Prólogo - Até eu te Possuir - Soraya Abuchaim

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ATÉ EU TE POSSUIR

Do que uma pessoa é capaz para conseguir o que almeja?



ATÉ EU TE POSSUIR

Do que uma pessoa é capaz para conseguir o que almeja?

SORAYA ABUCHAIM


Revisão Soraya Abuchaim Capa Rafael Alves Projeto Gráfico e Diagramação Denis Lenzi Fotografia da Autora Pedro Ribeiro

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A151a Abuchaim, Soraya Até Eu Te Possuir/ Soraya Abuchaim. - 1. ed. Campo Grande, MS: Editora Ella, 2016. 284 p. : il. ; 14 cm. ISBN 978-85-8405-070-3 1. Romance brasileiro. I. Título. 16-30681

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

Editora Ella Rua Guatemala 376, Jacy, Campo Grande - MS CNPJ 05.509.429/0001-22s

www.editoraella.com.br


Obsessão s.f. Preocupação exagerada com alguma coisa; apego excessivo a uma mesma ideia; ideia fixa. Compulsão; necessidade intensa para fazer algo ilógico ou insensato. Psicologia. Neurose que se define pelos pensamentos, ou ações, repetitivos e compulsivos; neurose obsessivo-compulsiva. (Etm. do latim: obsessio.onis)



i Prólogo 2012

E

stou sentada no sofá da sala. Tenho a sensação que horas se passaram desde que me recostei para recobrar-me do susto. Entretanto, olhando meu relógio, percebo que ainda são dez e quinze da noite. Exatas duas horas desde que levei um dos maiores choques da minha vida conturbada. Tudo bem, estou sendo exagerada e pessimista. Já passei por muita coisa pior. Ou não. Desde aquele dia fatídico, em 1983, minha vida começou a desmoronar, e não parou desde então, numa sucessão funesta de fatos que me jogaram em um buraco negro e transformaram minha existência numa completa escuridão. Só que, agora, tudo começa a fazer sentido. Ainda preciso entender tudo isso e esclarecer as revelações perturbadoras para tirar alguma conclusão, embora eu sinta que é pior do que eu imagino, e isso me assusta absurdamente. Quando alguém passa pelo que passei, quando você vive uma vida inteira achando que é amaldiçoada ou coisa parecida, deveria ficar aliviado por saber que, afinal, nada é por acaso, 7


nada é coincidência, e os fatos são tão sólidos quanto uma rocha que precisa ser demolida para se destruir. Claro, houve aquele bilhete, dois anos depois da carinhosamente apelidada “Tragédia Pessoal Número 2”, e eu passei muito tempo esperando que o remetente se mostrasse ou mandasse mais alguma comunicação, a fim de confirmar a declaração implícita de que o acidente não tinha sido acidente de fato. Mas nada. Pareceu uma brincadeira aleatória de algum desocupado querendo me assustar, um oportunista, já que a fila de brincalhões deliciados com a desgraça alheia é enorme. Mais uma faceta do ser humano falível. Agora, o choque do como e do quem paira na minha cabeça, como corvos voando sobre carne podre. E a pergunta, ainda sem resposta, fica martelando em meu cérebro: porque porque porque porque... Penso novamente nos corvos... Será que sou eu a carne podre, que passou mais de trinta anos sendo sobrevoada e bicada aos poucos, sem notar? Ao longo da minha patética existência, onde mortes, notícias avassaladoras, noites solitárias e exclusão social são uma constante (as pessoas não deveriam ter uma missão na vida?) eu aprendi a contornar dia após dia todas as situações desconfortáveis que foram surgindo. E não foram poucas. Percebo que a esmagadora maioria das pessoas nunca vai passar por um terço do que passei. E tudo teve início aquele dia. Me pergunto constantemente se, de alguma forma, eu desencadeei um ciclo macabro, sombrio e irreversível. Sempre me achei vítima, por mais que as circunstâncias dissessem o contrário, e agora começo a ver que tive razão esse tempo todo. 8


