédicos, tornando esta relação ainda mais complexa. É preciso então que se faça uma reavaliação criteriosa dos impactos deste modelo de atendimento à saúde, levando-se em consideração as demandas e as necessidades específicas desta população, bem como seus reflexos na cultura e na

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organização sociopolítica das aldeias alto xinguanas, considerando-se as distintas concepções e utilizações deste espaço eminentemente político das ações de saúde.

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NOTAS 1

Mestre em Antropologia pelo PPGAS UFSCar. Contato: mapnovo@gmail.com. A pesquisa foi realizada com auxílio da FAPESP e do CNPq através do projeto “ Sistemas terapêuticos indígenas e a interface com o modelo de atenção à saúde: diferenciação, controle social e dinâmica sociocultural no contexto alto xinguano”, sob a coordenação da Profa. Dra. Marina D. Cardoso (PPGAS/PPGCSo/UFSCar). 3 Segundo informações do DSEI Xingu, a população alto xinguana é de cerca de 2.720 pessoas, distribuídas em 27 aldeias (dados de 2007). 4 Utilizo neste trabalho os termos medicina ocidental e biomedicina como sinônimos, para me referir às práticas técnico-sanitárias desenvolvidas nas chamadas sociedades ocidentais, em contraposição às chamadas terapêuticas tradicionais. 5 Ao me referir ao papel de tradutores dos AISs, não se trata apenas de uma questão de tradução linguística, mas, mais do que isso, do papel que os AISs deveriam exercer como intermediadores no processo terapêutico, possibilitando a atuação dos profissionais de saúde junto aos pacientes indígenas. 6 Esta é a primeira referência de encaminhamento de pacientes no Alto Xingu e onde se concentra a maior parte dos atendimentos realizados pela equipe multidisciplinar de saúde indígena. 7 Local onde ficam hospedados os pacientes encaminhados para exames ou consultas nas referências do SUS localizadas nas cidades da região. 2

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Cabe ressaltar que o mesmo acontece com as casas das pessoas. Todavia, quando isso ocorre nas casas, os donos destas assumem a responsabilidade pelo conserto ou pela construção de uma nova casa. Como ninguém é efetivamente “dono” da casa do posto de saúde, ninguém assume a responsabilidade por sua manutenção ou construção. 9 O que parece não ser exclusividade do Alto Xingu, conforme apontam Langdon et al. (2006). 10 Os AISs estão passando por um processo de formação atualmente coordenado pelo DSEI e que deve ser concluído até meados de 2009. 11 Situação semelhante à descrita por Geórgia Silva entre os Atikum no sertão pernambucano (Silva, 2007). 12 Infecção Respiratória Aguda. 13 Um dos termos na língua karib kalapalo que me informaram que pode ser utilizado para se referir aos AIS é kimbutatene, que significa “quem dá remédio”, “quem conhece remédio”. O mesmo termo também é utilizado para falar dos raizeiros. 14 Reforço que não se trata de acumular bens, mas sim efetivamente do controle do acesso aos bens e, consequentemente, de sua distribuição, reforçando o caráter “doador” dos caciques. 15 O Conselho Local de Saúde é a instância responsável pelo controle social dentro do Alto Xingu. Formado por representantes indígenas, tem como função principal realizar o acompanhamento e a avaliação das ações de saúde desenvolvidas no âmbito das aldeias e do polo-base. Para mais informações a respeito do controle social, cf. Brasil, 2002a; Garnelo, Macedo, Brandão, 2003; Garnelo, Sampaio, 2003; Langdon, Diehl, 2007. 16 No modelo previsto pela Funasa, existem seis módulos. Neste caso, o sétimo módulo está previsto para completar a carga horária e de disciplinas necessárias para a formação dos AISs em nível fundamental, através de uma parceria feita com a Secretaria de Educação do Estado do Mato Grosso.

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Curador rural amazônico que cura com os poderes dos “caruanas” ou “bichos do fundo”, médico formado em universidade que cura assistido por “espírito de luz”, ministro católico que cura com os “dons do Espírito Santo”.2 Qual a diferença, quais as semelhanças? Nos três casos, trata-se, certamente, do que se poderia chamar (com restrições) de “curas espirituais”, mas não só. Nos termos de Lévi-Strauss (1970 [1962]), trata-se do emprego do que esse antropólogo chamou de “pensamento selvagem” (magia, religião, ciência do concreto), mas, também, de “ciência moderna”, no sentido daquela que opera com formas de classificação, raciocínios e práticas como fruto de observação empírica e formulação teórica resultantes da experimentação. Nos três casos, ainda, temos formas de etnociência e de religião forjadas no Ocidente, produtos de diversos tipos de bricolage com raízes em práticas milenares de diferentes tradições filosóficas, teóricas, mágicas e de misticismo. E, também, a utilização de técnicas corporais, que podem ser mais bem compreendidas através de formulações presentes em autores como Austin (1990 [1962]), Mauss (1974 [1934, 1936]), Merleau-Ponty (1999 [1945]), Bourdieu (1980) e Csordas (1994a, 1994b, 2008 [2002]), utilizando, no caso deste último autor, o conceito de embodiment. Este trabalho resulta, porém, de relativamente longa observação e estudo no campo da antropologia da religião e da saúde, entre populações rurais e urbanas na

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Amazônia brasileira, no âmbito da pajelança cabocla e do catolicismo, bem como da experiência pessoal e do conhecimento da literatura antropológica produzida, especialmente, no Brasil.

BIOMEDICINA E CURAS ESPIRITUAIS Permitam-me começar com relato de experiência pessoal, não planejada no contexto da pesquisa antropológica, mas que contribui para a reflexão que procuro fazer neste texto. Grave doença da vista há alguns anos me levou a procurar médico especialista e a submeter-me a cirurgia delicada que me permitiu manter a visão do olho ameaçado, embora tivesse perdido cerca de 20% da capacidade desse mesmo olho. A alternativa era a perda iminente da visão do lado direito. O médico, especialista em retina, atuando em Belém/PA, cidade onde resido, possui especialização na França e fez estágio de um ano no Instituto Hilton Rocha de Belo Horizonte, sendo considerado um dos mais competentes nessa especialidade. Mas, ao mesmo tempo, é ativo adepto do espiritismo kardecista. Mais tarde, tendo se tornado o médico que me acompanha há bastante tempo para tratar de meus problemas de visão, pude conhecer melhor seu grande envolvimento com a doutrina e a prática do espiritismo. Cheguei a ser convidado por ele a participar de evento em que famosa médium vinda a Belém se exibia pintando quadros que dizia serem obras produzidas naquele momento por pintores famosos já falecidos. No evento, como instrumento dos pintores que, segundo ela, pintavam aqueles quadros, utilizava as mãos nuas (com que espalhava a tinta sobre a tela sem portar qualquer instrumento) e sem aparentemente olhar para o que estava fazendo. Mas o importante é dizer que esse médico, considerado um excelente cirurgião no campo da biomedicina, relata que, ao realizar suas cirurgias – utilizando todo o aparato da moderna ciência médica –, o faz, também, assistido e guiado por “espírito de luz”, tal como a mulher que “pintava” os quadros de pintores famosos. Trata-se assim, portanto, não só de tratamento no âmbito da biomedicina, mas, ao mesmo tempo, de uma forma de cura espiritual. Trabalho recente de então estudante de doutorado em Antropologia, sob minha orientação, foi realizado no Hospital Ophir Loyola, em Belém, que é especializado, no Pará, no tratamento de câncer.3 Sua pesquisa foi desenvolvida tendo como objetivo principal o estudo da produção do diagnóstico sobre o câncer e se

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prolongou por mais de um ano, com observação direta naquele hospital, além de incluir várias entrevistas com médicos (mas não só com eles). No acompanhamento desse trabalho visitei o hospital algumas vezes e minha atenção foi despertada pela estudante para a quantidade de símbolos religiosos do catolicismo presentes no mesmo, além de celebrações ocorridas na ocasião da conhecida festa religiosa do Círio de Nazaré, em Belém, como “peregrinações” realizadas no interior dessa instituição como parte da preparação da festa, à semelhança do que ocorre em toda a cidade, quando se avizinha o mês de outubro. Num outro hospital especializado no tratamento de câncer, estudado pela médica e antropóloga Rachel Aisengart Menezes, um fato descrito por essa autora pode ilustrar também as relações, às vezes tensas, entre religião e biomedicina. Trata-se, no caso, do Hospital do Câncer IV, do Instituto Nacional do Câncer, localizado no Rio de Janeiro, onde a autora realizou pesquisa para tese de doutorado (Menezes, 2004), o qual segue o modelo dos cuidados paliativos destinados aos pacientes terminais (“fora de possibilidades terapêuticas atuais”/FPTA), cujo propósito é oferecer a esses pacientes, bem como a seus familiares, uma assistência que se destina à “totalidade biopsicossocial-espiritual”. O relato de Menezes, que é apenas um fragmento extraído de seu belo livro, refere-se a sessão especial de orações, diante do leito de uma mulher idosa, promovida por seus familiares, com a presença de um número maior de visitas do que o permitido pela instituição, durante a qual, na visão da assistente social (católica) que permitiu a sessão, a paciente, “que estava em coma, não ficou nada bem”, chegando mesmo a se “agitar, balançar na cama e tremer, como se estivesse ‘baixando o santo’”. Em consequência disso e interpretando – subjetivamente – os possíveis sentimentos da paciente, a assistente social foi obrigada a intervir, pedindo que as orações fossem interrompidas e que as pessoas se retirassem (Menezes, 2004, p. 190; 2005, p. 19; 2006, p. 188).4 Devo registrar aqui, também, a prática usual e bem conhecida de cristãos (para me limitar apenas a essa religião, com suas numerosas igrejas, seitas e denominações, onde ela é comum) de visitar hospitais e doentes como forma de levar a doutrina, o consolo, as orações e as práticas de cura religiosa. No caso do catolicismo, essa prática é exercida como forma de pastoral, presente em várias paróquias, e também é usual em diferentes movimentos leigos, sobretudo, pelo que pude observar, pela pesquisa que fiz, no caso da Renovação Carismática Católica (RCC).

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A CURA ESPIRITUAL NA RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA Trabalho de pesquisa recentemente desenvolvido por mim, mas envolvendo estudantes de graduação e pós-graduação, foi realizado durante vários anos (de 1997 a 2005), sobre a Renovação Carismática Católica (RCC) em Belém e em parte do interior do Pará (o município de Vigia, onde também desenvolvi estudos, anteriormente, sobre catolicismo e xamanismo). Uma parte desses estudos esteve voltada para a cura carismática, especialmente o trabalho de duas estudantes de mestrado, cujas dissertações foram elaboradas a partir de pesquisa junto ao principal ministério de cura da RCC em Belém, cujas atividades se desenvolvem na Paróquia de Queluz, dirigida por padres agostinianos e onde se destaca o culto a Santa Rita (em vida, uma religiosa, também agostiniana), a santa das causas impossíveis (cf. Carvalho Santos, 2002; e santos, 2002). Outro resultado desse estudo foi artigo conjunto publicado sobre o trabalho desenvolvido nesse ministério de cura, mas apresentado, originalmente, em GT de reunião nacional da ABA (22ª Reunião Brasileira de Antropologia) em Brasília, no ano de 2000 (cf. Maués, Santos & Carvalho dos Santos, 2002). O que faz o ministro de cura (uma espécie de “curador”, healer, ou “terapeuta”) carismático? Numa sessão típica a que me submeti, nesse ministério, a ministra pediu-me que sentasse numa cadeira, enquanto ela ficava de pé, por trás de mim, impondo suas mãos sobre minha cabeça e orando. A sessão durou, aproximadamente, de três a cinco minutos. As mãos da ministra às vezes tocavam meu corpo, mas, na maior parte do tempo, ficavam abertas, com as palmas para baixo. A técnica corporal empregada não diferia muito do que pode ser observado num “passe” do espiritismo kardecista ou da pajelança rural amazônica. Ao fazer isso, ela orava em voz alta, na maior parte do tempo utilizando a linguagem comum, compreensível por todos, mas, em alguns momentos, também a glossolalia (a “língua dos anjos”). A sensação que me vinha era de paz, bem-estar e, também, em certo momento, de algum torpor. Ao terminar a sessão, agradeci, voltei para meu lugar na plateia e continuei participando do ritual de cura carismático, enquanto outras pessoas passavam pela mesma experiência que tive, com resultados variados. Mas o ritual não se resumia a isso. Havia também cânticos e orações coletivas, a leitura e a meditação sobre textos bíblicos e muita expressão corporal, com os gestos característicos dos carismáticos católicos (a esse respeito, cf. Maués, 2000).

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Nesse ministério e em outros lugares, tive possibilidade de observar e participar de rituais semelhantes, que podiam conduzir a uma espécie de transe mais ou menos traumático. Embora na paróquia de Queluz este fato não fosse usual – mesmo porque se tinha o cuidado de deixar o “paciente” sentado em uma cadeira, onde ele ficava amparado –, em outros lugares, onde se fazia, também, em parte com finalidades curativas, a oração com imposição de mãos, as pessoas às vezes caíam ao chão, bruscamente, sujeitas a uma espécie ou forma de êxtase de curta duração, denominado “repouso no Espírito”. A noção difundida pelos carismáticos mais experientes era de que, nessas ocasiões, o Espírito Santo estava agindo sobre o corpo da pessoa, realizando uma ação curativa, através de sua “efusão”. É bom lembrar que, para os carismáticos católicos – e isso ficou bem evidente na pesquisa realizada na paróquia de Queluz, em Belém –, o processo de cura é algo permanente, que nunca se completa. Trata-se de um processo constante de aperfeiçoamento (sobretudo espiritual), que tem efeito também sobre o corpo do doente, mas que não cessa nunca. Nas conclusões do artigo acima mencionado (Maués, Santos & Carvalho dos Santos 2002: 151), fazendo diálogo com o antropólogo americano Thomas J. Csordas (1994), autor do livro The Sacred Self: A Cultural Phenomenology of Charismatic Healing, afirmamos o seguinte: Voltando a nossos próprios dados e, especialmente, à relação entre ministros e “doentes”, vale lembrar, inicialmente que, no movimento carismático – como também na psicanálise –, de certo modo todos são doentes, mesmo que não apresentem nem se queixem de sintomas evidentes dessa doença, desde que todos precisam de cura, que constitui, de fato, um esforço de permanente aperfeiçoamento espiritual. Nesse sentido, cremos ser possível pensar, no caso que estudamos, na construção permanente de um “self sagrado”, tal como nos coloca Thomas Csordas no caso da RCC norte-americana. Daí porque, desde o título [do artigo], temos colocado entre aspas a palavra “doente” que, no caso, tem um sentido especial, mais amplo do que acontece no âmbito da medicina ocidental, especialmente no caso da medicina alopática. Essa cura, por sua vez, só pode ser relacional, na medida em que ocorre na interação entre diferentes selves, isto é, ministros (eles mesmos “doentes”) e outros “doentes”, na busca de um aperfeiçoamento coletivo que é espiritual e se faz não apenas durante o ritual de cura, mas também na vida individual, na vida privada – daí a importância do ritual [que deve ser praticado por todo fiel carismático] mais solitário (apenas na aparência) da prece individual (cf. Mauss, 1981).

A CURA “ESPIRITUAL” NA PAJELANÇA CABOCLA AMAZÔNICA Chegamos, em terceiro lugar, ao ritual de cura na pajelança rural amazônica, que podemos denominar, também, de pajelança “cabocla”, para diferenciá-la da

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pajelança indígena, com características específicas, de acordo com a etnia particular a que diz respeito. A pajelança cabocla é amplamente praticada, na Amazônia, por populações rurais ou de origem rural. O pajé rural, que se intitula “curador”, parcialmente herdeiro de uma prática de cura dos antigos pajés tupis, sincretizada com o catolicismo e as religiões de matriz africana, bem como com laivos de espiritismo kardecista, pode ser importante personagem da medicina popular de povoados rurais ou mesmo de cidades amazônicas onde essa prática é costumeiramente exercida. Sua forma de xamanismo tem a ver com a crença no poder de entidades chamadas de encantados, bichos do fundo ou caruanas, seres considerados como humanos que, não sendo pensados como pessoas falecidas, se “encantaram”, vivendo no fundo de regiões aquáticas ou subterrâneas chamadas “encantes”, os quais se manifestam de diferentes maneiras aos seres humanos comuns. Uma dessas manifestações ocorre através da incorporação, como se fossem espíritos, nos corpos dos curadores ou pajés. Em sessões xamanísticas encomendadas para doentes, eles surgem para curá-los de várias manifestações patológicas, desde doenças “mandadas por Deus” ou naturais, como aquelas com que lidam os médicos da biomedicina, até as doenças provocadas por “malineza”, por outros encantados, por espíritos, por inveja de outros seres humanos, bem como por astros, como o sol e a lua (doenças consideradas como não naturais) (cf., a respeito, Maués & Villacorta, 2001). A principal atividade ritual do pajé é a cura de doenças, através da sessão xamanística, ou “trabalho”. Esse trabalho é encomendado pelo doente ou por seus familiares, que se responsabilizam pelas despesas necessárias: compra de velas, cachaça, ingredientes de defumação, cigarro “tauari” (feito da casca de uma planta especial, com a qual se enrola o tabaco, junto com a defumação), chás, carvão para o fogareiro, cigarro “de carteira” etc. O curador costuma enfatizar que não recebe qualquer pagamento pela sua função, sendo geralmente um profissional que trabalha com outras atividades produtivas – pesca, agricultura, serviços de carpintaria etc. – como todos os outros adultos de sua comunidade. A sessão pode ocorrer na casa do pajé ou na casa do doente. A ela comparecem vários doentes, que não encomendaram o trabalho, mas podem se beneficiar do mesmo. Além disso, há muitos outros participantes, de ambos os sexos e de todas as idades. A sessão é realizada à noite, prolongando-se geralmente pela madrugada. O curador começa fazendo orações diante de imagens de santos católicos e invocando a

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proteção do deus cristão, colocando seu próprio espírito nas mãos divinas. Em seguida, entrando em transe, recebe várias entidades, chamadas “caruanas”, companheiros ou bichos do fundo. Não se trata propriamente de espíritos, como dito acima, no sentido usual do termo, mas de seres humanos vivos, porém “encantados”, que habitam em cidades subterrâneas ou subaquáticas, no “encante”. Os relatos que recolhi enfatizam também o fato de que não é o espírito do caruana que se incorpora no pajé, mas o caruana inteiro, com corpo e alma. Como isso se dá, ninguém o explica. Os espíritos não são bem-vindos, pois são considerados entidades malignas ou “penitentes”, necessitando de “salvação eterna”. Possuído por esses caruanas, o curador dança e canta pelo salão, agitando o maracá. É esperado que somente ele receba entidades. No caso de algum dos doentes ou assistentes entrar em transe (com exceção de outro pajé ou de um “discípulo” já adiantado no processo de iniciação ao xamanismo, que participe da sessão), trata-se, sem dúvida, de um espírito mau ou penitente, ou de um mau caruana, que devem ser afastados (exorcizados) pelo pajé, possuído por seus próprios caruanas, também chamados de guias ou companheiros do fundo. Depois de receber diversos encantados, o pajé finalmente recebe um “mestre de cura” e chama o doente para quem é destinado o trabalho. São várias as técnicas de cura: defumação, fricção com cachaça, imposição de mãos sobre a parte afetada, passe, dança com o doente nas costas, sucção da doença (o pajé aplica os lábios sobre o corpo do paciente) para retirar objetos (insetos, mexas de cabelo e outros) que pretensamente se encontram no interior do mesmo. Ao final, são receitados remédios “do mato” e/ou “de farmácia”, conforme o caso. Terminado o tratamento do doente para quem o trabalho foi encomendado (o “dono do trabalho”), o curador chama as demais pessoas que desejam tratar-se e repete com elas os procedimentos curativos. A crença é de que não se trata do pajé quem cura seus pacientes, mas sim os encantados que estão nele incorporados. A sessão não transcorre, de modo algum, em um clima de sisudez ou seriedade excessiva. O pajé brinca com os participantes, recebe encantados joviais, os participantes também dizem piadas para “mexer” com o curador e às vezes com os próprios caruanas. Grande parte do trabalho tem um caráter acentuadamente lúdico, o que não impede a seriedade exigida nos momentos adequados, quando se está processando a cura. Durante todo o tempo do trabalho o curador se encontra em

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transe, possuído por numerosos encantados, que se sucedem uns aos outros. Ao final, já pela madrugada, ele encerra a sessão. Esse é um momento de tensão ritual, em que o “espírito” do curador volta a dominar seu corpo, em lugar das entidades do fundo. O ajudante do pajé toma as providências para despertá-lo, com todo o cuidado, para que ele possa voltar sem problemas a seu estado normal. Nesse momento, são rezadas orações católicas, para ajudá-lo a recobrar a consciência. Voltando a seu estado normal, o pajé costuma perguntar o que aconteceu de mais importante na sessão xamanística, já que ele sempre declara não ter consciência do que se passou no momento em que estava em transe. Em trabalho anterior, escrito em colaboração com Gisela Villacorta Macambira, discutindo se é possível aplicar o conceito de xamanismo às atividades curativas do pajé, dissemos que: Consideramos a pajelança como uma forma de xamanismo, embora essa manifestação religiosa não apresente a característica clássica do xamanismo siberiano, na visão de Mircea Eliade (...), isto é, a viagem pelo mundo dos espíritos [o chamado “voo xamânico]. No caso do pajé amazônico (...) ocorre, ao invés, o fenômeno da incorporação [como já foi descrito acima] (...). Vale lembrar que, como mostra o antropólogo Ioan M. Lewis, o xamã siberiano também realiza suas sessões incorporado por entidades (espíritos), diferentemente do que pensava Eliade. Para Lewis, “todos os xamãs são médiuns e, como dizem, expressivamente, os caribes negros das Honduras Britânicas, tendem a funcionar como uma ‘ligação telefônica’ entre o homem e Deus. Evidentemente, não se pode concluir que todos os médiuns são necessariamente xamãs, apesar de (...) essas duas características estarem usualmente ligadas. As pessoas que sofrem regularmente de possessão por um espírito particular podem ser consideradas como médiuns para aquela divindade. Alguns, mas nem todos os médiuns, se graduarão a ponto de se tornarem controladores de espíritos e, uma vez ‘dominando’ essas forças de maneira controlada, serão xamãs propriamente ditos” (cf. Lewis 1977, p. 56-64). Assim, para Lewis, a característica fundamental do xamã situa-se no controle que o médium é capaz de manifestar sobre as entidades que o possuem, mas que, de certo modo, são também possuídas ou domadas por ele. Ao lado disso, é importante ressaltar que os mais poderosos pajés amazônicos (chamados às vezes de “sacacas”) são também pensados como capazes de realizar uma espécie de “viagem xamanística”, visitando o mundo dos encantados [não no ar, mas no “fundo”], mas não apenas com seu espírito: acredita-se que eles visitam o “encante” em estado normal, sem estar em transe, e lá, muitas vezes, aprendem técnicas curativas que irão mais tarde aplicar em seus pacientes (Maués & Villacorta, 2001, p. 11-12, texto e nota 1).

TRÊS FORMAS DE CURA “ESPIRITUAL”, TRÊS FORMAS DE ETNOMEDICINA: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Rapidamente esboçados, acima, os principais traços dessas três formas de medicina ou de “curas espirituais”, gostaria agora, antes de concluir este trabalho,

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de fazer breve discussão onde possa, também, abordar suas semelhanças e diferenças. Claro que suas semelhanças mais evidentes estão no fato de terem em comum o acionamento de uma dimensão daquilo que, em termos durkheimianos, se denomina de sagrado ou, numa abordagem weberiana, pertence ao que se chama de

carisma (mana, wakan, orenda etc.). Essas expressões – sagrado e carisma –, retiradas do contexto de suas utilizações pela doutrina cristã e ampliadas para um uso mais propriamente sociológico, são certamente imperfeitas, mas permitem uma primeira abordagem da questão. Mesmo a expressão curas espirituais, que venho utilizando desde o título, é também imperfeita. Que espíritos estão em causa? Entidades bem diferentes entre si, como espíritos de luz (no contexto do espiritismo kardecista), Espírito Santo (no contexto cristão-católico) e caruanas (no contexto da pajelança). Estes, os caruanas, não são pensados de fato como espíritos, repito, na tradição popular, mas como encantados, seres humanos vivos, de corpo e alma, mas também capazes de se manifestar de várias formas, inclusive de forma invisível, e de se incorporar – inteiros, com o “corpo” e a “alma”, segundo versões de interlocutores – no corpo de suas vítimas e/ ou dos xamãs. Por outro lado, o dualismo ocidental presente nas duas primeiras noções – espíritos de luz e Espírito Santo –, que os situa univocamente do lado do bem, não está presente na terceira, dos caruanas ou encantados (que podem ser do fundo, mas também da mata), já que são concebidos necessariamente como seres ambíguos, capazes de fazer tanto o bem como o mal, capazes de curar, mas também de provocar doenças. Aqui, claramente, para invocarmos novamente um “clássico moderno” – Lévi-Strauss –, que, mesmo tendo “saído de moda”, não perdeu sua atualidade, trata-se de formas de bricolage mágico-religiosas situadas no âmbito daquilo que foi por ele chamado de pensamento selvagem, como foi dito acima. Mas, também, de ciência moderna, no sentido de pensamento cultivado, que é praticada simultaneamente, pelo menos no caso dos agentes da biomedicina (mais particularmente do cirurgião antes mencionado), na forma de bricolage mais abrangente, pois envolve tanto o espiritismo kardecista (este pensado, também, por seus adeptos, como forma de ciência), ou o catolicismo, nas cirurgias e outras formas de cura praticadas por médicos – outros médicos, neste caso, católicos (que, por exemplo, as precedem ou

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as acompanham de orações) – e nos rituais de cura ou de louvor (visando a cura e outros fins ou aspirações) no ambiente hospitalar.5 Nos três casos, também, temos formas de etnociência e de religião forjadas no Ocidente, produtos de diversos tipos de bricolage, com raízes em práticas milenares de diferentes tradições filosóficas, teóricas, mágicas e de misticismo. Nisto se inclui a própria biomedicina (ou medicina alopática), a despeito do que possam pensar os médicos e outros profissionais de saúde, como também a homeopatia e a medicina tradicional chinesa (formas de medicina “douta”, como a própria biomedicina). Uma etnomedicina do mundo ocidental, sobretudo europeia, que se constituiu nos últimos séculos (embora tendo raízes milenares, que remontam à Grécia antiga), obtendo, é claro, resultados práticos de grande alcance – embora sem deixar de ter seus limites, reconhecidos por seus próprios agentes de cura – e, por isso, tendo podido difundir-se por outras partes do mundo, com pretensões hegemônicas, mas sem conseguir abolir as outras formas de etnomedicina. Para entendermos melhor essa nova forma de medicina, é necessário fazer uma rápida digressão, lembrando a ocorrência da reforma do ensino médico em Portugal, com reflexos no Brasil, no século XVIII, que contribuiu para a implantação da medicina alopática nos dois países.6 Essa reforma ocorreu com certo atraso em relação a outros países europeus, como França e Inglaterra, mas representou, como nestes últimos países, uma mudança da medicina hipocrática e galênica (que comportava elementos mágicos em maior quantidade do que a atual biomedicina), a qual concebia o corpo humano como um “microcosmo”. Parte das concepções e práticas dessa antiga medicina – que, a despeito disso, está inegavelmente na origem da biomedicina – ficou incorporada nas concepções e práticas de diversas formas de medicina popular, enquanto a nova forma de medicina, dando uma importância muito grande aos estudos anatômicos e à dissecação de cadáveres, ao mesmo tempo que à utilização de remédios químicos e à cirurgia – mais tarde ao combate dos microorganismos patogênicos –, passou a considerar o corpo humano como máquina (incorporando uma perspectiva teórica cartesiana), com todas as consequências, ao mesmo tempo positivas e negativas, de tudo isso resultantes. Por outro lado, é preciso considerar que, em todos os casos examinados acima, estão presentes técnicas corporais, usadas tanto pelo cirurgião, pelos intercessores e/ou curadores (healers) ou ministros católicos quanto pelos curadores ou xamãs da

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pajelança cabocla. Salvo no caso do cirurgião, cujas técnicas são específicas, resultantes de um aprendizado e treinamento no âmbito da biomedicina, as demais técnicas corporais (e mesmo algumas do cirurgião, ao eventualmente utilizar práticas de caráter religioso), são de caráter vetusto (fruto de um longo aprendizado, com raízes numa também longa tradição), que envolvem a utilização do corpo como forma de expressão e como instrumento. Em todos esses casos, é necessário analisar e refletir sobre essas técnicas com a utilização de instrumentos oferecidos pela teoria trabalhada pela ciência social e pela filosofia, especialmente a fenomenologia e a teoria da linguagem. E aqui se torna importante considerar as questões relativas a atos de fala e a conceitos como habitus e embodiment (cf. Austin 1990 [1962]; Bourdieu 1980; e Csordas 1994 a, 1994 b, 2008 [2002]). Os elementos performáticos presentes na fala dos diferentes agentes de cura (healers, para utilizar a expressão inglesa, ou curadores, como se autodenominam os pajés amazônicos), sejam eles pajés ou ministros carismáticos, têm uma importância fundamental para a eficácia das práticas utilizadas por esses agentes, como também no caso dos profissionais de saúde (outro tipo de “curadores”, no sentido etimológico de cuidadores) atuantes no campo da biomedicina (e não somente dos médicos). Ademais, não se pode esquecer a importância do corpo, não apenas como objeto, mas também como sujeito nesse processo (e, neste caso, tanto no tocante àqueles que se submetem aos processos terapêuticos – que são vistos pela biomedicina como agentes passivos, pacientes – quanto àqueles que com eles interagem – os curadores –, buscando propiciar o cuidado, a cura) e, ainda, como significado. Como assinala Thomas Csordas (2008: 17-18), em livro cujo título inclui exatamente essas palavras-chave (corpo, significado, cura), no início dos anos 1980 ocorreram várias mudanças importantes na teoria antropológica e nas concepções a respeito da etnografia: em primeiro lugar, “a crítica da cultura conceitualizada em termos de coerência, padrão e holismo desde a perspectiva de uma consciência vital de margens, bordas e limites na vida cultural”. Essa crítica, a meu ver, não somente passou a colocar em cheque (pelo menos parcialmente) a construção de modelos tais como eram formulados até então dentro de diferentes perspectivas, mas, sobretudo, dentro da perspectiva estrutural (de uma relativamente longa tradição nas ciências sociais), como também colocou em dúvida a própria validade da aborda-

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gem caracterizada pela noção de representações e práticas.7 Uma segunda mudança, relacionada, é claro, a essa primeira, dizia respeito ao “deslocamento da interpretação do significado para a crítica do poder como figura central a animar a vida social”. E, finalmente, uma terceira mudança, segundo o mesmo Csordas, dizia respeito ao deslocamento “da ênfase na vida simbólica para a ênfase na corporeidade e na experiência simbólica”. E acrescenta esse autor: Minha partida em direção à corporeidade começou com duas compreensões. Uma foi a de que o ponto inicial de minhas análises fora a linguagem – símbolos, retórica, performance, persuasão, narrativa e fala ritual eram as substâncias das curas rituais e dos informes reflexivos destas pelos pacientes. Basicamente, todas eram formas de representação e paravam logo antes de aprender a riqueza existencial do ser-no-mundo (...). Também percebi que o objeto da cura não é a eliminação de uma coisa (uma doença, um problema, um sintoma, uma desordem), mas a transformação de uma pessoa, um sujeito que é um ser corpóreo (Csordas, 2008: 18-19).

Essas duas “compreensões” levaram o autor citado a perceber, também, primeiro, que: Compreender a cura em termos de representação [somente em termos de representação, acrescento eu, R. H. M.] não é adequado porque, embora conceitos como performance e persuasão tenham uma substancial força experiencial, a representação acaba por apelar para o modelo do texto. Não importa quão bem-sucedidos possam ser os estudiosos da literatura em animar os textos, ao trazê-los à vida, a interpretação textual(ista) continua sendo a inflexão da experiência, um pouco ao lado da imediação. O ingrediente que falta é fornecido pela noção de ser-no-mundo, da filosofia fenomenológica, conquanto fale de imediação, indeterminação, sensibilidade – tudo o que tenha a ver com o caráter vívido e urgente da experiência. Minha tentativa de colocar essas ideias em diálogo repousa na proposição de que, se os estudos da representação são feitos desde a perspectiva de textualidade, então os estudos complementares do ser-no-mundo podem ser realizados a partir da perspectiva da corporeidade (Csordas, 2008: 18).

Por outro lado, a segunda “compreensão” leva o autor citado a um passo mais decisivo, do ponto de vista teórico, a partir do qual se constitui, de forma mais completa, o conceito de corporeidade (embodiment): Reconhecer que nosso ser corpóreo não é menos um produto da cultura que da biologia tem o potencial de transformar nossa compreensão tanto do corpo quanto da cultura. Por um lado, se o corpo pode ser mostrado como base existencial da cultura e do sujeito em vez de o simples substrato biológico de ambos, o caminho estaria livre para a compreensão do corpo como não apenas essencialmente biológico, mas igualmente religioso, linguístico, histórico, cognitivo, emocional e artístico (meu grifo, R. H. M.). Por outro lado, se até a linguagem pode ser apresentada como o surgimento da corporeidade e não apenas da função representativa do cogito cartesiano, o caminho estaria aberto para definir cultura não só em termos de símbolos, esquemas, traços, regras, costumes, textos ou comunicação, mas, igualmente, em termos de sentido, movimento, intersubjetividade, espacialidade, paixão, desejo, hábito, evocação e intuição.

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Reunir essas duas percepções levou-me a uma conceituação do sujeito com base na corporeidade. O argumento é o de que ao desfazer a distinção entre mente e corpo, sujeito e objeto, os processos orgânicos endógenos, um tanto misteriosos, que são retoricamente controlados na cura ritual (...), tornam-se compreensíveis como processos do self baseados na corporeidade (...). A própria linguagem torna-se compreensível como processo do self quando é entendida não como representação, mas como desempenho de um modo de estar-no-mundo (Csordas, 2008: 19).8

Uma das importantes consequências tiradas por esse antropólogo norte-americano da perspectiva da corporeidade (embodiment), conceito que ele elabora utilizando as formulações teóricas de Bourdieu (conceito de habitus) e de Merleau-Ponty (corpo como ser-no-mundo, em interação com outros corpos) é a possibilidade de tratamento mais rico e sofisticado da questão da eficácia da cura simbólica ou ritual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS (INCONCLUSIVAS): SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS, PERFORMANCE, CORPOREIDADE E, para encerrar este trabalho (embora sem fechar a discussão), devo dizer que, no caso especialmente do conceito de embodiment, é preciso salientar que o mesmo nos leva a considerar não somente as marcas deixadas e os constrangimentos causados pela cultura sobre o corpo – como tem ocorrido comumente na tradição da antropologia sociocultural –, mas também a parte da cultura que é produzida pelo e a partir do corpo. E, afinal, levar em conta ainda os diferentes significados dessas técnicas corporais que são, muitas vezes, tão semelhantes, embora utilizadas em contextos e em formas de terapêuticas tão diversas.9 Isso, no entanto, não nos deve fazer pensar que tudo o que foi dito a partir de uma perspectiva de representações e práticas perdeu, hoje, o seu valor. E o mesmo se diga a respeito do que se passou a chamar, a partir de Turner (1979), de antropologia da performance. Minha própria abordagem a respeito de vários temas ligados à cura simbólica, ritual ou espiritual, tem se desenvolvido, ao longo dos anos, numa perspectiva de representações e práticas que deriva, no caso da antropologia, da tradição durkheimiana. Reconheço, sim, após as críticas mais recentes, que aceito e tento incorporar as insuficiências dessa abordagem, mas também invoco seus méritos. O próprio Csordas, em suas análises, não deixa de lado as representações e práticas, em seus diferentes trabalhos, inclusive os mais recentes. Sustento, também, não haver incompatibilidade entre uma antropologia que busca se construir levando em conta as representações e práticas e uma antropologia da performance.

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Numa das temáticas que tenho privilegiado em minhas pesquisas, o estudo da pajelança não indígena, um dos trabalhos mais importantes e mais recentes é o de Pacheco (2004), que estuda a pajelança maranhense, no município de Cururupu, utilizando, como paradigma, a antropologia da performance.10 Pouco depois da conclusão dessa tese, foi elaborada uma dissertação de mestrado, que privilegia não a performance, mas as representações e práticas (cf. Mota, 2007). Nesse trabalho, cuja pesquisa de campo se realizou também no Maranhão, numa área muito próxima daquela pesquisada por Pacheco, a autora apresenta uma análise das experiências de doença, saúde e cura vivenciadas pelos pajés e consulentes que recorrem aos tratamentos na pajelança, no município de Bequimão. Sem privilegiar, como o faz Pacheco, as danças, os cânticos e os aspectos performáticos das curas e rituais, o resultado alcançado por essa etnografia é diferente, em vários aspectos, do apresentado por aquele autor. Num certo sentido, mesmo levando em conta que as diferenças podem ser parcialmente creditadas às diferenças de localidades, onde foram desenvolvidos os dois trabalhos, pode-se dizer, também, que os mesmos se complementam, e que as diferenças de resultados se originam, sobretudo, das diferenças de abordagens que, também, se complementam. Roberto Cardoso de Oliveira (de quem tive a sorte de ter sido aluno, na UnB), um dos mais importantes antropólogos brasileiros e, também, um dos que deu maiores contribuições, no Brasil, à teoria antropológica, costumava dizer que, ao contrário das ciências físicas e naturais, na antropologia sociocultural não ocorrem revoluções científicas do mesmo tipo ou gênero que naquelas. Surgem novas correntes teóricas e paradigmas, sem que, no entanto, se possa dizer que os antigos tenham sido superados pelos mais recentes. Embora, é claro, o paradigma da corporeidade (embodiment) constitua um grande avanço teórico no campo de estudos da antropologia médica, da antropologia da saúde e da religião, ele não pode ser pensado como capaz de eclipsar totalmente a abordagem das representações e práticas, o mesmo se podendo dizer da antropologia da performance em relação ao paradigma que a precedeu. Avanços teóricos, correção de rumos, mas não eclipses totais ou “revoluções copernicanas”. Não seria isso mesmo o que também ocorre no caso das diversas medicinas ou etnomedicinas (doutas, eruditas ou populares – todas elas formas de ciência, que, como foi dito acima, também incluem a religião e a magia), que surgem em diferen-

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tes sociedades e em diferentes épocas, que persistem convivendo entre si – em permanente tensão e complementaridade – e também persistem sendo utilizadas por tantas pessoas que buscam sua cura ou salvação terrena do sofrimento, da doença e do infortúnio e da pobreza, através da utilização de variadas estratégias?

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NOTAS 1

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará. Contato: hmaues@uol.com.br 2 Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia (junho de 2008), Porto Seguro-BA, com o título de “Três formas de cura ‘espiritual’: Na pajelança cabocla amazônica, na renovação carismática e na biomedicina”. Agradeço aos participantes do Fórum “Percursos de Saúde no Brasil de Hoje”, especialmente a Carlos Alberto Steil, Miriam Cristina Rabelo e Bartolomeu Tito Figueirôa de Medeiros e aos organizadores deste livro, pelas críticas, sugestões e comentários, que me ajudaram a reformulá-lo. Permaneço, é claro, como único responsável pelos erros e omissões. 3 Trata-se de Ana Cristina Salgado, cuja tese naquela ocasião se encontrava em fase de conclusão, e que agora já se encontra aprovada e disponível para leitura/consulta (Salgado, 2008). 4 É preciso assinalar que o livro de Rachel Aisengart Menezes (2004) é um trabalho excelente para se entender e refletir a respeito dessas questões que, como a própria autora indica, dizem respeito ao chamado “poder médico”, mas, ao mesmo tempo, fazem referência a uma totalidade social, constituindo, também, entre outras coisas, um ótimo espaço de reflexão sobre a sociedade brasileira como um todo, com sua visão de mundo e o ethos a ela associado. 5 Um dos estudos acadêmicos mais interessantes sobre as práticas de médicos católicos é a dissertação de mestrado da antropóloga Clarice Santos Mota, que trabalhou com médicos carismáticos em Salvador (cf. Mota, 2003). 6 Sobre isso, consultar, entre outros trabalhos, a tese de doutorado em História de Jean Luiz Neves Abreu, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (Abreu, 2006). 7 Para uma esclarecedora crítica teórica a respeito do paradigma analítico das “representações e práticas”, que se encontra bastante próxima da postura que estou privilegiando, neste trabalho, cf. Alves & Rabelo (1998). 8 Sobre o assunto, cf. Csordas (1996), que contém uma espécie de resumo do que é apresentado mais detalhadamente em seu livro já citado acima, neste trabalho (Csordas, 1994 b). 9 Essa questão foi abordada por mim anteriormente, de modo especial em trabalho sobre técnicas corporais na RCC e na pajelança cabocla (cf. Maués, 2005). 10 Outros trabalhos recentes que gostaria de mencionar são dissertações de mestrado de exorientandos, sobre a pajelança no Pará, a qual difere em vários aspectos da pajelança maranhense, embora também existam relações de proximidade entre elas (cf. Cavalcante, 2008; Quintas, 2007; e Trindade, 2007).

