Gabriela Mellão

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Gabriela Mell茫o *** Nijinsky A Hist贸ria Dela Parasita Em Camadas DesolaDor


Coleção Primeiras Obras, 2 Ivam Cabral (organizador)

Apoio Cultural


Gabriela Mell茫o *** Nijinsky A Hist贸ria Dela Parasita Em Camadas DesolaDor



Prefácio

A Danças das Palavras alberto guzik 7 Apresentação

Breve Autorretrato 17 Nijinsky 25 A História Dela 101 Parasita 129 Em Camadas 151 DesolaDor 181 5



Prefácio

A Dança das Palavras O Teatro de Gabriela Mellão

A primeira coisa que se faz notar no teatro de Gabriela Mellão são a segurança e o domínio com que a autora articula sua linguagem. Ela é uma arquiteta que faz construções com palavras. Suas peças são elaboradas de tal modo que projetam o leitor/espectador para o interior de uma partitura. Ela cria textos que são um conjunto de conceitos e sons interorganizados para formar imagens e sentidos. Eis a seara que Gabriela Mellão, jornalista e dramaturga, explora com habilidade e precisão. Não lhe falta atenção para a alternância dos ritmos nem para a função do jogo narrativo, que entra aqui em prevalência sobre o elemento dramático, ainda que não o exclua. 7


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Nesse palco em que ela projeta suas obras, as palavras não compõem aquilo que é concreto, não expressam o que é visível ou palpável. Suas palavras tratam da matéria teatral de outra forma. Exigem que a imaginação do diretor e o corpo dos atores participem de modo essencial do sentido que será criado pela montagem. O espaço cênico e suas dimensões também são cruciais nesse jogo. A dramaturgia de Gabriela Mellão é feita de modo a se articular, com intensa vibração, à encenação e à interpretação. Justamente por quase não usar rubricas, por não descrever cenários, a dramaturga vai ao encontro do que é essencial, do que tem de ser obrigatoriamente expressado. Entretanto, ela não se ocupa com a decifração do texto para os artistas que vão transformar sua poesia verbal em ação física e concreta. Ao contrário. Estabelece equações que têm de ser decifradas por aqueles que darão corpo e matéria aos vocábulos que saem de sua poderosa imaginação. Ela participa assim desse que talvez seja o maior desafio que a dramaturgia contemporânea oferece aos seus exegetas. A matéria escrita é um 8


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território a ser descoberto, a ser construído, com o conceito do espetáculo, a linha das interpretações, o desenho do espaço. Nada vem pronto, nada está predefinido. É preciso caminhar com a autora, percebê-la, traduzi-la. Os artistas contemporâneos têm de fazer as vezes de arqueólogos que decifram palimpsestos, pergaminhos cifrados. Não que os textos de Gabriela Mellão sejam herméticos ou inatingíveis. São bastante claros. Mas dotados de um evidente talento para embaralhar as trilhas, para obrigar quem a põe em cena a empreender uma investigação, uma busca dos muitos sentidos contidos em cada palavra, em cada linha, em cada fala. A linguagem em suas mãos ganha o caráter de uma procura incessante. O texto muitas vezes parece constituir-se em pretexto para a organização de um espetáculo. Os personagens/narradores de A História Dela, em certo momento, entoam verdadeiros mantras. Eis um breve exemplo, ancorado em gerúndios, mas sem nenhum resquício do nefasto “gerundês” cada vez mais presente na fala coloquial dos brasileiros. Ao 9


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contrário, ela transforma os gerúndios reiterativos e obsedantes em um exercício de invenção lírica: Narrador i / Narrador ii – (Em tempos diferentes) “Rodando, circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando. Circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando. Rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, entristecendo. Orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando. Rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando, orbitando em falso. Orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando.”

Esse jogo permite inúmeras combinações linguísticas, até matemáticas, que adicionam sentidos cumulativos ao texto. É como se a dramaturga propusesse enigmas, jogos de ar10


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mar, que exigem do espectador – assim como dos criadores – uma participação intelectual muito ativa na articulação do espetáculo. Mas Gabriela Mellão não é autora de fórmula única. Se faz de A História Dela e DesolaDor roteiros poéticos, intensamente narrativos, também sabe nadar nas águas mais dramaticamente familiares de Nijinsky – Minha Loucura é o Amor da Humanidade, cronologicamente o mais antigo dos textos incluídos neste volume. A dramaturga, nesse trabalho, envereda por uma via mais próxima das convenções teatrais. O texto é elaborado em diálogos, não em fragmentos, tem personagens definidos e é dotado de rubricas que indicam ações dos intérpretes. Ainda assim, ela não se rende às regras tradicionais. Nijinsky faz um trançado sem ordem cronológica, mistura passado e presente, joga com bruscas suspensões de cenas para abrir espaço a outras. Enfim, se na aparência, Nijinsky tem um formato, digamos, mais próximo do tradicional, na verdade, o texto acaba se revelando tão experimental, tão ousado, quanto os trabalhos posteriores da escritora. 11


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Estilisticamente, dos textos mais antigos para os mais recentes, Nijinsky – Minha Loucura é o Amor da Humanidade, A História Dela, Parasita, DesolaDor, Em Camadas, Gabriela Mellão caminha do pós-moderno ao pós-dramático. A autora gosta de explorar o universo de personagens reais. É o caso de Vaslav Nijinsky em Nijinsky e de Antonin Artaud em DesolaDor. Mas não usa essa prospecção para fazer biografias teatrais. O que busca não é o retrato realista dessas figuras históricas. Tenta apreender outras dimensões dessas almas atormentadas. E vai procurar na própria trajetória de suas fontes de inspiração o material para fazê-los se expressar. Assim, em Nijinsky, seu Nijinsky se expressa por meio de citações extraí­ das dos diários do bailarino e coreógrafo que revolucionou a dança no século 20, acrescidas de citações extraídas da obra do romancista russo Fiodor Dostoievski, do qual Nijinsky era leitor apaixonado. Por outro lado, DesolaDor apresenta uma recriação livre de trechos de cartas, de diários, de escritos pessoais do grande artista que foi Antonin Artaud. Este revela-se 12


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ao público a partir da recriação de escritos que desvelam para o espectador aquilo que a dramaturga considera “a matéria-prima ao mesmo tempo sábia e louca” dos pensamentos do inventor do “teatro da crueldade”, uma das figuras fulcrais do teatro do século 20, cujas invenções e delírios ecoam ainda hoje em um sem-número de espetáculos e experimentos cênicos realizados ao redor do mundo. Mas a escritora não é menos radical quando trabalha com personagens extraídos de sua imaginação. Os protagonistas de A História Dela são dois narradores que relatam a aventura cotidiana, frustrante, mesquinha e, apesar disso, apaixonada, de um casal. Em Parasita, temos o confronto em um homem de meia-idade com uma mulher. E Em Camadas coloca face a face duas mulheres talvez opostas, talvez duas faces de uma mesma personagem. É o áspero, o incômodo, que a autora busca em todos esses textos, não o reconfortante e o encorajador. Ela questiona a condição humana e vai até seus limites para buscar entender o sentido dessa aventura absurda e exasperante que é nossa 13