Repasso na mente as últimas duas horas, desde que abri aquela caixa, descuidadamente à mostra, como se quisesse ser remexida, ou talvez contando com o fato de que estar ali, tão descarada, não levantaria curiosidade nenhuma. Ao abri-la, uma sucessão de verdades nuas e cruas, basicamente impressas em papéis de diferentes texturas e simbolismo, que me fizeram perceber duas coisas fundamentais: o quanto fui tola e o quanto vivi me amargurando sem necessidade, quando tudo não passava de planejamento. Porque até para estar disposta ali, no interior do meu bagunçado mais íntimo, houve um plano, uma forma de estar. Planejamento. A mais perfeita harmonia entre pensamento e ação, que transforma qualquer iniciativa em uma prática previsível. A palavra deslizava no ar, em cores néon, como se fosse um letreiro de boate de terceira categoria. Sim, de fato houve planejamento. As coisas só não se encaixam ainda. Mas eu as farei se encaixar, nem que isso me custe a vida. Não uma grande vida, diga-se de passagem. Realmente, não sei por que temo a morte, já que minha existência foi, de fato, subaproveitada. Me questionei inúmeras vezes se há mais gente como eu, que se rasteja pelo mundo, levando um dia atrás do outro e esperando a próxima cartada, sempre de mão azarada, até chegar o dia do fim de jogo. Nos últimos anos, houve o que eu poderia chamar de felicidade, claro. Mas ainda assim, com suas ressalvas; o tipo de felicidade à qual alguém como eu se agarra com todas as forças, mesmo com as mais nítidas provas de que alguma coisa estava errada. Eu nunca quis enxergar o óbvio, escondi-me atrás da tábua de salvação em que transformei essa história, agora percebo. 9


O que vi naquela caixa, naquele arquivo lúgubre foi a constatação de que a minha vida inteira foi baseada em uma mentira atrás da outra, e que eu me obriguei a transformar em verdade. Escuto o tique taque do relógio da sala, aquele antigo que insisti em manter comigo como lembrança do meu pai, a única lembrança, a que afanei antes de sair de casa sem olhar para trás, para nunca voltar. Por mais que eu esteja perdida em pensamentos, o nervosismo só piora e a hora avança, e em pouco tempo o confronto deverá ocorrer. Sinto um frio na espinha só de pensar o que farei e como farei o que preciso, mal posso controlar a tremedeira das minhas mãos. Então, percebo que não tenho um plano. Quando encontrei a caixa, casualmente, já que estava em busca de um mouse novo para substituir o que eu havia acabado de quebrar jogando na parede (nunca tive paciência com computadores), e que eu sabia que poderia encontrar no famigerado quarto da bagunça, localizado no final do longo corredor do apartamento, uma mescla de sentimentos me corroeu. Um sentimento de ódio absoluto tomou conta de mim ao perceber que perdi muitos anos da minha vida. Eu não precisava ir muito longe, a verdade estava ali, estampada, e a obscenidade de ver tudo tão organizado, tão óbvio, me enraiveceu. Depois, me senti apavorada. Será que estava correndo perigo? Ao mesmo tempo em que isso era óbvio, eu não podia saber. Não sem antes entender o que estava acontecendo de verdade. O perigo é muito relativo, sei perfeitamente disso, mas a extensão dele é o que me deixa mais encucada. Até que ponto ele pode me atingir? E a indignação, que foi maior do que qualquer coisa quando 10


percebi que estive errada todos esses anos, que eu não era tão amaldiçoada assim e que não foi nenhum ciclo à toa que me jogou nesse buraco ironicamente infernal que se transformou minha vida. Eu, tão precavida, tão cheia de segurança de que sabia lidar com qualquer tipo de gente, caí numa armadilha mais do que bem planejada — escrupulosamente executada! O relógio continuava a tiquetaquear, meu pânico tomando uma forma grandiosa, substituindo qualquer outro anseio que eu pudesse carregar. Como pude não perceber? Como pude achar que tudo o que me aconteceu era obra de algum demônio inescrupuloso cuja única função pela eternidade era me foder? Como eu pude achar, em contrapartida, que alguém teria algum sentimento mais puro por mim, e pior, colocar nessa pessoa toda a minha vida, as minhas esperanças, ignorando os sinais de que havia, sim, coisas estranhas demais acontecendo? Uma mulher fraca é o pior inimigo de si mesma. Estava feito, agora eu percebia, mas a iminência do confronto me deixa nervosa. Olho novamente o relógio, ao mesmo tempo em que escuto um barulho alto no corredor que leva ao apartamento. Chegou a hora.

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