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NOS (DES)CAMINHOS DA CURA ANTONIO EVALDO ALMEIDA BARROS1

Era noite do dia 29 de julho de 1941 quando Altina de Sousa realizava um ritual de cura no interior da Ilha de São Luís. Pessoas diversas, muitas com problemas de saúde, em busca de tratamentos físicos, espirituais, afetivos, além de mais de duas dezenas de assistentes, a acompanhavam naquela ocasião terapêutica, festiva e religiosa. Por volta da meia-noite, enquanto danças, corpos e espíritos davam sentido e forma à Pajelança, o ritual fora interrompido com a chegada da polícia (OGB, 30/7/1941, p. 6).2

Este episódio, a exemplo de tantos outros similares ocorridos, sobretudo até os anos 1950, serve de ocasião privilegiada para se notar a intensa difusão da cura no Maranhão de meados do século XX. Se, de maneira geral, os significados básicos da Pajelança eram universais a todos, eram também diversas as maneiras como os diferentes e desiguais sujeitos dela se apropriavam. Estas diferenças e desigualdades algumas vezes eram resolvidas em negociações e mediações, mas comumente se constituíam ocasiões de tensões e conflitos, momentos em que alteridades, identidades e diferentes formas de ver e viver no mundo, particularmente no enfrentamento das coisas da vida e da morte, da saúde e da doença, (des)encontravam-se. A ação policial, descrita pela imprensa como “uma batida na Macumba do Cutim Grande” (OGB, 30/7/1941, p. 6), lugarejo onde se realizava a cura conduzida por Altina, foi comemorada pelo jornal O Globo, cuja circulação no Maranhão se iniciou a partir de 1939. Esse periódico também auxiliava simbólica e concreta-

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mente os membros da polícia empenhados em “dar fim” aos curadores e pajés, particularmente na capital do estado, São Luís. A diligência policial foi chefiada e organizada pessoalmente pelo chefe da polícia civil, Flávio Bezerra, que liderou um grupo composto por um tenente e oito investigadores. Os feitos de Bezerra estão registrados nos jornais do Maranhão estado-novista. Não estranha que atualmente ele seja construído pela memória oral (ver, por exemplo, Maranhão, 1997; Gomes, 2003; 2005; Ribeiro, 2003; 2005) como aquele que teria sido o maior perseguidor da Pajelança e do Tambor de Mina no Maranhão. Tudo indica que os conhecimentos, materiais, práticas e meios curativos de Altina eram aceitos e buscados por diversos setores sociais. Denominada pejorativamente de “macumbeira” (OGB, 30/7/1941, p. 6), ela era reconhecida nos arredores. Seu saber, poder e fama devem ter despertado uma ira particular por parte da imprensa. Encontrá-la no ato da cura serviria como um troféu para o chefe de polícia. Quando Bezerra e sua diligência cercaram a casa em que se realizavam “os trabalhos de cura”, cerca de vinte pessoas foram detidas, inclusive um policial, “que, entusiasmado, assistia os ‘prodígios’” realizados por Altina. Certamente ela mantinha contatos com o comissário de polícia Gomes Filho. Era a serviço dele que estava o policial encontrado na festa pela diligência policial. Daí a crítica do articulista àquele comissário que “amparava a prática perniciosa, já permitindo o comparecimento de policiais, já levando pessoas conhecidas ao ‘brinquedo’3 de Altina” (OGB, 30/7/1941, p. 6). De fato, havia dissensos dentro da polícia no que concerne ao tratamento que deveria ser dado à cura. Eram comuns insinuações e acusações de que a própria polícia se envolveria com pajés ou que, em vez de puni-los, “dorme na roupa” (OGB, 25/2/1948). Embora fizessem parte da mesma corporação de ofício, os policiais se relacionavam de modo variado com a Pajelança. Nem todos acompanhavam as linhas de chefes de polícia como Bezerra. Na casa de Altina, a situação teria se agravado porque lá estariam presentes menores de idade, acusação esta que era frequente contra os que realizavam e participavam de rituais e festas de Pajelança. Além de prender os responsáveis pela cura, “doentes” e “assistentes”, o chefe de polícia apreendeu alguns materiais utilizados durante o ritual, quais sejam:

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1 faixa vermelha, com lêtras brancas, contendo os dizeres: “Salve o Barão de Coré”; 1 faixa branca, com lêtras encarnadas, ostentando a frase: “Salve o Rei São Sebastião”; 1 faixa vêrde com letras amarélas, com a inscrição: “Salve o Príncipe Oliveira”; 1 manto de setim branco, 2 taquaris, 1 chicóte, 1 pandeiro, 3 violões, 1 cavaquinho, 2 maços de velas, 3 garrafas de cerveja, 4 de cachaça, 1 de vinho de genipapo, 1 maracá, 2 livros de préces, 2 cúias, 11 charutos, 1 almofada e tabaco moído. (OGB, 30/7/1941, p. 6)

Note-se a presença dos encantados Coré, Sebastião e Oliveira. Todos nobres, um barão, um rei e um príncipe. Diferentemente de outros lugares, onde os caboclos se identificam, em sua maioria, com orixás e entidades da cosmogonia tupi, na cura e no Tambor de Mina do Maranhão, “embora sejam apresentados como ligados, de alguma forma, ao índio brasileiro e à vida rural, aparecem frequentemente na mitologia como descendentes de nobres e de estrangeiros” (Ferretti, 2000, p. 2829). O Rei Sebastião, particularmente, na época já era tido como uma espécie de chefe de todos os encantados, era o “Rei, Dono do Mar e da Terra”, como se reconheceria em uma Pajelança em Anajatuba, interior do Maranhão, em dezembro de 1950 (PGB, 12/12/1950, p. 4); era “guerreiro militar” e “pai do terreiro”, como se cantava num ritual de Tambor de Mina em São Luís assistido pela Missão de Pesquisa Folclórica que esteve em São Luís em 1938 (Alvarenga, 1948). Esses nobres e outros encantados eram reputados como os responsáveis por diversas curas. De fato, muitos não ousariam duvidar da ação curativa propiciada pelos encantados e creditavam à ação dos curadores, através dos quais as curas eram realizadas.4 Na lista de utensílios apreendidos pela polícia na casa de Altina, além de objetos tidos como típicos da Pajelança, como o maracá, que poderia ritmar rituais, músicas e danças, aparecem outros como pandeiro, violões e cavaquinho. Ocasião polimórfica e polissêmica, a Pajelança seria tanto um espaço de terapia médica e um ritual religioso, havia mesmo dois livros de preces, quanto um momento festivo e um espaço de lazer. Os encantados podiam desejar beber para poder brincar, dançar, divertir-se, ou trabalhar, efetivar a cura. E poderiam ser acompanhados pelos que estavam presentes. Afinal, havia pelo menos cerveja, cachaça e vinho. Os encantados estavam com e próximos aos humanos, faziam parte da festa e do ritual, determinavam práticas sociais, indicando, assim, modos de ser e existir. Os padrões do imaginário e as formas de sensibilidade sociais eram profundamente marcados pela ideia de poder e saber dos pajés e curadores. Certamente, isso tem relação, de um lado, com a atuação dos sujeitos diretamente envolvidos com as

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curas e, de outro, com a participação da imprensa, que, para além da promoção do preconceito, acabou contribuindo para a divulgação, entre diversos setores sociais, de elementos da mentalidade e das práticas presentes na Pajelança. Embora fossem festas, celebrações e convicções socialmente posicionadas na periferia, práticas como a cura, através de uma linguagem que perpassava e se comunicava com os diversos estratos sociais, não raro definiam valores, normas e comportamentos sociais, tornando-se elemento simbolicamente central na engrenagem socio-histórica. Tinham razão aqueles que afirmavam que a Pajelança fincara “profundas raízes” (CRZ, 22/ 3/1949) na sociedade e na cultura maranhenses. Obviamente, muitas vezes, esse reconhecimento, como o fizera Cruzeiro (semanário católico publicado nos anos 1930-60 no município de Caxias, interior do Maranhão), manifestava-se de maneira negativa. De fato, analisando as notícias dos jornais maranhenses dos anos 1930-50, pode-se notar que, nesses meios, foi intensa a construção negativa das práticas e representações relacionadas à Pajelança. Responsabilizados pelo atraso social da região, vistos como feios e degenerados, os pajés eram frequentemente acusados de envolvimento com o alcoolismo, a prostituição infantil, a criminalidade, os chamados desvios sexuais e as práticas diabólicas.

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FORMAS DE INSCRIÇÃO NEGATIVA DA PAJELANÇA E DE SEUS AGENTES

A exemplo do que ocorreu em diversos lugares do Brasil, como na Bahia (e.g., Lühning, 1995/1996) e em Pernambuco (e.g., Guillen, 2005), e em outros países da América Latina (ver, dentre outros, Fichte, 1987), no Maranhão também foi intensa a construção negativa das práticas e representações relacionadas aos repertórios sociais identificados com África ou com os povos nativos, particularmente aqueles nos quais eram realizadas curas. Dessa operação participaram membros de diferentes estratos sociais e posições políticas, de diferentes cores, gêneros e gerações. Parte da imprensa, laica ou religiosa, de direita e de esquerda, constituiuse como o canal central através do qual se deu a difusão massiva de estereótipos e preconceitos referentes ao mundo dos encantados e das curas ditas supersticiosas. Os rituais e festas realizados em terreiros, casas ou a céu aberto onde ocorriam curas, expressos indistintamente como pajelança, tambor, tambor de mina, macumba, feitiçaria, bruxaria, canjerê, magia negra, mandinga, eram descritos como

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“arte diabólica” (CRZ, 21/6/1947), “prática nociva” (OGB, 30/7/1941, p. 6), “pagodes fetichistas” (CRZ, 21/6/1947), “crenças supersticiosas” (CRZ, 21/6/1947) ou “imbecilidade que provém do analfabetismo”, como se afirmava no Jornal Pequeno (JPQ, 18/8/1951), que nos problemas político-partidárias se posicionava à esquerda, mas nas questões referentes à Mina e à Pajelança tinha postura similar aos outros periódicos; também, brutalizadores da índole do povo (OGB, 30/5/1948), “meio de exploração torpe” (OGB, 9/6/1947), “válvula de escape” cujo efeito seria o mesmo da diamba e da tiquira, “narcóticos que nutrem a fantasia dos que vivem na pobreza” (OGB, 9/6/1947), dilaceradores da mentalidade “de nossa gente pobre” (OGB, 30/5/1948), práticas gestadas e alimentadas pelo “desamparo da assistência dos poderes públicos” (CRZ, 21/6/1947), motivo do atraso social “de um povo que vive no obscurantismo” (OGB, 30/5/1948), manchas nos “nossos foros de povo civilizado” (PGB, 18/4/1950, p. 4), ocasião de “cachaçadas”, como se resumia no porta-voz do Estado Novo (1937-45) no Maranhão, Diário do Norte (DNT, 16/1/ 1941, p. 6); ainda, incentivos ao crime (OGB, 30/5/1948), “fanatismo prejudicial à ordem social e ao bem-estar colletivo” (CRZ, 28/6/1937, p. 4), desintegrantes sociais (OGB, 30/05/1948), meio “de depravação de costumes” (OGB, 9/6/1947), “costumes grosseiros à formação moral do nosso povo” (CRZ, 28/6/1937, p. 4), “a mais completa anulação da dignidade humana, do bom senso e da moral” (CRZ, 21/6/ 1947), “um problema de regeneração social” (OGB, 7/4/1947). “Mal social de profundas raízes”, a Pajelança era vista como uma espécie de pecado original da sociedade maranhense. Os povos nativos e africanos eram responsabilizados por essa “herança perniciosa” dos maranhenses (CRZ, 22/3/1949), que se evidenciaria na própria dança dos pajés, com seu “ritmo meio indígena e meio africano” (OGB, 9/6/1947). O momento dos rituais de Pajelança, e particularmente a ocasião dos transes, eram frequentemente descritos como algo sombrio e incivilizado. Tal poderia ser notado no “gesto frenético” do pajé, “cambaleando, contorcendo-se”, após invocar os espíritos e subitamente agitar o maracá num “ritmo verdadeiramente bárbaro” (OGB, 30/4/1940, p. 1), ou no som produzido pelo gemido dos maracás, principalmente na “macumba tradicional”, algo “feio e forte”, “grosseiro” (PGB, 18/4/1950, p. 4). Na “dança macabra [das] macumbas”, “no momento azado da autossugestão,

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os ‘baiantes’ entorpecidos e magnetizados entregam-se a toda sorte de cretinices, para obter curas ou retirar os fluidos dos maus espíritos” (CRZ, 22/3/1949). Essas interpretações depreciativas, em sua maioria, não se pretendem científicas. Elas são, sobretudo, de caráter estético e ético, estruturam-se nas fronteiras subjetivas do belo e do feio, do certo e do errado, do bem e do mal, do grosseiro e do refinado. Elas destilam uma mistura de repulsa, nojo e raiva. Muitas vezes, ao descrever aquilo que denominavam de fetichismo, os articulistas pareciam estar falando das partes mais íntimas e fétidas de um corpo urgindo sua eliminação. Tratar-seia da necessidade de uma ação cirúrgica, pois se supunha que parte do corpo social estava irreversivelmente em putrefação, apresentando-se como única solução possível sua amputação, o que deveria se dar através das perseguições policiais. Nessas percepções, a Pajelança não é vista como algo localizado na superfície do imaginário e das práticas sociais. Ao contrário, ela é percebida como um elemento forte e profundamente fincado na mentalidade, no cotidiano e nas experiências individuais e coletivas enredadas ao longo da história da região e da nação. A profundidade da presença da Pajelança é encarada como um espinhoso empecilho para sua retirada, exigindo-se, desse modo, uma intensa repressão policial para que seja vencida. Vistos de modo indistinto, pajé, curandeiro(a), macumbeiro(a), feiticeiro(a) e bruxo(a), de um lado, eram acusados de conduzir artes diabólicas e, de outro, eram vistos como marreteiros, chantagistas, desajustados, cachaceiros, doentes sexuais e feios. Enquanto a imprensa laica insistia nessas últimas representações, a imprensa religiosa intensificava aquela primeira, embora, por diversas vezes, ambas unissem aquele conjunto de percepções depreciativas, não raro acrescentando-lhe outros elementos congêneres, como a acusação de que esses sujeitos seriam responsáveis pela morte de pessoas ou pelo atraso social da região. Os pajés, “como todos sabem, é sempre um homem ou mulher rude, analfabeto(a), sem princípios social ou religioso”. Dizendo-se especialistas em “planos sobrenaturais”, eles garantiriam “para si, uma situação cômoda e uma vida folgada”. Eles utilizariam como estratégia não cobrar pelos seus trabalhos em dinheiro. “Em troca, todavia, são mimoseados com presentes caros, cabeças de gado, lotes de terra, chegando a fazer fortuna” (PGB, 18/4/1950). “Elementos que vivem a assaltar a bolsa alheia”, os pajés seriam “uma imitação do ‘marreteiro’ ou do chantagista”, cuja existência resumir-se-ia a fazer

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“vítimas” e a ludibriar os incautos (OGB, 25/2/1948). “Dr. Pio”, por exemplo, um “cego velho que vive exclusivamente da feitiçaria, garantindo para si uma situação cômoda” no subúrbio do João Paulo em São Luís, era apresentado pela imprensa como um marreteiro de sucesso (OGB, 22/11/1947). A imprensa insistia em apresentar pajés como cachaceiros ou alcoólatras, seja acusando-os diretamente de o serem, seja destacando que eles eram encontrados embriagados pela polícia ou por outras pessoas, como os próprios membros da imprensa, seja salientando que para a realização das curas havia a necessidade de garrafas de bebidas alcoólicas, particularmente cachaça. Assim, eles eram apresentados como cachaceiros ou inclinados a tal, independentemente das evidências de que diversos pajés não ingeriam bebidas alcoólicas durante suas sessões, que nem todos os encantados as consumiam durante as danças e rituais, que alguns curadores pediam dispensa para seus invisíveis quando estes consumiam aquelas bebidas, e que frequentemente essas bebidas eram utilizadas em contexto ritual, como o vinho pelos padres católicos. Os pajés também eram frequentemente relacionados a questões e situações envolvendo os chamados desvios sexuais. Eles podiam ser vistos como “pervertidos sexuais”, pessoas que usariam os rituais de Pajelança para promover e incentivar a prostituição, notadamente a infantil, haja vista que, com a presença de crianças e “muita cachaça, a festa sempre se estende até alta madrugada” (OGB, 30/5/1948). Nas festas promovidas pelos “macumbeiros” compareceriam “rameiras de toda espécie” (CRZ, 9/10/1937, p. 4). Não somente os rituais e festas, mas também os próprios agentes humanos envolvidos na Pajelança eram caracterizados a partir de juízos de valor nos quais se imbricavam questões morais e estéticas. Assim escrevia um articulista na São Luís de 1947, ao visitar o terreiro de Zé Malaquias, no interior da ilha, para denunciá-lo. O “curandeiro” veio até nós. Olhamo-lo de perto, detidamente. Um bigodinho petulante, malfeito. Rosto magro. Baixo, franzino, feio. Fisionomia de um doente sexual [...] Zé Malaquias tem todas as características de um doente sexual. Não trabalha e tem os seus amantes. Várias crianças que assistem ao “tambor de mina” estão crescendo naquele ambiente sórdido, foco de prostituição, verdadeira escola do crime. (OGB, 9/6/1947)

Também era comum caracterizar de afeminados ou sugerir que seriam homossexuais homens que dançavam durante os rituais em meio às mulheres. Quando

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encontrado pelo repórter, Malaquias estaria junto a seis mulheres, “requebrando-se qual uma dançarina de cabaré. Vestia um pijama igual àqueles usados por mulheres de pensões livres” (OGB, 9/6/1947). Os pajés também eram responsabilizados pelo atraso social das regiões nas quais atuavam, sendo acusados de enfraquecer o “ânimo” do “povo [...] para a luta do trabalho” através de suas garrafadas, defumadores “e tantos outros exercícios acrobáticos” (CRZ, 21/6/1947). Os agentes pobres que buscavam a Pajelança podiam ser vistos como dóceis e ignaros, sem culpa, seriam vítimas dos pajés. Estando “sob a escravidão do fatalismo que os arrasta ao abismo de todas as misérias” se deixariam “conduzir facilmente pelos exploradores de sua ignorância, os feiticeiros das macumbas”. “Desamparados de instrução e de assistência sanitária”, os que frequentavam rituais de Pajelança acreditariam “nos encantos, nas atuações dos espíritos, nas falsas rezas e benzeduras” e nas “mesinhas que os traficantes de sua crendice supersticiosa, lhes aplicam” (CRZ, 21/6/1947). Eram vistos como “trouxas” que se submetem à “magia negra”, às “curas” pela “feitiçaria” (OGB, 25/2/1948). Segundo Boletim Paroquial (BPQ), periódico católico de Arari, cidade do interior do Maranhão, “o supersticioso”, aquele que “não aceita explicações claras e racionais”, que acredita nas doenças causadas por “encostos”, seria o principal mantenedor de práticas como a Pajelança (BPQ, 8/11/1958). Argumentava-se que a superstição “ainda mergulha certas camadas sociais num primarismo decepcionante” (OGB, 19/2/1948). E se algum dos ditos incautos desejasse denunciar os pajés, estes eram acusados de amedrontá-los tanto através de seus poderes sobrenaturais quanto por meio de investidas reais. Assim, para “evitar uma desgraça maior”, os chamados ingênuos nada fariam (OGB, 30/5/1948). Enfim, os agentes relacionados direta ou indiretamente à cura eram vistos por variados setores sociais, particularmente aqueles ligados às diferentes elites, como empecilhos para o desenvolvimento econômico, cultural e moral da sociedade. De um lado, esse conjunto de representações estereotipadas inscreve negativamente o mundo material, místico e humano da Pajelança. Particularmente nos meios letrados, esse arsenal de representações deve ter tido um efeito mais profundo. De outro lado, nota-se que, embora algumas vezes se questione o poder sobrenatural dos pajés, em boa parte dos casos esse poder é legitimado. Nessas represen-

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tações, ao mesmo tempo em que são anunciados como charlatões, os curadores são evidenciados como homens e mulheres que, de fato, têm um certo tipo de conhecimento e sabedoria que lhes permite realizar ações consideradas sobrenaturais, ainda que isto se dê, muitas vezes, por meios negativos. Embora os inscrevendo como doentes e desajustados, feios e embusteiros, a imprensa, laica e religiosa, acabou, direta e indiretamente, legitimando os curadores naquilo que eles mais precisavam, o fato de serem conhecidos e prestigiados como homens e mulheres poderosos, capazes de, através de seus rituais, festas, conselhos e receituários, concorrer para a realização dos anseios e objetivos daqueles que os procuravam.

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IGREJA E MEDICINA NO COMBATE À CURA

No Maranhão, algumas vezes, agentes do campo intelectual e religioso se relacionavam estreitamente no combate às práticas de cura realizadas durante rituais de Pajelança. Médicos e padres, de um lado, e curadores, de outro, concorriam pelo monopólio do poder no âmbito das coisas da vida e da morte. Mas a luta dos clérigos e médicos esbarrava no conjunto heterogêneo de pessoas que cotidianamente procuravam os pajés e também no próprio imaginário coletivo que reputava saber e poder a estes últimos. As práticas populares de cura pareciam estar sedimentadas em firmes padrões costumeiros, mais ou menos, coletivamente compartilhados. Por ocasião da prisão do pajé conhecido como Mestre Demétrio, em 1940, em São Luís, um dos “doentes” presentes na Pajelança teria dito aos policiais que “os médicos não valem nada! Não ‘deram volta’ com minha doença! E agora, com ‘mestre’ Demetrio é que já estou quase bom” (OGB, 30/4/ 1940, p. 1). As campanhas religiosas católicas contra a cura e outras práticas e tradições não oficiais na década de 1950 devem ser compreendidas no contexto mais amplo da “guerra santa” que a Igreja Católica abrira em todo o território nacional contra praticamente tudo que não fosse católico, particularmente as religiões afro-brasileiras e o espiritismo. Apesar de não serem o único alvo das campanhas da militância ortodoxa católica, as práticas nas quais se realizavam curas eram pontos para onde aquelas campanhas frequentemente convergiam. Se, de um lado, havia uma intensa atuação de setores da Igreja Católica contra o que consideravam fetichismo e feitiçaria, de

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outro, instituições médicas consideravam os pajés um problema para a saúde pública.5 A visão de clérigos, segundo a qual a Pajelança seria ocasião para “abusões medicinais” (BPQ, 15/4/1958), era endossada pela perspectiva médica. Em 1957, foi criada a Faculdade de Ciências Médicas do Maranhão (FCMM), instituída pela Sociedade Maranhense de Cultura Superior (SOMACS), esta vinculada à Arquidiocese Metropolitana de São Luís, cujo objetivo era a promoção da cultura superior no estado. O diretor escolhido foi o médico Bacelar Portela, que era tido como um líder católico. Articulados, Igreja e medicina entendiam que o “curandeirismo” atrasaria o Maranhão tanto na saúde, questão de salvação corporal, como na religião, questão de salvação espiritual. Dom José de Medeiros Delgado (1957), então presidente da SOMACS, afirmava, por ocasião da criação da FCMM, que “compeliu-nos a tamanha emprêsa a dolorosa situação das cidades e dos campos sem assistência médica, sujeitos ao curandeirismo que atrasa o Estado na saúde e religião”. Salientava ainda que “os médicos espalhados no interior libertarão milhões de criaturas humanas das garras dos curandeiros, o que importará na elevação de rendas no exercício da medicina autentica”. A falta de médicos representaria “grave embaraço à ação civilizadora da Igreja, em virtude do domínio quase absoluto exercido pelos curandeiros sôbre o povo”. Desse modo, “especialmente no interior do Estado, onde as instâncias de controle que garantem o domínio sobre os atos e práticas do curandeiro não estão sendo eficazes”, para Dom Delgado, seria necessário dar garantias para a efetivação da hegemonia tanto da medicina como da Igreja sobre as crenças e práticas ditas carentes de ciência e fé. Na casa dos pajés, especialmente daqueles detentores de maior capital simbólico e prestígio social, costumava haver uma ou mais pessoas procurando tratamentos para problemas de diversos tipos, bem como para “fechar o corpo”. Muitos procuravam se libertar daquilo que consideravam “magia negra”. Visitando casas de pajés, o espírita Waldemiro Reis (195-, p. 105; 108)6 notara que muitos doentes ficavam ali por algum tempo enquanto se processavam as curas, particularmente as “mocinhas” que cuidavam da casa e tomavam conta dos animais do pajé, ou faziamlhes outros serviços; quando havia noites de “brinquedo”, muitas pessoas, não exclusivamente aquelas em tratamento, chegavam nas vésperas e podiam repousar até o dia seguinte na casa do pajé, especialmente aquelas que moravam distante.

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Devem-se inserir neste campo de disputas em torno das coisas da vida e da morte, da saúde e da doença os espíritas, que podiam se articular a diferentes setores. No Maranhão, pelo menos desde o Estado Novo, eles tinham aliados e inimigos entre médicos e intelectuais. Os espíritas se aproximavam de alguns pajés/curadores e depreciavam outros. W. Reis (op. cit., p. 106-107) afirmava que “oitenta por cento dos curandeiros que conheci, bem mereciam sofrer ação enérgica da Polícia, uma punição severa para deixarem de ferir as conciências dos incautos, de formarem grande círculo de fanáticos e obsedados”. A concorrência que havia entre padres, médicos, curandeiros e espíritas pode ser justificada, dentre outros elementos, porque todos esses agentes sentiam e afirmavam que suas atividades eram legítimas. Os padres e espíritas se percebiam competentes para serem os curas espirituais, agindo em nome de Deus, uma competência dada respectivamente pelas instituições católica e espírita. Os médicos se notavam competentes e provavam isso apresentando seus diplomas outorgados pelas instituições médicas. Os pajés, pelo dom e missão que afirmavam ter recebido, não tinham dúvidas de sua competência. Para além da palavra do curador, e em diálogo com ela, havia a crença, socialmente generalizada, de que os pajés de fato poderiam curar e que havia malefícios e doenças que não podiam ser resolvidos por médicos ou padres, mas que só poderiam ser tratados por aqueles que sabiam lidar com o mundo dos encantados. Enquanto a imprensa apresentava os terreiros como espaços de ignorância e diabolicidade, o povo-de-encantado questionava essa representação, pois defendia abertamente a repórteres, policiais etc., que possuía um “dom” dado por Deus, que o levava a colocar em prática uma determinada “sabedoria”, o que seria uma “missão”. Longe de ir contra as letras e a fé, os terreiros eram afirmados pelo povo-deencantado como centros de sabedoria e divindade.7 Sobretudo a partir da segunda metade dos anos 1950, as imprensas religiosa e laica não estarão mais fortemente empenhadas em exigir a atuação da polícia, no sentido de prender a todos os envolvidos com as curas, os pajés, aqueles que pagavam pelos seus serviços e aqueles que iam assisti-los.

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LEGISLAÇÕES, PERSEGUIÇÕES E OUTROS CAMINHOS

As perseguições, realizadas intensamente até os anos 1950, consistiam num conjunto de campanhas em que autoridades policiais, aliadas com agentes do cam-

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po intelectual e religioso, e com membros da imprensa escrita, adentravam em terreiros à procura do povo-de-encantado, em geral, levando utensílios e objetos encontrados naqueles ambientes, fazendo uso de uma violência simbólica e material, muitas vezes quando ali se realizavam festas e rituais, especialmente curas. A memória oral caracteriza esse período como o tempo em que a “brincadeira” costumava ser feita no “oculto”, “só nas palmas e nos maracás” ou com outros instrumentos como tabocas e litros (Gomes, op. cit.; Ribeiro, op. cit.), estratégia utilizada pelos diferentes sujeitos para realizar suas atividades terapêuticas, festivas e ritualísticas que, em alguns casos, eram iniciadas num lugar e terminadas em outro. Termo genérico dado, sobretudo durante o século XIX, às danças e cerimônias religiosas de escravos africanos e segmentos negros do campesinato no Maranhão, os batuques, até final do século XVIII, seriam tolerados. Entretanto, com o estabelecimento do Estado Nacional Imperial (1822), quando se fortaleceram e ampliaram as legislações municipais, que se concentraram em tudo aquilo que era considerado básico para a europeização cultural do Brasil, especialmente vestuário, drogas e festas e religiosidades características particularmente dos mais pobres e negros, começou-se a proibir os batuques dentro das cidades depois que fosse dado o toque de recolher. Temia-se que eles se constituíssem como base de revoltas. Essa repressão institucional, embora presente, não era completa e tentou limitar a celebração dos batuques a lugares fora das cidades e das vilas (Assunção, 1999, p. 54). Na segunda metade do século XIX, o país passou por profundas transformações, sobretudo devido a leis referentes à escravidão. Essas mudanças teriam implicação direta no desenvolvimento das diferentes práticas e formas culturais no Brasil. Durante a Primeira República (1889-1930) e no período 1931-7, quando as principais cidades do Maranhão já possuíam uma imprensa organizada, as perseguições à Pajelança podem ser observadas em diversos jornais da capital e de cidades do interior do estado. Nesse período, diferentes leis e códigos legitimavam a prisão de pajés, o fechamento de terreiros e a apreensão de objetos de culto, o que continuará, de modo intenso, durante as duas décadas seguintes. A ação da polícia podia ocorrer dia e noite, pois a clientela que procurava o povo-de-encantado era significativa, tanto numericamente quanto no que concerne à heterogeneidade das posições sociais de seus indivíduos. Eram muitos os que, por razões diversas, procuravam a “gente que tem ligação com o pessoal do fundo”,

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como amiúde eram denominadas as pessoas envolvidas com Pajelança e Tambor de Mina. Apesar de o numerário policial ser ínfimo para coibir essas práticas que se espalhavam por diferentes lugares do estado, alguns policiais e chefes de polícia, a exemplo de Flávio Bezerra no Estado Novo, seriam particularmente empenhados no que pareciam encarar como uma caça às bruxas. Como diziam diversos articulistas: “sempre zeloso e cumpridor dos seus deveres, o dr. Flávio Bezerra vem há muito combatendo eficazmente os macumbeiros, que infestam a cidade” (OGB, 30/4/1940, p. 1); “o dr. Flávio Bezerra, ilustre chefe de polícia, vem dando tenaz combate à macumba” (OGB, 30/7/1941, p. 6). Pessoas atualmente ligadas à Pajelança ou ao Tambor de Mina, como Maria Celeste Santos, também se referem a Bezerra como muito rígido para com pajés, pais e mães-de-santo (Santos, 1997). O fato é que Flávio Bezerra era um especialista em comandar e executar operações para “desencantar” pajés. As perseguições aconteciam em diversos lugares. Parece ter havido uma maior atuação policial nos subúrbios e também no centro das cidades. Embora sem a mesma frequência e intensidade, elas também foram realizadas nas áreas consideradas “interior”. A atuação da polícia nesta última zona deve ter sido mais intensa na ilha de São Luís que em outros municípios. Dentre os elementos que levavam às perseguições policiais, destaca-se a real existência, a presença efetiva dos rituais de Pajelança, o que ocorria em praticamente todo o estado, escasseando mais para sua parte sul. Isto é, mais que a presença de representações da cura no imaginário social, que para muitos era crendice de ignorantes e incautos, o que mais incomodava quem desaprovava esses saberes e práticas era sua presença efetiva, visual e sonoramente detectável. As perseguições costumavam se intensificar quando se percebia que essas práticas estavam se desenvolvendo e conquistando espaço social. Outros fatores devem ser considerados enquanto razões para a realização das perseguições, como o estilo, o temperamento e a visão social do chefe de polícia da região, e a presença da imprensa no lugar, que frequentemente exigia a realização de prisões e o combate ao que denominava de feitiçaria e macumba. Se essa imprensa fosse controlada por setores ortodoxos da Igreja Católica, aumentava a possibilidade de uma intensificação da ação policial. Algumas vezes, havia relações de cumplicidade entre a imprensa e chefes de polícia. Estes podiam ser elogiados

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publicamente quando agiam de acordo com as perspectivas da imprensa. Se os objetivos de ambos convergissem, seu alvo poderia ter menos paz. Policiais que não se empenhavam na caça às bruxas pretendida por setores da imprensa e da Igreja Católica eram frequentemente criticados. Uma das cidades do interior do Maranhão onde houve fortes e intensas campanhas de perseguição policial foi Caxias. Para tanto, contribuiu significativamente a marcante presença da imprensa católica da região. Em 1949, Cruzeiro pedia que o delegado de polícia da cidade continuasse a campanha de repressão à “macumba, não só nos subúrbios de Caxias”, mas que estendesse sua ação ao interior do município. Nesse ano, a polícia apreendera “um arsenal de apetrechos bem interessantes, usados pelos pajés da macumba: capas de seda vermelha, brancas, cordões, grandes rosários, boinas, óleos perfumados, garrafas de beberagens”. Na ocasião, a campanha policial teria surtido efeito, “tendo cessado os rumores soturnos dos tambores e as toadas plangentes dos ‘baiás’ provocadores dos encantamentos, quando se manifestam os sortilégios dos espíritos endiabrados na subconciencia dos ‘mediuns’”. (CRZ, 22/3/1949) Em São Luís, em agosto de 1941, a serviço de Flávio Bezerra, visando combater “essa praga social”, “o investigador Lemos, acompanhado por outros dois policiais, meteu-se pelos caminhos do Sacavém procurando os curandeiros”. Enquanto os policiais se embrenhavam pelas ruas e caminhos suburbanos, João Pereira da Silva conduzia uma cura no lugar chamado Floresta. Diversas pessoas, algumas doentes, assistiam-no e o acompanhavam. Percebendo a chegada da polícia, o senhor João Silva, vestido “em trajes de rei”, tentara escapar, entretanto, não obteve êxito (OGB, 12/8/1941). É provável que esse pajé recebesse encantados nobres, pelos trajes em que estava vestido. Para alguns, em certos momentos, mais que representar, João Silva era, de fato, um rei taumaturgo, uma majestade que, dentre outras coisas, tinha o poder de curar. Para outros, sua prática era tão somente “um abusivo metier” na capital brasileira/francesa. Ele, visto como “sensivelmente embriagado”, e seus instrumentos de ritual, uma garrafa de cachaça, dois maços de velas e um maracá, foram apreendidos e levados para a central da polícia. (OGB, 12/ 8/1941). No ano de 1940, foi promulgada a Lei de Contravenções Penais que, do mesmo modo que o Código Penal de 1890, via o “curandeirismo” como prática

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criminal (Maggie, 1992, p. 47). Não é possível afirmar que essa lei tenha levado a um aumento da perseguição à Pajelança no Maranhão. Talvez se tenham intensificado os processos de sincretismo. Alguns pajés/curadores podem ter passado a se identificar como mineiros e a realizar atividades específicas do Tambor de Mina (que poderia ser realizado como baile), sem, entretanto, abandonar a Pajelança. Deve-se considerar que no Maranhão, entre os anos 1930 e 1960, não houve uma articulação permanente entre as ações da Igreja Católica, das sociedades médicas, da imprensa, dos legisladores e das polícias contra o que identificavam como “curandeirismo”. Alguns desses setores se uniram em certas ocasiões e lugares. O ímpeto dos médicos e padres, por ocasião da fundação da Faculdade de Ciências Médicas em 1957, foi um tanto quanto solitário, embora tenha contado com a resposta de uma ou outra ação policial. Esse ímpeto se assemelha à posição de setores da imprensa e da polícia nas décadas de 1930 e 1940. Diferentemente do que ocorreu na cidade de Caxias nos anos 1930-40, em São Luís, nesse mesmo período, não houve uma grande participação específica do clero exigindo o combate à Pajelança, embora a questão religiosa e a médica tenham sido fundamentos dos argumentos levantados pela imprensa para justificar a necessidade de ação policial. Quaisquer códigos legais sobre “curandeirismo” podiam ser interpretados de diversas maneiras, dependendo das situações e pessoas envolvidas. Não se deve menosprezar a percepção de um articulista em 1947, quando afirmara que no entender das pessoas que frequentavam a Pajelança, mesmo sem nenhuma licença, essa seria “uma cousa legal como outra qualquer” (OGB, 09/06/1947). O “serviço” de cura prestado por um pajé também podia ser visto como algo legal pelos próprios agentes policiais. Em 1948, a mulher Maria Natividade Pereira, residente à rua Euclides Farias, zona urbana de São Luís, foi à delegacia de polícia prestar queixa contra o “conhecido pajé Palmeiro Albuquerque”, morador da rua Celso Magalhães, centro da cidade. “A queixosa alegava que dera 30 cruzeiros para o Palmeiro fazer um serviço de feitiçaria, não tendo o mesmo satisfeito o compromisso.” O comissário de serviço registrou a queixa e deu ordem para que fosse procurado o pajé. A atitude do comissário não foi suficiente para satisfazer os anseios do repórter, que ficou indignado, argumentando que a própria queixosa deveria ser presa por ter procurado o serviço do pajé (OGB, 25/2/1948).

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Desde meados do século XIX, os curadores eram objeto de perseguição policial (Assunção, op. cit.). Embora não fosse algo generalizado, parecia ser comum que alguns deles tirassem licença para realizar “Tambor de Mina” quando (também) realizavam cura. Lembre-se que nunca houve “licença” oficial para a Pajelança, como acontecia com a Mina, entendida como baile ou diversão. Daí, muitas vezes, pajés realizarem “na sombra do tambor” o “brinquedo” (CRZ, 21/6/1947), o que era frequentemente denunciado pela imprensa: “não há a menor dúvida de que a licença fornecida pela Polícia para que se pratique o ‘tambor de mina’ fomenta a macumba. E isso porque onde há o ‘tambor de mina’ há fatalmente a macumba. Uma cousa não existe sem a outra; pelo que não se pode considerar o ‘tambor de mina’ como uma diversão qualquer” (OGB, 9/6/1947); “os curandeiros [...] vivem sempre numa casa em que há uma grande sala para a dansa do ‘tambor de mina’” (OGB, 30/5/1948); “não há povoado à margem dos rios que abraçam S. Luís que não tenha o seu terreiro de mina com mesa de cura” (PGB, 18/4/1950). É provável que tenham sido fundados casas e terreiros sincréticos nos quais era efetivamente difícil saber onde começava e terminava o que se denominava Pajelança ou Tambor de Mina, macumba/magia ou diversão. Entretanto, a indistinção proposta pela imprensa consistia, antes de tudo, numa estratégia que visava legitimar a perseguição policial a todas e quaisquer expressões cognoscitivas, terapêuticas e religiosas ligadas especialmente aos mais pobres e negros, reduzindo-as a práticas ilegais e imorais. Obviamente, não se trata de uma luta exclusiva de letrados, clérigos, da imprensa e das elites contra o “povo”. Em São Luís, diversas denúncias contra a Pajelança feitas à polícia provinham dos subúrbios ou dos interiores da ilha, e eram feitas por vizinhos dos curadores, que podiam alegar, por exemplo, questões relativas ao sossego público ou à prática de feitiçaria. Essas denúncias ocorreriam “frequentemente” (OGB, 5/7/1945). Em 1939, Aristeu Santana, residente no Retiro Natal, subúrbio de São Luís, compareceu à central de polícia e prestou queixa contra a sua vizinha, Luzia Pinheiro, “pelo facto da mesma ter o costume de realizar, alli, sesões de pagelança, perturbando o socêgo publico” (OGB, 1939, p. 4). Em 1945, também naquela localidade, onde era “praticada há dias a pagelança pelas mulheres Armanda e Margarida de tal”, fez-se nova queixa. “Dando-se mal com a barafunda”, Silvestre Dias, “visinho da casa onde baixam os ‘caboclos’ [...] levou o

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caso á policia, pedindo providencias à autoridade competente, no sentido de fazer cessar tal abuso”. Resultou que “as promotoras da pagelança foram intimadas a comparecer á 1a Delegacia Auxiliar afim de responder pela queixa” (OGB, 5/7/ 1945). Lugar onde comumente se realizavam sessões de Pajelança, o Olho d’Água, assim como outros interiores da ilha de São Luís até os anos 1960, era uma região de matas. Em 1940, Flávio Bezerra recebera uma denúncia, segundo a qual a Pajelança se tornara habitual naquelas redondezas. De fato, os denunciantes, muitas vezes moradores das localidades, tornavam-se importantes aliados da polícia. Mais que informar o local exato, algumas vezesa eles também diziam quando os “brinquedos” eram feitos. Assim, Bezerra enviara uma diligência para o local e “no silêncio da noite, dentro da matta escura”, o lavrador e pajé Demetrio Santos, conhecido como Mestre Demétrio, “foi surprehendido pela policia quando ‘curava’ um doente”, um pedreiro. Demétrio vestia “uma blusa de gorgurão verde, casquêtte da mesma fazenda, um cordão branco e encarnado sobre os ombros” e tinha “um maracá nas mãos, cujos ‘balangandans’” foram apreendidos pela polícia. Ele estava acompanhado por “três acólytos”. A polícia o teria flagrado “quando estava ‘benzendo’ o ‘cliente’ batendo-lhe com o maracá na cabeça’”. Mais que uma cura, em sentido estrito, o que ali se realizava era um grande encontro religioso e festivo. No local, havia “cerca de cem pessoas”, havendo “correrias e atropelos” com a chegada da diligência policial (OGB, 30/4/1940, p. 1). Note-se que alguns elementos da Pajelança, como percebidos pela imprensa, são vistos a partir dos referenciais do catolicismo, enquanto religião, e da medicina. Isto é, numa certa dimensão, a Pajelança era pensada, antes de tudo, a partir do universo propriamente religioso e medicinal. De todo modo, o fato é que a prática da Pajelança motivou a prisão de muitos agentes sociais. Em grande medida, o jornal Diário do Norte tinha razão quando, no final de 1937, afirmava que “os pagés estão em maré vasante” (DNT, 30/11/1937). Nesse ano, noticiara-se a prisão de dois homens “da gente que tem ligação com o pessoal do fundo quando praticavam a macumba por meio de cobras embalsamadas e santas amarradas” (DNT, 28/10/ 1937, p. 3) e um outro que “a segunda delegacia auxiliar mandou recolher ao xadrez” (DNT, 29/11/1937, p. 4).