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vida. Para isso, não busca alturas atordoadoras nem personagens exuberantes. Suas figuras são torturadas, estão no limite. Um limite que a autora explora cuidadosa e detalhadamente. Sonda a dimensão dos abismos, lida com o lado escuro da força. Como fica mais que evidente em Parasita e Em Camadas, ela se nega a trabalhar personagens dóceis. Suas figuras são complexas, possuem vários níveis de significação. Atrito é a palavra-chave nesse teatro. Atrito dos seres uns com os outros, atrito dos seres consigo mesmos e com a sociedade. A própria Gabriela Mellão apresenta-se no texto que se segue a este breve prefácio. Então estou escusado de entrar em seu histórico pessoal, em suas influências, em seu método de trabalho. Ela mesma os desvenda para o leitor. Mas resta-me uma última e importante observação a fazer. Apesar da evidente influência de dramaturgos como Bernard-Marie Koltès, Harold Pinter e Newton Moreno, entre outros, em sua dramaturgia, a escritora encontra uma voz própria para dizer suas histórias. Tem o olhar inquieto dos poetas que exploram os 14


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aspectos noturnos de suas criações. A loucura, o suicídio, os desajustes, as incertezas, as despersonalizações, todos esses lados opacos da personalidade humana povoam seus textos. Ela faz um teatro pouco palatável. Não são peças para o público que busca no teatro um pouco de entretenimento antes da pizza. São obras que nos convidam a mergulhar, a buscar as profundidades. Não tenho dúvida de que Gabriela Mellão e sua sofisticada dança de palavras estão destinadas, agora, a frutificar. E depois, a ficar. Alberto Guzik

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Apresentação

Breve Autorretrat0

Nasci em São Paulo, me formei em Publicidade na puc e fiz pós-graduação em Jornalismo Cultural também na puc, mas abri minha cabeça fora, em duas temporadas de estudos de cerca de um ano cada: Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris (2000); Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston (2004). Estes cursos foram fundamentais para minha carreira, minha introdução na arte teatral. Mesmo assim, me considero uma autodidata. Foi sobretudo na prática que ampliei meus conhecimentos e desenvolvi meu olhar, através do simples ato de ir ao teatro (consumo esta arte exageradamente, como todos os que são apaixonados por ela) 17


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e do exercício diário do jornalismo (minhas colaborações para Bravo! e Folha de S. Paulo), que exigem um mergulho profundo nos temas/ autores/peças sobre os quais escrevo. Acho que o desamparo, a loucura, sempre tão próxima da sabedoria, e a desesperança do homem de hoje são temas recorrentes na minha obra. Temas que me atraem nos espetáculos em geral. Para mim, o teatro realista está morto, se ainda respira é apenas por força da inércia. Busco novas linguagens para retratar a falência do mundo contemporâneo, através de uma poética mais musical, próxima da poesia, e de uma dramaturgia aberta, repleta de espaços vazios a ser preenchidos com a memória e a sensibilidade de cada leitor/espectador. O estranhamento causado pelas pausas e situações ao mesmo tempo familiares e absurdas na obra de Pinter é uma fonte de inspiração, assim como o niilismo existencial de Beckett, a busca por novas linguagens investigada por ambos, assim como Koltès, Novarina, Lagarce, Jon Fosse, Newton Moreno, entre outros dramaturgos à frente de seu tempo. 18


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Em Paris tive meu primeiro contato com teatro. Até então, por incrível que pareça, não o havia descoberto. Pensava que meu caminho seria a literatura. Lembro-me de adentrar os pequenos teatros da cidade, noite após noite, tomada pelo novo mundo que se abria para mim, encantada com a força e magia de cada espetáculo, mesmo quando a língua atrapalhava o entendimento. Desde o início, fui conduzida pelo aspecto sensorial desta arte. Os climas, os estranhamentos e as possibilidades do teatro contemporâneo me fisgaram. Vi uma avalanche de peças, a maioria em palcos desconhecidos dos próprios parisienses. Ficou na memória uma montagem acinzentada de Macbeth, sem cenário algum, num pequeno teatro da Bastilha. E uma adaptação do livro A Doença da Morte, de Marguerite Duras, transformada em solo poderoso que me causou grande inquietação. Na minha leitura, seus personagens não eram humanos, o embate retratado em cena se dava entre vida e morte. Em Boston, mergulhei mais fundo nos estudos dramatúrgicos, na história do teatro, em 19


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seu desenvolvimento rumo à pos-modernidade e no ato de criação. Comecei com o texto que antecipou o teatro moderno, o revolucionário Woyzeck, para só depois estudar obras mais tradicionais. Foi um prazer conhecer Hedda Glabler e Casa das Bonecas, de Ibsen, e alguns textos de Strindberg, como Senhorita Júlia, pela ousadia com que se debruçavam sobre o universo feminino, rompendo os padrões da época. Pirandello foi outro marco, por ampliar o teatro, em vez de reduzi-lo. Também me lembro do meu desespero ao ler Caryl Churchill, obra que me inundou de indagações nunca respondidas – a professora fez questão de silenciar-se sobre as intenções da autora. Não sei o quanto tudo isso me influenciou, mas sinto que, de alguma forma, treinou meu paladar a apreciar obras abertas, que tocam o corpo antes de chegar à mente. Quando um espetáculo me pega, meu coração acelera, o corpo esquenta. Inocência, de Dea Loher, na montagem dos Satyros, causou isso em mim. Também me arrebatou A Vida na Praça Roosevelt , outra direção de Rodolfo García 20


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Vázquez para mais um texto de Dea Loher. Certeira a combinação entre a dramaturgia fragmentária e livre para múltiplas interpretações de Loher e a estética de Vázquez, sempre ousada e inventiva e, nos dois casos, também intensamente poética. A montagem de O Quarto, de Pinter, realizada por Roberto Alvim, outro diretor que eu admiro muitíssimo, deixou-me sem fôlego. Sem mudar uma vírgula do texto, Alvim transformou uma obra realista de Pinter em espetáculo revolucionário, sensorial e estranho, capaz de retratar o mundo interior da protagonista com imensa força. Agreste também foi um divisor de águas. Sempre me emociono diante da dramaturgia lírica e concisa de Newton Moreno, ou quando provo as partituras musicais de Jon Fosse. Uma obra de extrema força e contemporaneidade que me marcou recentemente foi O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade, de Silvia Gomes. Aliás, não por acaso, Eric Lenate, o diretor de O Céu..., tornou-se um parceiro de grande afinidade artística, na mon21


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tagem de DesolaDor e em outras que virão. E por falar em parceria, admiro muitíssimo o trabalho de Lucianno Maza, diretor até agora de A História Dela e Parasita. Lucianno cria coreografias contemporâneas para meus textos. Complementa minha visão, sem fechá-la. Temos uma sintonia muito forte. Gosto de obras que investigam as profundezas do ser humano através de estruturas dramáticas originais. Discurso explícito não me pega. Peças políticas também não. Não costumo me emocionar com comédias – felizmente trabalhos de grupos como Jogando no Quintal, LaMínima, Barracão Teatro e Fraternal Cia. de Artes e Malas-Artes, entre outros, já fizeram com que eu me contradissesse. Minha cabeça não processa filmes de ficção científica, ou de ação. Não consigo acompanhar a história, me perco em detalhes, me desinteresso. Fui mesmo feita para interioridades. Sou diurna. Funciono durante o dia, pifo à noite. Depois que tive meu filho, João, piorei ainda mais. Naturalmente, não pelo amor indefinível de tão intenso e belo que foi desperta22


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do em mim, ou por ele me fazer mergulhar em todos os clichês relacionados à maternidade que eu sempre rejeitei. Piorei por cansaço mesmo. Vou ao teatro por um misto de paixão e obsessão. Quando anoitece meu corpo quer descansar. O trabalho sai com 90% de transpiração. A inspiração vem à força, por obra da persistência. Nunca sei que história vou contar. Diante da página em branco, os diálogos surgem, a trama se delineia. Quando acontece de os personagens tomarem conta e ditarem eles próprios seus destinos tenho a confirmação de que trafego pelo caminho correto. Mexer na estrutura de uma peça, reconstruí-la, é menos sofrido para mim do que iniciar uma história do zero. Percebi na prática ter mais facilidade de criar a partir de um material existente. A primeira versão de A História Dela, por exemplo, foi escrita em meses de intenso trabalho. Ao decidir reescrevê-la para as Satyrianas de 2007, foi com grande surpresa que, depois de duas semanas de atividade, me deparei com a nova obra finalizada, completa23


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mente transformada. O mesmo aconteceu com Parasita. No momento, escrevo uma peça sobre Sylvia Plath, ainda sem título, a partir de seus diários. Talvez isso explique o nascimento fácil e prazeroso do texto. Digo, relativamente fácil e prazeroso. Gabriela Mellão

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Nijinsky Minha Loucura é o Amor da Humanidade

A peça Nijinsky foi um deus de sapatilhas que jamais soube adaptar-se às limitações impostas pela convivência social. Um personagem fascinante, que surpreendeu o mundo com sua criatividade e ousadia. Ele rejeitou as regras do Ballet Clássico e da sociedade do início do século xx para dançar o instinto, no palco e na vida. Colocou a demência em evidência. Transformou enfermidade em beleza. Loucura em arte. Nijinsky fez na dança o que Dostoievski fez na literatura. Na peça, enquanto dá vida às suas memórias com a família, o ex-amante e a mulher, ele alucina passagens inquietas da obra do grande autor russo. 25


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Personagens Nijinsky – Físico musculoso, flexível e ágil. Psicologicamente, tem reações imprevisíveis, embora esteja sempre muito agitado, nervoso, e em comunicação com seu mundo interior. É extremamente gestual e criativo. Suas falas foram extraídas de duas fontes: dos diários escritos pelo próprio Nijinsky e de livros de Dostoievski – reunião de trechos de obras variadas do autor russo, que falam sobre a loucura ou remetem a este estado de espírito. Romola – Mulher de aparência forte, na realidade insegura e solitária. Seu porte ereto, duro, revela uma educação rígida e opressora, um passado que se contrapõe à vida escolhida por ela, ao lado do louco e genial Nijinsky. Eleonora – A mãe de Nijinsky. Assemelhase ao filho através de seu comportamento pouco usual. Uma mulher, que, apesar dos infortúnios, conservou-se doce, independente e à frente do seu tempo. 26


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Thomas – O pai de Nijinsky. Um homem que vive para suas paixões, mas, apesar disso, sofre com as consequências de sua alma livre. Nijinska – A irmã de Nijinsky. Tem também grande talento para a dança. Uma mulher boa e generosa, muito ligada ao irmão, preocupada com seu bem-estar e o de todos. Diaghlev – O empresário de Nijinsky e dono dos Ballets Russos, a companhia de ballet mais importante do começo do século passado. Um homem alinhado, muito vaidoso e preocupado com sua imagem.

Ato 1 (Romola entra em cena, carregando uma sacola de feira. Nijinsky, submerso em seu próprio mundo, está na lateral do palco, sentado na frente de um espelho. Experimenta gestos, estuda poses. Contorce seu corpo em movimentos disformes, semelhantes ao que fez em seu ballet A Tarde de um Fauno.)

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Nijinsky – Os sonhos costumam distinguir-se pela clareza e uma espantosa semelhança com a realidade. Às vezes o quadro é monstruoso, mas o cenário e a representação são tão verossímeis, os pormenores são tão sutis e apresentam, no seu imprevisto, um tão artificioso engenho, que o sonhador seria incapaz de inventá-lo na realidade. Romola – A que ponto chegamos. O maior dançarino do mundo, a raiz, a genialidade e o fundamento do ballet moderno está demitido, declama Dostoievski para sua sombra, e toma sopa de batata comprada fiado. Nijinsky, consegui umas batatas no mercado hoje. Nijinsky – Nunca os homens se tinham julgado tão sábios, tão seguros da posse da verdade, como julgavam estar esses que eram contaminados pela loucura. Romola – Meu marido, todos nós, e com muita frequência, agimos como loucos. O homem normal quase não existe. Em meio a dezenas, talvez até centenas, encontramos quem sabe um. 28


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Nijinsky (Nijinsky dá um sorriso cúmplice para Romola) – Por hoje, estou alimentado. Romola – Sabia que iria gostar. Nijinsky – Sofro agora por gula. Literária. Romola – Chega. Atenhamos à realidade. Nosso dia a dia não ficará mais ensolarado se fantasiado. Nijinsky – Tenho fomeeee. Romola – Estamos excessivamente abastecidos de loucos e enfermos – aqui dentro, dividindo este ar gasto, de prisão, e lá fora, em meio à maldita guerra. Se não fosse por ela, quem sabe, nossa imaginação seria inofensiva. Nijinsky – Viveríamos livres, com todas as partes do corpo – não apenas a mente. Romola – Conquistaríamos a América. Seríamos ricos, realizados. Voaríamos alto, como você gosta. Nijinsky (Dá um salto e fica parado no espaço, preso por um fio invisível) – Parecia que todo o seu passado, todo aquele espetáculo, e ele mesmo, tudo, tudo agora estava em algum ponto profundo, lá embaixo, a seus pés... Parecia que estava voando muito alto 29


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e que tudo desaparecera de sua vista. (Nijinsky se dá conta de que vai cair. Começa a debater-se.) Romola – O que foi, Nijinsky? Está enferrujado? Nijinsky (Medrosamente) – A queda. O medo. A dor. Romola – Cair não é problema. O problema é você conformar-se com o chão. Nijinsky – Eu sou um gato. Romola – Está certo. Agora desça. Vamos jantar. Nijinsky – Eu sou o princípio. Eu sou a verdade. Eu sou a consciência. Eu sou o amor para todo o mundo. Romola (Autoritária) – Você é meu marido. Nijinsky – Eu dou mugidos, mas não sou um touro. Sou um ápis. Sou um egípcio. Sou um hindu. Sou um índio. Sou um negro. Sou um chinês. Sou um japonês. Eu sou um estrangeiro, venho de outro lugar. Romola (Mais duramente) – E eu sou sua mulher. E o Dr. Frankel o homem que receita seus choques. 30