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Em 1950, foi preso em São Luís um “curandeiro” proveniente de Belém do Pará. Ele era caracterizado como o “falso ocultista” de nome Carlos, um “terrível chantagista” que teria um “plano diabólico destinado a espoliar os incautos”. Ele possuiria um terreiro de cura em Belém. O curador, que “diz que possui consigo um espírito do fundo”, teria escapado pelo mar da perseguição policial na capital paraense. Através de jogo de baralho, Carlos revelaria o presente, o passado e o futuro. Ele era acusado de ter transtornado a vida de diversas famílias, pois “contava, com os olhos fechados, coisas horríveis” para as pessoas que o procuravam. “Dizia que as moças haviam sido prostituídas e as senhoras casadas haviam enganado os maridos, e as viúvas viviam em constantes encontros com amantes”. Carlos seria um especialista em doenças do sexo. Seu espírito do fundo só se aproximaria depois que ele bebesse vinho, e “à medida que trabalhava ia tomando copos e mais copos de vinho”. Cobraria caro por remédios e tratamentos. Algumas pessoas, que se diziam ludibriadas pelo curador, foram prestar queixas à polícia (PGB, 30/11/1950). Certamente, deve-se considerar a maximização, nesse período, de uma cultura viajante, constituída por diferentes agentes da cura e da Mina, cujas ideias, símbolos e valores seriam estruturados em uma perspectiva translocal, o que parece ter tido influência profunda no desenvolvimento de diferentes práticas terapêuticas e religiosas num estado até então predominantemente rural, redimensionando os modos de atuação daqueles que se envolviam com essas práticas. Estes continuaram a agir nas frestas da oficialidade. Entretanto, cada vez mais, passariam a usar, de maneira inteligente, ousada e criativa, os instrumentos e mecanismos do mundo oficial, como a imprensa, que outrora e ainda naquele momento, insistia em inscrevêlos depreciativamente. Em 1951, por exemplo, mãe Odineia, que havia saído do Maranhão, tendo estado no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Ceará e Paraíba, residindo naquele momento em Manaus, de onde vinha para passar a festa de Ribamar na ilha de São Luís, dirigiu-se ao Jornal Pequeno. Identificada como “profissional da cura”, Odineia deu uma longa entrevista contando sua história e sobretudo desafiando o delegado da vizinha cidade de São José de Ribamar, afirmando que havia “batido maracá em diversas casas e por ocasião da festa vou dansar”, com ou sem a permissão do referido delegado (JPQ, 18/8/1951, p. 3). Observando-se as investidas da polícia e da imprensa maranhense, nota-se que os sujeitos envolvidos com a Pajelança, em maior ou menor grau, são apresen-

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tados como uma espécie de inimigos da região. Uma vez que a região, como representada por setores da sociedade maranhense, manifestava-se em perigo, a ação policial aparecia como meio através do qual suas manchas podiam ser eliminadas. Mesmo sob perseguição e depreciação, a cura continuava a proliferar. Além disso, muitos pajés e seus encantados seriam especialistas em realizar e comandar operações para “encantar” policiais, mesmo chefes de polícia como Flávio Bezerra, e também políticos. Segundo o curador e pai-de-santo Euclides Ferreira, em certa ocasião, a pajé Benedita Jardim – com a entidade espiritual nela presente, estava realizando uma cura e pressentira a chegada da polícia, o que ela comunicou a todos, afirmando que ninguém deveria sair da localidade. A polícia chegou e levou Benedita e alguns dos presentes no “brinquedo” para a chefia de polícia. Eles seguiram viagem de canoa, dado que estavam num sítio separado pelo mar do centro de São Luís. Benedita viajou toda paramentada, como estava no ritual. Ao longo da viagem, encorajou alguns de seus acompanhantes e cantou ao lado dos policiais. Na Central de Polícia, Flávio Bezerra dissera que ela estava sendo presa por fazer trabalhos de bruxaria, por fazer mal aos outros, o que era proibido, e a caracterizou de louca, pois estava toda enfeitada. A entidade de Benedita respondeu ao chefe de polícia dizendo que não estava fazendo mal para pessoa alguma, muito pelo contrário, estava cumprindo com a missão de pegar no maracá, pois este só sacudiria em suas mãos. Para provar que Benedita estava errada, Flávio Bezerra pegou o maracá, balançou-o e nada aconteceu. Depois, de volta para a entidade, o maracá chacoalhou normalmente. Benedita foi mandada embora da Central de Polícia por Bezerra e continuou a Pajelança (Ferreira, 2003, p. 70-72). Os encantados não admitiram ficar de fora dos processos sociais nos quais os diferentes agentes envolvidos com a cura estavam imersos. Muitas vezes, a história da repressão à Pajelança e a outras práticas produzidas pelos mais pobres é escrita como um combate antitético entre os “populares” e a polícia. Entretanto, o que se nota é que entre a ação da polícia e as respostas dos diferentes sujeitos havia uma pluralidade de situações que complexificavam esse processo. Não se pode generalizar o “tempo de terror” porque teria passado o povode-encantado no Maranhão da primeira metade do século XX, como sugerem Santos e Santos Neto (1989). As “torturas, humilhações e constrangimentos”, a “violenta e implacável” (idem, op. cit., p. 116) repressão não atingiu a todos e quando

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ocorreram foram circunscritas a determinados contextos e situações. A argumentação do tempo de terror certamente se alicerça numa multiplicação da real capacidade da repressão policial. Além disso, as perseguições registradas nos jornais de época ou rememoradas pela oralidade mostram que frequentemente os pajés e curadores enfrentaram diretamente ou ludibriaram aqueles que os perseguiam, ou, ainda, envolveram os que deveriam ser seus algozes no universo da cura. Deve-se considerar ainda a existência de membros do povo-de-encantado, particularmente aqueles que viviam nas zonas rurais, muitos dos quais não foram forçados ou expulsos para lá devido às perseguições, ou que viviam nos interiores do Maranhão, para os quais as perseguições foram algo no mínimo distante. É questionável a ideia de que o conjunto do povo-de-encantado enfrentara barreiras excessivas para a transmissão de suas práticas e conhecimentos, como seus saberes terapêuticos. Ora, nem os curadores nem a polícia formavam grupos homogêneos. Interpretar esse processo como uma oposição maniqueísta entre perseguidos e perseguidores, oprimidos e opressores pode impor uma uniformidade artificial sobre todos os diferentes sujeitos que promoviam curas, o que significaria uma essencialização empiricamente indemonstrável. Além disso, obrigar-se-ia a diversidade dos agentes envolvidos com a Pajelança a desempenhar o papel de vítima, quando esta nem de longe foi sua posição central na história do Maranhão. Algumas das características e dos resultados das relações entre as legislações, a polícia, os pajés e a cura teriam sido as que se seguem. Sem sossego e muito menos liberdade, as casas de cura iam-se impedidas de funcionar. [...] Condenada pelos médicos, repudiada pela burguesia e escorraçada pela polícia, a cura (procurada pelas classes desfavorecidas da sociedade como medicina alternativa) não resistiu à inevitável opressão, cujo arrefecimento só ocorreu à proporção que os curadores adotaram um estratagema. Eles projetaram sobre o tambor de mina o sonho de uma relativa vida à luz do sol. E numa terra que já se acostumara a “dormir ao som dos tambores”, as casas de cura (ansiosas por um pouco de paz e liberdade) resolveram mascarar-se de tambor de mina para ludibriar as forças da repressão. [...] Com efeito, acelerou-se o processo de fusão da mina com a pajelança. E notórios curadores ou pajés, a partir daí, passaram a comportar-se como se mineiros fossem. Na verdade, eles só queriam uma coisa: ver-se livres, ainda que parcialmente, dos assédios da polícia. E, por conta da perseguição policial, os curadores foram obrigados a substituir o pandeiro e o maracá inicialmente por palmas (menos ruidosas, poderiam dificultar o faro da polícia) e depois, como disfarce, adotaram o mesmo ritual dos chamados mineiros. (Santos e Santos Neto, 1989, p. 118-119)8

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Esta argumentação precisa ser relativizada em alguns pontos. Em primeiro lugar, deve-se salientar que a falta de sossego e liberdade não atingia todos os lugares que poderiam ser caracterizados como casas de cura. Dependendo do período e da localidade, a cura poderia ser realizada em relativa tranquilidade. A repressão policial, mesmo quando intensa, na maioria das vezes, limitava-se a determinados lugares, sobretudo às zonas urbanas, e se acentuava em certos períodos, depois da qual a Pajelança voltava à tona, e com todo o vigor. Em segundo lugar, as fontes escritas de época evidenciam que a Pajelança não era buscada exclusivamente pelas classes desfavorecidas da sociedade. Esta é uma argumentação que, em grade medida, repete os padrões explicativos utilizados na época, pelas elites, para combater e discriminar a Pajelança, qual seja, a ideia de que “muita gente vive da macumbaria graças ao pouco grau de cultura da nossa gente” (JPQ, 18/8/1951). Ao contrário, pessoas de diversos estratos sociais procuravam os pajés. Algumas abandonavam tratamentos médicos e buscavam a Pajelança, outras certamente realizavam, ao mesmo tempo, tratamentos com pajés e com médicos. Pode-se até se supor que alguns pajés recebiam poucos indivíduos que poderiam ser caracterizados como pobres, uma vez que estes poderiam não ter recursos para presentear aqueles com os “mimos” exigidos ou os pagamentos das taxas estipuladas. Em terceiro lugar, a Pajelança não se reduzia às questões de saúde, à cura, em sentido estrito. Pode-se argumentar que a maioria dos que procuravam os curadores o fazia em busca de saúde. Entretanto, os rituais de Pajelança nos quais as curas eram realizadas eram muito mais que um espaço médico alternativo. A Pajelança também se constituía como momento de lazer, espaço de festa, em que muitos participavam por puro divertimento, uma ocasião de sociabilidade. E, finalmente, é preciso relativizar a ideia de disfarce, de mascaramento, pois, ela supõe que, de fato, sempre houve diferenças claras e distintas entre Mina e Pajelança, e que os agentes sociais as manipulavam conscientemente. A fuga ao estigma do curandeirismo e da magia, através do ocultamento das entidades caboclas, das práticas curativas e das defesas contra os inimigos não foi uma estratégia adotada, de maneira geral, pelo povo-deencantado. Muitos dos ditos curadores continuaram notórios curadores sem necessitar se comportar como autênticos mineiros. Além disso, diversos mineiros atuavam como curadores, buscavam a Pajelança, dentre outros motivos, por razões econômicas. Não faltam exemplos de pessoas que estariam “se dando bem” financeiramen-

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te exatamente porque atuavam com a Pajelança e não com a Mina. E se alguns membros da sociedade maranhense estariam se acostumando a “dormir ao som dos tambores”, diferentes e desiguais sujeitos também estavam bem habituados a reconhecer e participar dos rituais de maracás e penas. É possível que o discurso do tempo de terror tenha sido construído pelo fato de não se visualizar, nem individualmente nem no conjunto das ações dos pajés, um movimento revolucionário, uma resistência capaz mesmo de subverter a ordem das relações sociais. Mas o fato de não terem sido revolucionárias não implica que essas ações tenham deixado de produzir transformações. De fato, quatro critérios têm sido exigidos para a “verdadeira” resistência: tem de ser coletiva e organizada, e não privada e desorganizada; deve ser fundamentada e altruísta, em vez de oportunista e egoísta; deve ter consequências revolucionárias; deve negar em vez de aceitar a base da dominação. Mas essa é uma noção de resistência que deve ser questionada, pois há “formas cotidianas de resistência”, isto é, práticas privadas e isoladas de resistência, uma espécie de resistência velada que nunca se arrisca a contestar as definições formais de hierarquia e poder. Para a maioria das classes subordinadas que tiveram poucas perspectivas de melhorar seu status, essa forma de resistência tem sido a única opção (Scott, 1985, p. 33; 1976). Através de suas práticas e representações, mesmo aquelas produzidas em meio a conflitos, tensões e perseguições, de um intenso processo de resistência cotidiana, os curadores e pajés foram capazes de estratégica e criativamente redesenhar sua participação na sociedade, e organizar formas de fazer, pensar e sentir, especialmente no que concerne a possíveis tratamentos de doenças, que se difundiram socialmente. Não existia uma legislação que protegesse a cura da ação policial, mas havia relações significativas entre alguns pajés e membros do setor político ou de outras esferas sociais, que lhes asseguravam algumas vantagens. Aqueles que tivessem algum tipo de relação com pessoas de influência no seu contexto social dificilmente seriam incomodados pela polícia. Se fossem presos, poderiam contar com a reivindicação dessas pessoas visando à sua soltura. Além disso, esses agentes poderiam ajudar os pajés financeiramente ou através da doação de mantimentos. Os jornalistas, embora às vezes se dissessem surpresos com a possibilidade de alguém da “gente de sociedade” estar envolvido com pajés, sabiam, já que

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frequentemente noticiavam, que “o mais gosado é que até mesmo gente instruída se mete em pagelança, incrementando ainda mais sua pratica. A macumba no Brasil prolifera como a saúva” (JPQ, 18/8/1951). Em 1939, “uma multidão de pessoas de destaque em nosso meio” foi à chefatura de polícia pedir pela soltura do curador Mestre Demétrio. Essas pessoas “são ‘habituées’ dessas reuniões [...] apezar dellas se realizarem dentro do matto, a quinhentos metros de distancia da estrada”. Na central de polícia, elas afirmavam “estar em dívida para com o macumbeiro. Os pedidos chovem”. Diante disso, “o chefe de Polícia, está deveras escandalizado”, afirmava o repórter, que completava, dizendo que a voz da razão solicitava o contrário. O lugar de pai Demétrio seria na delegacia (OGB, 30/4/1940, p. 1). Em 1947, o chefe de polícia Homero Brauna foi até o terreiro do “doutor em feitiçaria”, mestre Pio, onde comparecia “gente das mais diversas classes sociais”. Os repórteres lamentaram o fato de o chefe de polícia não ter surpreendido “o ‘pagé’ em função”. Na casa do “bruxo do João Paulo”, Homero apreendera “um livro curiosisimo, contendo o nome de muita gente importante da cidade”. Homero teria deixado a entender que “a divulgação do conteúdo deste livro provocaria, sem dúvida, um escandalo social” (OGB, 22/11/1947). O fato é que, como registra Reis (op. cit.), diversos curadores mantinham círculos de amizade com pessoas da “alta sociedade”. A manutenção de relações estáveis ou ocasionais com indivíduos considerados “gente da sociedade” consistiu em uma estratégia eficaz e frequentemente utilizada por diferentes pajés. Ter um amplo leque de relações sociais com pessoas cuja posição social era econômica ou politicamente importante conferia aos curadores status, capital simbólico e, sobretudo, proteção.

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O TORTUOSO CAMINHO DA PAJELANÇA Quando, sobretudo a partir dos anos 1930, a Casa das Minas, a mais antiga

casa de culto do Tambor de Mina, começou a ser reconhecida como tradição afrobrasileira, este reconhecimento simbólico veio, nas letras dos intelectuais, frequentemente acompanhado de uma visão pejorativa das práticas relacionadas à cura. Um dos motivos que teria levado àquele reconhecimento seria o fato de que “na Casa das Minas não se cuida de feitiçaria, isto é, da prática de malefícios ou do preparo de

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filtros, amuletos etc.” (Pereira, 1948, p. 47), o que, obviamente, seria característico da Pajelança; “quer na periferia urbana, nos subúrbios ou nos distritos rurais o culto é processado sem perseguições policiais. Porque uma coisa é o fetichismo simples, vozes da África que nos ficaram, e outra é a macumba, a magia negra, o baixo espiritismo, práticas nocivas e fora da lei”. “Estas manifestações mórbidas, sim, merecem repressão policial de início, para depois se tornarem objeto de tratamento de higiene mental” (Vieira Filho, 1954, p. 80). Embora se possam reconhecer diferenças entre Tambor de Mina e Pajelança no Maranhão de meados do século XX, tal divisão não seria clara e distinta para muitos sujeitos. Partindo-se de alguns casos, pode-se argumentar que essas diferenças eram menos uma questão de “verdade” do que de “poder”.9 Reconhecendo (implicitamente) as diferenças ao mesmo tempo em que tentavam (explicitamente) apagá-las, a imprensa, médicos, clérigos e policiais poderiam perseguir não somente as ditas manifestações mórbidas, mas tudo o que, em suas perspectivas, se aproximasse dessas práticas. Graças às ideias de Nina Rodrigues e à intermediação de intelectuais ligados aos Serviços de Higiene Mental (que começaram a funcionar em Pernambuco em 1931), os terreiros nagôs do Nordeste brasileiro, apresentados por eles como puros, enfrentaram menos problemas com a polícia do que os terreiros considerados sincréticos e os de caboclo (Dantas, 1988). Estes últimos, em Salvador, por exemplo, eram vistos com desconfiança e os mais acusados de feitiçaria (Landes, 1967). No Maranhão, os Jêje, mais que os Nagô, foram vistos como mais legítimos, e coube àqueles identificados como Pajelança o repúdio de diferentes letrados, bem como a atenção policial. Discursos de intelectuais como Vieira Filho (1954), de um lado, rimam com as falas de médicos em suas investidas contra o “curandeirismo”, com denúncias que eram espalhadas pela imprensa escrita, e com os argumentos de agentes religiosos, pois justificam a purificação dos desviados. Aquele intelectual separa, demarca e institui um território para além da Pajelança supostamente danosa, escapando, assim, de um possível desacordo com o discurso médico sobre a prática da cura e o discurso espírita sobre a prática religiosa, e com a percepção da polícia, pois as manifestações às quais se refere não seriam práticas nocivas e fora da lei. De outro, o discurso do intelectual destoa das representações de padres, pois protege e legiti-

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ma uma “religião primitiva, prenhe de procedimentos mágicos” (Vieira Filho, op. cit., p. 80), que cultuariam as forças da natureza, representada por voduns e santos, fazendo-lhes sacrifícios, assim como discorda de membros da imprensa escrita, segundo os quais o Tambor de Mina não se separa da macumba ou da Pajelança. O fato é que, duas décadas depois do início efetivo do reconhecimento social do Tambor de Mina, a Pajelança continuava, de modo geral, percorrendo caminhos bem mais tortuosos. É evidente que, pelo menos desde o Estado Novo, com a influência do movimento modernista, a “pajelança” servia de referencial estético para a produção poética na terra de Gonçalves Dias. Simbolicamente, poetizava-se o “pucuntum” dos tambores e o “xiquiti” dos maracás do “pajé pai-de-santo”, capazes de vencer “quebrante no corpo” (Moreaux, 1941), ou a “‘gente do fundo’”, os pajés, com suas “‘curanças’ misteriosamente realizadas” (Silva, 1950). Entretanto, ainda nos anos 1950, sobretudo em decorrência da criação da FCMM, foram intensificadas campanhas (ainda que, sobretudo, morais e não tanto policiais como até os anos 1940) de repressão social à cura. Em 1962, o curador José Cupertino, vereador de São Luís, fundou na capital maranhense, sob influência do Rio de Janeiro, a Federação de Umbanda e Cultos AfroBrasileiros do Maranhão. Assim, 1962 foi um marco institucional importante para os curadores que podiam, do ponto de vista oficial, deixar de ser vistos como contraventores e passar a ser respeitados como ministros de uma “religião nacional”. Porém, se não se deve subestimar a ação da intelectualidade, também não se deve superestimá-la. De fato, sugeriria que, a conquista simbólica e social através da qual alguns elementos da cultura negra maranhense (a exemplo do Tambor de Mina) passam a ocupar um lugar significativo na representação da região não resultou unicamente do “regionalismo nordestino”. Este regionalismo exaltaria o africano para marcar a diferença do Nordeste (Dantas, 1988), do mesmo modo que alguns elementos da cultura negra, a exemplo do samba, se tornariam o corolário da cultura nacional (Vianna, 1995), operações tais que teriam como principais promotores alguns intelectuais. Ora, aquela conquista relaciona-se, antes de tudo, ao terreno no qual eram constituídas as práticas e discursos dos agentes diretamente envolvidos tanto com a Mina quanto com a Pajelança. Esse processo, que foi lento e descontínuo, mas efetivo, deu-se em meio a múltiplas interações e conflitos sociais, e envolveu diferentes e desiguais atores sociais.

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De fato, pode-se argumentar que a construção simbólica do Brasil e de suas regiões a partir de elementos “mestiços” e “populares”, sobretudo a partir dos anos 1920-30, relaciona-se diretamente aos próprios sujeitos negros e pobres e suas práticas, estes muitas vezes reduzidos a objetos e referenciais estéticos da produção de setores intelectuais e artísticos (Gomes, 2004). A atuação, a resistência cotidiana, as articulações dos pajés e pais-de-santo entre si e com diferentes setores sociais, constituíram meios através dos quais o som dos tambores e mesmo o “xiquiti” dos maracás passaram a ser vistos como algo positivo da região. Além disso, se havia uma classificação intelectual e policial que diferenciava mineiros e curadores, havia também outras classificações, e estas pareciam ser mais difundidas. Nestas, ser mineiro ou pajé, ser do Tambor de Mina ou da Pajelança não era o mais significativo. Dentre outras coisas, tornava-se fundamental para o pajé ou pai-de-santo ser reconhecido em meio ao povo-de-encantado, além de construir uma rede de intercâmbios com pessoas dos mais diversos lugares e posições sociais. Se a Casa das Minas tinha capital simbólico e era vista como tradição maranhense e afro-brasileira particularmente pelos meios letrados, os chamados terreiros sincréticos tinham grande influência na vida cotidiana de diversos atores sociais, dos mais pobres aos mais abastados. Os pajés e pais-de-santo desses terreiros impunham modos de ser e existir para parte significativa da sociedade maranhense. Eles eram escolhidos diariamente por um conjunto diferenciado de pessoas que os procuravam em busca de cura ou proteção espiritual, ou que iam às suas festas se divertir e socializar. Localmente, eles mantinham redes de contato que lhes asseguravam sobrevivência econômica. E este campo humano e social creditava os poderes místicos desses pajés. Se, ao virem para São Luís, muitos intelectuais imediatamente buscassem conhecer a Casa das Minas, muitas outras pessoas, tanto do Maranhão quanto de outros estados, procuravam São Luís ou cidades como Cururupu e Codó em busca de curadores cuja fama e certeza de sucesso naquilo que buscavam precediam aqueles agentes. O fato é que as “mesas de cura” espalharam-se pelo estado. Através de um processo de intensas e múltiplas mobilizações, interações e conflitos, pajés ou curadores foram capazes de questionar e romper com representações pejorativas que os emolduravam num mundo de passividade, bestialidade e malignidade, e afirmaram-se como sujeitos sociais centrais para a história do Maranhão.

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NOTAS 1

Licenciado em História pela Universidade Federal do Maranhão, mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia, e doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas; eusouevaldo@yahoo.com.br. 2 Este artigo deriva sobretudo da análise de diferentes documentos, especialmente jornais que circulavam no Maranhão dos anos de 1920 a 1950, abreviados neste texto de acordo com a seguinte legenda: Boletim Paroquial (BPQ), Cruzeiro (CRZ), Diário do Norte (DNT), Jornal Pequeno (JPQ), O Globo (OGB), Pacotilha O Globo (PGB). Foi mantida a grafia dos textos tal como disponível na documentação de época. 3 Brinquedo ou brincadeira era uma expressão usada com frequência pela imprensa para se referir a diferentes manifestações, como aquelas nas quais eram realizadas curas, especialmente presentes entre os mais pobres e os negros. Era utilizada desde pelo menos final do século XIX, certamente como estratégia de proteção contra a perseguição policial, visando encobrir práticas religiosas sob o manto de diversões profanas. Ver Ferretti (2000). 4 Encantado é um termo genérico pelo qual são conhecidas entidades espirituais recebidas em terreiros maranhenses, como voduns, orixás, gentis e caboclos. Encantado também significa uma categoria específica de seres espirituais, são humanos que desapareceram misteriosamente ou que se tornaram invisíveis, “encantando-se” e indo morar em certos sítios naturais como rios, lagoas e praias. Também é comum utilizar-se como sinônimo de encantado o termo invisível . 5 Sobre o conflituoso processo de constituição da medicina científica na história do Brasil, enfocando-se as corporações médicas ou os chamados curadores, feiticeiros etc., ou os conflitos entre esses setores, ver, particularmente, Chalhoub (2003). 6 Embora não se saiba com segurança o ano em que foi escrito ou publicado o livro Espiritismo e mediunismo no Maranhão de autoria do espírita Waldemiro Reis, pode-se dizer que tal se deu depois de 1954, pois Reis se refere à morte de mãe Andressa, uma das mais importantes lideranças da Casa das Minas da primeira metade do século XX, que ocorrera naquele ano. O livro deve ter sido escrito na segunda metade da década de 1950, tendo-se em vista que as informações nele contidas (pais-de-santo, pajés, casas, terreiros) coincidem com as referências de fontes orais e outras fontes escritas sobre o período. 7 Esse questionamento manifestava-se cotidianamente, como podem atestar o conjunto da memória oral produzida pelos populares sobre o período, os registros escritos, por exemplo, de espíritas e médiuns, como Waldemiro Reis, bem como registros da própria imprensa escrita. 8 Santos e Santos Neto entrevistaram basicamente pessoas ligadas a terreiros urbanos de São Luís, como a Casa de Nagô. 9 Sobre as relações entre “verdade” e “poder”, ver, particularmente, Foucault (1995).

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OS DEVOTOS FRENTE AOS PROBLEMAS DE SAÚDE Tendo por objetivo estudar a devoção ao Padre Cícero Romão Batista,2 entre os anos de 2004 e 2006, pesquisei in loco as romarias de Juazeiro do Norte, Ceará (Braga, 2008). De forma mais intensa pesquisei dois grupos de romeiros que anualmente realizam romarias a Juazeiro. Um grupo de Caetés, Pernambuco, e outro de Murici, Alagoas. Sustentada na observação participante e no registro (através de anotações ou de fita magnética) de conversas informais, entrevistas (semidirigidas e não dirigidas) e diálogos com um amplo número de pessoas, notadamente romeiras e romeiros, essa pesquisa resultou num amplo material de campo. Na análise desse material de campo impressionou-me fortemente a presença marcante que as questões relativas à saúde têm na relação do devoto com o seu santo protetor. Pude observar que há algum tipo de registro relacionado com problemas de saúde, seu ou de alguém de sua família, na maioria dos romeiros que formam os dois grupos mencionados. É a partir dessa constatação que desenvolvo o principal argumento deste artigo: o de que os devotos do Padre Cícero Romão Batista acionam e articulam na devoção a este santo – notadamente durante as romarias e a partir de seus referenciais culturais – determinados ethos e visões de mundo que fazem com que a perspectiva

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religiosa torne-se relevante nos momentos em que têm de tomar certas decisões ou em que vivenciam experiências importantes, particularmente aquelas relativas às questões de saúde suas ou daqueles a quem estão ligados por laços afetivos e/ou de consanguinidade e aliança. O ponto de partida da perspectiva epistemológica aqui adotada é a afirmação de Clifford Geertz de que “a religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência humana” (Geertz, 1989, p. 67), dentro da qual ethos e visão de mundo se confrontam e se confirmam, sendo que é no “ritual – isto é, no comportamento sagrado – que se origina, de alguma forma, essa convicção de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas são corretas. (...) Num ritual, o mundo vivido e o mundo imaginado fundem-se sob a mediação de um único conjunto de formas simbólicas” (p. 87). Partindo desta linha interpretativa, trabalho com a ideia de que as práticas devocionais, as performances, os rituais e crenças compartilhados e acionados pelos devotos do Pe. Cícero em contextos específicos – como os vivenciados nas romarias ou que emergem numa situação de aflição imprevista (e que muito frequentemente provocam pedidos de socorro, como a prédica “Valei-me, meu Padrinho Cícero!”) – tanto dão sentido ao sofrimento quanto “ensinam como sofrer”, quando oferecem recursos que possibilitam ao devoto estabelecer uma hierarquia de sentidos e significados sobre sua vida e o mundo que o cerca e no qual ele está inserido e dentro do qual o santo protetor (ou mais precisamente a sua relação com este santo) passa a ocupar um papel relevante e orientador de suas ações. Uma das possíveis consequências desses tipos de relação do devoto com seu santo protetor é que isto pode resultar no que aparenta ser um relacionamento conflituoso entre o devoto e um médico, quando se encontra na condição de paciente deste. No diálogo com dois médicos,3 em situações distintas, escutei de ambos que eventualmente eles encontravam certo tipo de dificuldade durante as romarias em Juazeiro em atender os romeiros que procuravam o serviço de saúde, principalmente na sobrevalorização da crença religiosa romeira frente aos encaminhamentos médicos que eles julgavam necessários e adequados. Igualmente, escutei de alguns romeiros reclamações no sentido de que muitas vezes médicos e enfermeiros não “entendiam” a sua fé.

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Ainda que esses comentários e os relatos colhidos entre os romeiros de Murici e Caetés não sejam suficientes para apontar uma profunda cisão entre a perspectiva do devoto-paciente e aquela do médico, creio que eles indicam ao menos em parte a hipótese de que um encontro como esse mobiliza formas expressivamente distintas de dar sentido e vivenciar uma enfermidade. Ou, noutros termos, o devotopaciente tende a apresentar certas especificidades dentro da sua condição de paciente, de tal forma que a sua fé e devoção ao santo são para ele parte constitutiva da sua condição de paciente, quando não a parte mais relevante dessa condição. Tentando compreender esta especificidade, uma primeira hipótese (ou interpretação) que me pareceu possível foi a possibilidade de um conflito entre essas duas posturas. Enquanto o médico (portador de um saber formal e científico) tende a orientar suas avaliações, ações e decisões a partir de uma perspectiva vinculada a um ethos calcado na racionalidade científica, constitutiva e constituinte da sua própria condição, aquele que é devoto e se vê na condição de paciente tende muitas vezes a estabelecer suas avaliações, ações e tomadas de decisões a partir do seu universo referencial religioso: suas práticas e experiências religiosas e os sistemas simbólicos religiosos que os auxiliam a ordenar e dar sentido ao mundo, principalmente em relação àquilo que se apresenta como desordenado e sem sentido, como muitas vezes são os casos de doença, por exemplo. Aqui podemos agregar outra interpretação possível: a possibilidade de que, no momento em que um devoto se vê compelido a se relacionar com um médico na condição de paciente, dependendo do motivo que justificou este encontro (a enfermidade), essa possibilidade de eventuais e potenciais conflitos se manterá latente ou será assumida de forma explícita como conflito e incompatibilidade de perspectiva pelos agentes em relação. Neste caso, creio que uma interpretação pertinente é considerarmos que, ainda que esse tipo de encontro usualmente ocorra num espaço (por exemplo, um pronto-socorro) que é regido principalmente por um ordenamento que se dá a partir da lógica operacional da medicina formal, onde a expectativa (notadamente do médico e de profissionais afins) é a de que os papéis, posições e ações sociais sejam operados e orientados por certos habitus4 referentes ao próprio campo da saúde (um habitus do médico, habitus dos enfermeiros etc.), o paciente que é devoto de um santo – e se reconhece como tal – em muitos casos tende a agir a partir de um habitus religioso, referente muito mais à sua condição de devoto do que de paciente. Em

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outras palavras, o “estar doente” e “ser um paciente” é operado a partir de um

habitus religioso, dado que tende a ser a partir de seus referenciais religiosos que ele procura dar sentido, ordenar e vivenciar a situação de doença (sofrimento) que ele está enfrentando. Principalmente porque para “aquele que crê” a sua fé, a sua religião, a sua experiência religiosa, são partes constitutivas do seu próprio ser social, posto que arraigado num habitus. Uma observação, contudo, se faz necessária: tendo em vista os dados obtidos durante a pesquisa de campo, foi possível constatar que usualmente tanto os romeiros do Pe. Cícero reconhecem o saber médico quanto lhes dão importância e tendem a ter certa ciência sobre e dentro de quais parâmetros esse saber é operado e qual a posição deles – como paciente – dentro dessa relação. Ou seja, não me parece que a questão seja a de que o devoto usualmente desconsidere ou mesmo subestime o significado, papel e relevância do médico como aquele que lhe indicará o caminho para se curar da enfermidade em si. Contudo, considerando os relatos e situações observados dentro de contextos de devoção, o que pôde ser observado foi que, em situações onde na relação com o santo estavam envolvidas questões de saúde, o devoto tendia a levar em consideração – principalmente – as questões relativas ao “como viver” aquela situação em que ele – ou um ente muito querido – se encontra doente. Em muitos casos observados durante a pesquisa de campo foi possível perceber, por exemplo, que alguns dos problemas de saúde vivenciados pelos romeiros e que os motivavam a se relacionarem com o santo não diziam respeito especificamente a eles próprios, mas a um ente muito querido. E na grande maioria desses casos – na realidade nos casos a mim relatados – eram relativos a um problema de saúde de um filho, usualmente objeto de preocupação de sua mãe. Opto por incorporar este tipo de situação dentro do escopo da minha análise por ter constatado que usualmente as mães vivenciavam os problemas dos filhos como seus. Contudo, dado o espaço que tenho, não é possível aprofundar aqui nesta questão. Porém deixo a referência, dada sua relevância empírica. Foi possível perceber, portanto, que nesses tipos de casos o problema de saúde não era vivenciado como um problema da enfermidade em si, mas como algo que mobilizava o devoto como um todo. Isto é, uma enfermidade em questão, percebida como doença – e, igualmente, percebida como sofrimento –, muitas ve-

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zes mobiliza as mais diferentes dimensões da vida do indivíduo, confrontando-o ou o levando a ser confrontado por outros desafios que não exclusivamente a enfermidade em si. E, nesses casos, não raro se sobressaem as questões dos laços afetivos, notadamente os intrafamiliares. Se a experiência religiosa – vivenciada numa certa perspectiva religiosa pelo devoto – tem suas especificidades, penso que esta pode ser considerada uma delas: ela tende a se manifestar e ser vivida enquanto uma realidade imanente, dotada de uma força capaz de realizar um duplo movimento, que é o de incorporar no devoto as coisas da fé e sua força – e que estão externamente expressas e materializadas nas coisas do santo ou que a ele estiveram vinculadas5 – e fazer emanar do devoto a força de sua fé – alimentada pelo e no seu relacionamento com o santo –, de tal forma que ela possa e tenha “poder” (e esta é uma expressão típica dos devotos do Pe. Cícero) de (re)estabelecer a harmonia de sua vida e alcançar as graças e milagres tanto contidas em suas súplicas quanto – ele espera – desejadas pelo santo. Nesta perspectiva, podemos considerar que tanto uma deficiência física ou mental quanto um câncer diagnosticado, uma artrite, uma anemia crônica, um problema arterial ou cardíaco, em suma, os mais diferentes tipos de enfermidades tendem a desencadear no devoto tanto a percepção da ausência de saúde, da enfermidade em si (e o que ela implica), quanto a necessidade de se vivenciar um caminho, uma experiência em que a busca da cura passa a significar não só a possibilidade de se eliminar ou minimizar a enfermidade em questão, quanto um esforço de (re)harmonizar outras dimensões da vida igualmente permeadas por sofrimentos e/ ou percebidas como marcadas por uma ausência de sentido. Julgo, portanto, que, quando o devoto se relacionava com o santo a partir de certos problemas de saúde específicos, ele mobilizava todo um conjunto de sofrimentos cujas causas gravitavam em torno de si e não exclusivamente do seu corpo biológico ou do corpo daquele ente querido portador de uma enfermidade. Percebi que podiam, por exemplo, estar sendo mobilizados sofrimentos como aqueles cujas causas podiam ser laços familiares rompidos ou marcados pela incompreensão e ausência de certos afetos, aqueles decorrentes da posição de marginalidade ocupada dentro de determinados contextos sociais, ou mesmo a sensação de desamparo frente às instâncias de poder existentes (como as do Estado, no que está incluso o

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próprio sistema publico de saúde e suas limitações), adversidades econômicas etc. Em suma, podiam estar sendo mobilizados os mais diferentes sofrimentos da vida, nas suas profusões de causas e efeitos. Se há certa verdade numa ideia bastante difundida, que é a de que certos problemas de saúde tendem a aproximar as pessoas da necessidade de uma experiência religiosa, de uma fé em Deus ou outro nome que queiramos lhe dar, creio que passa por aqui a possibilidade de uma das explicações para uma possível veracidade desta percepção: determinados problemas de saúde tendem a colocar as pessoas diante do desafio de reordenarem o(s) sentido(s) de suas vidas. E as respostas que são oferecidas por determinadas experiências religiosas (usualmente expressas em determinados sistemas de crenças religiosas, rituais etc.) surgem como particularmente verdadeiras para determinados indivíduos, oferecendo a eles um caminho a ser seguido, capaz de (re)estabelecer respostas, sentimentos e sensações percebidas como aquelas que efetivamente podem dar um sentido maior e mais amplo àquilo pelo que estão passando. Nesta perspectiva, a doença passa a ser vivenciada não a partir da enfermidade em si, mas como uma busca pela cura, onde o devoto pode mobilizar diferentes dimensões de sua vida. E a cura, neste caso, não implica exclusivamente, ou mesmo necessariamente, a completa eliminação da enfermidade em si. Creio que de alguma forma isso nos remete àquilo que fundamenta o eudemonismo enquanto doutrina filosófica6 e que pode ser considerado como um princípio inerente ao ser humano: a busca da felicidade. Noutras palavras, creio que para o devoto a cura surge, nesta perspectiva, como parte de algo maior e mais significativo para ele: a possibilidade de uma vida mais feliz.

“ME DIGA SE MEU PADRINHO NÃO É SANTO!?” A fim de ilustrar minha análise, apresento a seguir um caso observado em campo que eu tomo como exemplar e que pode oferecer um pouco mais de clareza em relação à perspectiva analítica dentro da qual desenvolvo meus argumentos. Vejamos o caso: Era pouco mais das oito horas da manhã de uma sexta-feira, dia 28 de janeiro. Considerando o grande número de romeiros que todos os anos vão a Juazeiro para a Festa de Nossa Senhora das Candeias, a cidade ainda tinha pouca gente. A ideia era

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passar a manhã no museu Pe. Cícero observando os romeiros. Isso porque uma das primeiras coisas que muitos romeiros fazem ao chegar ao Juazeiro – principalmente quando têm promessa a ser paga – é visitar o museu. O museu é um dos mais importantes locais de devoção romeira no Juazeiro e está localizado na casa que serviu como a última residência do Padre Cícero. É um casarão composto de vários cômodos onde estão dispostos armários com roupas, utensílios e objetos variados (como coleções de moedas, louças e prataria) que ou pertenceram ao Padre ou ali foram deixadas por romeiros. Há inclusive objetos exóticos, como uma enorme jiboia empalhada, um grande osso de baleia e uma série de aves mortas que passaram por processos taxidérmicos. Dois cômodos posteriores são utilizados como sala dos milagres. Os fundos do casarão funcionam como um local de descanso onde o romeiro pode beber um pouco da água fresca retirada de gigantescas moringas, às vezes assistir a um filme de temática religiosa que é projetado num grande telão num dos cômodos, ou apreciar um casal de pavões que ocupa um pequeno cercado no quintal. A parte lateral da casa, onde há um grande corredor, logo que aberta é tomada por mendigos que ali se espalham pelo chão a pedir trocados. Mas o local mais importante da casa é o cômodo onde fica a cama do Padrinho, onde devotos depositam fotos, missivas, presentes e os mais variados tipos de objetos e ex-votos, além de cantarem benditos e fazerem preces e orações. Naquela manhã, logo que entrei, dirigi-me ao referido cômodo. Estava vazio e assim continuou por alguns minutos. Uns óculos e uma roupa azul sobre a cama (uma bata mariana do tipo que os romeiros usam para pagar promessa feita a Nossa Senhora) indicavam que eu não fora o primeiro a entrar ali naquele dia. Depois de algum tempo, chegou um casal que rezou silenciosamente, tocou a cama e saiu. Uma moça de avental vermelho, funcionária do museu, sem muitas cerimônias, retirou os óculos e a roupa azul de cima da cama, colocou-as num saco e saiu. Pouco depois, chegou uma senhora que colocou a mão no colchão e rezou. Perguntei-lhe de onde viera e ela me disse que era de Juazeiro mesmo, que morava aqui e tinha nascido em Barbalha, cidade vizinha, transferindo-se aos sete anos para morar na casa de sua madrinha, no ano de 1945. Ao indagá-la se sua madrinha havia conhecido o Pe. Cícero, ela não só respondeu que sim, como me afirmou que a madrinha frequentava a casa do Pe. Cícero e que costuma contar muitas histórias sobre o Padrinho.

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Perguntei que histórias eram e seu relato discorreu sobre o fato de que, segundo sua madrinha, no começo o Padrinho morava onde hoje é o asilo, mas dava bênção ao povo onde hoje é o museu, da janela que fica onde funciona a loja de souvenirs. E da janela, segundo ela, ele dizia: “Vai chegar um tempo em que as pessoas que vão ao cemitério vão olhar para os que estão enterrados e vão querer estar lá!”. E emendou: “E não é esse o tempo, meu filho, o tempo que a gente está vivendo? Tanta coisa acontecendo, tanta morte, filho não respeitando pai, pai não respeitando filho, guerras...”. Indaguei: “Então o Pe. Cícero é santo?”. Ela respondeu que sim, e para ilustrar contou outra história. Contou-lhe sua madrinha que, certo dia, estava em frente à janela com outros romeiros, esperando o Padrinho, que ele iria falar. Então ele apareceu e falou que iria rezar o rosário da Mãe de Deus. Pediu que quem estivesse com o rosário que o levantasse. A madrinha levantou, mas sabia que estavam faltando algumas contas. Pe. Cícero pediu que quem estivesse com rosário “faltando conta” que o baixasse. A madrinha sabia que estava faltando, mas não abaixou. Por três vezes o Padrinho pediu que quem tivesse rosário com conta faltando que o baixasse. Na terceira vez, a madrinha abaixou, e na terceira vez a madrinha sentiu uma tristeza por não ter abaixado antes e por ter contas faltando no rosário. Mal terminou esta história e ela emendou uma história pessoal que confirmava para ela que o Padrinho Cícero era santo e fazia milagres: Sua filha nasceu sem poder andar. Só andou com sete anos. Tinha a cabeça muito grande, as pernas bem finas, as mãos só tinham quatro dedos e eram bem fracas. Logo que sua filha nasceu, ela procurou um médico no Crato e este lhe disse que não tinha jeito, que a menina não andaria. Foi a outro em Juazeiro, mas esse disse que era caso para a medicina em Fortaleza, pois lá na região não teriam como ajudar. Em Fortaleza os médicos fizeram exames e com o resultado disseram que a menina teria de ser operada. A mãe perguntou ao médico se eles davam certeza de cura e se tinha risco. Eles disseram que tinha algum risco e que a cura não era garantida. A mãe então rezou para o Padrinho, pediu-lhe uma “luz” e fez a promessa de que, se ele a iluminasse no que fazer e fizesse sua filha andar, todo dia 20 ela e sua filha iriam se vestir de preto e assistir a uma missa.