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Nijinsky (Nijinsky cai lá de cima) – Eu vejo a morte. Romola – Nijinsky! Você está bem? Nijinsky – Vejo a morte com meus próprios olhos. A morte é uma coisa terrível. Romola – Se machucou? Nijinsky – Conheço a morte. Sinto a morte. Estou morrendo numa clínica com 12 anos. Sou uma criança corajosa. Pulei e caí. Romola – Nijinsky, você está me ouvindo? Estou te fazendo uma pergunta, você consegue me ouvir? Nijinsky – Mãe, vai acontecer comigo o mesmo que aconteceu com o meu irmão? Romola – Você não está bem, não está bem. Nijinsky – Hein, mãe? Romola – Nijinsky, sou eu, Romola, sua mulher. (Entra a mãe de Nijinsky, Eleonora) Nijinsky – Mãe, vou ficar igual a Stanislav? Eleonora – Meu filho, não apenas seus pés sofrem de excesso de criatividade. Pelo me31


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nos por ora, pare de imaginar coisas. É claro que você não vai ficar igual ao seu irmão. Stanislav caiu do quarto andar. Você de seu próprio impulso. Nijinsky (Assusta-se) – Vou ficar pior? Eleonora (Ri) – A oitava maravilha do mundo salta alto, mas nem tanto. (Para Romola) Outro dia perguntaram para meu filho se era difícil permanecer no ar depois de pular. Com aquele francês atrapalhado dele, Nijinsky respondeu: “Não, não. É só saltar e dar uma pausa lá em cima”. (Ri. Olha em volta e saboreia o palco.) Que falta me fez isto aqui. Até o cheiro de bolor destas cortinas me é agradável. O frio que sobe a espinha ao entrar em cena. O calor escaldante destes holofotes – que cegam os olhos até nós não vermos nada, além de nossos próprios egos. Nijinsky – Também senti sua falta, mãe. Eleonora – A distância, você sabe, não passa de ilusão. Romola – Que são mãe e filho não há dúvida. A questão é: de onde você saiu, Eleonora? 32


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Eleonora – Meu filho, mamãe pressentia incompreensão. Romola – Pode deixar. Eu cuido dele. Eleonora – Nijinsky, você entende agora por que faço questão de te acompanhar para a escola? Que maldade, ensaboarem o chão para você cair. Inveja. Seus colegas sentem inveja de você. Nijinsky – Eu não sou Nijinsky como eles pensam. Eu sou Deus no homem. Eleonora – E eles não passam de meninos comuns. Dançarinos frustrados, sem escapatória, a não ser conformar-se com a obviedade. Com o futuro ordinário e previsível que os espera. Nijinsky – Foi Nietzsche quem perdeu a cabeça. Nietzsche pensava. Eu não penso, por isso não perderei a cabeça. Eleonora (Para Nijinsky) – Não há nenhum mal em perder a cabeça. Nijinsky – Eles duvidaram, mãe. Eu caprichei. Não saltei. Voei, toquei o infinito e voltei – com a mesma intensidade.

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Eleonora – Conheço sua intensidade. Não precisa explicar. Agora deite-se. Nijinsky – Se tivesse de viver assim mil anos, sobre o espaço de um pé quadrado, na solidão, nas trevas, exposto a todas as intempéries – ainda assim preferiria tal existência a morrer! Eleonora – Procure ficar quieto, meu amor. Após 4 dias em coma, você precisa descansar. Romola – Seu tombo te causou hemorragia interna, fratura no abdômen e sabe Deus o que na cabeça. Nijinsky – Romola pensa que eu sou tolo. Já eu penso que Romola é idiota. Você é idiota, mas não é tola. Eu sou tolo, eu sou tolo. Eleonora – Meu filho, você é uma espécie rara neste mundo de iguais. Nijinsky – Um homem tolo é um cadáver, e eu não sou um cadáver. Eleonora – Cadáveres são os outros, Nijinsky, que vivem a mesmice, esperando a morte chegar. Nijinsky – Cadáver, cadáver, cadáver, eu não sou um cadáver. 34


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Eleonora – A genialidade está enraizada em sua história – que tem pitadas de uma abençoada loucura. Romola – Nijinsky se comunica através da dança. Se tem dificuldade com as palavras é porque dialoga com a linguagem dos movimentos. Nijinsky – Quero abraçar minha mulher, mas não para ela pensar que eu quero fazer exibição de amor. Romola – Eu não penso, Nijinsky. Nijinsky – Eu amo você sem mostrar. Eu te quero. Quero seu amor. (Mudança de luz. Romola revive suas memórias. Nijinsky está no centro do palco, dançando como um animal selvagem. Romola tenta se aproximar. Ele, arisco, se afasta. Aos poucos, eles se aproximam e conversam como dois apaixonados.) Romola – Levou tempo até que minha vida começasse. Viajei, estudei, experimentei diversas profissões – tudo isso amortecida, 35


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sem vida ou propósito. Até que meus olhos encontraram você, Nijinsky: Teatro de Budapeste, março de 1912. Desde o primeiro vislumbre, senti um chamado, um chamado quase religioso. Encontrei meu lugar com aquele ser magro, ágil, meio Arlequim, meio felino, que era você. Uma verdadeira e inesgotável fonte de energia. Nijinsky – Abençoada seja você pelo momento de júbilo e felicidade que concedeu a um coração solitário e agradecido! Romola – A força e a beleza de seu corpo me enfeitiçaram. Havia um choque elétrico percorrendo o teatro. Você passava e contaminava toda a plateia. Intoxicada, extasiada e ofegante, eu seguia pelo palco seu corpo sobre-humano, leve como pluma, forte feito aço, elástico e poderosamente vigoroso. Nijinsky – Essa visão magnífica era Nijisnky. Romola – Era você. Nijinsky – Não será este momento o bastante para uma vida inteira? Romola – Mais do que uma revolução na história do ballet, você é uma revolução na 36


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minha vida. Foi como seu eu tivesse encontrado uma parte perdida de mim. Nijinsky – Uma parte perdida de mim. Romola – Minha tia assistia ao espetáculo ao meu lado – não sei se mais surpresa pela força da sua dança ou pelo meu comunicado: Aquele homem será meu marido!, eu disse a ela. Nijinsky – É verdade que toda essa vida não é a excitação de um sentimento? Não é uma miragem, não é um engano de imaginação? É de fato real, existente! Romola – Claro que sim, Nijinsky. (Pausa) Quer dizer, foi. Num tempo saudoso. (Longa pausa) Nijinsky (A excitação diminui, ele se afasta.) – Eu não tenho modos convenientes, não tenho senso de medida. Tenho movimentos e palavras diferentes e não pensamentos correspondentes. (Longa pausa) A incompreensão é o destino mais provável do homem. Eleonora – Também fui incompreendida ao querer dar a você o que eu não tive. Quis viver meus sonhos através das suas conquistas. 37


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Nijinsky – É irresistível agarrar-se à possibilidade de se iluminar através do clarão que emana de Nijinsky. Eleonora – Romola também se atirou na tímida possibilidade que vislumbrou de viver sob a luz de Nijinsky. Romola – Esta é, para muitos, minha maior falha. Para mim, minha atitude mais corajosa. Joguei no lixo o futuro confortável e opaco que me esperava e fui em busca de meu sonho improvável. Nijinsky – Da necessária insanidade. Romola – Terminei o noivado com um novorico interesseiro que havia se presenteado com um título de barão e fui dedicar-me ao meu ídolo. Sustentar a primeira certeza que tive em minha vida. Nijinsky (Assustado) – O que é isso? Sinto um olhar fixo atrás de mim. Romola (Para Eleonora) – Persegui os Ballets Russos em todos os palcos e lugares. Estive em Londres, Paris e Monte Carlo atrás deles. Também Berlim, Viena, Budapeste...