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No outro dia, ela chegou no hospital, era o dia da operação. Disse ao médico que não iria autorizá-la. Voltou com sua filha para Juazeiro. Quatro dias depois de sua volta, quando chegou em casa, encontrou sua filha andando. Segundo ela, era o milagre que havia pedido ao Padrinho Cícero. E desde então, todo dia 20 ela e sua filha passaram a se vestir de preto e a assistir a uma missa. No início, sua filha tinha vergonha do pai, por isso andava escondida. Quando passou a andar melhor, andava na frente de todo mundo. Lavava louça “que você não dizia que era ela”. O pai morreu, e três anos depois a menina também morreu. Já tinha 24 anos e sentia uma grande alegria de vestir roupa preta no dia 20. Notadamente feliz, a senhora foi concluindo nossa conversa com as palavras que tento reescrever aqui: “Tenho até hoje a roupa dela. É uma beleza. Por isso que eu venho aqui no museu quase todos os dias, agradecer meu Padrinho. Então diga, meu filho, me diga se meu Padrinho não é Santo!?”. O relato acima transcrito é exemplar, do ponto de vista das similitudes fundamentais com muitos outros que foram por mim observados na minha pesquisa com os romeiros e devotos do Pe. Cícero. Esse relato aponta para certo tipo de congruência que encontrei entre o que estou adotando como abordagem analítica e interpretativa e o que pude constatar no plano empírico. Neste caso, chamo a atenção para o fato de que aquela senhora construiu o seu relato não apenas em torno do milagre em si (mesmo este sendo o ponto gravitacional em torno do qual se desdobra todo um conjunto de fatos e sentimentos e sua relação com o santo), mas também em torno de todo um conjunto de situações e sensações marcadas por sentimentos de felicidade. Diante da tragédia, da dor e do sofrimento, a devoção e a crença na santidade de seu Padrinho possibilitaram àquela senhora ter uma relação com a vida e suas contingências que é muito diferente da que teve a mulher Ba-lla da história narrada por Geertz em A Interpretação das Culturas. Ao contrário da mulher Ba-lla, que sai pelo mundo procurando Deus e “o significado de tudo isso” (da tragédia, da dor e do sofrimento), a senhora do Juazeiro encontra, nas suas crenças e devoções religiosas, um sentido para “tudo isso”. Na certeza de que o Padrinho é santo, de que ele faz milagres, na filha deficiente que anda após uma súplica ao Padrinho, na alegria de

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vestir-se de luto todo dia 20 (cumprindo sua promessa), na visita ao museu, tudo converge para a certeza de que ela não está só e de que a dor tem algum sentido. Em seu relato, aquela senhora me contou uma história que a meu ver era trágica, repleta de dores e de perdas. Contudo, o que me impressionava como um pesquisador que escutava atento sua narrativa era um paradoxal timbre de alegria em sua voz, que se tornou explícito quando ela pronunciou a última frase de sua narrativa: “Então diga, meu filho, me diga se meu Padrinho não é Santo!?”. Efetivamente, ela tinha como referência algo que lhe ensinava como sofrer, tornando as dores e tragédias da vida algo tolerável, suportável e, paradoxalmente, nalguns momentos, instituidor de alegria. Retomando a linha interpretativa geertziana citada anteriormente, penso que nós podemos falar aqui num sistema cultural religioso que se realiza e se confirma para o indivíduo a partir de ações que se remetem a esse mesmo sistema cultural. Um sistema cultural religioso – que, ainda que seja em si, na sua formatação antropológica, uma abstração científica – tem sua veracidade e complexidade garantida por aquele que o experimenta e vivencia concretamente, como atesta a frase proferida por uma das minhas informantes: “Quem se vale de meu Padrinho Cícero não

sofre, ele livra de qualquer perigo. Pode ter certeza disso, coração de Deus!”. Noutros termos, penso que uma das perspectivas possíveis para entendermos melhor como o devoto opera, organiza, interpreta e age em relação a certos problemas de saúde que acometem a ele ou a um ente querido, é considerarmos que muitas vezes – numa ampla maioria dos casos dentro dos quais ele recorre ao santo protetor – o problema de saúde é vivenciado como sofrimento. Logo, ele tende a mobilizar no indivíduo todo um conjunto de dúvidas, indagações, busca de sentidos e experiências que terminam ultrapassando o problema na sua especificidade (isto é, a enfermidade em si). Ou, se o preferirmos, podemos dizer que ele mobiliza questões bem mais amplas, relativas ao próprio sentido do viver. Mobilização esta que, frise-se, dá-se muito mais no plano do vivido, daquilo que pode ser e é experimentado. E não prioritariamente no plano intelectual, abstrato. Neste caso, ainda que consideremos que a abordagem proposta por Clifford Geertz em “A Religião como sistema cultural” (1989) traga luz a questões fundamentais sobre o sentido da religião e do religioso na vida “daquele que crê”, do devoto, é possível darmos um passo adiante. Principalmente porque – ainda que

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não tenha sido esta a intenção de Geertz e nem sejam tão simplistas assim suas colocações – a noção de uma experiência religiosa sendo vivenciada, experimentada e posta em prática a partir de um “sistema cultural religioso” termina ficando muito próxima, ao menos no plano epistemológico, da ideia de uma dissociação entre intelecto e corpo. Contudo, para o devoto, que realiza a experiência religiosa no plano do vivido, não há esta dissociação. Para o devoto a sua relação com o santo é, sobretudo, algo que para ele envolve uma relação de profunda proximidade. Subsequentemente, não é algo que a priori emerge e se justifica a partir do plano cognitivo. É algo cuja verdade, a veracidade – para o próprio devoto –, se funda naquilo que ele experimenta em si próprio. É a partir de si mesmo, nele próprio, naquilo que ele sente e experimenta, que ele vai reconhecer o poder do santo, que o seu santo é poderoso e que age sobre ele, sobre sua vida (a vida do devoto). Com esta afirmação estou, de certa forma, me deslocando para uma abordagem interpretativa próxima à que foi formulada pelo antropólogo Thomas Csordas, notadamente a partir de sua noção de corporeidade (2008) e que se sustenta na tese de que o corpo é um ponto de partida para se analisar a cultura e o sujeito. Se recorro aqui à noção de corporeidade formulada por Csordas, é porque julgo que ela ilumina e nos aproxima de uma outra perspectiva através da qual podemos interpretar a relação do devoto com o seu santo protetor: a abordagem de Csordas nos possibilita considerar que é a partir do próprio corpo – o seu ser-nomundo7 – que o devoto vive sua religião, vivencia sua experiência religiosa. Ou seja, a proposta de Csordas abre o caminho para que deixemos de pensar a religião do devoto como um sistema de representações simbólicas que se projetam na prática devota e a partir daí se mostram para ele como verdadeira, mas muito mais “como desempenho de um modo de estar-no-mundo” (Csordas, 2008: p. 19). Modo este que existe no e a partir do próprio corpo do devoto. Como o próprio Csordas sugere, isto nos abre a possibilidade de solaparmos as dualidades “corpo-alma”, sujeito-objeto, estrutura-prática, corpo-intelecto, de tal forma que “os objetos culturais (incluindo sujeitos) são constituídos e objetivados, não nos processos de ontogênese e socialização das crianças, mas no fluxo e na indeterminação em curso da vida cultural adulta” (Csordas, 2008: p. 146).

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Pensando nos casos dos devotos do Pe. Cícero que se encontram diante de uma situação de doença, isso parece fazer muito sentido. Até mesmo porque a doença efetivamente existe como uma forma de ausência de saúde do corpo, no corpo. E se o processo de curar, como coloca Csordas, “é muito mais parecido com plantar uma semente ou com tocar uma bola em movimento mudando ligeiramente a sua trajetória para que ela termine em outro lugar do que com raios que caem ou montanhas que se movem” (Csordas, 2008: p. 20), creio que igualmente vivenciar uma situação de doença imbuído de uma experiência devocional envolve muito mais a questão do como eu “estou-no-mundo” e de como eu me projeto sobre ele do que a busca e expectativa por um milagre e a possibilidade de ser curado ou não de determinada enfermidade. Em suma, para aquele que é devoto e vivencia o problema de saúde a partir de um referencial devocional o que está em jogo não é tão somente o fato em si – a enfermidade –, mas a forma dele estar e se projetar no mundo a partir de seu corpo, que é um “contexto em relação ao mundo” que se projeta no mundo a partir de sua consciência e através de seu corpo, que afinal é um corpo socialmente informado (Csordas, 2008: p. 105).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS São inúmeras as vezes em que os romeiros se veem confrontados ou se confrontam com as certezas e incertezas do viver, das suas relações com o mundo e seus imponderáveis, contingências e estruturas que parecem conspirar contra sua pessoa. Uma doença (ou sua cura), o alcoolismo de um parente próximo (ou a abstinência conquistada), o desemprego (ou o emprego conquistado), uma estiagem (ou um ano de boas chuvas), a pobreza (ou um período de menos penúria), um mundo que se reconhece como dividido entre “pobres” e “poderosos” (ou um apadrinhamento conquistado e a necessidade de se submeter a relações clientelistas), a dificuldade em ter acesso a benefícios fundamentais (como um sistema de saúde decente): atrás de muitos rituais, súplicas, agradecimentos e preces aos santos, um bom observador pode perceber que certezas e incertezas sobre a vida e o mundo são mobilizadas e tornam os devotos sensíveis às possibilidades experimentais e existenciais que transcendem o “aqui e o agora” de suas vidas cotidianas, ordinárias. É o trânsito de ida e volta, assinalado por Geertz (1989, p. 87), que corre entre a perspectiva do

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senso comum e a perspectiva religiosa dos indivíduos. Um trânsito que, contudo, é vivido e vivenciado a partir de um ponto de referência específico: o romeiro que é e está no mundo a partir de sua própria existência corpórea, ponto de referência partir do qual ele se projeta e interpreta o próprio mundo, suas alegrias, suas agruras. Neste artigo recorri a duas perspectivas teóricas distintas, uma formulada a partir de Clifford Geertz, outra a partir de Thomas Csordas. E fato é que ambas apontam para possibilidades diferentes no que tange à interpretação da religião, dos fenômenos e experiências religiosas. Contudo, ainda que isto seja pertinente, recorri aos dois autores justamente porque suas respectivas abordagens nos possibilitam iluminar diferentes aspectos de uma mesma questão. No caso específico do tema que foi tratado neste texto – a forma como os romeiros do Padre Cícero vivenciam seus problemas de saúde a partir da fé e devoção a este santo –, penso que, se por um lado a abordagem simbólica geertziana nos possibilita nos aproximarmos e compreendermos com mais clareza certos sentidos subjacentes à experiência religiosa romeira e quais potenciais significados eles estão mobilizando nessa experiência, por outro lado a abordagem de Thomas Csordas nos chama a atenção e dá mais ênfase (e, portanto, nos ajuda a não retirarmos do nosso horizonte) ao fato de que devemos considerar que a relação religião-cura-fé é vivenciada pelo devoto muito mais como algo holístico e experiencial do que cognitivo. Logo, para acessar uma verdade religiosa não é necessário somente crer, mas é igualmente necessário experimentar.

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NOTAS 1

Mestre em Sociologia pela FFLCH-USP, doutor em Antropologia Social pelo PPGAS-UFRGS e autor do livro Padre Cícero: sociologia de um Padre, antropologia de um Santo (EDUSC, 2008). Atualmente é professor da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP-SP). Contato: tonibraga@uol.com.br 2 Padre Cícero é – no que se refere às expressões devocionais em torno de sua figura e o número daqueles que dizem ser seus devotos – o maior santo de devoção popular, não canônico, do Nordeste brasileiro, talvez do Brasil. A cada ano, milhares de seus devotos – alguns falam em dois milhões – vão a Juazeiro do Norte, CE, em romarias sustentadas nessa devoção. 3 Esses médicos me foram apresentados por uma amiga comum que trabalhava com ambos numa Faculdade de Medicina em Juazeiro. Tive contatos eventuais com os dois em situações distintas, durante minhas pesquisas de campo, quando eles discorreram sobre suas experiências com os romeiros, notadamente aqueles que procuravam os sistemas de saúde local durante os períodos das romarias. 4 “O princípio unificador e gerador de todas as práticas (...), o habitus, sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas e que, como lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação, do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas” (Bourdieu, 1992: p. 201). 5 Daí uma das explicações do porquê do toque nas imagens do santo, da entrega de um ex-voto, da posse de uma medalhinha, escapulário ou do Rosário da Mãe de Deus, por exemplo, que é uma marca característica dos devotos do Pe. Cícero, serem uma parte importante da devoção e da experiência religiosa a ser vivida e como deve ser vivenciada. 6 Segundo o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), a causa final do homem, seu maior objetivo, é a felicidade (eudaimonia). A felicidade é, portanto, o fim a que visam nossas ações. No caso do eudemonismo aristotélico, a felicidade é a ação perfeita, o exercício da virtude, onde – no homem – a natureza ( physis ), hábito ( ethos ) e razão ( logos ) estão de acordo. Aristóteles trata do eudemonismo principalmente em Ética e Nicômaco. 7 O termo aqui é de Merleau-Ponty e eu o estou utilizando a partir das leituras de Thomas Csordas (2008). Cabe observar que, antes de Merleau-Ponty, Martin Heidegger já tratava de questão semelhante ( Ser e Tempo, 1927).

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A MI TUO FO PRÁTICAS E RITUAIS DO BUDISMO CHINÊS EM PERNAMBUCO E SEUS SENTIDOS TERAPÊUTICOS MARCOS DE ARAÚJO SILVA1 BARTOLOMEU FIGUEIRÔA DE MEDEIROS2

PRIMEIRAS PALAVRAS A Índia, a China, todo o Leste Asiático, enfim, e também a Grécia Antiga com o Império Romano constituíram duas regiões que, mais que outras, forneceram os mitos de origem da medicina ocidental. Lá e acolá Religião e Saúde andaram juntas, numa união que permaneceria indissolúvel, achamos, não fosse o racionalismo, o cientificismo, o positivismo e o compartimentalismo das áreas do saber – frutos da chamada modernidade ocidental – terem interrompido este casamento que se prenunciava profícuo, porque sempre fundamentado em argumentos religiosos, filosóficos e até estéticos, bem como em práticas xamânicas, curativas e curandeirísticas. Nelas, religião e magia andavam – como em muitos contextos andam também hoje – de mãos dadas. Até as grandes religiões monoteístas que moldaram a ligação dos povos da Europa e Norte da África, na Antiguidade e, através destes países, com o Novo Mundo e o extremo Oriente, na época dos “descobrimentos”, cultivaram, a partir da inspiração dos seus Livros Sagrados, sistemas e práticas de curas através da fé. No Judaísmo, são fartos os testemunhos de que a cura de doenças em geral era indicativo da presença divina na pessoa do rabino, juiz ou profeta curandeiro. A prática messiânica e missionária de Jesus, como está retratada nos Evangelhos, de-

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monstra que este usava como argumento para que cressem ser ele o Messias prometido a afirmação do Profeta Isaías de que o Enviado curaria os cegos, abriria os ouvidos dos surdos, faria andar os coxos, limparia os leprosos e a Boa-Nova seria anunciada aos pobres. A comunidade cristã começa a pregar a nova fé confirmada com os milagres feitos “em nome do Senhor Jesus”. A maioria deles era constituída de curas de males físicos. A Antropologia começou a tratar do fenômeno religioso nos povos “primitivos” e os da Europa pré-cristã, motivada pelo estranhamento provocado por ritos, orações e práticas corporais desempenhados por aquelas populações, as quais confirmavam – aos olhos evolucionistas e iluministas – não terem tido acesso “às luzes do século” que condenavam este entrelaçamento entre tratamento médico e ritual religioso, o envolvimento entre as “artes de curar” e os cultos aos deuses. Tal repúdio se estendia aos cristãos que testemunhavam curas obtidas por intercessão de santos, anjos, almas do Purgatório ou do próprio Cristo: comportamento tachado de ignorância ou superstição, muitas vezes. A Antropologia, então, assume a tarefa um tanto quanto “herética” – aos olhares da racionalidade iluminista e positivista –, de se debruçar sobre crenças, preces, ritos, tabus, práticas, considerados todos de um passado que não voltaria mais, de uma mentalidade em vias de extinção. A linha da Antropologia da Saúde, de formação mais recente, enveredou por dois caminhos: o da Antropologia Médica, estudando as contextualizações culturais do “ato médico”, a relação médico-paciente e outros temas, no campo da medicina alopática; o outro enfoque busca estudar os significados de saúde, doença, percursos de cura e suas relações com a comunidade que os instituiu e os agenciou, como parte de sua bagagem sociocultural. Foi inevitável o encontro entre a segunda perspectiva da Antropologia da Saúde e a Antropologia da Religião. Deram-se as mãos, buscaram objetivos comuns, abriram frentes de pesquisa pelos caminhos da interdisciplinaridade... Hoje, o montante de estudos, trabalhos escritos, dissertações e teses mostram, no Brasil, a fecundidade desta aliança, na investigação do costume que permaneceu bem vivo, no país, apesar de toda estigmatização, repressão e até proibição, de unir fé e cura, devoção e busca ou aquisição do bem-estar físico e psíquico. Agora, com base em um estudo etnográfico que realizamos no Templo Budista Fo Guang Shan (TBFGS) da cidade de Olinda/Pernambuco no período de junho de 2007 a abril de 2008, veremos como estas questões podem se apresentar

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na contemporaneidade a partir de um contexto específico que envolve processos dialógicos interculturais entre imigrantes de origem chinesa e integrantes da sociedade local brasileira através do budismo. Tal estudo foi baseado em observações participantes e em entrevistas formais e informais.

O TEMPLO BUDISTA FO GUANG SHAN Quadragésimo oitavo patriarca do budismo chinês da Escola Ch’an (Zen), o mestre Hsing Yün nasceu em 1927 na cidade de Jiangtu (província de Jiangsu/ RPC). Em 1949, devido às turbulências ocasionadas pela subida ao poder de Mao Tsé-Tung, Hsing Yün foi para a ilha de Taiwan, onde fundou a Ordem Budista Fo Guang Shan (Montanha da Luz de Buda), até hoje lá sediada. Esta Ordem é representante do chamado budismo humanístico3 e mantém permanente diálogo com elementos da Terra Pura;4 ela baseia-se na corrente Mahayana, que, após o “nascimento” do budismo na Índia no século V a.C., foi responsável pela propagação da doutrina e da prática budista na direção de países do Norte da Ásia: Tibete, China, Vietnã, Coreia e Japão. Diferente da corrente Mahayana, a corrente Theravada (a mais antiga das escolas de budismo atualmente existentes) seguiu pelos países do Sul da Ásia: Sri-Lanka, Mianmar e Tailândia, entre outros (Pereira, 2006). Hsing Yün empreendeu iniciativas para aproximar diferentes escolas budistas entre si e o budismo de outras religiões, num trabalho ecumênico de grande repercussão mundial (Yün, 2005). Em 1990, ele fundou em Taiwan a BLIA (Buddha’s Light International Association), a comunidade de leigos da Fo Guang Shan, que desde 1992 está sediada nos Estados Unidos. Segundo Rafael Shoji (2004), a atuação do budismo chinês no Brasil se intensificou a partir da década de 1980 e acompanhou a diáspora chinesa pelo mundo, fenômeno que elevou o número de imigrantes no Brasil e trouxe grupos com uma presença mais globalizada, como é o caso da Fo Guang Shan (FGS). Shoji defende que, devido ao caráter global da imigração chinesa e às consequentes reinterpretações e reposicionamentos da esfera religiosa em um contexto de diáspora, os templos budistas chineses devem ser divididos em dois grupos: os étnicos independentes, que seriam frutos de iniciativa local e mais centrados na comunidade imigrante, e os globalizados, que teriam padrões predefinidos de ressignificação étnica e de divulgação do budismo. O trabalho de Rafael Shoji e constantes referências produzidas

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pela mídia brasileira reforçam a ideia de que, dentre as organizações budistas chinesas que podem ser classificadas como globalizadas, a FGS é a que tem buscado e conseguido maior penetração e receptividade entre os brasileiros.5 Em 2002, foi inaugurado o TBFGS de Olinda/Pernambuco, a partir da iniciativa da fração budista da comunidade chinesa de Pernambuco, que financiou a sua construção. O número oficial de imigrantes chineses trabalhando ou estudando legalmente no estado de Pernambuco – 658 – diverge consideravelmente dos da presença informal deles; tanto que, ao falarem de sua comunidade nesse estado do Nordeste, esses imigrantes sempre se referem a mais de 2 mil pessoas e alegam que este número se encontra numa escala ascendente.6 Um estudo preliminar (Silva, 2007) mostrou que o fato de trabalhar no comércio e na circulação de produtos Made in China no centro da cidade do Recife e na “Feira do Paraguai”, em Caruaru,7 foi a razão apontada como decisiva por parte significativa desses imigrantes que residem em Pernambuco para suas vindas ao Brasil. Documentos, estatísticas e diversas notícias de jornais atestam três ondas imigratórias de chineses ao estado de Pernambuco: a primeira a partir de 1949 (fluxo anticomunista), a segunda na década de 1970 (ligada a vínculos familiares com os que vieram na primeira leva e ao início da expansão em nível mundial das redes de comércio chinês) e uma terceira onda, que teve início nos anos 1990, continua até os dias atuais e está vinculada ao processo de consolidação das redes transnacionais de comércio chinês. Este processo vem ocorrendo através de parte de seus representantes que, devido a uma conjuntura específica (parceiros chineses/taiwaneses em cidades estratégicas no Brasil e no Paraguai, políticas e práticas aduaneiras que possibilitavam o escoamento dos produtos e existência de amplos mercados a serem explorados, entre outros fatores), quiseram não atuar mais apenas na intermediação das mercadorias, mas tentar controlar inúmeros trajetos de produção, distribuição e venda direta dos produtos aos consumidores. A principal diferença desta terceira onda imigratória chinesa para o Brasil/Pernambuco, em relação às duas levas anteriores, é a presença majoritária de imigrantes oriundos da República Popular da China (RPC). Em 1994, a já citada fração da comunidade chinesa pernambucana adepta do budismo resolveu unificar suas práticas religiosas até então dispersas e/ou restritas ao ambiente doméstico de cada membro e fundou a BLIA-Recife, um capítulo

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regional da sede nacional da BLIA (localizada em São Paulo). Inicialmente, esta instituição promovia reuniões semanais na residência do Sr Julius King, 69 anos, um dos líderes da comunidade e primeiro presidente eleito da BLIA-Recife, cargo que ocupou até o ano de 2002. Nessas reuniões, uma média de 50 pessoas, maioria imigrantes da primeira geração, participava de atividades onde já interagiam integrantes da sociedade local: cerca de doze brasileiras casadas com chineses e alguns filhos destes casamentos interétnicos, chineses “mestiços” que hoje são adolescentes ou pessoas adultas que de forma constante ou esporádica integram e participam das atividades religiosas do TBFGS. Passados alguns anos, este elemento interétnico presente nas reuniões da BLIA-Recife se perpetuou com a acolhida gradual de novos membros, brasileiros e chineses, e veio a consolidar-se com a fundação do TBFGS. Por mais que interesses referentes à institucionalização da prática religiosa, ao fortalecimento da identidade étnica e religiosa destes imigrantes tivessem permeado a construção do Templo, as ideias de “legado religioso” para o estado e de difusão da doutrina para os brasileiros através de uma estrutura que favorecesse uma propagação mais ampla e sistemática do budismo foram as razões defendidas como principais pelos idealizadores do TBFGS para a sua fundação. Quando indagado sobre isso, o Sr Yang Lee, 73 anos, relatou: “A gente fez isso aqui pros brasileiros, pra ficar pra eles. Um lugar onde se ensina preceito de Buda e de budismo é a melhor coisa que gente faz pra agradecer a esta terra que nos acolheu”. A inauguração do TBFGS ocasionou mudanças importantes em diversos sentidos: maior visibilidade (devido à atenção que a mídia local concedeu quando da fundação do Templo), disponibilidade no acesso aos rituais (devido à sua localização na beira-mar) etc., mas principalmente nos sentidos doutrinários e no que tange à receptividade aos brasileiros; decerto, nem todos os interessados nesta vertente do budismo, que não tivessem alguma ligação direta com o grupo étnico, poderiam frequentar as reuniões da BLIA-Recife (ou se sentir à vontade para fazêlo), visto que tais reuniões ocorriam num ambiente doméstico. Nas atividades da BLIA-Recife (1994-2002) eram feitas práticas de meditação, recitação dos sutras e estudo do darma8 (conduzidas em chinês por budistas leigos) que, em seu conjunto, não podiam formalmente ser chamadas de celebrações, pois, conforme foi relatado por líderes do TBFGS, esta denominação só se aplica se a condução for feita por

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algum monge, alguma pessoa que tenha aderido ao código tradicional de conduta para a sangha (comunidade budista). Com a abertura do TBFGS e a chegada da monja Myao Yi, cerimônias budistas de tradição chinesa passaram a ocorrer formalmente no estado de Pernambuco, e as reuniões da BLIA-Recife, que antes eram restritas a um público “étnico” específico e possuíam um caráter cerimonial, começaram a integrar gradualmente os brasileiros convertidos e a se focar também nas questões burocráticas, financeiras e de planejamento das atividades de assistência social. Nestas cerimônias conduzidas por Myao Yi foram concedidas às atividades litúrgicas –devoções aos antepassados e rituais de meditação e reverência aos Budas – e às atividades doutrinárias, de ensino/estudo do darma e de sutras, o status de elementos que poderiam e deveriam ser trabalhados enquanto unificadores da diversidade cultural entre chineses e brasileiros. Segundo uma jovem brasileira que participou destas cerimônias iniciais: “A Mestra deixou claro pra quem tava indo pela primeira vez ou não sabia nada de budismo que o darma é universal e ele pode despertar a budeidade9 em qualquer pessoa”. Outros interlocutores brasileiros também reforçaram esta ideia exposta pela jovem, e disseram que acreditavam que a natureza humana seria “búdica” e que as diferenças culturais, por mais que se apresentassem acentuadas, poderiam ser superadas através do estudo e da compreensão da doutrina budista, da forma como é propagada pela FGS. As pessoas que visitam essas cerimônias são convidadas e até estimuladas a participar dos rituais. Como exemplos dessa orientação, vimos o cuidado dos dirigentes em colocar uma pessoa de origem chinesa sempre disponível para indicar a localização correta das leituras dos sutras em chinês às pessoas que nunca tiveram contato com esta língua e apresentam dificuldades de acompanhamento. Na cerimônia do dia de finados chinês de 2008 (que sempre ocorre no 1º domingo de abril), a todos os presentes (mais de vinte brasileiros que estavam lá pela primeira vez) foram oferecidos incensos para que consagrassem e os ofertassem aos antepassados. Quando, devido à presença de “estreantes”, notava-se que a leitura dos sutras apresentava dificuldades, Chüe Shi (a atual monja) solicitava a algum brasileiro que os lesse em português e esforçava-se para transmitir seus conteúdos de forma simples e objetiva. Estas práticas, conforme alguns destes estreantes rela-

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taram, além de passar a ideia de que estes chineses budistas são bons anfitriões, estimulam uma possível vontade de retornar outras vezes. Aliadas a outros fatores, estas iniciativas, que tentavam diluir as fronteiras entre um ethos religioso visto como consolidado, tradicional e diaspórico (vivenciado pelos imigrantes chineses), e um outro que seria inicial, nativo e convertido, ou melhor, em processo de conversão (representado pelos brasileiros), fizeram com que, logo em seu primeiro ano de atividades, o TBFGS conseguisse não só atrair para suas cerimônias matinais de domingo um número expressivo de visitantes brasileiros, mas também fazer com que parte significativa destes continuassem visitando o Templo e estudando a doutrina budista ou até mesmo a cultura chinesa. Esta ideia de “acolhida” foi desenvolvida tanto através de atividades regulares como grupos de estudo e retiros de meditação ch’an, práticas de voluntariado,, quanto pelos cursos que começaram a ser oferecidos: Ioga, Tai-Chi-Chuan, meditação ch’an, Kung-fu e língua chinesa (mandarim). Assim, o cotidiano religioso do TBFGS passou a caracterizar-se, desde seu início, por uma composição socioeconômica, geracional e étnica diversificada que incluía crianças, idosos e, sobretudo jovens, criando um público heterogêneo que de certa forma confirmou a tendência defendida por alguns acadêmicos (Usarski, 2004; Shoji; 2002) da possível coexistência, nas organizações budistas ocidentais, entre um budismo de imigração e um budismo de conversão. Shoji comenta sobre esta divisão que O budismo dos imigrantes teria como principal característica a preservação de uma identidade étnica a partir de rituais e devoções específicos, geralmente associados à obtenção de atos meritórios. As principais características do budismo dos convertidos seriam uma interpretação mais racionalizada do budismo e uma estreita associação com a meditação. O perfil social característico dos convertidos seria o de um alto nível educacional, e de pertencentes às classes média e alta da sociedade. (Shoji: op. cit, p. 3-4)

Estes preceitos relativos ao que seria o “Budismo dos Convertidos”, colocados por Shoji, foram encontrados nas observações realizadas no Templo e, principalmente, nas falas de diversos brasileiros, interlocutores dessa pesquisa. De formas distintas, eles fizeram referências a elementos que associavam a doutrina budista ao conhecimento médico-científico e a meditação a uma prática terapêutica, entre outras. Estas falas transpareciam que um recorte instrucional e socioeconômico es-

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tava presente naquele crescente grupo de “nativos” convertidos (ou em processo de conversão). Essa relação entre um pertencimento socioeconômico dos brasileiros convertidos com uma visão mais terapêutica do Templo se estabelece de maneiras diferenciadas entre cada uma dessas pessoas e isso varia, sobretudo, em virtude de suas experiências particulares dentro e fora da instituição religiosa. Tanto este citado recorte quanto as ideias de “fragilização das fronteiras culturais” e “unificação das diversidades” ficaram evidenciados nas duas Cerimônias de Refúgio na Joia Tríplice e de Profissão dos Cinco Preceitos, 10 ocorridas no TBFGS: a primeira em 2003 e a segunda em 2006. Na primeira cerimônia, participaram 43 pessoas: 31 imigrantes chineses e 12 brasileiros; todos que “se refugiaram” também fizeram a Profissão dos Preceitos, o que veio a se repetir na segunda cerimônia, de 2006. Na primeira ocasião, os chineses eram em sua maioria comerciantes que alegaram razões diversas (distância dos Templos de São Paulo, excesso de trabalho etc.) para até então não terem realizado tal cerimônia; já os brasileiros (sete homens e cinco mulheres) eram cinco estudantes universitários, quatro aposentados e três profissionais liberais. Na segunda cerimônia, o quadro se inverteu e 39 pessoas, todas brasileiras, realizaram a Profissão; 21 homens e 18 mulheres, em sua maioria estudantes universitários e profissionais autônomos.

ASPECTOS GERACIONAIS, FRONTEIRAS INTERÉTNICAS E MOTIVAÇÕES RELIGIOSAS/ TERAPÊUTICAS

Atualmente, nas cerimônias do TBFGS, cerca de 40% dos participantes é composta por imigrantes chineses e seus descendentes. Se por um lado isso aponta que a maioria deste público é composta de brasileiros convertidos e/ou visitantes, por outro, verifica-se que o controle financeiro e organizacional deste Templo encontra-se com os chineses; tanto que a direção do TBFGS e a presidência da BLIARecife são cargos ocupados desde as suas fundações por estes imigrantes; alguns se naturalizaram brasileiros, mas ainda continuam se definindo unicamente como chineses. As cerimônias dominicais do TBFGS são as atividades que conseguem atrair o maior número de participantes regulares no Templo, aproximadamente 50 pessoas; ocorrência diferente das práticas de meditação ch’an e de estudo do darma nas tardes de sábado, cujo número de praticantes dificilmente ultrapassa os 15. No

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cotidiano daquele espaço sagrado, budistas chineses, brasileiros convertidos e novos frequentadores costumam se cumprimentar falando “A Mi Tuo Fo”11 uns aos outros, gesto acompanhado de uma pequena reverência que denota o reconhecimento no outro de sua budeidade e que, aliado ao uso do Fot-Zu (espécie de pulseira budista), estabelece uma certa fronteira entre praticantes/conhecedores do budismo e demais “visitantes” do Templo. Em consonância com suas bases na Terra Pura e na Escola Ch’an, o repertório litúrgico das cerimônias do TBFGS começa com a recitação dos sutras, conduzido de 2002 a 2006 pela monja Myao Yi e desde 2007 pela nova monja, Chüe Shi. Um folheto com os sutras, que variam constantemente, em pinyin12 e português, são disponibilizados para os brasileiros e sua versão chinesa para os imigrantes e descendentes. Após a recitação, tem início o pedido de refúgio em algum Buda ou Bodhisattva 13: seguindo duas filas indianas guiadas pela monja, uma de homens e outra de mulheres, os participantes rodam em círculos pelo salão central, entoando a frase de súplica. Alguns brasileiros e chineses descreveram esta atividade como momentos de comprometimento, fé e/ou emoção nos quais eles poderiam estreitar ou até mesmo anular as distâncias entre a “vida terrena” e o “paraíso espiritual” onde residiriam milhares de Budas. A cerimônia prossegue com cinco minutos para meditação seguidos da leitura da dedicação de méritos, das ofertas, e encerra-se com uma explicação do sutra trabalhado naquele dia, visando aproximá-lo da vida prática e do cotidiano dos ouvintes. Quando a presença de novos participantes é percebida, tal explicação costuma receber uma orientação mais ecumênica, que reforce um possível diálogo entre esta vertente budista e demais crenças, como o Cristianismo. Numa destas explicações mais ecumênicas, por exemplo, foi defendido que a diversidade religiosa deve ser vista não como fator excludente, mas que pode ser complementar na busca do que seria “um mundo melhor”. Isso revela um interesse evidente de proselitização e abre a possibilidade para uma convivência religiosa múltipla, elemento presente em discursos e práticas de alguns adeptos “refugiados” chineses e brasileiros: parte dos chineses vivencia o budismo da FGS com elementos taoístas e/ou confucionistas e parte dos brasileiros declarou continuar vivenciando práticas relacionadas ao budismo tibetano ou ao catolicismo e perceber isso como uma “abertura para o desenvolvimento da espiritualidade”.

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Além dessa cerimônia dominical, as principais atividades desenvolvidas pelo TBFGS são cerimônias de casamento (desde sua fundação ocorreram apenas dois: um envolvendo um casal de imigrantes chineses e outro um casal de descendentes); as já citadas práticas de meditação ch’an e de estudos aprofundados do darma; retiros para meditação ch’an (em condomínios do interior de Pernambuco ou no Templo Zu Lai/SP e principalmente em feriados prolongados como carnaval e semana santa); palestras e exposições (ambas costumam acontecer sobre temas variados, mas normalmente enfocam elementos culturais chineses/taiwaneses e ou brasileiros/ pernambucanos, visando que imigrantes e “nativos” conheçam melhor a cultura um do outro) e práticas voltadas para o bem-estar social (frequentemente doações de cadeiras de rodas para hospitais, visitas e doação de presentes a pessoas hospitalizadas, entre outras ações filantrópicas). Estas últimas atividades, voltadas para a assistência social, costumam conceder certo capital simbólico (Bourdieu, 2005) a estes budistas, sobretudo os chineses (vistos pela sociedade local como responsáveis por essas práticas e reconhecidos e legitimados como tal pela mídia correspondente); não vamos nos aprofundar neste ponto, mas salientamos que esses chineses budistas conseguem converter, a partir de agenciamentos socioculturais precisos, estas práticas indicadoras de prestígio social em novas possibilidades de acesso a outros tipos de capital: social, cultural e/ ou econômico. Dentre os cursos oferecidos pelo TBFGS, o de meditação ch’an é o único constituído em sua maioria por adeptos (convertidos e ainda não convertidos) ou frequentadores regulares das cerimônias budistas desenvolvidas pelo Templo, cerca de 20 pessoas. De 2003 até 2007, este curso foi ministrado pela monja Myao Yi; desde o segundo semestre de 2007, ele é coordenado por uma equipe de três instrutores, todos brasileiros. No material de divulgação deste curso, elaborado pela antiga monja Yi, encontrava-se: Meditar é cultivar o desenvolvimento da mente para se alcançar a purificação e a correta compreensão. A prática da meditação ch’an não é algo que é expresso em palavras não contempladas por nossos corações e mentes. Ela é nossa “verdadeira mente”, que transcende a toda a existência do universo, mesmo nas coisas mais comuns. O estado da mente ch’an é muito alegre e vivaz. Tem como principal benefício a melhoria da saúde.

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Dois instrutores brasileiros são responsáveis pelo curso de Ioga, que possui vinte alunos (maioria crianças e adolescentes brasileiros) e duração indeterminada; alguns alunos estão tendo aulas há mais de três anos. Com o slogan “Ioga – Faça antes que você precise”, este curso é divulgado como uma filosofia de vida originada na Índia há mais de 5 mil anos que une e integra o corpo, a mente e as emoções para que seu público seja capaz de agir de acordo com seus pensamentos e suas emoções “verdadeiras”. Esta modalidade de Ioga praticada no TBFGS, Swasthya, é tida como a mais tradicional, e se divide em oito preceitos, que são normas éticas de ser e estar no mundo; tais preceitos envolvem as ideias de verdade (yamas), não violência (niyamas), posturas (asanas), exercícios respiratórios (pranayamas), abstração dos sentidos (pratiahara), concentração (dharama), meditação (dhyana) e iluminação (samadhy). O curso de Kung-fu do TBFGS é instruído por um brasileiro e por Mestre Wah, 53 anos e nascido na RPC. Este curso combina sequências de movimentos que, integrados, compõem uma espécie de ginástica marcial. Alguns alunos comentaram que, com o “amadurecimento” das turmas e visando oferecer estilos que possam atender a demandas específicas, são incluídos treinamentos em armas chinesas, como bastão (gun), facão (dao), espadas (jian), lança (qiang), entre outras. Segundo instrutores e alunos, se bem desenvolvido, o Kung-fu possibilita um equilíbrio corporal total, aumentando a saúde e a qualidade de vida, possibilitando também o controle do estresse, de angústias e ajudando na concentração. O limite máximo de alunos nestas turmas é de 20 pessoas. Instruído pelos mesmos professores de Kung-fu, o curso de Tai-chi-chuan, estilo de arte marcial chinesa também reconhecida como uma forma de meditação em movimento reúne, desde 2003, turmas regulares de 15 alunos, alguns estão nesta prática desde o seu início. Sua propaganda, idealizada por seus instrutores, afirma que o Tai-chi-chuan se baseia na natureza e na observação dos animais, mas sua fonte de energia encontra-se totalmente em nosso interior. Apesar de suas raízes estarem na antiga China, o Tai-chi-chuan é muito indicado para os ocidentais. Para os que vivem no ritmo acelerado das cidades urbanas, é um fator de compensação em suas vidas. Relaxa a mente, assim como o corpo. Auxilia na digestão, acalma o sistema nervoso, é benéfico para o coração e a circulação sanguínea, tornam flexíveis articulações e rejuvenesce a pele.

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Diferentes aspectos pertinentes ao Tai-chi-chuan, como a autodefesa, o treinamento para a saúde e o equilíbrio dos aspectos fisícos, emocionais, mentais e espirituais são abordados durante as aulas, segundo instrutores e alunos, o que as torna produtivas e corresponde às diversas espectativas do heterogêneo grupo de praticantes: adolescentes, adultos e pessoas com mais de 60 anos. A maior parte dos alunos dos cursos de Ioga, Tai-Chi-chuan e Kung-fu, cerca de 60%, não são praticantes do budismo, mas pessoas que, devido a iniciativas próprias ou por indicações médicas, procuraram estas atividades visando, entre outras coisas, melhorias em sua saúde. É certo que estas atividades encontram associações em grupos que, seja através da medicina (procura pela acupuntura), pela alimentação (interesse pelo vegetarianismo) ou alguma outra esfera, demonstram interesses em práticas comumente rotuladas como “alternativas”; mas verificamos, por meio de entrevistas com praticantes destas atividades, que mesmo tais associações, que podem ser fundadas em um desejo pelo “exótico”, estão muitas vezes ligadas a interesses ou buscas objetivas e vinculadas à saúde, tanto no que se refere ao interesse inicial por estas práticas como, sobretudo, no intuito de dar continuidade a elas. Como resposta para começar a frequentar atividades oferecidas pelo TBFGS como Ioga, Tai-chi-chuan ou Kung-fu, todos os brasileiros disseram “indicação médica”, “Interesse pela cultura chinesa” (ou por alguma atividade específica) ou “preencher tempo ocioso”. Quando indagados sobre a razão para continuarem frequentando alguma dessas atividades, as respostas foram que “aprenderam a gostar da atividade” (17 pessoas), “melhoraram dos problemas de saúde” (11 pessoas) ou que se “aperfeiçoaram espiritualmente” (5 pessoas). É sugestivo que dois adultos e três adolescentes tenham alegado “aperfeiçoamento espiritual”, enquanto uma das motivações para a permanência, o que seria indicativo de alterações ou ao menos ampliações das ideias de espiritualidade e saúde dentro de suas próprias ordens cosmológicas. Entretanto, a maioria do público destas atividades não possui vínculos diretos com a religião budista, e por isso seus itinerários terapêuticos, por mais que alterados por atividades (ou cosmovisões) ligadas ao Templo, apresentam um caráter fortemente secularizado. Deste modo, é importante verificar de que formas distintas esta procura pela saúde encontra-se mais arraigada ao contexto religioso do TBFGS, especificamente. Para isso, foram feitas entrevistas semiestruturadas com 37 brasileiros e com 32

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chineses e descendentes, de ambos os sexos, que frequentam regularmente (ao menos duas vezes por mês) as cerimônias do domingo ou as práticas de meditação e estudo do darma, nos sábados à tarde, visando entender melhor a motivação tanto dos brasileiros quanto dos imigrantes chineses para suas respectivas conversões e/ ou permanências no budismo desenvolvido pelo TBFGS para, posteriormente, articulá-las com as perspectivas particulares deste segmento em relação às ideias de saúde. No grupo dos brasileiros, a maioria eram pessoas na faixa etária dos 16 aos 30 anos (20 pessoas: estudantes e profissionais liberais), outra parcela era formada de pessoas entre 31 e 59 anos (sete pessoas: autônomos) e o restante, dez pessoas, tinha acima dos 60 anos de idade (autônomos e aposentados(as). Como resposta para começar a frequentar o TBFGS e para continuar frequentando-o, todos os 37 brasileiros responderam “interesse genérico pelas culturas ou pelas religiões orientais”, “interesse específico pelo budismo e/ou pela sua vertente chinesa”, “curiosidade” ou “contato anterior com outras vertentes budistas” (como a tibetana). Nas respostas sobre a motivação para realizarem a cerimônia de refúgio, 18 disseram “retribuir graças alcançadas com o budismo” e 19 “estabelecer um compromisso com o budismo”. No grupo dos imigrantes chineses e seus descendentes, o quadro foi diferente: a maioria eram pessoas na faixa dos 31-59 anos (16 pessoas: comerciantes e profissionais liberais), depois vinham as que tinham mais de 60 anos (10 pessoas: comerciantes aposentados e donas de casa), e, refletindo a participação restrita dos membros da segunda e terceira geração destes imigrantes nos cultos, entrevistei apenas 6 pessoas com idade entre 16-30 anos (estudantes e comerciantes)14. Como resposta para começar a frequentar o TBFGS e para continuar frequentando-o, todos os 32 chineses responderam “fortalecer o vínculo religioso” ou “manter a tradição”; já nas respostas para realizarem a cerimônia de refúgio, 12 disseram “retribuir graças alcançadas com o budismo”, e as demais deram as mesmas respostas de “fortalecer o vínculo religioso” ou “manter a tradição”. Nestes dados, percebemos que no grupo dos brasileiros interesses particulares ou genéricos, curiosidade e contatos anteriores com diferentes vertentes budistas foram razões apontadas pelos grupos das três faixas etárias pesquisadas como motivos para começarem a frequentar o TBFGS; já nas razões para permanecerem no cotidiano do Templo, são feitas referências a fatores que denotam certa subjeti-

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vidade ancorada em dimensões pragmáticas e discursivas: dialogando “realização religiosa” e “aperfeiçoamento espiritual” com “melhoria da saúde” e “retribuição a graças alcançadas”. Esta subjetividade caracteriza os itinerários religiosos e terapêuticos dos convertidos brasileiros enquanto entrecruzados com um ethos religioso diaspórico (dos chineses) e com consequentes agenciamentos das fronteiras interétnicas que ele implica e que parecem ressemantizar ou, ao menos, redimensionar as concepções particulares e “nativas” (dos brasileiros) relativas à saúde, à doença e à realização religiosa. Para os chineses e seus descendentes, justificativas de “fortalecer o vínculo religioso” e “manter a tradição” foram razões alegadas tanto para começar a frequentar o Templo quanto para continuar, o que evidencia um componente étnico ligado às suas condições enquanto grupo minoritário num país estrangeiro e também às suas memórias compartilhadas de deslocamentos, que podem fazer convergir e reforçar identificações étnicas através desta esfera religiosa específica. Além disso, a ideia de sofrimento está implícita na concepção que esses budistas chineses (sobretudo os mais velhos) têm de tradição religiosa e resiliência; conforme três desses imigrantes informaram. Segundo eles, o sofrimento se associa à tradição religiosa budista devido às perseguições promovidas pela Revolução Cultural e sofridas por eles próprios e por outros budistas na RPC; e o sofrimento, conforme relataram, está presente na ideia de resiliência (entendida como poder de recuperação) por ser visto como um ciclo capaz de indicar caminhos para superar “provações”, como as dificuldades impostas pela dispersão (seja para Taiwan ou demais países/territórios que acolheram emigrados da RPC após 1949) e as consequentes dificuldades econômicas e conflitos socioculturais que o contato intercultural pode ocasionar.15 Se, por um lado, as motivações para começar a frequentar e permanecer no Templo variam entre brasileiros e imigrantes chineses, por outro, nas razões apontadas para realizar a cerimônia de refúgio na joia tríplice, que corresponde a uma conversão, o elemento “retribuir graças alcançadas com o budismo” aparece nos dois grupos e nele está embutido, conforme relataram brasileiros e chineses, resolução de sofrimentos e/ou problemas de toda espécie: doenças físicas e mentais, problemas financeiros, relativos à legislação imigratória e familiares, entre outros. O que representa a existência de pontos de intersecção que fragilizam noções de