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Nijinsky (Mais assustado) – Um olhar fixo atrás de mim. Romola (Para Nijinsky) – Ora, Nijinsky, sou eu! Te segui mais do que sua própria sombra. Nijinsky – Tudo é antinatural e fora de qualquer medida. Romola – Foram nove meses de perseguição. Eleonora – Uma gestação completa. Romola – Para nascer a nova e definitiva sra. Nijinsky. Nijinsky – Tudo é espectro, miragem, mentira, vergonha. (Pausa) Já deveria ter comprovado o vazio das existências parasitas quando se desgarrou da luz da sua mãe.(Longa pausa, perde a consciência novamente.) Para que se apega assim a um homem doente, nervoso, quase delirante? Romola (Se aproximando, até quase beijá-lo.) – Nijinsky, você é assim: imprevisível, indecifrável – e daí? Desde o início, gostei disso em você. (Nijinsky subitamente se afasta – olha um ponto fixo na coxia, de onde sairá Diaghlev em breve.) Ao contrário do que 39


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dizem, não tenho intenção alguma em te enquadrar. Nijinsky – ... Para que arrasta este homem para as trevas? Romola – Nijinsky, você sempre teve um parafuso a menos. Sempre foi indiferente às normas, etiquetas, sociedade... Nijinsky – Indiferente até a você mesma. Romola – Quanto mais você me ignorava, mais adoração eu sentia. Nijinsky – Percorria-lhe todo o corpo uma terrível sensação de frio. Romola – Sabia exatamente como me aproximar de você. Precisava me tornar uma igual. Nijinsky – Tremia tanto que os dentes chocavam-se uns contra os outros. (Diaghlev entra em cena e discute com Nijinsky) Diaghlev – Onde é que eu estou com a cabeça? Essa é boa! Nijinsky – Como pode levar esta amadora para a nossa turnê pela América do Sul? 40


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Diaghlev – Ela me disse que é bailarina. Nijinsky – Coisa nenhuma. Diaghlev – Quem mentiria uma coisa dessas? Que imaginação você tem! Nijinsky – Você a viu dançar, por acaso? Ela não tem nenhum domínio corporal. Você não pode levá-la – a não ser que esteja demente. Diaghlev – Estou, sim. Devem ser seus ataques – estão me tirando do sério. É bem provável que você tenha razão, que esta Romola não acrescente nada aos Ballets Russos. Mas e se meus instintos estiverem certos, por que não servir-me dela? Ela não pede nada em troca. Sua mãe é Emilia Márkus, glamourosa atriz do Teatro de Budapeste e do cinema húngaro. E seu pai, Charles Pulszky, uma eminência do Parlamento e da Galeria Nacional de Arte da Hungria. Meu caro Nijinsky, no pior dos cenários, a companhia dos Ballets Russos não se beneficiará de Romola Pulsz­ky. O máximo que pode acontecer é nós ficarmos como estamos. 41


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Nijinsky – Ela vai arruinar você. Algo me diz isso, ela vai arruinar você. Diaghlev – Use sua intuição a serviço de suas coreografias! Nijinsky – Um louco empresariando um bando de dementes. Não sei o que está acontecendo com esta companhia. Estão todos perdendo a cabeça. Até Stravinsky se descontrolou comigo, hoje, durante os ensaios de A Sagração da Primavera. Diaghlev – É um alívio constatar que pelo menos o discurso de vocês dois está sintonizado. Ouvi exatamente a mesma queixa de Stravinsky. Embora ele tenha sido menos subjetivo. Stravinsky o culpa por interferência artística. Te acusa de adulterar sua obra. Nijinsky – Você não pediu condescendência com meus bailarinos? Diaghlev – Pedi uma coreografia menos impossível de dançar. Não que você desacelerasse a composição de Stravinsky. Nijinsky – Não entendo sua lógica, Diaghlev. Diaghlev (Ironicamente) – Não me diga?! Nijinsky – Você me tira do corpo de baile do 42


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Mariinsky, me promove a coreógrafo, no lugar de Fokine – tudo para rejeitar o que tenho de mais valioso? Diaghlev – Só você pode me dar o ballet novo, fascinante e surpreendente que eu e as plateias do mundo todo procuramos. Nijinsky – Pois então, deixe-me em paz. Diaghlev (Mais docemente) – Acontece que a equipe está reclamando. Nijinsky, converse com você mesmo, peça para sua sombra maneirar. Se não for pedir demais, se desculpe com os bailarinos. Para conseguir o que se quer, um coreógrafo precisa de um mínimo de entendimento com sua equipe. Nijinsky – Impossível. Nem a mulher que você contratou para traduzir minha coreografia para meus bailarinos faz com que dancem como eu quero. Diaghlev – Não é que eles não queiram. Eles não conseguem. Ninguém consegue dançar como o Deus Nijinsky. Nem mesmo a sua queridinha, Nijinska. (Nijinsky se afasta, entristece.) É brincadeira, Nijinsky, onde está seu senso de humor? 43


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Nijinsky – Minha irmã conseguiria. Diaghlev – Já discutimos isto. Nijinsky (Alterado) – Nijinska recusou o meu chamado. Minha Nijinska me traiu. Vocês todos vão me trair, sou vítima de um complô. Diaghlev – Nijinsky, seja razoável. Minha vida orbita em torno da sua. Nijinsky – Estou infinita e exaustivamente frustrado. Até minha querida Nijinska... Diaghlev – Sua irmã não pode dançar grávida, pode ser perigoso para o bebê. Nijinsky (Mais alterado) – Sabotagem: é isto o que vocês estão fazendo. Vocês querem asfixiar – a mim e à minha dança. Nós precisamos de ar. Precisamos de espaço. (Longa pausa) Muito bem. Morreremos todos, eu, você, esta tal Romola e a bailarina que interpretará a dança da morte. Experienciaremos uma catarse coletiva. A Sagração da Primareva será o ballet mais primitivo, mais bestial e bárbaro que São Petersburgo já presenciou.

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Diaghlev (Preocupado, sem esconder um entusiasmo.) – Mais um escândalo! Nijinsky – Mais um! Diaghlev (Entusiasmado) – Deixarei os seguranças a postos, em caso de uma comoção muito violenta da plateia. Você está me transformando num especialista do caos! Se a coisa ficar feia, também posso ascender as luzes durante o espetáculo – para intimidar a reação dos espectadores. Nijinsky – Faça isso. Diaghlev – Mas afinal quem será a virgem sacrificada? Nijinsky – Se eu fosse você, me preocuparia com questões mais importantes. Diaghlev – O que pode ser mais importante do que isso? Nijinsky – Se a dança será tão intensamente viva a ponto de se concretizar também fora do palco. Se restará algum sobrevivente. (Num tom quase ameaçador) Diaghlev – Está decidido. Providenciarei reforço policial também.

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(Diaghlev sai do palco. Mudança de luz. Romola se aproxima de Nijinsky.) Nijinsky – Diaghlev adora os escândalos de Nijinsky. Romola (Entrega o livro O Idiota, de Dostoievski, para Nijinsky.) – Nos Ballets Russos. Em sua vida pessoal ele os abominava. Nijinsky – É a bíblia, mãe? Eu não sinto o evangelho. Romola – É seu livro preferido, O Idiota. Nijinsky (Abre o livro) – Dostoievski me serve melhor. Lendo O Idiota eu compreendi que o idiota não era um idiota, mas um homem bom. Compreendo O Idiota, pois me tomam por idiota. Eleonora – Quem te toma por idiota? Nijinsky – Sei que as pessoas nervosas estão sujeitas à loucura, por isso tinha medo da loucura. Mas eu não sou louco, e o Idiota não é idiota. (Ele inicia a sua leitura) Romola – Diaghlev adorava seus ballets escandalosos porque sabia que eles renderiam críticas volumosas, salas repletas e 46


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ingressos esgotados. Instigou seu talento de surpreender. Só nunca pensou que um dia a surpresa seria exclusividade dele. (Mudança de luz novamente. Romola mais uma vez tenta amansar Nijinsky. Ele reage como um animal selvagem, mas aos poucos ela consegue se aproximar.) Fiz o possível para viajar com a companhia Ballet Russos para a América do Sul, em 1913. E o impossível para atrair sua atenção no navio. Vinte e um dias entre oceano e céu azul – e sem Diaghlev. Vitória! – disse a Anna, minha dama de companhia. No começo, fugia de mim feito um bicho assustado, mas não demorou até meu olhar fisgar e amansar você. (Ela se aproxima e acaricia sua face, como se estivesse diante de um cavalo. Nijinsky emite sons que se assemelham a um relinchar.) Ôa. Ôa. Calma. Mansinho. Isso. Assim. Calma. Ninguém vai te fazer mal. Vou cuidar de você. Agora vou cuidar de você. Calma. Ôa. Ôa. (A aparição de Diaghlev – que só Nijinsky vê)

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Nijinsky (Olhando fixo e com medo para Diaghlev) – Não! Diaghlev. Romola – Diaghlev foi vencido por um dos medos mais primários do homem: morrer afogado! Assim seu fim foi previsto por uma cartomante. Nijinsky (Apontando Diaghlev) – Diaghlev, Diaghlev! Romola – Preferiu driblar a morte anunciada a enfrentá-la. Tanta privação para terminar seus dias como previsto: sem Nijinsky ou ar, asfixiado pelas águas de Veneza. E ainda por cima perdeu você e o cenário paradisíaco do Rio de Janeiro. Nijinsky (Diaghlev se aproxima) – Diaghlev vivo, Diaghlev está vivo! Diaghlev – Morto. E ainda mais ameaçador. Romola – Diaghlev morreu afogado. Não vai mais te fazer mal, Nijinsky. Diaghlev – Morreu afogado como Nijinsky. (Diaghlev sai. Mudança de luz, novamente realidade. Entra Thomas, o pai de Nijinsky, chamado por suas memórias.) 48


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Thomas – Papai só quer te ensinar a nadar. Nijinsky – Eu te vejo dar cambalhotas e cair na água, mas tenho medo. Thomas – Não sabe nadar, tem que aprender. (Barulho de água.) Nijinsky – Estou caindo, chego até o fundo. (Barulho de bolhas de água.) Thomas – Bate a perna, Nijinsky. Nijinsky – Sinto que o ar me falta, então fecho a boca. Eleonora – Onde foi Nijinsky, Thomas? Thomas – Está aprendendo a nadar. Eleonora (Um grito) – O quê? Thomas – Vamos, filho! A perna! Nijinsky – Disponho de pouco ar. Se Deus quiser, eu serei salvo. Eleonora – Nadar não é um instinto do homem. Não é dança. (Barulho do pulo de Eleonora na água.). (Longa pausa) Thomas – Compartilhamos sangue, talento mímico e habilidade de saltar e parar no ar. Nijinsky – Eu sou um peixe. Sou um pássaro. Sou um louco que tem razão. Meus nervos são disciplinados. 49


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Thomas – Faltava ensiná-lo a nadar. (Longa pausa, mudança de luz.) Nijinsky – Faltava sacrificar o egoísmo para poupar seu filho da tristeza, confusão mental e carência masculina que assombram sua vida. Thomas – Dei o que tinha de melhor a você, filho. É o que fazem os pais. (Longa pausa) Nijinsky – A habilidade de seu filho dançar e saltar é tão extraordinária que as pessoas chegam a especular sobre a constituição de seus pés. Thomas – Se não fosse a deficiência que se apoderou do dia a dia da nossa família, depois que Stanislav caiu da janela... Sua mãe deixou de dançar, de me acompanhar nas turnês... Nijinsky – Era para você estrear um novo ballet, não uma nova família. Thomas – Não era para eu me apaixonar. (Longa pausa) Nijinsky – Não era para me ensinar a nadar, 50


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nem a voar. Era para passar longe daqui. (Longa pausa) Ou nunca ter partido. (Longa pausa, procura a solidão.) Esperava cada novo dia e, quando ainda me faltavam mil, via desaparecer esse e com júbilo me dizia que só restavam novecentos e noventa e nove. Thomas – Faltou lã para tecer a base que você necessitava? Nijinsky – Enterrara o anterior e me enternecia com o despontar do seguinte. Thomas – Faltou presença antes mesmo da ausência? Nijinsky – Se lhe fosse possível naquele momento encontrar solidão em alguma parte... ... Ainda que a solidão devesse durar toda a vida, teria se julgado feliz. Thomas – Foi esse o problema, filho? Você precisava de mais do que os meninos normais? Nijinsky – Mas embora estivesse quase sempre só, não podia dizer que o estava. Acontecia de andar para fora da cidade, de se enfiar por uma estrada qualquer. Mas quanto mais 51


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solitário era o lugar, mais perto de si sentia uma presença inquietante. (Mudança de luz, outras memórias. Nijinsky está se vestindo de menina, se maquia, sobe nos sapatos da mãe, rebola.) Nijinsky – Espetáculo de Páscoa. Minha primeira apresentação em público. Preciso caprichar. Vou surpreender, dançar como ninguém jamais sonhou. Vão ver Nijinsky como sequer ousaram imaginar! (Nijinsky transforma o xale vermelho da mãe em saia, e dança como uma menina. Barulho de festa, gente falando.) Convidada 1 – Como dança esta garotinha. Convidada 2 – É mesmo, ela é divina – divina e previsível. Adivinha o que vai ser quando crescer? Convidada 1 – Advogada? (Risos) Convidada 2 (Pausa, seriamente.) – Advogado. É um menino. 52