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fronteiras rigidamente antagônicas e excludentes entre os dois ethos religiosos: o de “nativos” e o de imigrantes. Nesse contexto, um elemento crucial em termos analíticos são os sentidos terapêuticos atribuídos tanto por chineses quanto por brasileiros a esta vertente budista e os incentivos para que existam tais interpretações. Alguns depoimentos de brasileiros e chineses sobre as práticas e rituais budistas de que participam e seus possíveis sentidos terapêuticos podem explicitar melhor essa questão: Fazer minhas orações diárias ajoelhada de frente pro budinha que eu tenho lá na sala de casa me conforta, me faz ficar com pensamento positivo o resto do dia; mesmo se eu tiver problema, quando for deitar não vou precisar tomar remédio. [...] Antes eu tomava dienpax [antidepressivo] todo santo dia, hoje eu vejo ele que nem uma droga; a meditação, ela é mais que um calmante, ela calenta os nervos, o coração, a alma, tudo. Agora eu sou uma católica com muita fé em Buda. (D. Suely, 59 anos, brasileira) A cosmologia do budismo é muito rica, eu tenho pra mim que minha vida melhorou em tudo depois que eu entrei pra cá, principalmente nos problemas de saúde que eu tinha: pressão alta, diabete, era tanta coisa. (Plácido, 32 anos, brasileiro) Cê deve tá vendo, né? A gente aqui vê o trabalho com o corpo, com a mente, com relacionamento com outros, com tudo de forma integrada; eu tinha uma visão muito limitada de saúde e de doença. (Denise, 18 anos, brasileira filha de pai chinês) Budismo é saúde. Ele foi criado pra acabar com todo tipo de sofrimento. Aqui tem tanto jovem, não é por acaso, eles podem começar a visitar por curiosidade, mas depois percebem que isso aqui é como um pronto-socorro pro espírito. (Lin Kyo, 73 anos, chinês) Muita coisa que eu aprendi aqui eu levei pra vida, mudou minha rotina em casa, a forma como eu vejo o mundo. Eu me encontrei aqui e isso foi bom pra tudo, principalmente pra minha saúde. (Manuel, 23 anos, brasileiro) A gente tem tendência pra compartimentalizar tudo: isso é religião, isso é pra saúde, aqui eu entendi que tá tudo interligado. Eu era católico, mas a doutrina cristã tá muito presa em coisas que não tem mais sentido, a ciência sempre teve problema com eles [católicos] e isso tá aí até hoje. (Dantas, 61 anos, brasileiro) O budismo é holístico. Freud, Capra, Prigogine,16 todos eles aprenderam muito depois que conheceram o budismo. Pra mim o darma trabalha como um medicamento. (Liu, 22 anos, brasileiro filho de chineses)

Estas falas revelam pontos como o recorte de um aspecto instrucional, a ideia de uma “totalidade” que permearia a realidade humana (noção budista, por excelência), mas, principalmente, a interação mútua de crenças, representadas por esfor-

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ços e tentativas de compreensão e legitimidade em um ambiente onde referenciais culturais e memórias sociais encontram-se na arena central de disputa. Para Shoji (2002), na avaliação acerca das conversões de brasileiros ao budismo, é fundamental considerar as histórias particulares de cada membro/grupo em relação ao campo religioso mais amplo e historicamente estruturado no país. Para ele, um budismo de resultados tem nos últimos anos evoluído e se popularizado a partir de funções e conceitos já existentes em religiões brasileiras. Shoji salienta que existem crenças fortemente enraizadas nos brasileiros, crenças estas que permitem que certos conceitos budistas sejam melhor aceitos, devido à analogia com ideias já estabelecidas a partir da influência das religiões brasileiras. Este autor defende que o diálogo intercultural religioso permite uma aceitação e uma ressignificação de conceitos como carma, recitação de sutras e culto aos antepassados. Esses conceitos encontram aceitação entre os brasileiros, quando eles se associam a resultados concretos ou justificação para problemas existentes. (Shoji, 2004: p. 83)

É devido a este e outros fatores que acreditamos que as novas concepções de saúde e doença pós-conversão e/ou contato intercultural religioso dialogam com dimensões mais amplas que envolvem aspectos socioeconômicos, geracionais e que são influenciadas por memórias compartilhadas de deslocamento e pelas relações interétnicas entre um grupo de imigrantes e seus descendentes e membros da sociedade local. Vale salientar que estas concepções de saúde estão sendo aqui caracterizadas como “novas” pelo fato dos interlocutores terem estabelecido distinções entre o que consideram “antigas” concepções de saúde (vinculadas a noções dicotômicas e/ou excludentes entre tratamentos alopáticos, homeopáticos e aqueles classificados enquanto “holísticos” no sentido de contemplarem aspectos espirituais e idiossincráticos, por exemplo) e “novas” concepções de saúde, vinculadas, principalmente, a diálogos julgados necessários entre corpo, mente e espírito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Nos sutras utilizados e divulgados pela FGS, encontram-se diversas metáforas que comparam o Buda a um médico, os Bodhisattvas a seus colaboradores, o conhecimento do Darma a um medicamento, os monges a um corpo de enfermeiros e pessoas com algum tipo de problema a pacientes. Dentro desse contexto, o budis-

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mo é entendido como um sistema medicinal, capaz de curar moléstias em diversos aspectos da vida. Para o budismo da Fo Guang Shan, a saúde da mente influencia a do corpo e vice-versa. De acordo com Hsing Yün (2005), apenas recentemente é que a religião, no Ocidente, passou a influenciar a medicina biológica, estreitando o abismo existente entre a abordagem da doença sob as perspectivas científica e religiosa. Podemos acenar que esta mudança se intensificou a partir da crise da razão iluminista e da razão instrumental, em nossas sociedades. Entretanto, devemos considerar que, do ponto de vista de gênero, há nas sociedades latino-americanas, por exemplo, uma grande relação entre concepções religiosas e medicina, principalmente no que se refere ao gênero feminino e ao desenvolvimento de especializações como a ginecologia e a obstetrícia. Em seus escritos, Yün alerta para o fato de que no Oriente, há milhares de anos, até quando se pode hoje perscrutar e datar a memória histórica e mitológica, a religião está integrada às áreas da saúde e da medicina e quando levados para a China, notáveis elementos do budismo indiano combinaram-se com os aspectos mais importantes da medicina chinesa, formando o que hoje é entendido como o sistema médico do budismo chinês. Segundo Michel Serres (1999), a corporeidade constitui um sistema aberto de posturas, criatividade e posições a serem definitivamente incorporados na leitura que se faz do ser humano e que ele próprio faz acerca de si. Nos ensinamentos sobre o darma e sutras divulgados pelo TBFGS, através de materiais impressos e das explicações cerimoniais, as práticas doutrinais e ritualísticas são imbuídas de um caráter terapêutico. Tomando como exemplo: no livreto de Yün (2005), muito utilizado pela monja e pelos seguidores do TBFGS, encontramos funções medicinais atribuídas a diversas práticas religiosas e integrantes do cotidiano dos convertidos. Vejamos algumas destas: – Meditação: “[...] O constante fluxo de pensamentos que vivenciamos pode afetar nossa capacidade de concentração e prejudicar a vida diária. [...] O cérebro pode deixar de funcionar adequadamente como resultado do excesso de pensamentos ou devido à excitação mental intensa. [...] O bemestar psicológico e fisiológico pode ser dramaticamente aumentado pela prática meditativa da respiração lenta e da concentração na respiração.” (p. 36-37).

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– Reverência ao Buda: “[...] Prostrar-se diante do Buda aumenta a força e a flexibilidade físicas. Quando nos curvamos, alongamos pescoço, mãos, braços, abdômen e pernas, dando a todo o corpo uma oportunidade de se exercitar. O alongamento diminui a rigidez e aumenta a circulação sanguínea, diminuindo assim a chance de enfermidades. Embora a reverência gere benefícios físicos próprios, seus efeitos mais significativos se fazem sentir em nosso estado mental”. – Recitação do nome de Buda: “[...] A recitação do nome do Buda faz cessar o suplício causado por pensamentos impróprios e ilusórios e dissipa a angústia mental. [...] Essa prática também ajuda a diminuir o mau carma [...]”. Este aspecto instrucional assume nova dimensão quando consideramos que existe proselitização entre os próprios chineses; muitos são budistas por “tradição”, como dizem, mas alguns deles, por razões diversas, estão tendo acesso ao aspecto mais didático da doutrina religiosa e de seu estudo apenas no TBFGS, antes restrita à pura prática doméstica. Apesar do budismo ser tradicional e fazer parte da memória social destes imigrantes, alguns se converteram ao budismo no TBFGS não só por questões de sociabilidade ou de religiosidade; observações demonstraram que existe um fortalecimento étnico e econômico através da participação nas atividades budistas. A conversão dos brasileiros parece ser percebida pelos chineses como uma atividade que fortalece a comunidade e sua identidade étnica. Segundo a forma como a monja Chüe Shi interpreta os ensinamentos budistas e busca torná-los cognoscíveis aos fiéis e frequentadores chineses e brasileiros, todo ser humano possui uma “budeidade”; o despertar e o aperfeiçoamento desta característica fazem com que diferenças culturais entre nativos e estrangeiros se tornem subjacentes e cedam lugar à ideia de uma comunhão com a “totalidade”, fator visto como capaz de sedimentar e fortalecer a “sanga”, ou seja, a comunidade budista. Tanto Chüe Shi quanto os chineses que fazem a tradução das suas explicações dos sutras para os brasileiros (traduções essas que, comumente, não são literais e acrescentam comentários dos tradutores) comentavam e rejeitavam a ideia de que os relacionamentos dos adeptos e visitantes do TBFGS com a doutrina budista fossem marcados unicamente por formas precondicionadas de transmissão do sagrado e defendiam que formas alternativas como meditação e estudo individual do darma poderia despertar o que entendem por budeidade. É importante salientar que

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isso não significa que não existam grandes incentivos por parte da monja e seus “intérpretes” para que esses adeptos e visitantes frequentem regularmente as atividades do Templo e ajudem a mantê-lo financeiramente. O que acreditamos ser distintivo num ambiente religioso “holístico” como o TBFGS (em relação a outras instituições do domínio “congregacional”) é um relacionamento mais igualitário e recíproco entre os condutores das práticas litúrgicas e os participantes, e também uma grande valorização das experiências subjetivas de cada um. Paul Heelas e Linda Woodhead (2005) alertam para o fenômeno que chamam de “revolução espiritual” e que seria caracterizado, entre outras coisas, pela emergência e crescimento de atividades ligadas a uma “espiritualidade holística”. Tais atividades estariam ajudando pessoas no Ocidente a viver de acordo com as dimensões sagradas mais íntimas de suas vidas particulares e incluiriam práticas espirituais “alternativas” como Ioga, reiki, meditação, Tai-chi-chuan e reflexologia, entre outras. Um ponto analiticamente relevante no trabalho desses autores é que eles não interpretam o crescimento deste ambiente “holístico” e o declínio do que chamam “ambiente congregacional” enquanto processos mutuamente exclusivos. Em vez disso, Heelas e Woodhead sugerem que o Ocidente vivencia simultaneamente secularização e sacralização e justificam seus argumentos através do que chamam “tese da subjetivação”. Procurando as possíveis razões para que cada vez mais pessoas estivessem interessadas em se envolver com formas de espiritualidade que lhes ajudariam a cultivar suas subjetividades particulares (em vez de formas de religiosidade que enfatizam a importância da conformação a uma autoridade superior), esta referida tese da subjetivação se foca na ideia de que o laço histórico entre culturas ocidentais e cristianismo, cujo método característico seria composto por apelos a uma autoridade transcendente, estaria se dissolvendo rapidamente e em seu lugar havendo o crescimento de uma situação menos regulada na qual o sagrado é experimentado a partir de um relacionamento íntimo com as referidas subjetividades particulares. Da forma como é praticado e vivenciado por brasileiros e chineses, o budismo do TBFGS parece dialogar proficuamente com esses pressupostos de Heelas e Woodhead.17 Existem constantes reinterpretações do budismo praticado no TBFGS pelos seus diferentes adeptos e seguidores, o que também ocasiona níveis diferenciados de envolvimento e entendimento acerca dos ensinamentos da doutrina pregada e

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abre espaço inclusive para interpretações do budismo que poderiam ser classificadas como leigas e/ou “holísticas” por interpretá-lo enquanto uma religião que pode ser praticada tanto no ambiente do Templo quanto no espaço doméstico e que seria intimamente ligada à ideia de autoajuda e autoconhecimento. Quando indagados acerca de suas vivências religiosas no TBFGS, diversos interlocutores brasileiros e chineses (tanto da primeira quanto da segunda geração) fizeram referências a um certo entrelaçamento da esfera religiosa com novos “estilos de vida” e com uma noção de espiritualidade que é, principalmente, íntima e relacionada às suas subjetividades particulares, ou seja, não muito associada a uma fonte externa e transcendental de significado. Um ponto analiticamente importante é que tanto os brasileiros quanto os chineses que apresentavam um maior nível de pertencimento com as atividades litúrgicas do TBFGS falaram diversas vezes sobre tais atividades como algo que possuiria uma dimensão valorativa e não apenas cognitiva; essas pessoas comentaram acerca da importância que consideram que este domínio religioso apresenta nas suas vidas e nos seus reconhecimentos como pessoa. Ou seja, poderia ser extremamente reducionista interpretar este domínio religioso “holístico” do TBFGS como algo que denotasse meramente um “afastamento religioso”, em vez de tentar refletir sobre ele enquanto indicativo de efetivas mudanças que ocorrem nas vivências e nas noções de religião e espiritualidade mundo afora. Assim, acreditamos que para esses imigrantes budistas ou “chegados a Buda”, como alguns se definem, o TBFGS possibilita um cenário para o processamento de um sentido de coletividade. Os rituais desenvolvidos pelos chineses no TBFGS possuem sentidos congregadores da fração budista da comunidade chinesa residente em Pernambuco. Com estes rituais, podem ao mesmo tempo reforçar suas identidades “chinesas” e suas identidades “imigrantes”, a partir de processos de comunicação de distintividades culturais específicas, os quais mobilizam a vivência de suas identidades binacionais ou polinacionais, construídas que são dentro de referenciais que envolvem a transnacionalidade (Ribeiro, 2000). Diante dos fatores descritos, acreditamos que as práticas, os rituais e as relações interétnicas desenvolvidas no TBFGS possuem sentidos terapêuticos que não se restringem a uma possível fenomenologia cultural baseada na corporeidade (Csordas, 2008), mas que também informam acerca da esfera religiosa enquanto um

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possível locus de reprodução das ideias de tradição e de construção constante de novas identidades étnicas e de novas concepções de saúde e espiritualidade através de específicos processos dialógicos interculturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Crítica Social do Julgamento. São Paulo: Zouk/ Edusp, 2007 [1984]. CSORDAS, Thomas. Corpo, Significado, Cura. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2008. HEELAS, Paul; WOODHEAD, Linda. The Spiritual Revolution. Why Religion is giving way to spirituality. Oxford: Blackwell Publishing, 2005. MEDEIROS, Bartolomeu Tito F. de. A Feira de Caruaru: Dossiê do seu Inventário. Recife: IPHAN/5ª. SR (mimeo), 2006. PEREIRA, Ronan Alves. O budismo japonês: sua história, modernização e transnacionalização. In: Ponto de Encontro de Ex-Fellow (Revista Eletrônica)/ Fundação Japão. São Paulo: Edição n. 1, São Paulo, 2006, 28 p. RIBEIRO, Gustavo Lins. Cultura e Política no Mundo Contemporâneo. Brasília: Editora UNB, 1ª Edição, 2006 [2000]. SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. São Paulo: Bertrand Brasil, 1999. SHOJI, Rafael. A reinterpretação do budismo chinês e coreano no Brasil. Rever. São Paulo: v. 3, n. 4, 2004, p. 74-87. ___________. Uma Perspectiva Analítica para os convertidos ao budismo japonês no Brasil. Rever. São Paulo: v. 2, n. 2, 2002, p. 85-111. USARSKI, Frank. O dharma verde-amarelo mal-sucedido – um esboço da acanhada situação do budismo. Estudos Avançados. São Paulo: vol. 18, n.52, Dec. 2004. YÜN, V. M. Hsing. Budismo, Medicina e Saúde. Cotia/SP: Templo Zu Lai, 2005.

NOTAS 1

Mestre e Doutorando em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE) e do Laboratório de Patrimônio Cultural, Museus, Objetos e Coleções da UFPE. 2 Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE) e do Núcleo de Estudo das Religiões Populares – NERP/UFPE e Coordenador do Laboratório de Patrimônio Cultural, Museus, Objetos e Coleções, do PPGA da UFPE.

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A corrente humanística do budismo possui uma forte ênfase em integrar os ensinamentos de Buda na vida diária dos seus adeptos, enfatizando que a vivência espiritual deve ser vista enquanto uma prática cotidiana constante. 4 As escolas Terra Pura estão entre as principais tradições do budismo Mahayana ou “Grande Veículo” e são as mais populares no Extremo Oriente. O foco de suas práticas é a devoção e a recitação de sutras. Na China, o budismo Terra Pura fundiu-se com a escola Ch’an, que prioriza a meditação. 5 Em 2003, Hsing Yün esteve no Brasil para inaugurar em Cotia/SP o Templo Zu Lai, o maior da América Latina, e em 2004 foi fundada nesta cidade a ULB-Zu Lai, primeira Universidade Budista da América do Sul. 6 Este número de 658 se refere aos registros do controle de imigração da Polícia Federal em 5/ 9/2007. É importante ressaltar que este número oficial não inclui as pessoas que se naturalizaram – a maioria dos membros da segunda geração, que possuem nacionalidade brasileira – e, obviamente, os que se encontram em situação irregular no país. Apesar de aproximadamente 70% destes imigrantes terem vindo de Taiwan, eles são incluídos na “diáspora chinesa” pelo fato da população deste território, assim como suas principais manifestações socioculturais, serem predominantemente chinesas. Além disso, pelo fato de poucos (algo em torno de 5%) se definirem como taiwaneses, a maioria destes imigrantes pode ser classificada como chineses étnicos, já que se definem como chineses, embora menos de 25% possuam a nacionalidade chinesa oficial (fornecida pela RPC). Por esses fatores, entendemos a Fo Guang Shan como integrante do “budismo chinês”. 7 Para uma explanação melhor sobre as feiras que integram a “Feira de Caruaru”, ver Medeiros, 2006. 8 No Budismo da FGS, sutras são escrituras canônicas tratadas como registros dos ensinamentos orais de Sidarta Gautama, o Buda histórico, e darma é o conjunto de ensinamentos que, juntos, compõem a doutrina moral sobre os direitos e deveres de cada um; geralmente se refere a uma tarefa espiritual, mas também pode ser interpretado como ações virtuosas feitas tanto em vidas passadas como na vida atual. 9 Entendida como a capacidade de ser Buda, de “iluminar-se”; capacidade que seria inerente a cada um de nós. 10 A Cerimônia de Refúgio na Joia Tríplice e de Profissão dos Cinco Preceitos significa o ingresso formal de novos adeptos no corpo de discípulos da FGS, mas especificamente no caminho do Iluminado – o Buda Shakyamuni. Ao fazer esta cerimônia, o participante recebe um nome de darma escolhido pelo monastério, passa a integrar a genealogia do Budismo Ch’an e Terra Pura do Monastério Fo Guang Shan e se compromete a não seguir ensinamentos de credos considerados “obscuros”. Segundo dirigentes chineses do Templo comentaram, eles consideram “credos obscuros” aqueles que promovem qualquer tipo de violência à natureza, ao seres humanos ou a qualquer espécie de animal. “Refugiar-se” significa aceitar publicamente o Buda como mestre, o darma como seus ensinamentos e a sanga como sua comunidade religiosa. A profissão dos Cinco Preceitos (não matar, não roubar, não mentir, não ter má conduta sexual e não se intoxicar com álcool ou drogas) está inserida dentro da mesma cerimônia, e o participante pode optar ou não por fazer os votos de aceitação e segui-los em sua vida, segundo a FGS. 11 Numa tradução literal do chinês, A mi tuo fo significa Buda Amitabha, o Buda da Vida e Luz Infinitas. 12 Pinyin é o sistema oficial de transliteração dos caracteres chineses para o alfabeto latino. Por exemplo, o termo “China”, escrito com a linguagem alfabética do pinyin é Zhongguó , já o mesmo termo escrito através da linguagem ideogramática do mandarim fica -NýV; essa diferença ocasionada pela transliteração se restringe à escrita e não atinge a esfera da fala. A língua chinesa oficial (mandarim) pertence ao ramo sino-tibetano e é uma língua tonal, ou seja, pequenas variações na forma como os termos monossilábicos são proferidos mudam por completo o seu significado.

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Na doutrina da FGS, Bodhisattvas são seres de sabedoria elevada orientados a uma prática espiritual que visa a remover obstáculos e beneficiar todos os demais seres. 14 Estes seis chineses entrevistados eram os integrantes da comunidade nesta faixa etária que participavam regularmente (ao menos uma vez por mês) de celebrações ou da prática de meditação ch’an e estudo do darma durante este período da pesquisa. Entretanto, é importante destacar que tanto na cerimônia do TBFGS destinada à comemoração do Ano Novo Chinês, ocorrida em 10/2/2008, quanto na cerimônia do dia de finados chinês, realizada no dia 6/4/2008, estiveram presentes mais de 50 chineses desta faixa etária (16-30 anos); pessoas que estiveram no Templo apenas nestas ocasiões específicas. Quando questionados sobre este fato, três chineses com mais de 60 anos disseram que a maior parte destas pessoas jovens precisa trabalhar muito e, com isso, não podem frequentar assiduamente o Templo e praticam suas religiosidades mais no ambiente doméstico; quando perguntados sobre os que, mesmo não trabalhando muito, visitam o Templo apenas nestas ocasiões, os três interlocutores classificaram estes últimos como pessoas que “só querem saber de festa”. 15 Estes interlocutores também acrescentaram que para eles o sofrimento é uma passagem, uma fase necessária e até mesmo importante na vida de cada um; pois, dependendo da forma como lidamos com ele, determinaríamos nossas condições futuras. 16 Referência a Sigmund Freud, fundador da Psicanálise; a Fritjof Capra, físico austríaco autor do livro O Tao da Física , onde traça um paralelo entre a física moderna e as filosofias e pensamentos orientais tradicionais, como o Taoísmo, o Budismo e o Hinduísmo; e ao químico russo Ilya Prigogine, ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1977 pelos seus estudos em termodinâmica de processos irreversíveis, com a formulação da teoria das estruturas dissipativas. 17 Ao fazer esta colocação, não deixamos de considerar as particularidades que o contexto analisado por Heelas e Woodhead apresentam, ou seja, de uma certa “orientalização do Ocidente” a partir de referenciais empíricos colhidos na Inglaterra e o contexto específico analisado por nós, ou seja, a presença de imigrantes chineses e as dinâmicas de suas crenças orientais no Ocidente.

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MEDICINA, ESPIRITUALIDADE E PERFORMANCE NO CENTRO DE APOIO AO PACIENTE COM CÂNCER (SC) WALESKA DE ARAÚJO AURELIANO1

INTRODUÇÃO Neste artigo trago algumas reflexões sobre o uso do conceito de performance e sua relação com os processos de saúde e doença na análise de tratamentos espirituais e complementares oferecidos no Centro de Apoio ao Pacientes com Câncer (CAPC), instituição espírita localizada em Florianópolis (SC). Devo ressaltar que este texto servirá como meio de levantar questões sobre o campo e pensar as possíveis abordagens teóricas para pesquisa que se encontra em desenvolvimento. A intenção é interpretar as práticas de cura desse Centro a partir do paradigma da performance e sua relação com os eventos de adoecimento. O meu contato com o CAPC iniciou-se em 2006 de forma esporádica e, desde abril de 2009, a pesquisa de campo tornou-se sistemática a partir da participação efetiva da pesquisadora na vida cotidiana da instituição, quando passei a conviver diariamente com os pacientes e colaboradores2 do Centro, de modo que o universo da pesquisa abrange tanto aqueles que trabalham como os que são atendidos ali. Nesta convivência cotidiana tem sido possível observar as performances de cura que ocorrem neste espaço, a construção de significado e sentido para essas práticas, realizada tanto por pacientes como pelas pessoas que ali trabalham, e o processo dinâmico de relações entre universos simbólicos de cura aparentemente distintos, mas que no CAPC se unem nas práticas de cura.

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A utilização do paradigma da performance foi privilegiada pela sua relação com os conceitos de experiência e narrativa abordados nas análises antropológicas contemporâneas que vêm centrando o foco de suas investigações nas questões envolvendo a práxis e a agência dos sujeitos no seu engajamento com o mundo, aqui analisados a partir dos eventos de adoecimento e cura. Quanto à metodologia, o foco está voltado para a análise das narrativas desenvolvidas tanto no âmbito público das interações estabelecidas neste espaço terapêutico entre pacientes e trabalhadores como também no âmbito privado no que tange aos processos de organização e significação do evento do adoecimento expressos nas narrativas dos sujeitos que participam das performances de cura, pensando as conexões de análise existentes entre experiência, narrativa e performance. Em termos práticos, a observação dessas narrativas exigiu o acompanhamento da dinâmica deste espaço em sua totalidade, acompanhando trajetórias e práticas dos trabalhadores do Centro bem como investigando os itinerários terapêuticos dos pacientes que ali são atendidos. O que tenho feito é acompanhar essa produção narrativa como uma ação que faz parte da construção social deste espaço e, por outro lado, coletar narrativas individuais de algumas das pessoas que frequentam o CAPC, tanto pacientes quanto colaboradores. Para tal, fez-se necessária a minha total imersão na rotina do CAPC, deixando sempre explícita a minha condição de pesquisadora, mas sem me furtar às demandas da instituição. Deste modo, desde o início solicitei que me fosse permitido atuar de alguma forma nas atividades da instituição, embora não haja uma condição oficial de voluntária. Essas pequenas atuações têm sido fundamentais para permitir minha familiarização com os colaboradores, os pacientes e a dinâmica das terapias e performances do Centro. Recentemente, tomei parte de modo mais rotinizado de algumas terapias a partir do momento em que tive meu nome incluído nas equipes terapêuticas em atividades que não envolvem a questão mediúnica, como a massagem dos pés. Na primeira parte desse artigo busco descrever o espaço do CAPC e suas práticas de cura e apresentar um pouco o perfil dos que frequentam a instituição, sejam eles pacientes ou colaboradores. Em seguida, apresento uma breve discussão teórica sobre o campo dos estudos de performance, especialmente os relacionados aos processos de saúde e doença. Por fim, descrevo as cirurgias espirituais que ocorrem no CAPC e proponho uma análise desses eventos enquanto performances

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de cura que colocam a experiência dos sujeitos em relevo e possibilitam a elaboração de sentido e significado para o evento do adoecimento.

CURAR O CORPO, A MENTE E O ESPÍRITO: O CENTRO DE APOIO AO PACIENTE COM CÂNCER O CAPC foi fundado em março de 1998 e está localizado no bairro do Ribeirão da Ilha, em Florianópolis. Vinculado ao Núcleo Espírita Nosso Lar (NENL), com sede na cidade de São José (distante apenas 9km de Florianópolis), o CAPC atende em média 100 pacientes por semana. Já o NENL recebe cerca de 600 pessoas por semana. Pelas duas casas passam trabalhadores e pacientes que moram tanto em Florianópolis como em São José e outras cidades da região metropolitana de Florianópolis. Contudo, constantemente eles recebem pacientes de cidades do interior do estado, de outros estados, sobretudo Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo, e até de outros países, principalmente da Argentina. Para iniciar seu tratamento, o paciente com câncer ou doenças degenerativas deve passar por um atendimento prévio no NENL, onde seu caso é analisado através de uma consulta com os médiuns3 da casa e da análise dos seus exames clínicos. O CAPC não realiza atendimento sem a apresentação desses exames, que vão nortear as aplicações terapêuticas e as cirurgias espirituais. No NENL são tratados casos de ordem psíquica e/ou espiritual (depressão, ansiedade, obsessão etc.) e casos chamados por eles de “físicos”, mas de ordem menos grave que o câncer e/ou doenças degenerativas. Os pacientes direcionados ao CAPC ficam internados num regime denominado hospital-dia, onde recebem as terapias/tratamentos ao longo do dia, retornando para casa à noite. O tratamento inicia nas terças-feiras, quando é feita a triagem dos pacientes e escolhidos aqueles que ficarão no regime interno.4 Apenas nas sextasfeiras esses pacientes dormem no Centro, para serem submetidos à cirurgia espiritual. Todo atendimento feito no CAPC é gratuito e o Centro é mantido através de doações, mensalidade de sócios efetivos, subvenções e trabalho voluntário. Os tratamentos oferecidos no CAPC constituem-se de uma série de aplicações de terapias complementares, na realização de grupos terapêuticos e nas cirurgias espirituais.5 No CAPC e no NENL não se utiliza a expressão terapia alternativa, pois para os dirigentes e trabalhadores das duas casas e dentro da filosofia que elas propõem seus tratamentos não são alternativas, mas sim complementos ao tratamento médico.

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Portanto, nas duas casas, as terapias são denominadas complementares, holísticas e/ ou espirituais. A opção pelo termo complementar envolve um aspecto de segurança jurídica junto aos órgãos oficiais de saúde, pois ao colocar a medicina convencional como centro do tratamento evita-se investidas por parte dos poderes médicos oficiais contra espaços de cura espirituais, como é o caso do CAPC. O Centro também deixa explícito aos pacientes o caráter de complementaridade de suas práticas, incentivando-os a manterem seu tratamento alopático, e recentemente começou a distribuir um panfleto com a mensagem “Entre o tratamento médico tradicional e o espiritual, fique com os dois”, sendo que o termo “tradicional” aqui se refere à medicina alopática. No entanto, não é possível dizer que todos os pacientes atendidos no CAPC tomam o tratamento oferecido ali como complementar, alguns o utilizam como alternativa mesmo à medicina alopática, no entanto, não há qualquer incentivo do Centro nesta direção.6 Com base nos dados observados em prontuários e na minha convivência diária com pacientes do Centro, posso dizer que ali são atendidas pessoas de todas as idades, vindas não apenas da cidade de Florianópolis, como já foi dito, mas de outras cidades, estados e até do exterior, de ambos os sexos, embora a maioria dos pacientes seja formada por mulheres, de todas as camadas sociais, de pescadores e agricultores a médicos e professores universitários, e de todas as religiões, principalmente católicos e espíritas. Quanto aos que ali trabalham, há médicas(os), enfermeiras(os), nutricionista e os médiuns da casa (que também podem ser profissionais de saúde, mas não necessariamente), além de um corpo administrativo e o pessoal da limpeza e da cozinha.7 Os profissionais da limpeza, da cozinha e da enfermagem são remunerados, todos os demais são voluntários, inclusive os médicos, que tanto atuam dentro da sua profissão no CAPC, realizando análise de exames e atendimento médico aos pacientes, quanto nas funções espirituais e mediúnicas, sendo alguns deles médiuns operadores que realizam as cirurgias espirituais. No NENL, o espiritismo com orientação kardecista aparece de maneira mais forte, no entanto, não há impedimento para que pessoas de outras religiões trabalhem ali e, sobretudo, no CAPC, que é visto como espaço terapêutico e não de doutrinação. A parte doutrinária e de atendimentos como passes, palestras e desobsessões, característicos do universo espírita kardecista, está centralizado no NENL. No CAPC há pessoas que não se definem

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como espíritas, mas sim como católicos ou de outra religião espírita, como a umbanda, e até sem religião específica, definindo-se como “espiritualistas”. No entanto, podese dizer que todos compartilham de uma perspectiva cristã baseada na fé e na caridade e em conceitos como evolução espiritual, energia, reforma íntima e mediunidade, próprios do espiritismo kardecista. Além disso, mesmo os que não se reconhecem como espíritas participam das atividades doutrinárias que ocorrem no NENL como a escola de médiuns, por exemplo, embora algumas concepções do universo espírita não sejam completamente aceitas. Ao questionar uma voluntária, que se definiu como católica, como era para ela participar da escola de médiuns, disse que: É muito bom, a gente aprende muita coisa interessante, mas tem coisas que não entram na minha cabeça, essa coisa de reencarnação por exemplo, acho tudo lindo, mas quando entra nessa parte de reencarnação, não vai, não consigo aceitar muito bem essa ideia.

O espaço para concepções espirituais e religiosas distintas presentes no CAPC, embora esteja sempre presente a base comum cristã, é um dos elementos aglutinadores dos voluntários que trabalham ali e que podem fazer uma atividade de doação e caridade sem abandonar sua religião de origem. Para a maioria dos voluntários, ser um colaborador do CAPC é uma forma de expressar sua gratidão e de confirmar ou dar continuidade a um processo de transformação iniciado em suas vidas a partir do evento do adoecimento, já que praticamente todos os voluntários são ex-pacientes do Centro. No entanto, a vontade de ajudar outros após ter sido ajudado não implica para muitos a adesão ao espiritismo, mas sim a adesão a uma ética espírita pautada na ideia de amor a si e ao próximo através da caridade. Quando perguntei a uma médica, que conheci ainda nas minhas primeiras visitas ao CAPC, se ela era espírita, a resposta foi “mais ou menos”. Antes de eu vir fazer meu tratamento aqui, que eu tive câncer de mama e fiz tratamento aqui junto com a quimioterapia e a radio, eu era católica. Depois que acabou meu tratamento, eu não consegui mais ir à igreja católica, sabe?Então, eu fiz a formação aqui, e vim participar dos grupos vivenciais, depois acabei dirigindo um tempo um dos grupos sozinha quando irmã X me chamou para fazer parte da equipe médica. Então, me dizer espírita, eu ainda não digo, eu estou numa fase de transição, porque toda vida eu fui católica.

A formação à qual esta médica se referia consiste em participar da parte doutrinaria no NENL, assistindo a palestras realizadas aos sábados durante um ano, realizar um retiro espiritual e participar da escola de médiuns. Contudo, os que não

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podem ou não necessariamente desejam fazer todo este processo não estão impedidos de ser voluntários no Centro, mas neste caso suas tarefas estarão restritas a atividades que não envolvam os aspectos mediúnicos, tais como as cirurgias espirituais.8 O ambiente físico do CAPC é semelhante ao de um hospital e ele foi todo estruturado atendendo às normas e exigências da Organização Mundial de Saúde, do Ministério da Saúde e de qualquer órgão de inspeção médica ou de saúde pública (cf. www.nenossolar.com.br). O Centro também dispõe de uma pequena UTI para atendimento de urgência e de uma ambulância. Embora o elemento religioso esteja permeando os serviços de atenção à saúde desenvolvidos ali, uma forte conexão com os pressupostos médicos e científicos pode ser claramente observada na forma como o Centro está organizado, na sua disposição física (divisão em enfermaria com 36 leitos, sala de cirurgia, sala de espera e auditório), no modo de vestir dos terapeutas e médiuns da casa (roupa branca, jaleco, máscaras e touca), na hierarquização das funções (médiuns operadores, médiuns doadores, instrumentadores cirúrgicos, auxiliares técnicos, leitor(a) de prontuários etc.) e na forma como as cirurgias espirituais são realizadas (em macas, com uso de iodo, gazes, falsos bisturis,9 curativos, emissão de atestados e orientações pós-cirúrgicas). O aspecto religioso também faz parte da estética do Centro, que está repleto de imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora, São Francisco de Assis e Santa Clara, dispostas em vários quadros e estatuetas por todo o espaço do CAPC. No espaço privativo dos médiuns, além da imagética cristã, observamos também referências ao universo indígena latino-americano, pois há uma ligação com espíritos que são reconhecidos como povos das montanhas e povos andinos, representados principalmente pelos Incas, Maias e Charruas e que são tidos como os responsáveis pela segurança espiritual das duas casas. Assim, além da imagem do Cristo, vemos neste espaço, destinado aos médiuns, quadros de Machu Picchu, cocares, maracás, pedras e outros objetos trazidos do Peru. Isto também é revelador de como o CAPC trabalha numa perspectiva que não exclui, mas sim inclui elementos vindos de outras vertentes espiritualistas e que os aproxima das filosofias da Nova Era (Maluf, 2005) ao utilizarem conceitos como harmonização de chacras, cura quântica e outras tantas impossíveis de serem discutidas em detalhes aqui.

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Nádia Heusi Silveira (2000:4) em sua pesquisa aponta o CAPC como uma instituição que faz parte do sistema médico local de tratamento para o câncer em Florianópolis, porém afirma que o Centro não seria “parte do sistema oficial de saúde”, estando dentro do setor popular, considerando a classificação proposta por Arthur Kleinman (1980), que divide os sistemas de cuidados da saúde em três setores: professional, folk e popular. Esther Langdon (1994) traduz esses três termos como profissional, popular e familiar, respectivamente. O sistema de saúde dito profissional seria aquele onde as profissões de cura estariam organizadas e burocratizadas, sua aprendizagem se dá de maneira formal e através de uma tradição escrita, existem órgãos de autorregulação desses profissionais que também regulam outras atividades dentro do seu domínio (Langdon, 1994:14). A medicina alopática seria um exemplo deste tipo de sistema de saúde, porém outros sistemas, tais como a medicina chinesa, a homeopatia e a medicina ayurvédica, também podem ser considerados sistemas de saúde profissionais. Já o campo popular (folk) refere-se “aos especialistas de saúde que não formam grupos organizados e burocratizados, mas ao mesmo tempo são reconhecidos pelo grupo como desempenhando papéis de cura e caracterizados por um conhecimento especializado sobre algum aspecto de saúde” (idem:15). Para Langdon, o termo popular seria mais adequado que folk, pois este remeteria à ideia de um sistema de saúde baseado em tradições do passado, quando na realidade este setor seria extremamente dinâmico e heterogêneo e dele emergem continuamente novas especialidades de terapia e terapeutas/curadores. O xamã e as parteiras podem ser exemplos desse tipo de especialista do setor popular de atenção à saúde. Por fim, temos o setor familiar (popular na definição em inglês de Kleinman), que seria composto pela rede social que envolve o sujeito doente, tais como a família, a vizinhança e a comunidade onde ele se insere, cujos conhecimentos relacionados à saúde adquiridos socialmente são acionados nos primeiros momentos de identificação da doença. É dentro do setor familiar que as primeiras decisões e ações são tomadas com relação ao episódio da enfermidade e onde os tratamentos oferecidos nos outros setores são avaliados dentro do itinerário terapêutico. Este setor também seria responsável pela interconexão entre os demais setores, o profissional e o popular, construindo pontes de interação entre eles na busca pela cura.

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Dentro desta classificação, penso que o CAPC ocupa um lugar nitidamente distinto dentro do que podemos chamar de setor popular, pois ele está autorizado em certas práticas que nos levam a considerá-lo como uma instituição senão oficial de saúde, mas legitimada de maneira mais ampla no seu exercício médicoterapêutico.10 O fato de o CAPC ser ou não parte do “sistema médico oficial” não seria a questão crucial para se pensar este espaço de cura, mas sim a análise de como se relacionam ali domínios simbólicos pertencentes ao sistema médico oficial, às terapias complementares e ao espiritismo de orientação kardecista na construção de uma terapêutica para as pessoas com câncer e doenças degenerativas. Neste Centro podemos encontrar tanto curadores que vêm do setor profissional (médicos, nutricionista e enfermeiros) quanto popular (os médiuns, por exemplo) e os terapeutas, que para fins analíticos chamarei de “alternativos” e que circulam nas fronteiras destes dois domínios, além dos familiares dos pacientes que participam do processo de cura, acompanhando o doente ao CAPC e recebendo ali palestras e orientações. Com relação a esta participação do setor familiar no itinerário terapêutico, é comum o relato de pacientes que vêm ao CAPC por indicação de um parente, vizinho ou colega de trabalho que recomendou a instituição para a pessoa doente por já ter se tratado ali ou por ter acompanhado outras pessoas. Também é muito frequente o relato de pessoas que sempre vinham acompanhar um parente ou amigo doente e depois passaram da condição de acompanhante à de paciente. Deste modo, é no setor familiar que se forma uma rede de conhecimento sobre as instituições NENL e CAPC que se expande para outras cidades e para fora do estado, considerando o grande número de migrantes que vivem em Florianópolis e cidades vizinhas. Assim, a experiência da doença vivenciada por uma pessoa que tomou contato com o CAPC expande-se e integra-se a uma rede social composta por pacientes da instituição que futuramente podem vir a ser seus colaboradores e divulgadores. O Centro passa a fazer parte do itinerário terapêutico dos sujeitos, que quase sempre respondem às orientações para retorno clínico à instituição e ajustam suas vidas para realizar os tratamentos que a casa oferece. Para participar do tratamento, faz-se necessário o afastamento do sujeito de suas atividades cotidianas. Esse afastamento em si já é uma mudança na rotina do paciente, o cotidiano é temporariamente suspenso, a experiência da doença é colocada em evidência e desenvolve-se durante a semana de tratamento uma série de processos reflexivos que vão conduzir a

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pessoa doente a elaborações sobre sua existência, sua enfermidade e, sobretudo, sobre sua atuação no processo de cura.

EXPERIÊNCIA DA DOENÇA, NARRATIVA E PERFORMANCE: A COMUNICAÇÃO E A EXPRESSÃO DOS ESTADOS DE AFLIÇÃO E SOFRIMENTO

A união de elementos simbólicos religiosos e médicos presentes no CAPC, a dramaticidade e o caráter comunicativo das práticas ali realizadas, pautadas no empoderamento e na reflexão do sujeito sobre os processos de saúde-doença (Maluf, 2005) e a legitimidade social da instituição tornam o conceito de performance pertinente para analisar este campo. Segundo Langdon (1996:2), o conceito de performance na antropologia “emergiu das preocupações com o papel do símbolo na vida humana e a construção de um conceito de cultura consequente desta visão simbólica”. O papel do símbolo na ação humana é primeiramente analisado dentro da antropologia através da observação dos rituais. No entanto, haveria uma diferença entre os estudos clássicos dos rituais e a abordagem desses mesmos eventos a partir da ideia de performance (2007:4): O que difere os estudos de performance dos estudos clássicos do rito não são os eventos a ser analisados, mas uma alteração no direcionamento do olhar. Enquanto as análises mais clássicas do rito resultaram principalmente em interpretações do conteúdo semântico dos símbolos, as de performance chamam atenção para o temporário, o emergente, a poética, a negociação de expectativas e a sensação de estranhamento do cotidiano.

Os processos de simbolização passam a ser vistos como processos criativos presentes na construção social da realidade, pois o que temos através dos símbolos não é um consenso homogêneo de ideias e percepções, mas um modo de criar e compartilhar sentido na ação, em um processo dinâmico, que, embora apresente repetições em sua estrutura, como é o caso dos rituais, está sempre em constante processo de construção e legitimação por parte dos sujeitos. Os participantes dos rituais estariam engajados com os símbolos numa interação criativa, não sendo simplesmente informados por eles. Assim, a coerência do ritual não está no compartilhamento de um sistema de símbolos ou “crenças” homogêneo, mas na ação, na performance que conecta os modos de compreensão e engajamento do sujeito com o mundo.

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Langdon, no entanto, chama a atenção para a diversidade do conceito de

performance enquanto paradigma analítico. Tal diversidade tem gerado questionamentos dentro da antropologia quanto ao seu valor conceitual, já que o termo é usado em um campo interdisciplinar com conotações variadas, dependendo de como cada pesquisador o emprega. De modo que não haveria um paradigma de performance, mas vários, o que tem levado alguns pesquisadores a considerar performance como um “conceito guarda-chuva”, onde caberia tudo. Langdon se opõe a esta crítica e apresenta alguns elementos que seriam característicos dos atos performáticos, embora reconheça que a “fronteira entre performance e outros gêneros de eventos não é sempre clara” (2007:4). Para ela, a performance envolve um evento que coloca a experiência em relevo, há um estranhamento do cotidiano. Este evento está situado num contexto particular, construído pelos participantes. Há papéis e maneiras de falar e agir na expressão da performance, que é antes de tudo um ato comunicativo, porém, há uma função poética na fala que distingue a performance de outros atos de comunicação, pois na performance o que se ressalta é o modo de expressar a mensagem e não seu conteúdo (1996:6). A experiência da performance é multissensorial e sinestésica. Os ritmos, as luzes, os cheiros e a música conduzem o participante a um engajamento corporal, sensorial e emocional com o evento da performance. Turner (2005:179), ao discutir a importância da experiência nos estudos de performance , nos lembra que as experiências são eventos formativos e transformativos que interrompem o comportamento rotinizado e repetitivo e iniciam-se com choques de dor ou prazer. Podemos pensar as doenças como estes momentos de quebra do normal, não exatamente todas as doenças (pequenas alterações no bem-estar físico, como resfriados, por exemplo, não suscitam grandes reflexões), mas aquelas que levam o sujeito a uma ruptura com seu cotidiano e ao desenrolar de novas relações com seu corpo e seu universo relacional. A experiência da doença, embora não seja a mesma para cada doente, costuma ter seu conteúdo compartilhado, e este compartilhamento é também uma das formas de organizar e dar sentido a este evento. As doenças crônicas ou degenerativas são experiências que normalmente despertam nos sujeitos momentos de reflexividade sobre sua condição no mundo. Esse processo reflexivo muitas vezes exige modos de expressão e comunicação desta experiência. As construções narrativas seriam uma dessas

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formas de expressão e organização do evento do adoecimento que também fazem parte das análises sobre performance. Ainda pensando a relação entre narrativa e performance, o conceito de therapeutic emplotment de Cheryl Mattingly (1994) me pareceu bem interessante ao propor que os encontros clínicos envolvem médicos e pacientes na criação e negociação de um enredo dentro de uma temporalidade clínica. Este enredo clínico daria sentido a ações terapêuticas particulares ao situá-las dentro de uma história terapêutica mais ampla. O interessante da proposta de Mattingly é que a narrativa a ser analisada ocorre em tempo real, não é o relato de algo que ocorreu ao paciente ou à terapeuta, e é recontado, narrado. A narrativa é criada na ação observada, o enredo é construído simultaneamente na relação entre médico e paciente situados no cenário do hospital. A autora analisa esta construção de sentido na narrativa quando pensamos que ela se dá entre atores que têm perspectivas individuais, desejos e intenções diferentes e que, ainda assim, constroem um enredo em conjunto durante a terapia. Mattingly observa ainda que na construção de enredo em situações terapêuticas estão também envolvidos processos de transformação do paciente, que é chamado a transformar-se em sujeito ativo do seu processo de recuperação, algo bem próximo do que é observado no CAPC. Assim, podemos observar que o evento do adoecimento, enquanto “uma experiência” e não “mera experiência” (Turner, 2005), necessita de espaço para seu compartilhamento e sua expressão, que pode se realizar através da narrativa como também de outros elementos como os encontros médicos ou os rituais de cura. Carol Laderman e Marina Roseman (1996) observam o caráter dramático dos encontros médicos e alertam para o aspecto teatral da relação médico-paciente, pensando estes momentos de interação como performances. Gustavo Pacheco (2004:25) também parte do pressuposto de que “todo ritual de cura – seja uma cirurgia em um moderno hospital, seja uma consulta com uma benzedeira, seja um exorcismo em uma igreja neopentecostal – envolve aspectos expressivos, dramáticos e estéticos” que os caracterizam enquanto performances de dimensão médicoterapêutica. Entre estes aspectos dramáticos e estéticos podemos pensar tanto o uso da música num ritual xamânico quanto os odores de um hospital ou até mesmo a fala de um médico sobre o status terminal de uma paciente (Biesele e Davis-Floyd, 1996). Esta dramaticidade acompanha a experiência do doente e a transforma. Ele-

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mentos como cores, sons, cheiros, atos, falas e movimentos fazem parte do cenário onde se desenvolve uma performance de cura e este cenário pode ser um quarto de hospital ou um terreiro de umbanda, os atores podem ser médicos ou xamãs, e a plateia pode ser tanto de seres visíveis como invisíveis, pois, como coloca Bruce Kapferer (1986:192), “performance sempre pressupõe uma audiência, e no ritual isso pode incluir tanto seres sobrenaturais como aqueles do universo mundano”(tradução minha).11 A partir da perspectiva colocada pelos autores citados acima, proponho pensar as cirurgias espirituais e as terapias complementares realizadas no CAPC enquanto performances, pois entendo que estas práticas possuem elementos de dramaticidade que colocam a experiência do paciente em relevo, suspendem seu cotidiano, constituindo-se em momentos onde o doente deve voltar-se para a sua experiência com a enfermidade e refletir sobre seu processo de cura; são até certo ponto experiências multissensoriais 12 cujo objetivo é uma “transformação fenomenológica no nível mais profundo do corpo” (Langdon, 2007:11), que rejeita qualquer separação entre o racional, o emocional e o corporal; estão situadas num contexto e são temporárias. Além disso, nas cirurgias e nas terapias do CAPC estão relacionados elementos estéticos tanto religioso-espirituais quanto médico-científicos que conferem a este espaço um caráter ambivalente e integrador de domínios simbólicos envolvidos na experiência da doença que seriam aparentemente antagônicos quando tomados nos contextos específicos da religião ou da medicina.

A CIRURGIA ESPIRITUAL ENQUANTO PERFORMANCE A seguir, descrevo a realização das cirurgias espirituais que ocorrem no CAPC para tornar mais claro o caráter performático desses eventos. A cirurgia espiritual é o ápice do tratamento realizado no CAPC pelos pacientes internos. O tratamento dura uma semana, de terça a sábado. Na terça-feira é feito um extenso processo de triagem que dura a tarde inteira. Nesse dia, os pacientes passam pela equipe espiritual, médica, de enfermagem e por uma nutricionista. Assistem ainda a um vídeo institucional produzido com ex-pacientes e voluntários do Centro, em que todo o processo das terapias e da cirurgia é mostrado e em que médicos, terapeutas e médiuns falam sobre as atuais “descobertas da ciência médica moderna”, que alia medicina e espiritualidade. Por fim, os pacientes ouvem uma palestra do dirigente

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geral das duas casas, em que ele apresenta a instituição e aborda temas como cura e fé. Já nesse dia, os pacientes recebem as primeiras terapias, que são o algodão energizado e a água fluidificada, para serem usados em casa durante 30 dias. A partir da quarta-feira, pela manhã, os pacientes iniciam uma série de atividades que incluem rodas de apresentação, palestras realizadas por médicos e outros profissionais da instituição (que abordam novamente as “novas descobertas científicas” sobre o poder da fé na cura das doenças), grupos vivenciais, terapias com música e mentalização, além de receberem as aplicações nos leitos das terapias complementares, tais como a cromoterapia, crioterapia, Reiki, massagem nos pés, salinização e outras. Todos estes momentos podem ser pensados enquanto performances, pois envolvem aspectos que colocam a experiência dos sujeitos em relevo, exploram os aspectos da narrativa, sobretudo nos grupos vivenciais e nas rodas de apresentação, envolvem estímulos sensoriais tais como a audição constante de músicas e mensagem de cunho espiritual e moral, o toque dos terapeutas, a aplicação das terapias que produzem estímulos quentes (geoterapia) ou frios (crioterapia) e a constante oração do Pai-Nosso que as acompanha. Até mesmo nos momentos de silêncio e mentalização os pacientes estão participando de uma performance, pois, como já analisado por Thomas Csordas (1996), as terapias imaginativas fazem parte da experiência de cura e, portanto, devem ser analisadas enquanto performances que organizam essa experiência e lhe conferem sentidos.13 No entanto, aqui irei privilegiar o evento da cirurgia espiritual, que é o momento mais aguardado por pacientes e voluntários, e onde culminam todos os tratamentos realizados ao longo da semana. Antes de iniciar a cirurgia, a equipe de voluntários se reúne em uma sala chamada Sala da Dualidade, local que, segundo um dos dirigentes do CAPC, seria a “UTI do médium”, o lugar em que ele ou ela vai para se preparar para os atendimentos. Nesta sala, os médiuns recebem passes e é realizada uma pequena abertura, na qual se pede que cada colaborador “possa abrir todo o seu ser para se tornar um instrumento de amor, de paz e quem sabe de cura, nas mãos da espiritualidade amiga”. Depois desta pequena abertura, todos os colaboradores vestidos de branco com aventais idênticos aos utilizados em centros cirúrgicos de hospitais, também na cor branca, se dirigem ao auditório do CAPC. Ali eles recebem as funções relativas às atividades preparatórias da cirurgia, que são aplicação de passes de câmara,14 lavagem dos pés com álcool e essên-

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cia de canela e aplicação de iodo,15 massagem do chacra cardíaco com óleo aromático e marcação com iodo do local onde será realizada a cirurgia. Durante este processo, o paciente permanece deitado. Após esta preparação, os colaboradores retornam ao auditório e é realizada uma fala do dirigente geral para os trabalhadores e, em seguida, é feita a abertura oficial com a leitura do evangelho, pedidos de auxílio para a segurança espiritual para a condução dos trabalhos e a leitura das funções de cada voluntário. Os colaboradores, então, sobem novamente aos quartos e retornam com os pacientes que irão ouvir uma fala do dirigente geral por cerca de 30 minutos e que novamente aborda os temas da fé e da cura, mas em um tom mais denso e espiritual do que o da palestra feita na terça-feira à tarde, que tem um tom mais descontraído. Terminada a sua fala, reza-se o Pai-Nosso e os pacientes retornam aos quartos conduzidos pelos colaboradores através da rampa de acesso ao “centro cirúrgico”, que é chamada de “Rampa da Esperança”. Há duas salas de cirurgia no CAPC que são chamadas de “sala operacional”. Em cada uma são acomodados dois pacientes simultaneamente. Normalmente, são formadas cinco equipes, cada uma conduzida por um médium operador.16 Os demais componentes da equipe são: instrumentador cirúrgico (passa ao médium operador o falso bisturi, gazes e algodão durante a cirurgia), médiuns doadores (são doadores de energia ao médium operador e estão sempre em três, em torno do paciente), fitoterapeuta, leitores dos prontuários, pré-operatório (pessoa que organiza a entrada e saída dos pacientes da sala de cirurgia), pós-operatório (pessoa que prepara o paciente para sair da maca), responsável pelo curativo (aplicação de esparadrapo sobre o falso corte) e duas pessoas responsáveis pela condução dos pacientes, uma dupla em cada sala de cirurgia (uma pessoa para conduzir o paciente em cadeira de rodas e outra que o guia até o quarto e acomoda o paciente na cama). A sala de cirurgia é semelhante à de um hospital, há duas macas, uma em cada canto da sala, e uma luz verde ou vermelha ilumina parcialmente a penumbra. Após o paciente ser acomodado na maca, inicia-se a cirurgia após a leitura de seu prontuário, que consiste em dizer o nome do paciente e onde será realizada a cirurgia. A pessoa que está na função de instrumentador coloca seu carrinho junto ao leito e passa para o médium operador o “bisturi”. O médium operador pressiona o falso bisturi sobre a marca de iodo que indica o local preciso da cirurgia, como se estivesse efetuando um corte, e com uma gaze ele “seca o sangue”. Depois coloca novas gazes embebidas em iodo

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sobre o que seria a abertura, espera alguns poucos segundos e diz “Desma-

terialização”, ao que o instrumentador vai retirando as gazes. Logo em seguida, o médium operador diz “Fitoterapia”, e outro médium imposta as mãos umedecidas com um líquido escuro17 sobre o “corte”, fazendo algumas vibrações sobre o local. Depois disso, o médium operador faz movimentos vibratórios com as mãos sobre o local da cirurgia (sem tocar o paciente), “tomando energia” de um outro médium que está a sua frente, do outro lado do leito. São cinco pessoas em torno do paciente, dispostos da seguinte maneira: médium operador sempre do lado direito do paciente, três médiuns doadores, um fica em frente ao médium operador, outro aos pés do paciente e outro à cabeça, e o médium que aplica a fitoterapia. É realizada a troca das posições, em sentido horário, a cada mudança de leito, exceto para o médium operador e o fitoterapeuta. Depois dessa “troca energética”, o instrumentador passa gaze branca para o médium operador e o “bisturi”, e este faz sobre a marca de iodo um movimento de costura, “fechando o corte”, e logo depois diz “Mão direita sobre o paciente”, e todos colocam a mão direita sobre o paciente (os cinco que estão junto da maca), estendem a mão esquerda com a palma para cima e reza-se o PaiNosso. Durante essa oração, o médium operador continua fazendo movimentos vibratórios sobre o local da cirurgia, agitando bastante as mãos. Por fim, o médium operador diz “em nome de Deus e Jesus esta irmã está operada, que Deus seja por ela agora e para sempre”. Saem imediatamente do leito e vão para o próximo, onde tudo se repete após a leitura do prontuário. Sobre o local da cirurgia é aplicado um esparadrapo e o paciente é então conduzido ao seu leito em cadeira de rodas. O tratamento termina efetivamente no sábado pela manhã, quando os pacientes são acordados pela Oração de São Francisco cantada pelos colaboradores e acompanhada por violão e gaita. A oração é cantada no corredor que liga os seis quartos do piso superior do prédio e, quando finalizada, o grupo segue para os quartos, agora ao som da música “É preciso saber viver”, de Roberto Carlos. Muitos pacientes ficam surpresos com a “Alvorada”, que é como foi batizado esse despertar com música e muitas palmas, mas acabam aderindo ao coro e cantando junto. Em seguida, são repassadas as orientações para os pacientes sobre os cuidados póscirúrgicos, que incluem não comer carne vermelha, não manter relações sexuais, não fazer esforço físico e não ingerir bebida alcoólica por 48 horas. Essas recomendações baseiam-se na ideia de que a cirurgia espiritual envolve a manipulação de

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energias que continuam atuando no corpo físico mesmo após o seu término e precisam de tempo para sua completa atuação. A carne vermelha, por ser de difícil digestão, pode atrapalhar esse processo, assim como o desgaste físico por atividades pesadas ou pelo sexo. A manhã se encerra após a aplicação de mais algumas terapias (passes, massagem nos pés e harmonização dos chacras) e a realização da roda final, em que cada paciente se apresenta novamente para o grupo e diz em poucas palavras que compromisso assumiu consigo mesmo naquela semana para alcançar a sua cura. Por fim, os pacientes descem a “Rampa da Esperança” e são recebidos no auditório por seus familiares e amigos, novamente ao som da música “É preciso saber viver”. Este é um momento de forte comoção para muitos pacientes e familiares que frequentemente choram neste reencontro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante a realização da cirurgia espiritual, o paciente permanece com um pano branco sobre os olhos. Isso me fez pensar no modo como a pessoa doente, que busca as terapias de cura do CAPC, participa da performance de cura voltada para ela. Antes da cirurgia, os pacientes são acomodados em grupos de quatro, em cadeiras colocadas ao lado da sala de cirurgia e, enquanto aguardam sua vez, podem observar todo o movimento realizado nos corredores do Centro, os pacientes já operados sendo conduzidos em cadeiras de rodas para seus quartos, e ouvir as leituras de prontuário na sala onde ocorrerá sua cirurgia. E durante a sua cirurgia, embora esteja com os olhos cobertos (mas não completamente vedados), o paciente experimenta uma série de sensações e interferências sobre seu corpo, tais como os toques e contato com objetos metálicos, o cheiro do iodo, e também ouve as pessoas durante a realização da cirurgia no leito vizinho. Seu contato com o evento da cirurgia não é centrado na visão, mas na percepção através de outros sentidos e acredito também que através de recursos imaginativos, pois ao longo do tratamento no Centro os pacientes recebem algumas informações sobre o que significa a cirurgia espiritual. Desta forma, muito daquilo que o doente vai perceber sobre este “procedimento cirúrgico” envolve elementos criativos e imaginativos que constituirão sua relação com este processo e que estarão presentes em sua organização narrativa sobre a experiência de cura. Além disso, praticamente todos os pacientes têm a oportunidade de passar por essa experiência mais de uma vez, pois todos aqueles atendidos no

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CAPC jamais obtêm uma alta definitiva do processo, ele sempre é convidado a retornar para tratamentos de “reforço”, mesmo que não apresente mais sintomas físicos da doença.18 Sob esta perspectiva, penso que o paciente, embora pareça ter um lugar passivo na cirurgia, é na verdade o principal agente deste processo, pois é aquele que confere sentido à performance. Penso que o procedimento performático das cirurgias espirituais é um dos momentos da ação do sujeito no seu processo de cura e, neste sentido, um dos pressupostos do paradigma da performance nos lembra que o foco da observação deve estar justamente na agência do sujeito e na sua relação com o ato performativo. Pacheco, fazendo referência a Csordas, lembra que: Considerando que a eficácia dos rituais de cura está diretamente relacionada ao modo como a pessoa que está sendo tratada participa e é envolvida no processo terapêutico, é possível então lançar um olhar mais atento sobre a fenomenologia do curar e ser curado: neste sentido, as abordagens performativas, voltadas para a experiência de cura, vêm opor-se à maioria dos relatos antropológicos tradicionais de rituais de cura, que prestavam mais atenção àquilo que é feito aos participantes do que àquilo que os rituais de fato significam para eles (Pacheco, 2004: 26).

Assim, o doente negocia os sentidos para a performance de cura, estabelecendo com ela as relações pertinentes a sua experiência com a doença. Deve-se ter em mente também o fato de que, no campo que aqui apresentamos, observamos a circulação de várias representações, práticas, ações e discursos envolvendo saúde, doença, corpo e religião, e pessoas de diferentes classes sociais, formações profissionais, filiações religiosas, estados de aflição e sofrimento, enfim, atores que transitam em diversas arenas socioculturais e que estão ali compartilhando o mesmo evento, mas de lugares diferentes e com percepções distintas. Este fato nos remete ao caráter polifônico do paradigma da performance e à questão da práxis que ela envolve, que no caso da saúde está centrada na ideia do empoderamento constante do sujeito sobre o processo de cura. Um dos pacientes que conheci no CAPC colocou que: Muita gente pergunta se eu estou curado e eu fiquei pensando esses dias o que é cura, o que significa estar curado para mim, então eu pensei assim que cura é um processo que tem início, meio, mas não tem fim, porque você tem que estar sempre vigiando, sempre atento pra não repetir aquelas coisas que você fazia antes na sua vida normal que te deixaram doente e que podem te deixar doente de novo, então cura pra mim é um processo que não tem fim.

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A cura para este paciente está na ação, e a participação em uma performance como as cirurgias espirituais é parte deste movimento de agência que organiza a experiência e lhe confere significados. Os significados não são os mesmos para todos, mas o que verdadeiramente importa para nossa análise é saber como esta experiência é acionada no enfrentamento da doença e na transformação (e formação) do seu significado para aquele que está sofrendo. Deste modo, devemos questionar como a pessoa doente percebe este empoderamento (Maluf, 2005) e como estão articuladas nesta agência as questões envolvendo intencionalidade, poder e projeto (Ortner, 2007), além de questionar quais as expectativas destes sujeitos com relação à cirurgia espiritual e às terapias complementares na sua experiência com a doença. No entanto, não devemos pensar essa agência em termos de um individualismo descolado dos contextos sociais. Neste sentido, concordo com Ortner (2007) quando diz que os agentes sociais devem ser encarados como estando sempre envolvidos na multiplicidade de relações sociais em que estão enredados e jamais podendo agir fora delas. De modo que a agência dos sujeitos aqui proposta não deve ser pensada enquanto uma ação isolada de um contexto. Como bem coloca Ortner, retomando o marco da teoria da prática, “nem os ‘indivíduos’ nem as ‘forças sociais’ têm ‘precedência’ (...) há uma relação dinâmica, forte e, às vezes, transformadora entre as práticas de pessoas reais e as estruturas da sociedade, da cultura e da história” (2007:50). Devemos pensar que os colaboradores da casa também são sujeitos que constroem cotidianamente os sentidos para as performances de cura que eles conduzem. A pluralidade de pessoas que forma o corpo do voluntariado do Centro faz dele um lugar de possibilidades variadas para a interpretação de suas práticas e a constante renovação delas. Embora todas as atividades passem pelo crivo da direção geral e sejam “orientadas pela espiritualidade”, como sempre frisado por todos, os trabalhadores que chegaram ali na maioria das vezes como pacientes também fazem seus acréscimos e suas contribuições, seja sugerindo ou modificando terapias e trazendo para o conjunto da instituição as particularidades da sua experiência no CAPC, que geralmente nasceu na outra ponta, enquanto paciente do Centro. Passar da condição de paciente à de colaborador exige novas elaborações sobre o que significa estar curado, receber uma cura, sobre os modos através dos quais se alcança esse objetivo, o reconhecimento de toda uma gama de concepções envolvendo conceitos espiri-

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tuais e religiosos que podem ser distintos daqueles da sua religião de origem, bem como o início de uma forte convivência em uma comunidade que é ao mesmo tempo terapêutica e religiosa. Apesar da preparação mais ou menos unificada que permite a uma pessoa tornar-se voluntária do CAPC e das normas que regem as

performances de cura, cada médium tem um modo particular de executar a performance. O que sempre me chamou a atenção é o modo como as mãos são utilizadas nesses eventos performativos. No caso das cirurgias espirituais, embora a dinâmica e a sequência da cirurgia sejam sempre as mesmas, percebe-se um estilo próprio em cada um, seja no modo como movimenta os braços e as mãos na hora da “transmissão de energia”, no “corte” ou como finaliza uma operação. Há uma atenção muito forte nas mãos que passam os “instrumentos cirúrgicos”, doam energia, recebem energia, vibram sobre o paciente, tocam seu corpo e estão desta forma todo o tempo em movimento. Para uma colaboradora que já exerceu a função de instrumentadora, “instrumentar é a dança das mãos, passa o bisturi e a mão vai, e volta, passa a gaze, retira a gaze e fica esse baile das mãos pra lá, pra cá, eu acho lindo!”. Essa “dança das mãos” faz parte de praticamente todas as terapias que trabalham com o passe, e os passistas iniciantes são treinados a aplicar o passe e fazer os movimentos vibratórios de forma correta, há uma fase de ensaio da performance, em que o médium aprende a coordenar essa dança através da forma como as mãos se movimentam, como devem estar os dedos, a velocidade correta de cada movimento. No entanto, como já foi dito, cada médium imprime um modo particular de realizar os movimentos, embora aparentemente eles sejam padronizados. Para uma colaboradora, “no começo tudo fica meio mecânico, mas depois a energia flui e quando estamos seguros do movimento sai tudo naturalmente, você não fica mais contando se fez três ou quatro captações de energia”. Desta forma, a elaboração da performance passa por uma etapa que podemos chamar de normativa, focada na técnica, segue para uma fase de prática onde cada colaborador imprime sua maneira particular de realizar o ato performático e está constantemente em elaboração interpretativa no cotidiano da instituição através da ação dos colaboradores e da sua relação com os eventos de adoecimento e cura, que podem ser tanto seus como dos pacientes que eles agora atendem.19 Por fim, devemos pensar também o caráter paradigmático que envolve a performance de cura no CAPC na sua manifestação estética altamente vinculada aos

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símbolos da medicina alopática. As representações retiradas dos espaços médicos e a presença de profissionais de saúde trabalhando no CAPC como voluntários conferem determinada legitimidade a este espaço de cura que na cidade de Florianópolis é considerado uma instituição de utilidade pública estadual desde o ano de sua fundação em 1998.20 Devemos pensar a questão emblemática envolvida na relação antiga (porém nem sempre harmoniosa) entre medicina e espiritualidade dentro do desenvolvimento do Espiritismo e suas práticas terapêuticas.21 A proposta não é delimitar o que é próprio da medicina ou o que é espiritual, mas observar como estes dois domínios simbólicos se coadunam e se relacionam na performance de cura, pois concordo com Pacheco (2004:153) quando diz que, ao estabelecermos taxonomias rígidas sobre os agentes terapêuticos, corremos o risco de obscurecer o diálogo e a circulação constante entre eles, reificando categorias cuja autonomia nem sempre é reconhecida por seus praticantes e clientes. Assim, vejo no CAPC a intenção de promover um fluxo na relação entre medicina e espiritualidade que, ao unirem-se nas suas performances de cura, conferem a elas o caráter totalizante de uma experiência que para os sujeitos não pode ser dividida em corpo e alma, mas está presente no todo da existência da pessoa na sua relação com o evento do adoecimento.

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SITES NA INTERNET: Núcleo Espírita Nosso Lar - www.nenossolar.com.br

NOTAS 1

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC), mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba/Universidade Federal de Campina Grande (PPGS/UFPB-UFCG), pesquisadora do NUR – Núcleo de Estudos de Modos de Subjetivação e Movimentos Contemporâneos da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: waureliano26@yahoo.com.br 2 Para falar daqueles que trabalham no CAPC usarei os termos colaborador, voluntário, médium e/ou terapeuta, pois são as categorias utilizadas pelos sujeitos do campo. 3 Por médium estou chamando as pessoas que, na doutrina Espírita, são capazes de estabelecer contato com os espíritos dos mortos. Segundo a codificação de Allan Kardec, há vários tipos de mediunidade (visual, auditiva, sensitiva), e todas as pessoas a possuem em algum nível. 4 Os demais pacientes são denominados de pacientes externos: pessoas com outros tipos de enfermidade, casos de câncer já controlado, crianças e pacientes muito debilitados, que passam pelas cirurgias espirituais realizadas nas tardes de quinta-feira. 5 Algumas das terapias complementares realizadas no CAPC são: salinização, iodoterapia, ionização, crioterapia, cromoterapia, Reiki, Florais de Bach, biogeoterapia, hidroterapia e massagens. Alguns pacientes são selecionados para determinadas terapias em grupo durante a semana de tratamento no CAPC e alguns são convidados, ao final do processo, a participar de grupos terapêuticos de longa duração que são realizados no NENL. 6 Estarei utilizando aqui, preferencialmente, o termo terapias complementares. No entanto, para fins analíticos, eventualmente poderei usar o termo terapias alternativas, considerando o escopo macrossocial onde se inserem essas formas de tratamento, denominadas em outras instâncias e por seus praticantes e clientes de alternativas. 7 Segundo a direção geral do CAPC e do NENL, há cerca de 650 voluntários cadastrados nas duas instituições. 8 A formação do voluntário do NENL e do CAPC envolve aspectos mais complexos que merecem uma abordagem mais profunda, impossível de ser realizada no escopo deste texto. Mas a ideia principal é que a pessoa que deseje ser voluntária nas duas casas não necessita ser convertida ao espiritismo, embora deva compreender os aspectos básicos da doutrina. 9 Estes “bisturis” têm ponta roliça e não produzem cortes. Sua utilização está relacionada a uma função simbólica e estética, pois, embora o bisturi não produza corte, ele é utilizado para simular o corte, e esta simulação aproxima a cirurgia espiritual de um ato cirúrgico convencional. Esse simbolismo é visto como forma de produzir um efeito placebo no paciente (este é um

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conceito êmico) a partir do momento que a representação da cirurgia espiritual se aproxima da representação de uma cirurgia convencional. Deste modo, a ênfase numa estética médica não é aleatória, mas é realizada como meio de organizar o evento da cirurgia em si e disponibilizálo para o paciente de uma forma mais próxima da sua compreensão. 10 Uma destas práticas, por exemplo, é a emissão de atestados de comparecimento aos tratamentos e às cirurgias espirituais para comprovar ausências no trabalho ou na escola, emitidos, inclusive, para os acompanhantes dos pacientes em tratamento. Os atestados são assinados por médicos que trabalham no Centro. 11 “Performance always intends an audience, and in ritual this might include supernatural as well as those from the mundane world.” 12 Algumas das terapias mais comuns envolvem a utilização de luzes cromáticas (cromoterapia), música (musicoterapia), aromas (aromoterapia) e outros elementos que despertam no doente a percepção sensorial com o objetivo de alterações físicas e psíquicas. 13 Durante as terapias de mentalização e meditação, os pacientes sentam-se em círculo e são conduzidos pelos terapeutas a visualizar e perceber seu corpo, elaborar sentimentos e sensações e entrar numa relação com o sagrado em busca de um estado de equilíbrio emocional favorável à cirurgia e aos tratamentos. 14 Esta modalidade de passe envolve conceitos de harmonização dos chacras e leva mais tempo que o passe convencional. 15 Este procedimento é considerado como uma espécie de limpeza dos miasmas de todo o corpo, já que nos pés estaria toda a representação dos sistemas fisiológicos do corpo. 16 Normalmente são alternados apenas os médiuns operadores, os demais membros da equipe permanecem em sua função até o final dos trabalhos. 17 Não foi possível até o momento saber qual a composição deste líquido, mas tudo indica que é um composto de ervas medicinais. 18 Dentro da retórica do CAPC, isso ocorre porque haveria a necessidade de cura dos pacientes para além da cura do corpo físico, que seria apenas um dos quatro corpos formadores da pessoa (além do corpo físico haveria o corpo emocional, o corpo mental e o corpo espiritual). O corpo físico seria o mais fácil de curar, mas por outro lado é nele que se manifestam mais facilmente as doenças dos outros corpos chamados de sutis. Desta forma, para que a doença não volte a se materializar novamente e que outras doenças não venham a surgir no futuro, os corpos sutis devem ser constantemente tratados e curados antes de refletirem seu desequilíbrio no corpo físico. 19 Pode-se dizer que praticamente toda semana há colaboradores da casa realizando tratamento no CAPC ou no NENL, seja como paciente interno ou externo. 20 Já o NENL existe há cerca de 30 anos, porém foi constituído como associação civil autônoma em 1986 e tem reconhecimento como utilidade pública municipal desde 1987, estadual desde 1990 e federal desde 2002. 21 Para uma análise da relação histórica entre medicina e espiritismo ver Emerson Giumbelli (1997).

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ALGUMAS REFLEXÕES ANTROPOLÓGICAS SOBRE UMA MATERNIDADE HOSPITALAR FRANCESA CLAUDIA FONSECA1

PRÓLOGO2 Convidada pelas organizadoras deste volume a publicar o seguinte relatório – resultado de uma assessoria técnica realizada numa maternidade francesa há quase 20 anos – senti a necessidade de incluir um pequeno prólogo. Cabe, em primeiro lugar, uma breve nota sobre o contexto. A ideologia do “parto sem dor” estava firmemente implantada na rede pública de hospitais desde a década de 70, sendo amplamente aceita pelos profissionais assim como certa parte da clientela. Eu mesma, residente da Paris de então, tinha me beneficiado dessa inovação. Meu marido e eu pudemos aproveitar, para o parto do segundo filho (1976), o tratamento humanizado que nos fora negado para o primeiro (1973). No início dos anos 90, ainda era a França do Estado-Providência: as mulheres ficavam uma média de cinco dias no hospital para um parto normal, e sete dias para uma cesariana. Que elas ou seus companheiros tivessem emprego ou não, tinham o direito aos mesmos serviços, tudo pago pelos cofres públicos. Porém, o país já apresentava sintomas de declínio econômico e, confrontado a uma onda crescente de imigrantes, pairava a ameaça de hostilidades xenofóbicas. Cabe, porém, um outro comentário, sobre o estilo desse relatório. Como ficará abundantemente claro no decorrer da leitura, esse texto não foi elaborado

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com o leitor acadêmico em vista. Meu objetivo foi comunicar por escrito ideias que eu tinha formulado ao longo da investigação para os próprios profissionais e funcionárias que eram foco do estudo. Nesse espírito, as referências teóricas foram mantidas ao mínimo. Mas mesmo as referências que trago soarão antiquadas ao leitor contemporâneo, pois, evidentemente, eu ainda não havia me beneficiado dos vinte anos de efervescência (e autocrítica) intelectual que vieram a seguir. (Se os termos “tradicional” e “moderno” já estavam sob ataque naquela época, hoje foram praticamente eliminados de nosso vocabulário analítico.) Pelos mesmos motivos, não incluí, tal como exigiria o rigor de um texto acadêmico, uma análise à luz dos outros estudos antropológicos realizados sobre a preparação ao parto dentro e fora da instituição hospital (desde o trabalho clássico de Tânia Salem, 1987, até os trabalhos dos colaboradores deste volume). Para desenvolver minhas reflexões, lancei mão de uma comparação (frequentemente contrastiva) com os dois textos mais conhecidos e referenciados por meus leitores imaginados (o pessoal do hospital): os relatórios de uma antropóloga norte-americana e de um doutorando em Psicologia que me precederam na pesquisa de campo sobre a maternidade Flaubert. Meu estudo foi reproduzido por Ethnos, um órgão de pesquisa ligado ao hospital. Na introdução desse fascículo, que inclui em anexo o relatório da antropóloga que me precedeu, os editores frisam que: “[Grande parte do interesse desse relatório] é de comparar dois olhares, dois tipos de abordagem, de compreensão e de análise...” Se, apesar das limitações, meu texto ainda tem algum valor, é como uma entre outras tentativas de uma determinada antropologia aplicada (para mais sobre isso, ver Fonseca, 2006) em determinado lugar. Para explicitar minha proposta epistemológica e convidar o leitor (de ontem e hoje) a participar desse diálogo sem pretensões, incorporo o epíteto do relatório neste prólogo: Quanto àqueles para quem se esforçar, começar e recomeçar, experimentar, enganar-se, retomar tudo de cima a baixo e ainda encontrar meios de hesitar a cada passo, àqueles para quem, em suma, trabalhar mantendo-se em reserva e inquietação equivale à demissão, pois bem, é evidente que não somos do mesmo planeta (Michel Foucault, História da Sexualidade, t.2: Uso dos prazeres, Graal, 1984, p. 12, traduzido do francês pela autora).

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I. A ETNOLOGIA “APLICADA” EM 1991 Frente a um número crescente de usuários estrangeiros pouco ou nada capazes de falar francês, a maternidade pública Gustave Flaubert, de Le Havre (França), elegeu implantar, sob a orientação do sociólogo Jean-Pierre Castelain, um programa experimental de formação de intérpretes mediadores. Decorrente desta experiência, o desejo de um estudo antropológico do serviço de maternidade se impunha, em 1988, para analisar problemas de comunicação – leia-se de incompreensão – que se colocavam entre o pessoal do hospital e as parturientes que frequentavam o serviço.3 Assim, fui contratada em 1990 para terminar a pesquisa etnográfica iniciada por minha predecessora no ano anterior. Nesse artigo, apoio-me na pesquisa de campo feita em visitas periódicas à maternidade durante cinco meses, em 1990 e em 1991. A que vem o estudo etnológico de uma maternidade na França? A pergunta foi inúmeras vezes formulada pelos “sujeitos de estudo”, fossem eles médicos, parteiras,4 faxineiras ou pacientes. A resposta mais compreensível (ou seja, que se tratava de estudar o caso a fim de “resolver certos problemas” ligados a “conflitos interculturais” decorrentes da grande porcentagem de estrangeiras que parem atualmente no serviço) foi posta em dúvida pelo relatório de minha antecessora, uma antropóloga norte-americana (Ebin, 1989). Seus escritos circulavam entre os profissionais da maternidade durante o período de minhas pesquisas, mostrando claramente que a análise etnológica vai além dos sujeitos “exóticos”, tocando igualmente os usos e costumes dos “civilizados”. Era a mim, “a antropóloga de plantão”, que os leitores desse relatório dirigiam suas perguntas, críticas e por vezes a expressão de suas decepções e indignações. Esta situação aguçou minha consciência dos problemas referentes às “pesquisas aplicadas”. O Ministério da Saúde, que financia este trabalho, gostaria de ver “resultados concretos”. O chefe de serviço confessa que, se ele e seus colegas abrem-se tão pacificamente às minhas perguntas e aos meus olhares é porque “também não somos desinteressados; gostaríamos de ter algo (subentendido: algo “útil”) em troca”. Se me estendo nestas reflexões preliminares é por julgá-las indispensáveis à leitura adequada deste texto. Primeiro para enfatizar e justificar o fato que não estou criticando, de alguma altura imaginária, as pessoas que gerenciam a maternidade

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Flaubert.5 Pelo contrário, tive de refrear minha admiração por este lugar que me parecia tão eficaz e infinitamente mais humano que as maternidades parisienses onde eu mesma dei à luz nos anos 70. Ainda que longe de idealizar seu lugar de trabalho (os membros da equipe seriam os primeiros a concordar), gostaria de sugerir que encontramos aqui elementos que poderiam ser aplicados alhures. Justamente por reforçar estes elementos que eu estimo como positivos, devese pôr em relevo as diferentes tendências que estão em jogo no contexto atual. Por ora, existe um vaivém, um equilíbrio delicado repleto de incidentes entre o saber oficial de um lado (“A Medicina”, “A Ciência”) e, de outro, o questionamento iconoclasta que busca particularizar cada caso, “humanizar” a medicina. Como decorrência deste questionamento, as pessoas da maternidade aceitaram várias vezes serem auscultadas por pesquisadores de diferentes domínios. Lendo os estudos de Corde (1988) e Ebin (1989), os pesquisadores que me precederam, senti um receio de que estes esforços “científicos” acabem por estancar os debates já existentes entre profissionais da maternidade em vez de alimentá-los. Para evitar que isso aconteça, o leitor deve se precaver contra os perigos da classificação fácil (sobre a “anomalia” dos pobres), ou da denúncia banal de incidentes pontuais (por exemplo, de racismo). Tirar conclusões categóricas dessas observações seria ceder à ilusão de que tudo foi examinado “cientificamente”, que um diagnóstico foi imutavelmente estabelecido. Com isto eu não poderia concordar. Não faz parte de minhas intenções ditar receitas, pretender poder (ou querer) resolver cada conflito ou fornecer verdades pré-digeridas. Tal política da parte do pesquisador seria não somente paternalista, mas igualmente incompatível com a filosofia contemporânea das ciências. É neste espírito de precaução que proponho acrescentar minha voz ao debate. Enquanto mais um “perito científico”? Sim, na medida em que nossas vozes dialogam (e se questionam) umas às outras. Espero assim reforçar o verdadeiro trabalho de investigação, o clima de autocrítica e de questionamento constante que já existe na maternidade Flaubert.

II. VOCÊ NÃO VAI A MONOD? OU A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE A maternidade Flaubert, situada numa aglomeração de aproximadamente trezentos mil habitantes, tem uma longa história.6 Mas o evento que lhe conferiu o caráter distintivo pelo qual é atualmente identificada é recente. Em 1987, ao térmi-

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no da construção de uma segunda maternidade no hospital Monod, a metade do pessoal partiu para as novas localidades na periferia; Flaubert, que, antes, era a maternidade pública da cidade (contrastando com as duas clínicas particulares), tornou-se uma das maternidades públicas. Durante meus primeiros dias de campo, uma mesma pergunta me foi levantada por médicos, parteiras e funcionários: “Você já foi a Monod?”. A pergunta encerrava um complexo de identidade sob dois aspectos. Primeiro, existiam insinuações sobre a diferente qualidade do pessoal nos dois estabelecimentos. O antigo médico-chefe, reputado entre suas pacientes e respeitado por seus colegas, assumiu o posto de responsável em Monod, levando consigo, supunha-se, os elementos mais dinâmicos da equipe. Graças ao dinamismo manifesto de boa parte da equipe de Flaubert, esta dúvida rapidamente se diluiu. Porém, uma outra suposição, mais fundada que a precedente, continua manchando a imagem de Flaubert: o status socioeconômico inferior de seus pacientes.7 Há hipóteses geralmente aceitas para explicar o porquê desse perfil distinto da clientela. A nova maternidade tem, em relação à antiga, alguns atrativos; quartos espaçosos, por exemplo, cada um equipado de um banheiro privativo. Consequentemente, efetua-se uma seleção “espontânea” da clientela: as pessoas que possuem um carro não veem qualquer inconveniente em percorrer quinze minutos de estrada para desfrutar das vantagens da nova localidade. Por outro lado, para a maternidade Flaubert, situada no centro da cidade, vêm principalmente os residentes do centro, os que não têm carro e que acham o transporte de ônibus “arriscado”. Os médicos e parteiras pretendem energicamente que, no tocante ao número de profissionais, a qualidade do equipamento etc., as duas maternidades são dotadas de recursos idênticos. A maternidade Flaubert goza, ainda, do privilégio de ter o serviço de neonatologia logo ao lado. No entanto, as pessoas afluentes optam regularmente por Monod. Vimos casos onde até mesmo pessoas de gravidez de alto risco preferiram parir em Monod. O motivo por essa preferência aparece em termos explícitos na resposta por escrito de uma cliente ao questionário aplicado por um dos médicos em 1988: “a maternidade é frequentada por certa classe de gente que retira seu atrativo”. Se já o aspecto antigo e meio dilapidado de Flaubert levanta dúvidas entre clientes das camadas abastadas, e a reputação dessa maternidade como gueto de pobres e estrangeiros afugenta essas clientes de vez.

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Os membros da equipe hospitalar têm opiniões diversas sobre “os atrativos” da clientela. Alguns deles lamentam abertamente a situação. Uma funcionária, por exemplo, quis me indicar só as mães “de bom nível”, que seriam “melhor qualificadas” (que a maioria das pacientes, ficou subentendido) para me ajudar na pesquisa. Mas, julgando pelas intermináveis discussões sobre os diferentes dilemas provocados por esta clientela “mista”, parece que um bom número dos membros da equipe aceita a situação como um desafio profissional. Usam o confronto de diferentes sistemas de valores para pôr em dúvida suas próprias certezas e para aprofundar suas reflexões sobre a acolhida de pacientes na maternidade. Enquanto a competência estritamente médica dos profissionais não é quase nunca questionada, testemunhei muitas vezes discussões entre colegas sobre incidentes que traziam conotações culturais ou étnicas. Por que optar por uma forma de cesariana ou outra? Por que expulsar tal pai da sala cirúrgica? Por que aceitar a aplicação da peridural num caso e recusá-la noutro? Aqui, não é preciso a presença de um etnólogo para despistar casos de racismo ou preconceito de classes. Graças a um ambiente de livre troca entre alguns médicos e parteiras, existe uma autovigilância constante.

III. O PESSOAL Acho que deveria ser possível começar no hospital como carregador de maca e terminar como médico-chefe. (Comentário de um funcionário interno.) Ela só fala dos médicos e das parteiras. Curioso. E, no entanto, trabalhamos em equipe. (Comentário de uma auxiliar de enfermagem sobre o relatório do primeiro estudo etnológico sobre a maternidade Flaubert.)