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Convidada 1 – Um menino? Convidada 2 – Não é o filho de Thomas, não é Nijinsky? Thomas (Entra e vê a cena) – Nijinsky! O que é isso? Nijinsky – Eu não sou menina. Querem ver? Posso provar. (Levanta o xale e desabotoa a calça.) Thomas – Meu filho, o que está fazendo? Nijinsky (Se recompõe) – Serei selvagem e agressivo como meu pai. (Som de aplausos na imaginação de Nijinsky, uma massa de aplausos.) Nijinsky – O aplauso. Por que você nunca me falou sobre ele? O aplauso é mágico. Olha que lindo eu estou. Pareço uma menina. Pareço minha irmã Nijinska. Minha irmã me admira. Thomas – Então sua irmã precisa de cuidados, tanto quanto você. Nijinsky (Longa pausa. Visivelmente alterado.) – A escuridão, o vazio, a tristeza; um reino 53


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inteiro de sonhos desmoronara ao seu redor, desmoronara sem deixar vestígio, sem ruído e estrondo, como um devaneio. E ele mesmo não se lembra do que sonhou. Romola (Entra, pega um caderno e uma caneta e entrega a Nijinsky.) – Nijinsky, tanto sofrimento há de ter algo de construtivo. Derrame neste caderno suas tristezas e seus sonhos. Nijinsky (Hesitando) – Ele não parecia estar em seu estado normal. As ideias se atropelavam; as mãos tremiam-lhe. Romola – Nijinsky, escreva, o Dr. Frankel disse que pode ser bom para você. Nijinsky – Escrevo tudo o que penso. Penso tudo o que sinto. Meus sentimentos são bons. (Nijinsky se acalma e começa a escrever) Eu caminho quando sinto a caminhada, falo quando sinto o que digo. Não penso de antemão sobre o que vou dizer. Não quero pensar nos meus discursos. Meus discursos são sinceros, pois eu pensei em meus discursos. Nenhum de meus discursos é refletido, por isso cometo erros. Quero assinar Ni54


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jinsky para a publicidade, mas meu nome é Deus. Amo Nijinsky não como narciso, mas como Deus. Eu o amo, pois ele me deu vida. Convém escutar Nijinsky, pois ele fala pela boca de Deus. (Nijinsky está escrevendo, ao lado de Romola. Entra Diaghlev.) Diaghlev – Como é, Nijinsky, está pronto para mim? Romola – Já esteve. Não está mais. Eleonora (Entrando) – De repente, outra vez, um mundo novo, uma vida nova e encantadora brilha diante de Nijinsky em sua perspectiva radiante. Diaghlev – Um novo sonho é uma nova felicidade! Nijinsky – Uma nova dose de veneno delicado e sensual! Oh, que importa a vida real! Diaghlev – Romola, faltam quase cinco anos para você entrar em cena. Se me permite aconselhá-la: vá para casa. Aproveite para namorar um pouquinho. Depois do casa55


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mento, fica mais difícil e pega mal. Lembranças para o Dr. Frankel. Nijinsky – Eu sou um homem de amor igual. Tenho o mesmo amor por todo o mundo. Não faço diferença em amor. Diaghlev – Eleonora, não se preocupe: o corpo torneado de seu filho vai continuar trazendo tempos de bonança para os Nijinsky. Está certo, eu não sou nobre como o príncipe Lvov. Mas, pense bem, a nobreza logo entrará em decadência – estamos a menos de duas décadas da Revolução Russa. (Para todos) E então, Nijinsky está pronto para mim? (Nijinska entra) Nijinska – Prontíssimo. Depois de um pas de deux com Ana Pavlova, em Don Giovanni, prontíssimo. (Os irmãos se abraçam) Nijinsky – Veja esse espectro mágico, que de forma tão encantadora, tão caprichosa, tão ilimitada e ampla se forma diante dele. 56


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Nijinska – Vá, Nijinsky. Já é hora. Nijinsky – (Agitado) Em vão o sonhador remexe, como que nas cinzas, em seus velhos sonhos, procurando, através do fogo renovador, aquecer o coração esfriado e ressuscitar novamente nele tudo o que antes era tão belo, que tocava a alma, que fazia o sangue fervilhar, que arrancava lágrimas dos olhos e que iludia com tanta perfeição! Diaghlev – Se eu vivesse rodeado de tantas mulheres tenho certeza de que minha sanidade também correria perigo. Nijinsky – Eu sinto e executo. Não contradigo o sentimento. Não sou um feiticeiro. Sou Deus no corpo. Todo mundo tem esse sentimento, só que ninguém se serve dele. Diaghlev – Você é frágil e manipulável. Romola – Não é você quem deve estar pronto para alguém. Os outros é que devem estar prontos para você. Eu estou pronta para você, meu querido. Diaghlev – Dance comigo, Nijinsky. (Nijinsky fica indeciso) Venha. Romola – É comigo que irá dançar. 57


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Nijinsky (Indeciso, ele vai para o centro do palco, senta na cadeira e fita a plateia por um momento.) – Quero dançar porque sinto. E não porque estão esperando. Diaghlev – Não neste palco caseiro, Nijinsky. Num teatro de verdade. Na Ópera de Paris, no Chatelet, no Teatro Imperial de São Petersburgo... Nijinsky – Era o primeiro minuto de uma serenidade estranha, repentina. Diaghlev – Estou falando das melhores casas do mundo, de figurinos ousados, de cenários estonteantes, de Debussy, Tchaikovsky, Schumann. Esta é a sua realidade, Nijinsky. Nijinsky – Sentia a cabeça andar-lhe à roda. Os olhos congestionados e o rosto emagrecido e lívido exprimiam uma energia selvagem. Diaghlev – Basta você querer. E sua mente ater-se a este mundo. Romola e Diaghlev – Nijinsky, venha dançar comigo. Nijinska (Entrando) – Sai desta cadeira, meu irmão, arranca seu corpo desta inércia depressiva e vamos treinar. 58


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Nijinsky – Quero minha vida de volta, Nijinska. Nijinska – Quer dançar. É isso o que quer. Dançar o dia inteiro, o tempo todo. Gastar esta energia toda que seu corpo produz. Nijinsky – O senhor não pode ficar ocioso. Nijinska – Isso mesmo. Sobra para a sua cabeça. Nijinsky – Seria muito útil que se entregasse ao trabalho, que tivesse um objetivo concreto em vista, seguindo-o com persistência. Diaghlev – Ele está apenas se aquecendo. O melhor virá quando Nijinsky estiver ao meu lado. Vamos, Nijinsky, seu lugar é nos Ballets Russos. Vamos invadir Paris e entrar para a história do ballet. Esqueça suas técnicas, aposente o ballet tradicional. Siga seus instintos, experimente a genuinidade. Libere esta energia sexual que borbulha dentro de você e se expresse através da dança. Apresente o verdadeiro Nijinsky à plateia. Toda sua intensidade. Toda sua genialidade.