As hierarquias internas começam a se delinear assim que se tenta contar o número de trabalhadores na maternidade. “Sessenta e dois”, me diz a supervisora. “Mais de setenta”, me diz o médico, chefe de serviço. Em seguida, para explicar a diferença, acrescenta: “É que os médicos nunca são contados”. Eis, portanto, a primeira demarcação de cima para baixo na hierarquia: entre os médicos (única categoria, aliás, que inclui homens) e o resto. Todos os membros da equipe passam por uma avaliação periódica, recebendo “notas” que determinarão seu prêmio anual. Todavia, o modo como estas notas são atribuídas varia segundo a posição hierárquica do agente. A “supervisora” (che-

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fe administrativa, normalmente uma parteira) dá uma nota a todos os membros do serviço com exceção dos médicos. No que diz respeito às parteiras e enfermeiras, esta autoridade da supervisora é atenuada por uma segunda avaliação feita pelo médico chefe de serviço. As outras categorias (auxiliares de puericultura, auxiliares de enfermagem, faxineiras e pessoal administrativo) dependem exclusivamente da supervisora. Uma das parteiras ensinou-me, desde a primeira semana, os termos que marcam esta distinção hierárquica: “são funcionárias, ou seja, tudo o que não é médico ou parteira”. Se, através de cursos de formação contínua, existe em princípio certa possibilidade de mobilidade profissional, esta mobilidade é de fato muito limitada. Conheci faxineiras, por exemplo, que se tornaram auxiliares de enfermagem, auxiliares de enfermagem que se tornaram auxiliares de puericultura. No entanto, ainda que eu tenha escutado um ou dois casos de ascensão espetacular (de uma supervisora de serviço que começou sua carreira como faxineira), a barreira entre funcionárias e profissionais parece solidamente estabelecida. Do lado prático, vemos diferenças significativas de salário, de horário, de vigilância; mas as diferenças simbólicas não são menos importantes. Seria por acaso que, na escala cromática correspondente à hierarquia hospitalar, faxineiras e auxiliares de enfermagem ambas estejam de azul, distinguidas apenas por uma variação no tom?8 Mesmo que algumas pessoas consigam, pela confraternização, amenizar as fronteiras entre as diferentes categorias, a situação lembra, em muitos aspectos, um sistema de castas, cada grupo possuindo sua “cultura” (leia-se “consciência profissional”) e seu círculo social. Neste sentido a maternidade não escapa à lógica da sociedade global. A organização do espaço-tempo reforça a distância entre funcionárias e profissionais. Em cada um dos três setores principais existe uma sala de descanso. O serviço de parto fica no mesmo andar das “gravidezes de alto risco”. No primeiro, as parteiras se reúnem em sua “sala de plantão”; a vinte metros desta, as funcionárias têm seu espaço delimitado numa pequena cozinha. Neste “ofício” (cujo próprio nome (office) lembra grupos subalternos, domésticos etc.), os médicos e as parteiras só entram convidados. A porta fica normalmente fechada. Dizem que é por causa da supervisora (“ela acha mais limpo assim”), mas temos a impressão de que as “meninas” aceitam esta injunção de bom grado por ela lhes permitir certa liberdade. Enfim, este local, onde as funcionárias podem se distrair ou simplesmente sentar

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alguns minutos para conversar e tomar um café, é também um local de trabalho. Por trás das portas fechadas, fora do alcance dos superiores hierárquicos, pode-se, vez por outra, misturar lazer e trabalho. No segundo andar (o dos partos “normais”), onde só existe uma sala/cozinha para toda a equipe, funcionárias e profissionais mantêm as distinções estabelecendo horários separados. Um dia, enquanto eu tomava um café nessa copa com as funcionárias, fomos interrompidas pela chegada da equipe profissional (o pediatra e companhia); ignorando os afáveis protestos dos recém-chegados (“nós não mordemos”), as que ali estavam reunidas retiraram-se imediatamente.

1. OS PROFISSIONAIS Tanto entre os médicos como entre as parteiras o tema da consciência profissional recebe frequentes comentários. As atitudes demonstradas na rotina diária deixam transparecer que as pessoas se orgulham de trabalhar num hospital da saúde pública, que estão na profissão por vocação, não por dinheiro.9 Um ginecologista fala de sua profissão em termos de sacerdócio, de vocação religiosa. Outro, explicando que os obstetras estão se tornando cada vez mais raros por causa das longas horas e altos riscos, deixa entender que fez sua escolha por vocação. As parteiras se remetem à rigidez e duração de seus estudos: Lembro-me, na entrada do curso, a diretora deixou a metade das meninas aos prantos lhes dizendo que deveriam se livrar dos namorados e esquecer as férias, que se tratava de estudos, enfim, uma carreira que exige uma devoção total.

Nesse clima, as greves, como a desencadeada em 1989, apresentam um dilema, pois, apesar de seu apoio às reivindicações salariais, as parteiras, animadas pelo espírito de sua missão humanitária, acabam garantindo a permanência no plantão. Existe toda uma mística quanto à prática da profissão. Várias pessoas que tiveram a oportunidade de se dedicar a trabalhos administrativos insistiram em continuar com a parte clínica de seu trabalho. Os que se afastam da prática são malvistos; diz-se que “perdem a mão”. É claro que todos não partilham com o mesmo interesse dessa ética profissional, mas em geral reina um ambiente que encoraja a “consciência profissional”. O pessoal se orgulha de seu nível de competência, procurando manter-se informado quanto às últimas novidades de seu campo.

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Estas atitudes encontram contrapartida na gratidão das pacientes. “Ela não parou de agradecer ao médico durante toda a cesariana”, diz a enfermeira de certa mãe. Após um parto que eu presenciei, a mãe, além de reiterar por diversas vezes seu agradecimento, pediu permissão para abraçar a parteira que a tinha ajudado. Quando um jornalista vem registrar o primeiro nascimento do ano, é impensável deixar a parteira de fora da foto. Acontece também que as parteiras recebem pequenas regalias (uma caixa de chocolate, uma garrafa de champanhe etc.) de suas pacientes, presentes normalmente repartidos entre os colegas. Na sala de plantão do serviço de parto (uma sala com poltronas, televisão e canto de cozinha), a metade das conversas gira em torno das atividades profissionais. Sobre uma mesa dessa peça encontram-se vários documentos de pesquisa ligados à maternidade, documentos que são lidos e discutidos. Aqui é o único lugar que encontrei onde funcionárias se misturam aos profissionais da área durante seus momentos de descontração. A atividade na sala de parto exige o esforço coordenado de toda a equipe. Esta complementaridade evidente dos papéis se traduz por uma solidariedade orgânica entre os diferentes membros da equipe. As parteiras fazem jornadas de doze horas. A natureza esporádica de seu trabalho (pode-se ter, por exemplo, cinco partos das oito às dez horas e nenhum para o restante do dia) deixalhes momentos ociosos. É portanto imperativo que as parteiras tenham um espaço onde possam se alimentar e relaxar. As funcionárias, ainda que tenham, independentemente dos partos, responsabilidades rotineiras (de limpeza etc.), também se beneficiam do ambiente familiar criado na sala de plantão. Várias funcionárias deste setor trabalham na maternidade há anos. Nisso desenvolve-se certa intimidade entre as pessoas. Em compensação, nos outros dois serviços (próximos aos quartos das mães), o trabalho especializado reforça o isolamento de cada categoria funcional. Os auxiliares de puericultura, por exemplo, ficam no berçário cuidando dia e noite das necessidades dos recém-nascidos. Os auxiliares de enfermagem trabalham nos quartos – lavando, fazendo curativos e aconselhando as mães. As faxineiras se reúnem na cozinha onde organizam a distribuição das refeições. Quando fazem faxina em outros lugares do hospital, cuidam para não “atrapalhar” o pessoal médico. Os “profissionais” são menos numerosos e passam pouco tempo no hospital: a puericultora trabalha meio turno (pela manhã); o pediatra só fica durante o tempo das visitas. Pela

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manhã um pequeno comitê de profissionais (o pediatra, a puericultora, às vezes um ginecologista, talvez uma parteira uniformizada, e um ou dois internos) passa de quarto em quarto, e vão embora. Os detalhes mais monótonos da rotina diária (os gestos corporais que limpam e cuidam) ficam ao cargo das “funcionárias”.

2. AS FUNCIONÁRIAS As funcionárias desempenham um papel fundamental no bom funcionamento da maternidade. As auxiliares de enfermagem executam todo tipo de tarefas, desde deveres domésticos banais (dobrar gazes, guardar lençóis) a tarefas médicas importantes (retirar a placenta, prestar os primeiros cuidados ao recém-nascido). De forma semelhante, as auxiliares de puericultura são chamadas ora para atividades administrativas (preencher arquivos ou carteirinhas de saúde) ou domésticas (dobrar fraldas), ora devem limpar os bebês, aplicar-lhes testes, orientar uma mãe que tem dificuldade para amamentar etc. Para resumir suas responsabilidades, uma funcionária me declarou simplesmente: “fazemos de tudo, ora!”. Meus contatos com as funcionárias foram esparsos. Indubitavelmente, enquanto pesquisadora, fui assimilada ao time dos profissionais. As parteiras me convidavam a partilhar de sua refeição, a maioria me chamava por “tu” (tratamento mais raro e íntimo para um francês). Ao que tudo indicava, eu perturbava muito pouco suas rotinas. Em compensação, as “funcionárias”, enquanto diziam “tu” entre elas, sempre me trataram por “você” (“a senhora”), e cada vez que eu tentava introduzirme em suas conversações sentia-me como intrusa, inábil. Conscientes de sua posição subalterna na escala hierárquica, as funcionárias são aparentemente muito escrupulosas em relação às regras formais. Falando com estas mulheres, frequentemente escutei a frase “não temos o direito...” (de comer as refeições, de tomar café etc.). Surpreendidas (por mim) tomando café na copa, disseram: “Sim, roubamos alguns segundos”. Não é de se espantar que as funcionárias se irritem pelo que elas consideram atitudes inconvenientes ou folgadas das pacientes. Por exemplo, como certas mães podem se permitir desprezar a refeição (para elas gratuita) à qual as funcionárias só teriam direito pagando? Lembremos que as funcionárias são em média muito mais próximas do nível socioeconômico das pacientes. Várias mães com quem conversei eram filhas de funcionárias do hospital. Se por um lado isso as torna mais sensíveis a gostos e

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necessidades das pacientes, por outro elas se mostram por vezes menos tolerantes frente a certos comportamentos. As pacientes que exigem atenção especial – de fato, tudo que se afasta da rotina – só dificultam o trabalho das funcionárias. É portanto compreensível que estas sejam menos tolerantes que os médicos em relação aos desvios comportamentais. As funcionárias, em geral, não contam com o mesmo tipo de recompensa simbólica que recebem as profissionais. Uma parteira, por exemplo, me conta: Eu me lembro que uma noite, de madrugada, eu estava tão exausta que precisei fazer um grande esforço, mas realmente um esforço enorme, para ser agradável com um casal. Sabes, no dia seguinte eles me ofereceram um belo presente por minha gentileza.

Seria praticamente inconcebível ver o esforço de uma funcionária ser assim recompensado. A única vez que vi uma funcionária sendo agradecida por uma paciente, ela ficou visivelmente comovida. Uma mãe elogiava a maternidade quando uma “azul” entrou no quarto trazendo o almoço. “Estou elogiando vocês”, lhe disse a mãe: “Ah!”, retorquiu a funcionária, “Eu não. Não sou enfermeira.” As mães com quem eu falava tinham quase todas a mesma declaração sobre os médicos e parteiras: são maravilhosos e extremamente simpáticos. Quando tinham críticas, eram inevitavelmente dirigidas às “amarelas” ou às “azuis”. Voltemos ao questionário aplicado em 1988: as parteiras e a equipe médica recebem elogios regularmente; uma única vez a auxiliar de enfermagem, tendo ajudado no parto, foi incluída nos louvores. As críticas são raras, mas elas sempre se referem aos cuidados pós-parto: “Falta de cuidados diários... Um tratamento médico irregular, cuidados dia sim dia não (por falta de tempo)... No pós-parto algumas mulheres de azul são gentis, outras não”. Apesar de certa retórica relevante do trabalho de equipe, onde todas as categorias funcionais e profissionais juntariam esforços, este ideal só se realiza nas salas de parto. A segregação estando ligada, em parte, à especialidade das funções, ela é de certo modo inevitável. Mas ela é inutilmente reforçada por algumas práticas sociais. As parteiras se reúnem quinzenalmente para discutir assuntos de interesse profissional, mas as reuniões que incluem todos os membros da equipe hospitalar são raríssimas. A importância das atividades de lazer não deve ser subestimada; o coquetel de Ano-Novo (champanhe oferecido pelo chefe de serviço a todos os

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funcionários da maternidade) é um destes momentos que contribuem a uma maior integração dos diferentes setores. Mas estes são pouco frequentes. Noutros momentos as funcionárias são frequentemente “esquecidas” quando da planificação das atividades extrarrotineiras. Por exemplo, o estágio de integração das novas intérpretes-mediadoras na maternidade envolveu os serviços de todas as categorias profissionais. Médicos, parteiras, enfermeiras e puericultoras deram cursos ou orientaram trabalhos práticos. Nenhuma funcionária foi solicitada a colaborar no curso. Os “especialistas” (antropóloga, psicólogo, psiquiatra) que vêm estudar a maternidade dão a estas pouco espaço em suas análises. Parece que em geral “as funcionárias”, ou seja, as pessoas que mantêm o contato mais regular com as pacientes, são as que menos recebem reconhecimento e, assim, que recebem o menor estímulo para melhor desempenhar seu papel.

IV. OS CLIENTES: ENTRE O EXÓTICO E O SÓRDIDO Durante o inverno 1990-91, pude elaborar fichas sobre quarenta e oito pacientes, incluindo dezoito imigrantes ou casadas com imigrantes: cinco africanas, cinco norte-africanas, quatro estrangeiras de outras origens (espanhola, portuguesa, finlandesa e vietnamita) e quatro francesas casadas ou vivendo em concubinato com norte-africanos (dois) ou reunionitas (dois). O contato com a maioria francesa era relativamente fácil. Em geral, transcorria num clima mais descontraído do que as entrevistas com imigrantes.10 Eu só encontrava as estrangeiras em seus quartos, onde, frequentemente, nossas trocas se limitavam a perguntas e respostas ao estilo de um questionário. Mal acostumada a trabalhar no espaço de uma instituição formal e frustrada pelo ambiente pouco descontraído das entrevistas nos quartos, fiquei aliviada ao encontrar um local de encontro “espontâneo” das mães: duas cadeiras ao lado de um telefone público frente a uma porta de entrada. Embora este corredor repleto de correntes de ar seja pouco confortável, à tarde eu encontrava infalivelmente três ou quatro mulheres conversando. Nesse local, estabeleciam-se amizades entre pessoas que nunca haviam se visto antes. Algumas vinham fumar, já que nos quartos próximos aos bebês os cigarros eram proibidos. Mas havia também muitas que não fumavam e vinham francamente em busca de companhia. Só encontrei francesas nestes grupos.

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As mães francesas parecem se apropriar do espaço hospitalar de uma forma mais “inventiva” que as outras. Por exemplo, lembro-me de uma mulher grávida de quatro meses e meio que queria se fazer hospitalizar. Não tinha tido complicações, mas, por causa de uma briga conjugal queria simplesmente dormir noutro lugar que a sua casa. Várias destas mulheres nasceram elas mesmas na maternidade. Algumas voltavam para dar à luz pela terceira ou quarta vez, sendo pessoalmente conhecidas pelos membros mais antigos da equipe.11 Talvez por esta “familiaridade”, elas davam a impressão de estar relativamente à vontade nesse local.

1. AS PREMISSAS TEÓRICAS DESTA ANÁLISE Minha experiência de antropóloga especializada em grupos de baixa renda no Brasil me dotou de uma formação intelectual que acabou se mostrando pertinente para o estudo das francesas que vêm parir na maternidade. Como assim? As francesas não eram, em princípio, alvo das minhas atenções. Aparentemente, a relação entre elas e a equipe médica é transparente. Trata-se, na sua maioria, de normandes, mulheres brancas, oriundas da região (Normandia), e pobres. Nada muito exótico aí. As africanas, sim, são exóticas, dignas de curiosidade. As normandas são recebidas como pessoas sem mistério: como as “familiares” e, em certos casos, sórdidas. Mas é justamente a experiência de pesquisa em situações em que as desigualdades sociais são gritantes (Brasil contemporâneo) que me ajuda a “estranhar o óbvio” na maternidade Flaubert. As relações interclasses podem ser tão complicadas quanto as relações interétnicas, e com noções preconcebidas ainda mais preocupantes. Daí a relevância de minha experiência anterior. Minhas bases teóricas se referem à história social dos grupos populares na Europa. Até a metade do século, as ciências eram dominadas por uma visão evolucionista e etnocêntrica do comportamento humano. Apresentava-se a narrativa histórica como uma grande marcha do progresso, e os valores assim como o estilo de vida das classes privilegiadas estando na vanguarda desta evolução. As pessoas que não assumiam os ideais dos grupos dominantes, notadamente os pobres, eram classificadas em diferentes categorias de marginalidade. O moralismo subjacente a tais classificações pode ser escancarado (“os pobres são degenerados ou doentes”) ou pode ser mais sutil (“são ignorantes que devemos ajudar e instruir para que

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aprendam a viver como nós”). Serve da mesma forma para reforçar o sentimento de superioridade12 de quem desenvolve a ciência. O historiador Philippe Ariès (1981) foi um dos primeiros pesquisadores a propor um modelo alternativo à visão tradicional dos grupos populares. Tomando como ponto de partida a evolução da família na França e na Inglaterra, consegue “historicizar” a família moderna. Longe de pensar em termos de “mais sadio” ou “mais natural”, demonstra como os valores tais como a intimidade doméstica, a valorização do amor conjugal e o lugar central das crianças são produto de um contexto histórico preciso e que respondem às necessidades de uma classe específica. Em vez de retratar os “outros” em termos puramente negativos, Ariès dota os grupos subalternos de uma dinâmica própria. Ele fala de camadas ou classes populares em vez de “desfavorecidos”, e formula conceitos ligados a redes de solidariedade (de vizinhança e de parentesco) e de sociabilidade (de rua e dos lugares públicos) que, embora eventualmente incompatíveis com as novas sensibilidades burguesas, florescem no meio popular. Os historiadores que trabalham na linha de Michel Foucault (Foucault, 1984; Donzelot, 1977) trazem outra inspiração para nossas reflexões. O ponto forte dos pesquisadores dessa linha é a análise da evolução de serviços sociais modernos (da medicina e da psiquiatria aos sistemas de ensino e de assistência social). Fala dessa evolução em termos não de uma simples “modernização”, mas, sim, de um progressivo “disciplinamento” e “normalização” dos grupos populares. Considerando que as sensibilidades e os valores são produto das condições objetivas de vida, esses pesquisadores, tal como Ariès, projetam uma divergência entre as diferentes classes. Contudo, os grupos dominantes, por vários motivos, buscam exportar seus valores e suas sensibilidades para os grupos subalternos sem repartir com eles os privilégios de classe. A repressão brutal (polícia, prisão etc.) tendo se mostrado pouco eficaz, instaurou-se, através dos novos serviços pedagógicos e higiênicos, as “estratégias sedutoras” da moralização dos pobres. Estes pesquisadores têm em comum a convicção de que, para analisar adequadamente a “estranheza” dos outros, é necessário primeiramente questionar nossa própria “normalidade”. A vantagem destas teorias é que, em vez de reelaborar lugares comuns, nos ajudam a sair do quadro referencial usual e a debater nossos próprios valores.

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2. AS FRANCESAS Na maternidade Flaubert, a designação “francesa” possui conotações que ultrapassam o aspecto puramente formal ou étnico da palavra. A grande maioria das mulheres europeias que dá à luz na maternidade pertence aos grupos de baixa renda. Elas partilham de algumas características: sua experiência profissional se restringe aos empregos pouco qualificados: empacotadora, assistente de cabeleireiro, vendedora, faxineira... Seus maridos estão frequentemente desempregados ou em licença por invalidez. Os grandes empregadores de Le Havre são a Renault (da indústria automobilística), a indústria marítima e portuária e o hospital. Os que não conseguem um destes empregos devem se contentar com um emprego pouco estável (na alimentação, construção ou manutenção), ficar desempregados (alguns pesquisadores estimam que a taxa de desemprego no Havre beira em certas épocas os 30% da população ativa), ou ainda mudar para outra cidade de economia mais “dinâmica”. O nível de escolarização é relativamente baixo. Muitas mulheres não possuem diploma escolar algum; pouquíssimas têm estudo para além do primeiro grau. Elas completam sua formação através de cursos técnicos ou estágios oferecidos pela prefeitura. Em geral sem carro próprio, usam para vir à maternidade o de um parente ou vizinho, ou simplesmente pegam um táxi. Frequentemente sem telefone, são obrigadas a passar por redes de amigos e vizinhos para notificar aos parentes da chegada do recém-nascido. Quantas vezes ouvi comentários como este: “Meu irmão vai me trazer hoje o endereço de meu pai para a gente poder avisá-lo (que o nenê já nasceu)”, ou: “Minha mãe não sabe ainda, pois está num asilo no sul e não sei como contatá-la”. Seria arriscado, no entanto, tirar conclusões globalizantes quanto às consequências deste balanço socioeconômico sobre a vida familiar ou sobre a “estabilidade psicológica” das pacientes. Por exemplo, mais de um quarto das mulheres entrevistadas não estavam legalmente casadas com o pai do bebê. Para boa parte delas, tratava-se da segunda ou terceira união conjugal. Seria tentador analisar este tipo de comportamento em termos de “desorganização familiar” e atribuí-lo à pobreza das pessoas em questão. Basta contudo ler as estatísticas demográficas sobre a França contemporânea para perceber que estas taxas de casamento e divórcio aproximam-se da média nacional.

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Em mais de sessenta mulheres com quem tive contato, encontrei apenas duas ou três que eram ostensivamente perturbadas. Duas delas apresentavam sintomas de depressão ou de angústia aguda (que podemos encontrar em mulheres de todas as classes). Uma única mulher me pareceu reunir a desvantagem de fragilidade emocional a seu estado de “caso social”. Trata-se de G., uma minguada loira com um “p” disforme tatuado no braço: “É de ‘Pascal’, meu primeiro amiguinho”. Seus dois primeiros filhos, me diz, foram colocados pelas autoridades públicas em famílias substitutas; os quatro seguintes, que vivem com ela, são acompanhados por dois auxiliares familiares, uma educadora e um psicólogo (“Eu sou muito ajudada. Preciso disso.”). Com trinta anos, ela acaba de parir seu sétimo filho. Durante sua estadia na maternidade, ela toma “comprimidos para dormir”. Sempre com seu sorriso trêmulo, ela explica o motivo: É que meu velho veio me ver. Saio com ele há seis meses. É o nome dele que dei a meu bebê. Mas tem outro homem, um cara horrível que diz ser o pai do meu filhinho. Ele veio me visitar no mesmo dia que o meu velho, e os dois brigaram. É por isso que estou neste estado.

A grande maioria dos “casos sociais”, todavia, não sofrem de distúrbios psicológicos fora do comum. D., por exemplo, hospitalizada depois de um aborto espontâneo, tem todos os atributos de uma “desajustada”. Ao olhar para ela, fica logo evidente que não se enquadra no código estético da classe dominante. Normanda roliça, os cabelos lisos num rabo de cavalo, ela se veste mal, blusa vermelha sobre blusa rosa, roupas de verão em pleno inverno. Entre doze irmãos e irmãs, ela conta três mortos (“pequeninos”), um surdo-mudo (decorrente de uma meningite) e um “excepcional” (caiu na água com três anos de idade). Ela fala desembaraçadamente de sua infância, quando se aventurava nos lixos dos supermercados: Eu era a menor da turma. Me levantavam por cima do muro, e lá do outro lado estava cheio de coisas boas: alfaces em ótimo estado, coisas quase novas. E as frutas, tinha algumas que não estavam muito feias. Meus pais tiravam a parte podre e usavam o resto para fazer geleia.

Como ela encontrou seu companheiro (quinze anos mais velho, duas vezes divorciado)? “Eu fui buscar meus13 bônus. Ele estava lá e eu pedi fósforo.” Como seu marido está desempregado, D. ainda vive dos abonos familiares que recebe por seus três filhos. No entanto ela não se considera uma “protegida”. “Tenho horror dessa história de auxiliar a domicílio.14 Não tenho minha família, por acaso?”. Con-

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sidera que sua rede de amigos e parentes responde de modo adequado a suas necessidades. Durante sua estada na maternidade, suas crianças estão espalhadas entre uma irmã, sua mãe e uma ex-mulher de seu marido. Saindo do hospital, ela pretende ficar alguns dias com seus padrinhos: “Meu padrinho sabe me levantar o moral. Estou até vendo; ele vai me dizer: “Estás triste porque perdeste um filho? Vem comigo no quarto que eu te faço outro”. Ela se entende bem com o companheiro: “Quando ele começa a ficar triste, mando ele pegar seu fuzil e ir caçar.” De sua própria família ela diz: “Tenho bons parentes. Sempre fomos solidários.” Existe em D. um dinamismo e uma sensibilidade que desmentem classificações moralistas sobre os pobres. Ela é inegavelmente o produto de seu meio. Suas crianças não farão parte dos “quadros superiores”; ela não possui as sensibilidades “refinadas” dos grupos dominantes. Nossa hipótese é que ela participa plenamente de uma cultura popular regida por outras normas, por outras sensibilidades. Justamente por não ter sido bem socializada pela escola, ela não aprendeu a ter vergonha. Ela se sente competente em seu universo social. Noutras palavras: ela partilha com as pessoas de seu meio uma cultura que dá sentido à vida. Existe, nesta maternidade, um contingente importante de mulheres e de filhas de estivadores. Estas clientes, principalmente quando estão em duas no quarto, mostram-se frequentemente de uma alegria turbulenta para a rotina do serviço. “Nos disseram que deve-se deixar a porta fechada, mas nós gostamos de ver o que está acontecendo no corredor.” Possuem um discurso que faz do sexo, da bebida e do corpo assuntos de piadas, deixando perplexos alguns membros do pessoal. Uma mãe que fica de pé na porta espiando os passantes no corredor acosta jocosamente a enfermeira: “Nada para 69-70? Ainda não recebi nenhuma injeção!”. Por este comportamento dizem que ela é “histérica”. O pessoal da equipe médica tem, para com todas essas pessoas, uma atenção escrupulosa. Não há em hipótese alguma discriminação deliberada. No entanto, os julgamentos morais, por mais controlados que sejam, se fazem sentir por vias oblíquas: no tom da voz, nos olhares. Não seria nem possível nem desejável eliminar as opiniões pessoais. Entretanto, ao torná-las explícitas, podemos refletir sobre elas, para que os juízos não se formem impunemente através de preconceitos classistas ou racistas, para que as pessoas “diferentes” porém “normais” não sejam assimiladas à categoria de “desajustadas”.

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ALGUMAS REFLEXÕES ANTROPOLÓGICAS

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Para sublinhar os perigos da generalização fácil, assumirei agora o papel de advogada do diabo em relação ao que foi enunciado nos relatórios de dois outros “especialistas” que me precederam na investigação da maternidade Flaubert.

2.1 “O ISOLAMENTO” A antropóloga anterior, que havia realizado pesquisas etnográficas na África ocidental, considerava que, contrariamente às africanas, as francesas que vinham parir na Flaubert eram frequentemente “isoladas”. O psicólogo, se referindo às “pobres” (subentendido, em contraste às mais abastadas), sublinhava o fato de que suas famílias estavam “frequentemente ausentes”. É impressionante, como – a partir de um “outro lugar” – formulei hipóteses praticamente opostas. Conforme minhas observações, vastas redes de parentesco e de vizinhança são mobilizadas quando uma destas mulheres dá a luz. Um vizinho será convocado para levar a parturiente ao hospital, uma amiga cuidará de suas crianças, ainda outra pessoa será encarregada de levar provisões (frutas, mamadeira etc.) à mulher durante sua estada na maternidade. Basta passar uma tarde durante as horas de visita na maternidade para constatar o quanto os quartos transbordam de pessoas. Por que, aliás, seriam necessárias tantas restrições (vide a placa em cada quarto lembrando às mães que, excetuando irmãos e irmãs, as crianças abaixo de doze anos não têm direito de vir visitar), se estas mulheres estivessem tão isoladas? São justamente as francesas de renda modesta que se queixavam a mim das restrições aplicadas ao número de visitas. Vide as seguintes conversas que escutei no vestíbulo perto do telefone: Madame D.: As enfermeiras vieram tirar meus amigos dizendo que eram demais. Alguns deles fizeram mais de oitenta quilômetros para ver meu nenê. Tenho quase certeza que é por causa da minha companheira de quarto. Ela saiu e, alguns segundos depois, a ajudante de enfermaria veio me dizer que as visitas deviam se retirar. Madame T: Ah, eu a vi, tua companheira de quarto. Ela parecia uma verdadeira “Madame”. Madame C.: Eu fiquei furiosa. Vieram expulsar meus sobrinhos porque não têm doze anos! Madame L.: Minha sobrinha também veio me visitar, mas eu disse que era minha filha, então não me disseram nada. Madame C.: Tive azar, sabem que eu só tenho filhas em casa.

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2.2 “A PASSIVIDADE” Um segundo juízo que nos parece equivocado diz respeito à passividade das mulheres. Segundo o relatório da antropóloga anterior: ...uma grande parte das mulheres de Flaubert se submete à gravidez e ao parto assim como se submeteram a muitas outras coisas: sua vida não ofereceu muita escolha e parecem não poder explorar as possibilidades como o fazem as mulheres de Monod. Elas se satisfazem com o mínimo.

Encontramos a mesma noção no relatório do psicólogo: “Estas mulheres dão a impressão de que não podem ser atrizes de suas vidas, de seus desejos. Então elas sucumbem, aceitam as coisas dizendo que é assim. A Fatalidade”. E, sem poder saber quem influenciou quem, ouvi membros do pessoal falarem exatamente nos mesmos termos. Para julgar esta passividade, precisamos primeiro lembrar que estamos lidando com pessoas de classes subalternas acostumadas a “conhecer seu lugar” ante as autoridades institucionais. A mãe cuja criança passa pelo pediatra mantém certa reserva porque sua experiência anterior, assim como a situação do momento (frente ao médico homem, visivelmente de classe superior, bom falante), lhe lembra seu lugar inferior, sua ignorância em relação ao saber instituído. Muitas das perguntas feitas durante as consultas pediátricas parecem mais úteis para sublinhar esta desigualdade (“Você é casada? ... Seu marido a ajuda?”) do que para estabelecer uma troca de informações. Os estereótipos sobre os “pobres desajustados” permeiam as trocas, deixando as mulheres num fogo cruzado em que qualquer comportamento que desvia da “média” é tomado como sintoma de desajuste. Num jogo de double bind, tudo que as mães fazem é interpretado como muito ou muito pouco. Os presentes para o bebê são muito suntuosos ou são poucos; a mãe é indiferente ao filho ou excessivamente afetuosa; ela fica demais no quarto (com a televisão) ou insuficientemente (indiferente às eventuais necessidades do bebê); ela se queixa demais da dor do parto ou ela a minimiza por um tipo de bloqueio nervoso. Até mesmo os bebês são julgados hiper ou hipoativos pelos testes... A noção de passividade é particularmente danosa quando cria um obstáculo à comunicação entre as mães e os membros da equipe profissional. Por exemplo, lembro de uma cena em que o médico perguntava à mãe de certo nenê nascido com

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icterícia se suas outras crianças tinham tido problemas parecidos. A mãe respondeu com um simples “sim”, o que pareceu satisfazer a quem fez a pergunta. Ora, logo que chegou ao corredor, ela me confiou informações mais detalhadas: “Com a última foi bem pior. Ela ficou um mês na incubadora por causa disso”. Parece que durante a consulta ela não encontrou o momento oportuno para manifestar este lado mais “ativo” de sua maternidade. A chamada passividade das mães não é, aliás, sentida uniformemente por todos os membros do pessoal. Tenho a impressão de que, quanto mais alto o profissional está na hierarquia, mais intimida a cliente, e mais acumula “evidências” para rotular as pacientes de passivas. As auxiliares de enfermagem e as auxiliares de puericultura, testemunhas dos resmungos cotidianos da clientela, sem dúvida acumulam outras evidências e formam outras opiniões. Sentada ao lado do telefone, eu mesma ouvia copiosas críticas feitas por algumas mães à rotina da maternidade. Estas pessoas não sabem o que querem. Uma me diz que não devo me levantar. Depois a outra, na hora de limpar o penico, diz que eu devia ‘fazer um esforço’ [para levantar, ir ao banheiro]. Para me explicar como dar de mamar, uma [auxiliar] me diz que devo colocar o bebê dez minutos em cada seio. Depois, uma outra diz que devo esvaziar um seio completamente e deixar o outro para a próxima mamada. Finalmente, fiz o que bem entendia, eu é que decidi.

2.3 “A COMPANHEIRA ESTÁ SEM MORAL” O seguinte exemplo merece atenção não só por indicar certa falha na comunicação entre mães e médicos, mas também por ilustrar a importância de certo tipo de sociabilidade. Aos vinte e cinco anos, Madame R. (tatuada no braço, longos cabelos lisos) acabava de dar à luz a seu quarto filho. O parto tinha sido difícil e a criança, levemente afetada pela operação a fórceps, foi transferida para a neonatologia. Algumas horas após a transferência, entrei no quarto de Madame R. com a faxineira que lhe trazia seu almoço. Esta empregada, mulher de uns cinquenta anos com cara simpática, perguntou a Madame R. se tinha recebido notícias de seu bebê. Madame R. permaneceu muda, seu olhar glacial fixo na TV. Após alguns segundos, grandes lágrimas se puseram a correr sobre suas bochechas. Mas ela ainda não falava, não desviava seu olhar da televisão. A mulher de azul me disse: “Vamos, voltaremos

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mais tarde. É frequentemente assim logo após as primeiras notícias.” Consternada, busquei eu mesma ter notícias da criança e fui logo tranquilizada pelo pediatra: “O bebê vai bem. Eu bem que expliquei à mãe, mas ela não reagiu, parece que ela não entendeu nada.” Pensei então na descrição do psicólogo sobre as mães subproletárias “de olhar vago” que padecem de “desgaste afetivo” em relação a seus filhos. Voltei para ver Madame R., mas, encontrando seu quarto vazio, instalei-me no vestíbulo, ao lado do telefone, com três mães que acabavam de se conhecer e que falavam com intimidade entre elas. Pouco depois, chegou Madame R., que ficou de pé, imóvel, encostada contra a parede a alguns metros das mulheres que conversavam. Pouco a pouco, no espaço de dez minutos, ela deslizou pela parede até chegar a uma distância em que fosse impossível ignorá-la. Então uma das mulheres lhe perguntou: “Ah, não é você que pariu esta manhã? Não quer sentar?”. Assim Madame R. entrou na conversa. Logo brincaram com ela. Ela explicou detalhadamente às outras o problema de seu bebê, aproveitando para esclarecer a mim, que ela identificava com o pessoal do hospital. “Outra hora, lá, eu estava muito nervosa. Eu sei que não é grave, mas não posso fazer nada. É a primeira vez que um filho meu baixa na neonatologia e isso foi um golpe para mim.” Nesta mesma tarde, por volta das nove horas, passei nos quartos e vi estas mulheres se organizando. “A companheira tá sem moral porque seu bebê ainda não voltou. A gente disse para ela que passaremos para chamá-la. Vamos nos reunir embaixo para não ficarmos entediadas.” Não se deve imaginar que este tipo de amizade se instaura automaticamente entre todas as francesas. Quando comento a gentileza das mães na maternidade, a própria Madame R. me retruca: “Algumas não valem nada”. Outra se queixa da “madame” com quem deve partilhar o quarto. Ainda assim este episódio é sintomático de uma tendência que deve ser tomada em consideração para melhor se compreender a dinâmica do comportamento das clientes em Flaubert; uma tendência a certo tipo de sociabilidade. A espontaneidade com a qual algumas mulheres se relacionam, brincam e contam detalhes de sua existência responde a uma inclinação social bem diferente dos ideais de tranquilidade e de discrição da classe média. Não se trata de estabelecer “profundas” amizades. Não se trocam necessariamente endereços; às vezes não se sabe sequer o nome das camaradas. A troca não é por isso

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menos eficaz para garantir uma satisfação pessoal e certo equilíbrio emocional durante os cinco a sete dias de estada na maternidade.

2.4 UMA REDE INFORMAL DE INFORMAÇÕES A sociabilidade das mulheres serve também como rede de comunicação. Sentadas ou em pé, em grupo ao lado do telefone, elas se transmitem informações que completam, reforçam, e algumas vezes contradizem as informações fornecidas pelo hospital. Por exemplo, uma primípara que tinha escolhido não amamentar sua criança não tinha recebido comprimidos para evitar a produção de leite. Ela sequer sabia que isto existia. Dois dias após o parto, informada por outra mãe, ela pediu o medicamento, obtendo-o imediatamente. Outra mãe, igualmente primípara, recebeu peridural para anestesiar a região do baço. Sua experiência inspirou vários comentários. “Eu não sabia que era tão perigoso. Uma mulher aqui me falou. Se eles erram o lugar ou se tu mexes, arriscas ficar paralisada pelo resto da vida.” Uma senhora que acabava de ter seu terceiro filho acrescentou: “Taí, aprendi algo; eu nem sabia que existia esta anestesia. É a primeira vez que ouço falar”. Evidentemente, os círculos de comadres recebem olhares atravessados por parte de muitos membros da equipe médica. Segundo uma auxiliar, “Tudo que dizem é mentira!”. Mas é justamente nestas trocas informais que as mulheres têm oportunidade de se mostrar ativas, curiosas, participantes, e que acham uma brecha para enfrentar o saber médico.

V. O ENCLAUSURAMENTO PROGRESSIVO DO ESPAÇO COLETIVO: UMA HISTÓRIA DA MATERNIDADE

A história da maternidade reflete pressões progressivas contra as formas de sociabilidade comuns entre grupos populares. Quanto mais se volta no tempo, tanto mais se acentua o aspecto comunitário. As mulheres, suas mães que vêm visitar, e mesmo alguns empregados que estão em Flaubert há muito tempo, gostam de descrever a “época das grandes salas”: “Ficávamos em doze no quarto. Ríamos bastante. Tinham umas desavergonhadas que vinham do campo e, ah, aprendíamos coisas!”. A auxiliar de puericultura, que era apenas uma estagiária na época, recorda:

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“Éramos numerosos, mais do que hoje, e trabalhávamos todos juntos. (Ela enumera os diferentes agentes no setor, contabilizando oito ou dez.) Pegávamos todos os bebês ao mesmo tempo, numa espécie de carreta. Levávamos eles a uma grande sala onde podíamos conversar enquanto trocávamos fralda. Sabíamos qual já tinha sido trocado, pois o deitávamos com a cabeça noutra direção... Tudo era em comum, até a sala de trabalho, só tinha uma cortina separando uma mulher da outra.”

Mesmo após as modificações em Flaubert (a instalação de quartos individuais ou duplos), o novo esquema arquitetural, com suas divisórias incluindo grandes painéis de vidro semiopaco, guarda algo do antigo ambiente coletivo. É sem dúvida por causa desta permeabilidade do espaço individual que certas mulheres alegam preferir Flaubert a Monod, apesar da falta de conforto (banheiros e chuveiros coletivos, quartos exíguos etc.). Todo mundo, é verdade, se queixa da pequenez dos quartos. Mas a solução proposta nem sempre é a mesma. Por exemplo, duas mães (entre os estivadores) propuseram a ideia de simplesmente derrubar a parede entre dois quartos: “Seríamos quatro por quarto. Riríamos mais e seria mais arejado”. Na história recente, há uma fase controvertida do pavilhão Capricórnio, outra solução acionada para desafogar a maternidade, antes da construção de Monod. Quase todas as mulheres com quem falei tinham conhecido, enquanto paturiente ou amiga de parturiente, este “anexo”, situado no território do hospital psiquiátrico, para onde se transportava a metade das mães com seu bebê, três dias após o parto. Havia muitas objeções em relação ao lugar, primeiro por causa das angústias provocadas pela proximidade dos doentes mentais, depois pelo excesso de rigidez dos regulamentos (em relação a horários de visitas etc.). Ainda assim, muitas mulheres, tal como a seguinte, têm saudades daquele lugar: Era melhor. Tinha uma máquina para comprar bebidas, e uma grande sala comunitária onde se podia conversar e receber visitas. Tinha uma televisão colorida e poltronas; não eram cadeiras duras como agora. As crianças se divertiam. Tinha um lugar onde podíamos deixar os bebês se quiséssemos descer para fumar um cigarro, por exemplo. Além do mais, comíamos todas juntas. Era muito mais simpático.

O aspecto comunitário da rotina agradava evidentemente a um bom número de mães. Para poder comentar o rumo do futuro quanto ao estilo de maternidade, examinamos o projeto arquitetural do novo prédio que deve abrigar a maternidade Flaubert a partir de 1991. Em relação à atual organização do espaço, a proporção de quartos simples e duplos será invertida: Enquanto hoje as mulheres brigam para

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conseguir um quarto exclusivo, no ano que vem, as que quiserem companhia deverão concorrer pelos raros quartos com duas camas. Cada quarto estando equipado com um banheiro, não se verá mais as mães indo e voltando do banho. O cerceamento da sociabilidade tocará também as atividades ligadas à higiene do nenê. Por ora, as mães têm o hábito de se verem várias vezes por dia, quando, sob a supervisão de um auxiliar de puericultura, limpam e trocam seus recém-nascidos numa sala coletiva própria para isso. No novo prédio, projeta-se uma banheira de bebê em cada quarto “para que as mães incorporem cedo o hábito de fazerem elas mesmas a limpeza de sua criança como se estivessem em casa”. No lugar do vidro opaco, haverá muros maciços; não se poderá mais entrever uma sombra do outro lado do biombo. As portas, sem janela, se distribuirão lateralmente ao longo de corredores duas vezes mais longos que os da atual maternidade. Outra mudança contribuirá para o isolamento das mulheres no seu quarto: a sala da supervisora, atualmente afastada, será no início do corredor dos quartos. Se este ano a regra a respeito das portas fechadas é frequentemente esquecida pelas funcionárias que simpatizam mais com o espírito gregário das pacientes, nos novos locais será mais difícil “esquecer” da autoridade austera da supervisora. Cada um dos dois serviços que alojam pacientes será subdividido em duas alas separadas por um vestíbulo. Onde hoje a escada aberta dá impressão de certa continuidade de um andar para outro, se terá uma escada completamente escondida dos quartos pelo vestíbulo e ainda com portas metálicas. Em vez de um único, haverá três elevadores: um para as mães e suas visitas, um para os membros da equipe e, no lugar originalmente reservado para uma pequena sala pública, um terceiro para responder aos imperativos higiênicos do bloco cirúrgico. Para os “círculos de comadres” – os agrupamentos de sociabilidade quotidiana – não há nenhum espaço previsto. Perguntamo-nos, na nova maternidade, aonde irão as mulheres gregárias que, atualmente, ocupam as poltronas da antessala ao lado do telefone: fumarão seus cigarros na rua? À frente da porta de entrada? Na atual situação, a comunicação depende basicamente dos contatos corpo a corpo. Para chamar alguém da equipe, as mães costumam espiar, de sua porta, o vaivém de auxiliares no corredor. A distância física entre um ambiente e outro é pequena. Basta as funcionárias darem três passos e vencem a distância entre o berçário e a copa. Podem até mesmo se interpelar sem muita dificuldade de um andar

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para outro. Os botões de chamada e os interfones existem mas só intervêm numa pequena parte das trocas rotineiras. Nos novos lugares, a comunicação dependerá indubitavelmente muito mais desses intermediários tecnológicos. O aumento da superfície física da maternidade, do tamanho dos corredores, exigirá, por outro lado, um aumento correspondente no tempo consagrado a certas tarefas (a faxina, por exemplo). Não se prevê, contudo, o aumento do número de trabalhadores hospitalares. Finalmente, após a mudança, podemos imaginar que a maternidade Flaubert será convenientemente “modernizada”, não somente no aspecto higiênico mas também no estético. Quanto à cor das paredes, o estilo dos móveis, o material do piso, parecerão aos de qualquer outro hospital “moderno”. Esta mudança, que já encanta alguns membros da equipe (“Será exatamente como Monod”), suscita apreensão em outro: “Será o hospital em série, o hospital-usina, o horror”. Constatamos, portanto, que a evolução da organização do espaço/tempo da maternidade é testemunha do que Ariès chamaria “o aburguesamento das sensibilidades”. O espaço é progressivamente compartimentado, individualizado, permitindo cada vez mais intimidade às mulheres e às suas famílias. Quer-se afastar o barulho, a desordem, a promiscuidade. Ainda que esta evolução responda tanto aos imperativos das normas higiênicas quanto ao gosto de certas clientes, haverá, sem dúvida, muitas mulheres que, para não se “entediar”, serão obrigadas a vagar nos corredores em busca de um pequeno canto de sociabilidade.

VI. UM REDIMENSIONAMENTO DOS VALORES DA MEDICINA MODERNA Para ser médico ou parteira deve-se passar por longos anos de formação onde se aprende não somente a praticar atos médicos mas também a valorizar o sistema de crenças que sustenta tais atos. Quanto mais se estudou, maior a tendência a respeitar os preceitos e as descobertas da “ciência”. Os médicos, por exemplo, são os primeiros a citar estatísticas, a passar questionários, a se informar dos resultados das pesquisas... Os outros sistemas de saber, se não se mostram compatíveis com esta ciência, são relegados ao domínio das superstições, do folclore, ou talvez até mesmo das “crenças étnicas”. Ora, uma boa parte desta ciência se mostra não menos frágil e transitória do que as “crenças étnicas”. Frequentemente, uma inovação técnica de utilidade limi-

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tada é acolhida com um entusiasmo exagerado e aplicada em grande escala. Os membros da equipe seriam os primeiros a confessar que, na medicina, existem “novidades” que, embora apresentadas como o cúmulo da modernidade, resultado de um aperfeiçoamento científico, são na verdade modas que gozam de uma popularidade passageira. Os preceitos higiênicos e médicos clássicos são envolvidos por ritos (branco = limpeza, por exemplo) que terminam por ser indissociáveis do saber “objetivo”. Estas práticas possuem a dupla função de apaziguar as angústias e de criar uma identidade de grupo. Por exemplo, a enorme quantidade de exames que se fazem ao recém-nascido funciona, entre outras coisas, como uma espécie de talismã que garante aos pais e profissionais que tudo está sob controle. Ao mesmo tempo, todos os membros da equipe, dos auxiliares de enfermagem aos médicos, se envolvem numa rede de cumplicidade que reforça sua identidade de grupo. Nem todo mundo compreende a “verdadeira” função dos testes. Encontrei auxiliares de puericultura, por exemplo, que aplicavam regularmente o teste de Guitry sem ter ideia de sua utilidade. Mas, acreditando na importância de seu ato, cada pessoa está plenamente implicada com a ética médica. A gíria médica (“ciru” para cirurgia, “cesa” para cesariana, “primi” para primípara) também serve para identificar as pessoas in do grupo. Os diferentes ritos e modas são, contudo, de uma utilidade indiscutível. A profissão médica, por sua própria natureza, é circundada de uma forte dose de angústia. Ser responsável pela boa saúde, até mesmo pela vida, de mães e de crianças, manipular corpos (às vezes cadáveres), enfrentar quotidianamente angústias dos pacientes e de seus parentes – estes não são deveres banais. Os profissionais que os executam não são indiferentes, e os gestos rituais são indispensáveis para aliviar as angústias da profissão. As diversas crenças e práticas do momento servem portanto a este objetivo: dão segurança aos profissionais, a certeza de que estão fazendo todo o possível para o bom desempenho do ofício. Ao mesmo tempo em que reconhecemos a “lógica” dos ritos médicos, insistimos na necessidade de colocar essa lógica em perspectiva. É difícil evitar mesclar uma moralidade de classe às indicações e conselhos “puramente científicos”. As clientes da maternidade não passaram pela mesma formação dos membros da equipe. Elas possuem seu próprio estoque de técnicas e ritos para ter a sensação de com-preensão e controle do processo de parto. Sejam francesas ou estrangeiras, quando chegam à ma-

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ternidade, as mães se prontificam para submeter-se aos saberes “modernos”, mas seu próprio conjunto de crenças permanece como suporte moral da experiência.

1. TRADIÇÃO E MODERNIDADE Nas sociedades “tradicionais”,15 a fronteira entre os especialistas da saúde e seus clientes não é tão clara. Frequentemente, a mulher que ajuda o parto de outra é apenas uma vizinha ou uma parente das proximidades a quem a mãe retribuirá o serviço. Mesmo na França, até a geração anterior, um bom número de mulheres paria em casa. Os detalhes da gravidez eram, e ainda são, acompanhados por círculos de “comadres”. Para determinar o sexo do bebê, por exemplo, se “fará o pêndulo”, avaliar-se-á a forma do ventre, seus movimentos... No que diz respeito ao ensinamento destes saberes, o papel das avós é frequentemente invocado, seja entre as africanas ou entre as francesas. O saber não é privilégio de uma seleta minoria. Na sociedade “moderna”, o grupo de especialistas detém um saber que não está facilmente disponível aos outros. Entre o especialista e suas clientes estabelece-se uma relação hierárquica. Mesmo quando as clientes são europeias de camadas privilegiadas, pertencentes assim ao mesmo grupo cultural que os especialistas, a relação implica certa desigualdade. Quando se trata de clientes de grupos “desfavorecidos”, a desigualdade dos saberes vem reforçar outras diferenças de ordem social e econômica.

2. CONCEITOS DIFERENTES DE CRIANÇA Segundo a visão “moderna” (Ariès, 1981), a criança é um indivíduo singular, insubstituível, que começa a formação de seu caráter numa série de etapas e experiências quando ainda no ventre de sua mãe. A ecografia é o instrumento por excelência deste saber médico moderno. Um estudo estima que as mães faziam, em 1986, aproximadamente 2,1 “ecos” por gravidez, mas encontrei muitas mulheres, principalmente entre as mais jovens (que são mais facilmente seduzidas por novidades tecnológicas) que dizem ter feito sete ou oito. Durante as ecografias a parteira fala com o feto; ela lhe atribui sentimentos, traduzindo-os para a compreensão da mãe: “Pronto, aqui ele está dizendo “oi”, aqui ele está pensando com a mão no queixinho, aqui ele está dizendo que está de saco cheio, que chega!”. Podendo prever o sexo, atribui-se frequentemente um nome ao bebê desde o quarto ou

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quinto mês de gestação. Para certas mães, a primeira foto no álbum da criança será a da ecografia. Em outras palavras, pela ecografia traça-se a individualidade da criança que vai nascer. Antes mesmo do parto ela tem um caráter especial, acumula experiências que a tornarão singular, incomparável. A partir desse ideário, é difícil entender certos comportamentos das famílias imigrantes. O seguinte episódio, contado por um médico para mim (e, suspeito, em outras ocasiões, para muitos outros), ilustra bem essa dificuldade: Um casal senegalês sabia que ambos portavam uma doença genética hereditária que se manifestaria, segundo as probabilidades, em metade de suas crianças. O médico do centro de Proteção Maternal e Infantil (P. M. I.) que os acompanhava esperava que o casal procurasse limitar o número de suas crianças para cuidar bem de todos os nascidos. O casal deduzia, pelo contrário, que deveria ter mais crianças que o normal, pois só poderia contar com a sobrevivência das sadias.

Das africanas diz-se que não dão muita importância aos bebês antes do batismo (normalmente pelo sétimo dia). No hospital, elas podem até mostrar certa “indiferença” em relação, por exemplo, a um bebê retirado e transferido para a neonatologia. Uma mãe esperou três dias (assim como o marido) para subir e ver seu filho pela primeira vez. Uma outra, cujo filho prematuro ficou na neonatologia por três semanas, só veio visitá-lo quando a assistente social a buscou de carro, rejeitando ainda a sugestão do pediatra de levar a criança para casa para curtas visitas durante o dia. Considerando que a “psicologia infantil” é uma noção estranha a este meio, suas atitudes tornam-se compreensíveis. O laço mãe-criança, especialmente nos primeiros dias de vida do nenê, simplesmente não é uma questão prioritária. Se a criança está bem cuidada (na neonatologia, berçário etc.), para que se preocupar? Os profissionais dos centros de P. M. I. têm oportunidade de trabalhar mais seguidamente com mães africanas, acompanhando-as por meses ou anos consecutivos, inclusive com ocasionais visitas a domicílio. Vários destes profissionais sugeriram que a decisão de ter ou não um filho não depende da mulher. Os homens africanos se pronunciam quase todos contra as práticas anticoncepcionais, e, frequentemente, suas mulheres pedem ao serviço de saúde métodos “secretos” – aqueles que podem ser usados sem conhecimento do marido. Era o caso de uma jovem mulher que, trazida à França para ser a segunda esposa de seu marido, teve dois filhos em três anos. A intérprete-mediadora senegalesa comentou meu diálogo com esta mulher: “É que os maridos dizem: ‘Para que te fiz vir? Tu não tens empre-

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go. Tu vais te ocupar com o quê? Se só tens dois ou três bebês, vão rir de mim, dizer que levas uma vida fácil’”. É difícil generalizar sobre a subordinação da mulher à autoridade do marido. Não somente o jogo do poder doméstico varia muito de acordo com a etnia como a situação específica do imigrante provoca profundas modificações no comportamento tradicional. Diversas mulheres alegaram que, “nas suas aldeias” , existiam costumes prevenindo contra partos muito seguidos – costumes que não são respeitados pelos homens após sua chegada na França. Em muitos casos o homem já vive na França há tempo quando manda buscar sua mulher. Por conhecer menos a língua e os modos de vida do novo país, ela por vezes dependerá de seu marido até para os mínimos detalhes da vida cotidiana. Ela não sairá para fazer compras nem fará uma consulta médica sem estar acompanhada de seu marido ou de algum amigo ou parente por ele designado. A reconstituição de uma comunidade acontece aos poucos, de modo que hoje podemos encontrar em Le Havre bairros habitados por diversas famílias oriundas dum mesmo grupo consanguíneo. Uma vez que o local de residência depende do homem (ou de quem chegou primeiro), as redes de parentesco parecem se estabelecer mais pelo lado masculino. Esses fatores que, num primeiro momento, reforçam a autoridade masculina podem, eventualmente, perder sua força frente às influências exercidas pelo contexto francês. Se a mulher fica tempo suficiente na França, se ela tem possibilidades de ter aulas de francês, alfabetização, se ela consegue estabelecer relações sociais que auxiliem neste sentido, ela poderá talvez se apropriar de noções sobre a “liberação das mulheres”. No entanto, a imigração africana é recente e a maior parte das mulheres não parece ser influenciada por estas noções. Elas continuam tendo filhos mesmo quando expressam ressentimento quanto à repetição incessante de gravidezes. Entre as mulheres imigrantes, uma aparente indiferença para com seu recém-nascido pode se fundamentar numa angústia velada. Receia-se os efeitos desastrosos do mau-olhado, da inveja. Assim, prestar muita atenção ao bebê pode provocar consequências negativas para sua saúde. Por outro lado, a indiferença pode ser lida como preparação para perdas futuras. Sabemos que a concepção tradicional da criança é frequentemente ligada a uma taxa alta de mortalidade infantil. Nesse contexto, pode ser um consolo crer que, se uma criança desaparece, outra poderá preencher o vazio.

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No que diz respeito à mortalidade infantil, as normandas parecem estar apenas uma geração na frente das africanas: da mesma forma que estas já viram morrer muitos filhos de doença ou de complicações durante o parto, as normandas perderam, na sua infância, irmãos em condições semelhantes. Vejamos na testemunha normanda a seguir que a lembrança de perdas ainda está viva: Meu tio regou seu nenê logo depois do nascimento (“regar”, isto é sair para beber com os amigos para festejar a nova paternidade). O nenê não tinha nada, estava bem. E o dia seguinte, quando meu tio chegou no hospital, descobriu que a criança tinha morrido durante a noite. Pense bem! É por isso que nós, na nossa família, a gente só rega a criança depois que ele volta do hospital para casa.

A escolha de nome revela outro detalhe indicador do lugar da criança na rede social. Segundo seu sexo, a criança recebe o nome de seu pai, sua mãe, de um tio ou tia, ou dos avós. Aproveitando o número máximo legalmente permitido (quatro), as normandas misturam o nome de estrelas de cinema ao de parentes. Também não é incomum encontrar nomes “em série”. Assim, o mais velho de irmãos será Michel (o nome do pai) Demitri, o segundo será Demitri Sebastião, o terceiro, Sebastião Luciano e assim adiante. As crianças constroem sua identidade social enquanto parte de um todo (a família). Os nomes fornecem a prova. Ao consultar a bibliografia francesa sobre os cuidados tradicionais da mãe e do nenê, encontramos muitas práticas e atitudes semelhantes àquelas que observamos em 1991 na Maternidade entre as mulheres imigrantes e as francesas de baixa renda. Parece que, “antigamente”, enfatizava-se mais os saberes femininos; antes do batismo, o nenê era considerado em margem da vida (nem mesmo era amamentado); a atribuição de um nome indicava antes de tudo um lugar na linhagem (F. Loux 1990). Todavia, a menos que se subscreva à visão evolucionista criticada acima, este tipo de prática não deveria ser usado para pintar as pessoas da época atual como “atrasadas”. Pelo contrário, deve reforçar a hipótese de que essas atitudes que escapam à lógica médico-higienista permanecem arraigadas em experiências concretas de existência.

3. OS RITOS QUE CIRCUNDAM O PARTO Nos ritos que circundam o parto, encontra-se, de novo, um confronto entre as visões “tradicional” e “moderna”. Há anos que as equipes médicas francesas encorajam a participação do pai. Na Maternidade Flaubert, ritualiza-se essa participação

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deixando ao homem certas tarefas: cortar o cordão umbilical, dar o primeiro banho no recém-nascido etc. Quando assim deseja, uma mulher pode acompanhar o nascimento de seu nenê através de um espelho dependurado em cima dela. Logo depois do parto, coloca-se o nenê na barriga da mãe durante alguns momentos. Depois disso, as atenções se deslocam da mãe para o nenê, que se torna o centro de atenções. A parteira e a auxiliar de enfermagem limpam, pesam e vestem o nenê enquanto a mãe espera as contrações necessárias para a expulsão da placenta. Frequentemente, e especialmente quando o pediatra está presente, fala-se pela criança : “como sou bonito!” etc. É normal que os especialistas do parto inventem ritos para acompanhar seu ofício. Porém, esses ritos não são universalmente eficazes. Têm uma significação para aqueles que os criaram; reforçam um sistema de valores ligado à família moderna: intimidade, igualdade entre os esposos, a importância central do vínculo mãe/ filho, e a imagem da criança enquanto indivíduo frágil em formação. Um “lindo parto” seria a condensação em um só retrato desses valores. Se, há vinte anos, as parteiras eram as primeiras a expulsar da sala de parto os maridos ansiosos “que só atrapalhavam”, hoje, pelo contrário, elas exercem uma pressão sutil para que os maridos participem do evento. Uma norte-africana me explica como ela respondeu à parteira que lhe perguntava se seu marido não ia presenciar o parto: Falei para ela: “Preciso trabalhar. Se meu marido estiver presente, não vou poder me concentrar”. Então, a parteira ficou com os olhos desse tamanho: “Ah é?”.

Como analisar as “resistências” que os estrangeiros opõem a essas pressões? Ou os homens que relutam contra à ideia de participar do parto, por exemplo? Há pesquisas antropológicas que colocam em perspectiva o ideal do “casal igualitário” (segundo o qual a maioria de atividades, do trabalho doméstico até o lazer, são compartilhadas pelos dois cônjuges). Elizabeth Bott (1976), por exemplo, na sua pesquisa sobre famílias inglesas, mostra como a segregação de papéis sexuais é típica de um contexto operário tradicional caracterizado por “redes densas”, isto é, pelo interconhecimento de amigos e vizinhos. Marido e mulher acham normal e desejável passar boa parte de seu tempo com amigos do mesmo sexo, à exclusão do esposo(a). Atitudes são inseparáveis dos modos de organização social. O princípio de igualdade entre os sexos, que, em um contexto, pode promover a compreensão

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mútua e a harmonia do casal, pode, em outro contexto, contribuir para neurose individual e anomia social. Louis Dumont (1960), no seu estudo clássico da Índia, disseca a ideologia individualista que subjaz a noção ocidental de igualdade, incluindo a igualdade entre os sexos. Em contraste, ele propõe a ideia de uma cultura holista em que a diferença de papeis e de participação na família não é vista como ameaça. A ideia da justiça não depende da similitude, em que cada um teria um papel idêntico ao outro, mas do princípio hierárquico segundo o qual a complementaridade de papéis diferentes garante o bem-estar do conjunto. Conforme essa lógica, a presença paterna no parto não teria muito sentido, nem sua participação nos primeiros cuidados do nenê. A centralidade da criança nos ritos do parto moderno pode entrar em conflito com valores “tradicionais”. Durante os últimos minutos do trabalho de parto, a mãe está normalmente amparada por duas ou três pessoas: a parteira, uma auxiliar de enfermagem, e eventualmente uma enfermeira. Cinco minutos depois, a quase totalidade dessa equipe está agitando em torno do recém-nascido. Evidentemente, não estão longe da mãe, pois a toalete do nenê ocorre na mesma peça, a dois metros da parturiente, sempre ao alcance caso a mulher venha a precisar de algo. Porém, é inegável, que – durante um parto rotineiro – o nenê, tão logo quanto nasce, é o centro de atenções. Certas mulheres, oriundas de culturas menos “filiocêntricas”, podem ser chocadas por essa prioridade de atenções. Depois de tudo, para a saúde da mulher, a expulsão da placenta é tão crucial quanto o nascimento do nenê. Assim, certa algeriana se queixa do tratamento que ela recebeu na sala de parto e, apesar de lembranças precisas sobre cada intervenção sobre seu próprio corpo (as máquinas, as dores, um meio litro de transfusão sanguínea etc.), não lembra do peso de seu filho na hora do nascimento. Nem todo mundo crê que uma demonstração constante de afeição materna seja necessária para o bem-estar da criança. Enquanto o pediatra pressiona as mães a ficarem ao lado de seus recém-nascidos, um bom número de mulheres (francesas) expressa uma opinião contrária: “O problema dessa maternidade é que não tem nada para fazer. Quer dizer, nada além de cuidar do nenê”. Certamente, muitas mulheres não entendem bem por que deveriam falar com seus nenês durante suas primeiras semanas de vida. Por que traduzir a afeição necessariamente pela comunicação verbal? Enfim, existe a questão de amamentação. Outros estudos já demons-

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traram a importância do fator socioeconômico: quanto mais alta a mulher na hierarquia socioeconômica, mais a chance dela amamentar seu filho. Mais de cinquenta por cento das normandas entrevistadas tinham optado pela mamadeira. As razões são diversas. Em certos casos, é por causa de uma primeira experiência fracassada: “foi muito doloroso”, “não tinha bastante leite”. Às vezes a mulher alega ter feito sua escolha em função do marido: “ele acha vulgar”; “ele gosta de seios pequenos. Amamentei meu primeiro filho apenas duas semanas e já tive que aumentar meu sutiã!”. Poderíamos procurar explicações psicológicas para essas “recusas”. Mas, também, poderíamos sugerir que para esses pais os benefícios para a saúde do nenê não são evidentes; os princípios freudianos, tão caros à pediatria contemporânea, tampouco.

4. A MORALIZAÇÃO DA DOR A dor é um assunto que preocupa as mães. No círculo de comadres (perto do telefone), as francesas falam muito dela. Dizem que a dor é inimaginável, que nenhum curso podia prepará-las para enfrentar uma experiência tão penosa. Especialmente nos primeiros dias que seguem o parto, elas juram que nunca mais vão se submeter a tal experiência. Enquanto as francesas lidam com sua angústia remoendo no baú de lembranças, as estrangeiras tendem a se expressar durante o próprio parto. Neste caso, os gritos, choros e gemidos, antes de exacerbar a perturbação a mulher, parecem servir para descontraí-la. Parece existir uma ambivalência dos membros de equipe médica quanto à aplicação da anestesia. Uma das jovens mães alega que, apesar de, já durante a gravidez, ter expressado seu desejo de receber um “peridural”, o médico tinha afastado essa possibilidade. Uma outra mãe alega ter pedido e recebido o “peridural” de maneira totalmente rotineira. Uma parteira declara que ela não chama a anestesista facilmente: “Tentamos ver. Se é simplesmente para satisfazer o belo prazer da mãezinha, então não”. Enquanto uma outra, chocada pelo grande sofrimento de uma mãe que acabou de parir, teve dificuldade para dissimular sua raiva contra um médico que, em sua opinião, deveria ter chamando o anestesista. Enfim, existe uma imagem do “belo parto”, bem definido pelo estabelecimento médico... Dir-se-á que certas mulheres são “bem preparadas”; o termo diz respeito ostensivamente ao curso pré-natal organizado pela maternidade, mas as

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parteiras reconhecem que certas mulheres conseguem realizar o ideal sem nunca ter feito o curso: “Tenho uma mãe que chegou numa tal tranquilidade que eu tinha certeza de que [o parto] não era para logo, logo. E, porém, ela estava com dilatação de cinco dedos. Assumiu a postura do lótus, as mãos atrás da cabeça, os olhos fechados, enquanto escutava música clássica com seu headfone. Foi fabuloso”. Durante a preparação para o parto, transmite-se às mulheres a ideia de que, pela força de vontade canalizada por determinadas técnicas corporais, podem dominar seus corpos. Se o parto dá certo, considera-se que “a mulher trabalhou bem”, isto é, que seu relaxamento facilitou a dilatação e que ela pode se considerar responsável pela boa saúde de seu filho. As implicações dessa lógica se tornam aparentes quando se trata de um parto complicado. A mulher que entra em pânico, que sofre mais, é, em princípio, aquela que não foi “bem preparada”. Sem querer colocar em questão o bem que produz a preparação pré-natal em numerosos casos,16 cabe assinalar que a “moralização da dor” pode ter consequências discutíveis. As mães que encamparam todas as orientações da maternidade, que assistiram a todos os cursos e que, apesar de tudo, têm complicações, arriscam se sentir traídas. Especialmente quando se trata de estrangeiras que se abriram para as técnicas modernas em vez de seguir um caminho tradicional o risco é grande. Um parto doloroso, com fórceps, por exemplo, não é nunca fácil. As mães mais indignadas que conheci (lembro-me em particular de uma senegalesa e de uma norte-africana) eram também entre as “mais preparadas”, tendo assistido à série de palestras do curso pré-natal. Ficaram indignadas diante das técnicas modernas que não funcionaram para seus corpos e diante dos médicos, que pareciam responsabilizá-las pessoalmente pelo “fracasso”.

VII. A IMIGRAÇÃO OU A FRONTEIRA DA ANGÚSTIA Albert Nicollet (1987, 1992), que mapeou a chegada dos imigrantes a Le Havre durante as últimas décadas, demonstra claramente que, até meados dos anos 70, a grande maioria de africanos em Le Havre eram homens, operários empregados principalmente pela Renault. A partir de 1976, a composição dessa população mudou radicalmente: as mulheres e as crianças, que até esse momento existiam em proporções mínimas, tornaram a representar mais do que a metade do grupo. Segundo esse mesmo pesquisador, as mulheres da África Ocidental passaram a ter mais

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partos na maternidade de Le Havre do que as norte-africanas (tradicionalmente mais numerosas), e seus filhos passaram a constar, na escola, como o principal grupo de crianças imigrantes. Atualmente, as africanas destacam-se não somente porque fazem parte do grupo mais numeroso de imigrantes, mas também porque, chegadas há pouco tempo, são as mais “estrangeiras”. As norte-africanas, por seu lado, chegaram em geral há mais de uma geração. Há sempre exceções: uma jovem tunisiana, por exemplo, que acaba de desembarcar e que não fala uma palavra de francês. Mas a maioria mostra-se, se não plenamente aculturada, pelo menos bastante familiarizada com as práticas francesas para evitar os desentendimentos mais sérios. As mulheres da África negra, sendo vistas como as mais exóticas, têm provocado certa perplexidade entre os membros da equipe da maternidade. Logo depois do nenê nascer, as parteiras esperam que a mãe lhes forneça roupinhas e um nome. E, no entanto, as mães africanas chegam frequentemente sem roupa nem nome para o bebê. Em certos casos, seria visto como azar ou até sacrilégio pronunciar o nome da criança antes de passar pelos ritos necessários. Durante sua estadia à maternidade, as mães africanas pedem muitas vezes para seus parentes trazerem pratos de comida. Preparam chazinhos especiais que dão ao nenê, conferindo-lhe, conforme os costumes tradicionais, uma boa saúde – práticas que transgridem as normas do local. Também há desentendimentos no que diz respeito à amamentação: certas africanas recusam amamentar seu filhos durante os três primeiros dias, dizendo que seu leite ainda não está bom. Num primeiro momento, o pessoal do hospital se posicionou contra esse comportamento, pois acreditavam que um nenê alimentado, até temporariamente, com mamadeira, teria dificuldades em se acostumar ao seio. Diante desses comportamentos “desviantes”, as funcionárias da maternidade foram as primeiras a manifestar certa flexibilidade. As faxineiras esquentam os pratos de comida africana. As auxiliares de puericultura ousam contrariar a autoridade do pediatra ao fornecer mamadeiras aos nenês africanos durante os três primeiros dias: “Achamos que as mães sabem tão bem quanto nós o que estão fazendo”. As parteiras e os médicos, por seu lado, aprenderam a recorrer às intérpretes-mediadoras, escutando atentamente os seus conselhos. Assimilaram os detalhes pertinentes da cultura original das africanas tão bem que acabaram, eles mesmos, fornecendo análises antropológicas para explicar o comportamento das pacientes. Permanece

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uma só diferença que parece provocar angústias de ambos os lados: as atitudes no que diz respeito à cesariana. Não há dúvida de que a cesariana suscita angústias do lado dos agentes hospitalares tanto quanto do lado dos clientes. Os fantasmas sobre esse tema surgem em forma de dados contraditórios levantados no decorrer dos debates. Por exemplo: uma enfermeira ligada à maternidade alega que dez anos atrás a cesariana estava na moda: “Fazia-se muito mais do que hoje em dia, especialmente nas clínicas”. Uma parteira lança mão de estatísticas para dizer o contrário. Uma intérprete-mediadora jura que seus compatriotas, durante muito tempo, preferiram as clínicas particulares porque a maternidade pública tinha reputação de optar muito facilmente pela cesariana. Nicollet (1992), tendo feito um levantamento sistemático dos dados, diz claramente que as clínicas particulares nunca receberam mais do que uma ínfima porcentagem das imigrantes. A antropóloga antes de mim agiu, sem dúvida, como porta-voz de suas informantes ao insinuar que um médico podia praticar cesariana em africanas como meio de contraceptivo forçado. (Não é aconselhável uma mulher fazer mais de três ou quatro cesarianas.) Os médicos estão indignados por tal sugestão e insistem que a Maternidade Flaubert tem uma taxa de cesarianas mais baixa do que a maioria das outras maternidades. Um médico-pesquisador afirma que não há diferença “estatisticamente significativa” entre as taxas de cirurgia entre francesas e africanas (8,9% contra 10,6% em 1986), enquanto um outro membro da equipe deixa entender, pelo contrário, que as africanas têm mais frequentemente problemas, justamente, porque se trata de “bebês europeus” (isto é, bebês bem alimentados) em “ventres africanos”. Por que esse assunto mexe tanto com os sentimentos da equipe hospitalar? A grande maioria de médicos e parteiras são oriundos de meios sociais onde as famílias numerosas, normalmente associadas aos pobres, são bastante mal vistas. O desejo, entre africanas, de ter muitos filhos (digamos, oito para cima) entra em conflito com essa norma. Por outro lado, as africanas têm experiência do moralismo francês que vai muito além da maternidade. As funcionárias nem precisam expressar abertamente seus sentimentos. As parturientes, antes mesmo de chegarem à maternidade, já têm uma ideia sobre a censura que vai cair sobre a quantidade de nenês que produzem. Nesse jogo de fantasmas que mexe com os valores os mais arraigados dos dois lados, clientes e funcionários projetam mutuamente suas angústias.

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Os raros conflitos raciais ocorrem entre mães francesas e mães imigrantes. Durante minha pesquisa, uma francesa pediu para mudar de lugar depois de ser acusada por sua colega de quarto, uma norte-africana, de querer assassiná-la. Embora, manifestamente, se tratasse de uma personalidade desvairada, o incidente serviu para justificar, especialmente entre as pacientes, teorias separatistas. A mãe da francesa (acusada de desejo assassino) fornece um exemplo: “Viajei muito. Estive no país delas, e não tenho nada contra. Mas, seria melhor deixar as francesas com francesas”. É sem dúvida para evitar tais acontecimentos que a supervisora atual tende a alojar francesa com francesa, africana com africana e norte-africana com norteafricana. No entanto, essa prática, que por vezes coloca junto mulheres que não têm nada em comum (nem religião, nem língua) senão a cor da pele, não parece ser a solução ideal. Entre os membros da equipe médica, a manifestação de atitudes racistas é negligenciável. Muito pelo contrário. Certas francesas se queixam do racismo “às avessas”: “Expulsaram meus sobrinhos, mas lá, na frente, no quarto das damas africanas, estava cheinho de crianças. Fizeram uma bagunça durante a tarde toda e ninguém falou nada!”. Dir-se-ia, porém, que a equipe está constantemente se defendendo contra acusações de racismo. “Detesto o termo mãe francesa”, diz uma parteira. “Para mim, são todas mãezinhas iguais.” Que fazer, então, das decisões práticas a serem tomadas em função da origem da cliente? Por exemplo, fala-se em dois tipos de cesariana: uma que cicatriza mais rapidamente e que é mais comum na África, e outra que deixa uma cicatriz menor, mais facilmente escondida (“para os biquínis”). Um dos médicos estima que é mais prudente aplicar a primeira entre as africanas pois, para elas, a saúde reprodutiva (necessária para um bom número de gravidezes) contaria mais do que a estética. A parteira que trabalha com ele questiona esse tipo de discriminação. Ainda por cima, certas pesquisas alegam observar um ritmo de dilatação diferente (mais lenta e com longas pausas) entre certas etnias africanas. Uma falta de familiaridade com esse tipo de desenvolvimento explicaria por que os médicos franceses tenderiam a “entrar em pânico”, e recomendar a cesariana entre as africanas. Certamente, seria irrealista ignorar a especificidade de problemas que surgem conforme a origem da mãe. Mas todo esforço para estabelecer normas e práticas distintas é sujeito a sofrer o pejo de discriminação racial ou paternalismo.

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VIII. REFLEXÕES FINAIS Quando uma mãe algeriana gritou, durante seu sexto parto, “Vou morrer!”, a parteira a consolou: “Que é isso? Claro que não. Já pensou? Se perdêssemos todas as mães que dizem isto, estaríamos muito encrencadas!”. Uma parturiente norte-africana explicava à parteira que o leite de uma mulher grávida pode provocar a morte do filho que ainda mama no seio. A prova: muitos recém-nascidos morreram justamente quando suas mães engravidaram. A parteira discordou: “Essas mortes foram provocadas não pelo leite, mas sim pela desmame abrupto”. Vendo que a norte-africana não se deixava convencer pelo seu argumento, ela acabou o diálogo com um simples, “Pois bem”.

Seria absurdo pedir para as pessoas agirem como máquinas, que não se surpreendessem nunca com as crenças dos outros. Se o objetivo da interação é estabelecer uma troca, e não uma simples imposição de regras, não cabe virar as costas diante da manifestação de cada diferença. As profissionais citadas acima manifestaram sua diferença de opinião; mas, pelo humor, ou pela discrição, tentaram evitar a inferiorização do saber da outra. Seria igualmente ridículo querer que o pessoal técnico dominasse o sistema de crenças de cada grupo étnico que frequenta a maternidade. Depois das senegalesas e das norte-africanas, quais serão as próximas a desembarcarem em Le Havre? Dizse que tem 400 turcos chegando a qualquer momento. Depois do Wolof, deve o pessoal da maternidade meter-se a aprender a língua turca? No fundo, a prática médica é fundamentada num determinado sistema de crenças e os agentes hospitalares devem manter um mínimo de coerência. Todavia, pelo “diálogo”, poder-se-ia aproveitar esse contato com o “estrangeiro” para colocar em perspectiva o corpus de crenças em vigor e provocar a evolução do estabelecimento médico. Para garantir esse diálogo, é preciso evitar certas armadilhas. Antes de tudo, não se deve sucumbir às generalizações fáceis. As “conclusões” devem ser sempre vistas como hipóteses, constantemente desafiadas e frequentemente abandonadas. Assim, evitar-se-ia as palavras deselegantes de uma parteira que, diante dos gritos de uma parturiente (“vou morrer”), me diz: “As norte-africanas sempre dizem isso”. Ao formular hipóteses (não há outra maneira para avançar as discussões), é preciso ter sempre em mente sua fragilidade. Dessa maneira, quaisquer “conclusões” dessa ou outra pesquisa seriam constantemente modificadas para se adaptar à realidade.

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Ao mesmo tempo em que se evita generalizações, aprende-se a “jogar” com as diferentes leituras possíveis de comportamento. Por exemplo, o psicólogo considera que as mulheres vivem de forma “persecutória” seu tempo na maternidade, pois elas estão sempre com pressa para voltar para casa. Eu atribuiria essa pressa não à inadaptação das mães, mas, sim, à natureza particular da maternidade. Organizada quase que inteiramente conforme normas e sensibilidades dos grupos dominantes, não oferece um quadro ao gosto de todas as mães. O psicólogo observou que as mulheres ficavam muitas vezes conversando nos corredores e leu nesse comportamento uma “procura de segurança”. Concebo-o antes como forma de “sociabilidade” de grupos populares. Durante suas entrevistas, efetivadas nos quartos das mulheres, o psicólogo observava nenês chorando aos prantos, “abandonados” por suas mães. Ao permanecer nos círculos de comadres no corredor, tive outro ponto de vista. Vi como algumas mulheres se retiravam periodicamente da conversa para ir checar seu filho, enquanto outras perguntavam às novas, recém chegando no local: “Ah, não ouviu meu nenê? Deixei a porta aberta para melhor ouvir quando acordava”. Conforme o “lugar” da observação, afirma-se ou nega-se a hipótese da “indiferença materna”. Da mesma forma, entre a psicologia e a antropologia, há orientações teóricas diversas, arraigadas em “lugares” intelectuais distintos. Para apreciar análises conflitantes, é preciso contextualizar cada voz, levando em consideração os objetivos, premissas e epistemologias daquela forma de ciência. Não existe uma única “interpretação correta” da realidade. Se, nesse relatório, minha postura é bastante radical, é para apresentar alternativas às hipóteses já avançadas por outros especialistas, é para manter o debate aberto. É preciso saber jogar com todas as interpretações para ver, diante de situações precisas, qual faz sentido. As consequências práticas desse debate podem ser pensadas no quadro da planificação da nova maternidade. Como vai ser a repartição do espaço? o tamanho dos quartos? a dimensão do espaço coletivo? conforme o gosto de quem? pensa-se sempre no cliente “ideal”? Ouvi de certas mães que, por causa de uma política de contenção de despesas, a maternidade fornecia cada dia menos material: as mães já deviam trazer todas as roupas de seu nenê e ameaçava-se pedir para providenciarem as fraldas também. Em compensação, os que planejam o novo prédio privilegiam os equipamentos do parto moderno, que exige despesas bem maiores do que para

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fraldas: uma piscina para fazer ginástica durante a gravidez, um sistema estéreo para fornecer um ambiente aconchegante durante o parto, a produção de vídeos para instruir as mulheres durante o período pós-parto. Como determinar as prioridades? O problema não é simples. Definir o novo espaço à imagem que nós fazemos dos gostos dos “desfavorecidos” corre exatamente o mesmo risco (de paternalismo e de juiz de valor classista) que correm as práticas discriminadoras no que diz respeito à raça. Ainda por cima, seria mal-avisado tomar o baixo nível econômico da clientela como um fait accompli: é preciso evitar os guetos e encorajar a mistura de classes e de grupos étnicos. “Nivelar por baixo” não é necessariamente a técnica mais indicada para encorajar essa “mistura”. Reiteramos o veredicto expresso no início desse relatório. A meu ver, as coisas, grosso modo, vão bem em Flaubert. Seria muito fácil criticar o comportamento dos profissionais diante dos estrangeiros e dos pobres. Poder-se-ia submetêlos à ajuda de instrumentos eminentemente científicos, ao mesmo jogo de double bind que achamos no discurso do psicólogo. Se os profissionais são muito atenciosos com as mulheres de grupos “desfavorecidos”, se lhes falam lentamente, se se mostram curiosos em relação aos costumes de suas clientes, se dão carinho para consolálas etc., pode-se acusá-los de serem paternalistas ou de tomar liberdades. (O chefe de serviço não marca nenhuma hora ou dia para a consulta das estrangeiras, justamente para evitar a criação de guetos no interior de seu serviço.) Por outro lado, se os profissionais não adaptam seu comportamento à especificidade da paciente, podese acusá-los de quererem massificar toda a clientela e de ignorarem os problemas particulares de cada grupo. A Maternidade Flaubert ainda não achou “a solução” para esse dilema. No entanto, o dilema suscita discussões e angústias constantes. Não poderíamos querer outra coisa. Que esse estado de inquietação se mantenha, que a “solução” não se ache, e que a discussão se eternize. Em suma, o espírito analítico e crítico que existe já na maternidade deve ser encorajado. Aguçar esse espírito não significa necessariamente uma mudança de práticas ou da política. O alvo almejado seria de outra ordem. Tratar-se-ia antes de reforçar certas atitudes que já existem na equipe profissional, de promover um estado de inquietude que não seja apagada por respostas prontas, que incorpore a incerteza crônica como um fato positivo da existência. Assim, em vez de se adaptar a uma necessidade pontual (a língua e os costumes de um grupo étnico determina-

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CLAUDIA FONSECA

do), instituir-se-ia um estado de espírito para enfrentar uma realidade complexa e em constante mutação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÉS, Philippe. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. BOTT, Elizabeth. Família e rede social. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. CORDE, Pascal. Milieux défavorisés: Relation mère/enfant en maternité. Mémoire de DESS de Psychologie Clinique, Université de Rouen, 1988. DONZELOT. Jacques. La police des familles. Paris: Editions de Minuit, 1977. DUMONT, Louis. Homo hierarchicus. Paris: Gallimard, 1960. EBIN, Victoria. Étude anthropologique de la maternité du Havre. Relatório técnico, encomendado pelo Hospital du Havre, 1989. FONSECA, Claudia. “Antropologia e cidadania em múltiplos planos.” Revista Humanas, 26/27: 17-46, 2006. FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité, v. 2: L’usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984. LOUX, Françoise. Traditions et soins d‘aujourdh‘hui. Paris: InterEditions, 1990. NICOLLET, Albert. 1987. “L’immigration au féminin: les femmes d’Afrique Noire au Havre.” Recueil de l’Association des Amis du Vieux Havres, n. 45. NICOLLET, Albert. Femmes d’Afrique Noire en France. La vie partagée. Paris: Harmattan, 1992. SALEM, Tania. Sobre o casal grávido: incursão em um universo ético. Tese de Doutorado. Museu Nacional, 1987.

NOTAS 1 Professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: claudialwfonseca@gmail.com 2 Tradução de texto, publicado em 1992, Quelques réflexions ethnologiques sur une maternité française. Ethnos (Association pour l’Anthropologie Médicale), LeHavre, França. O texto foi traduzido do francês por Ethon S. A. Fonseca.

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ALGUMAS REFLEXÕES ANTROPOLÓGICAS

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SOBRE UMA MATERNIDADE HOSPITALAR FRANCESA

A pesquisa foi custeada pelo Bureau de La Maternité du Ministère des Affaires Sociales (Direction Générale de la Santé, Sous-Direction de la Maternité, de l’Enfance et des Actions Spécifiques de Santé). 4 As parteiras francesas dessa época faziam um curso superior especializado de no mínimo cinco anos para se tornarem profissionais de carreira médica. Dentro da maternidade hospitalar, tinham autoridade que rivalizava com a dos médicos. 5 Nome usual de um serviço de maternidade situado na rua Gustave Flaubert, do Centro hospitalar geral do Havre. 6 Lembro ao leitor brasileiro que mantenho o “presente etnográfico”, usado no texto original, apesar dos dados refletirem uma situação de quase vinte anos atrás. 7 Não existem estatísticas sobre o nível socioeconômico dos clientes. Entretanto, há dados que mostram que, na maternidade Flaubert, a proporção de estrangeiros (em sua grande maioria de proveniência africana e norte-africana) dobrou desde a abertura da outra maternidade pública (Monod), comportando hoje mais de 30% da clientela. 8 As parteiras usam uniformes cor-de-rosa, as enfermeira e especialistas de puericultura usam uniformes amarelos, e as auxiliares de enfermagem assim como as faxineiras usam diferentes tonalidades de azul. Os médicos usam jaleco branco, frequentemente aberto, em cima de roupa cotidiana. 9 Um ou dois médicos também têm prática clínica privada; olha-se atravessado aquele que tenta garantir cuidados especiais para seus clientes particulares. 10 Esta opinião contrasta claramente com a dos colegas que estudaram a maternidade antes de mim. 11 Algumas das estrangeiras também tinham voltado várias vezes, mas, talvez por causa das dificuldades linguisticas, elas não pareciam estabelecer contatos de familiaridade com as funcionárias. 12 A única voz aparentemente discordante, a do romantismo naturalista (os “primitivos” são mais “naturais”, “menos corrompidos” que nós), nada mais era, em realidade, do que a projeção de ideais de classe. 13 Tíquetes para comida proporcionados pela Seguridade Social a mães solteiras. 14 O governo francês pode proporcionar um auxiliar que faz visitas domiciliares para orientar o casal ou a mãe sobre a gestão financeira de seu abono. 15 Nosso emprego dos termos “moderno” e “tradicional” não implica qualquer hierarquia de coerência lógica ou de valor moral. Reconhecemos ainda por cima que enquanto a ideologia “moderna”, dado seu modo de disseminação, é bastante uniforme, a ideologia “tradicional” é multiforme. As maliks, as wolofs, as berbères, as portuguesas e as francesas de baixa renda são, evidentemente, enormemente diferentes umas das outras. Para contrastar com o conjunto de crenças típicas do sistema médico, usaremos o usual expediente da simplificação. Criamos assim a categoria “tradicional” para enfatizar o caráter particular do moderno. 16 Foram de grande valia quando eu, enquanto primípara, assisti a tais aulas em Paris em 1973.

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Esta obra foi composta em fonte Casablanca 10/15, formato 160 X 230 mm, por RBY Informática Ltda – ME. A impressão se fez em papel Offset 90 gr. pela Gráfica da UDESC, no inverno de 2009.



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