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(Alguns contrarregras entram no palco. Trabalham na imagem de Nijinsky, arrumam seu cabelo, sua postura e vestem sobre ele um figurino pesado, com tecido em excesso. Enquanto isso acontece, Diaghlev observa e faz alguns retoques em Nijinsky.) Nijinsky – O tempo, em si mesmo, não é nada: a questão não está no tempo. Transforme-se no sol e toda a gente o verá. Diaghlev – Isto, Nijinsky. Descarregue no palco toda esta claridade que emana de você. (Para o contrarregra) Quem foi que escolheu este trapo? Leve-o para onde ele nunca deveria ter saído, para a lata de lixo. (Os contrarregras tiram a roupa de Nijisnky, que fica nu.) A imagem de Nijinsky deve corresponder à sua dança. Ser leve como suas asas, poderosa como sua presença, original como seus movimentos. (Nijinsky sorri) Aprimorada a casca, chegou a hora de trabalharmos a essência. Sem conhecer o belo, você nunca irá dançá-lo. Vou te ensinar tudo o que sei. Catequizá-lo. 60


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Introduzi-lo no mundo da arte, sua história, seus mestres, suas obras. (Romola sai do palco e volta arrastando uma estátua de Rodin: Pigmalião.) Romola – Diaghlev, por que você não começa com Pigmalião? Diaghlev (Irônico) – E não é que descobriram uma utilidade para você? Romola (Para Nijinsky) – Pigmalião se apaixona pela estátua que sintetizava seu ideal da beleza. Nijinsky – Não digo nada. Cheguei à conclusão de que mais vale se calar do que falar bobagem. Romola (Para Nijinsky) – A estátua que ele próprio esculpiu. Nijinsky – Diaghlev é inteligente. Compreende que sou burro e me diz para não falar. Diaghlev – Estou apenas te nutrindo de cultura, meu caro, a única vitamina que falta em seu corpo.

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Nijinsky – Eu não tinha paixão nem pelos objetos nem pela glória. Não os sentia. Romola – Nijinsky, do mesmo jeito que Rodin esculpiu Pigmalião, Diaghlev esculpe a sua vida, seguindo os moldes que o convém. Diaghlev (Interrompendo Romola) – Excelente escolha para iniciar nossa imersão cultural. Além de um belíssimo trabalho de Rodin, nos apresenta uma história de amor bastante recorrente na arte. Romola – Pigmalião já foi representada por Rousseau, por Goethe, Rodin e agora está sendo por você, Nijinsky. Nijinsky – Eu também me apaixonei por minha imagem na piscina. Diaghlev – Isto mesmo, Narciso, o ballet que inaugurou na Inglaterra o estilo Nijinsky de dançar. Romola – O ballet que despertou em você, Nijinsky, sua memória mais dolorida. Lembrase do tema? Apaixonado pelo seu reflexo na água, você se aproxima de sua imagem, até perder mais do que seu reflexo naquela pis62


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cina. Até perder a respiração, a consciência. Até você visitar a morte. Nijinsky (Começa a ficar inquieto) – Exerce uma influência terrível sobre mim o fato de que tudo é estranho. O estranho arrasa comigo. Romola – Não é à toa que durante a turnê dos Ballets Russsos na América do Sul Nijinsky, você teve um bloqueio no palco. Diaghlev (Interrompe) – Época em que Nijinsky esteve mais fragilizado, devido à minha ausência. Nijinsky (Inquieto) – Quando Deus quer castigar, a primeira coisa que faz é encantar a razão. Quando Deus quer premiar, a primeira coisa que faz é encantar a razão. Romola – O ballet que Diaghlev te colocou para dançar fez você reviver suas memórias obscuras. Te deixou obcecado com a ideia de morte. Nijinsky – Após a escuridão, o renascimento. O mundo parece iluminar-se de repente em minha cabeça.

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(Uma luz branca cega todos na plateia. Som de marcha nupcial. A luz volta ao normal. Diaghlev acompanha Nijinska, vestida de noiva, ao altar. Leva-a para Nijinsky, que está de terno e sorri, em paz.) Nijinska – Nijinsky, não me diga que foi você quem escolheu sua roupa? Nijinsky – Diaghlev tem muito bom gosto. Nijinska – Escolheu você... Nijinsky – E você. É a melhor bailarina da companhia. Nijinska – Tenho a quem puxar. (Pausa) Você vai ficar bem? Nijinsky – Eternamente. Nijinska – Que bom. Parto tranquila. Nijinsky (Assusta-se) – Vai partir? Diaghlev (Como se fosse o padre e estivesse realizando a cerimônia) – Esta cerimônia celebra algo mais significativo do que a união de dois filhos de Deus no reino divino, Bronislava Nijinska e Alexander Kotchetovsky. Celebra ainda a separação de dois irmãos. (Nijinsky começa a ficar inquieto) Nijinsky 64


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e Nijinska cresceram como um. Desde a infância um vê o outro como extensão de si próprio, como parte fundamental de sua vida interior. A noção de Nijinsky como indivíduo sempre esteve associada à sua irmã Nijinska. (Nijinsky está cada vez mais inquieto) Compartilha com ela pensamentos, sensações e vocações desde os dois anos de idade, quando ainda tentava distinguir sentimentos tão básicos e essenciais como dor e prazer, amor e ódio, realidade e fantasia. O corte será profundo e definitivo e irá alterar definitivamente a maneira como Nijinsky organiza seu comportamento. O modo como conduz a vida. (Diaghlev sai. Nijinsky inicia uma dança desenfreada. Nijinska fica em um canto, observando assustada a crise do irmão.) Nijinsky – Subo rapidamente. Paro no alto da montanha. Eu vou longe. Sofro com o frio. Sinto que devo me ajoelhar. Ajoelho-me depressa. Sinto que preciso pôr a mão sobre 65


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a neve. Solto a mão e de repente sinto uma dor. Olho uma estrela que não me diz bomdia. Ela não pisca para mim. Tenho medo e quero fugir, mas não posso. Meus joelhos estão soldados à neve. Começo a chorar. Meu choro não é ouvido. Ninguém vem em meu socorro. Sinto o horror. Não sei o que fazer. Tenho medo e grito com toda força: Morte! Não sei por que, mas compreendo que é preciso gritar Morte. (Romola entra em cena, tenta acalmá-lo e cobre-o com um casacão.) Romola – É inverno, está frio. Eu e o Dr. Frankel estamos há horas procurando você. Nijinsky – ... Eu sei que minha mulher pensa muito e sente pouco e começo a soluçar com tanta força que isso me corta a garganta. (Soluçando) Eu soluço escondendo o rosto nas mãos. Não tenho vergonha. Estou triste. Tenho medo. (Romola tenta acalmálo) Quero bem a minha mulher. Não sei 66


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o que fazer. Compreendo que toda a vida de minha mulher, assim como a de toda a humanidade, é a morte. Romola – Precisa dançar? Nijinsky – Preciso de Nijinska. Preciso esculpir Nijinska. Romola (Em tom malicioso) – Como Rodin fez com você? Nijinsky – (Para Romola) Os bailarinos não entendem minhas palavras, não entendem meus movimentos. Não preciso de você. Preciso de Nijinska. Preciso esculpir em Nijinska. (Romola sai) Nijinska – Estou aqui, meu irmão. Nijinsky – Você esqueceu o espelho. Como vou moldar meu ballet no seu corpo sem espelho? (Grita para a coxia) Tragam o espelho. (Os contrarregras colocam o espelho diante de Nijinsky, que começa a moldá-la, criando em seu corpo poses e movimentos.) Eu danço os corcundas e os eretos. Sou um 67


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artista que ama todas as formas e todas as belezas. (Grita novamente) Música! (Som da música A Tarde de um Fauno, de Debussy.) Nijinska – Prelúdio de A Tarde de um Fauno, música de Debussy inspirada no poema de Mallarmé. Nijinsky – Jean Cocteau está fazendo o cenário. Tentou me explicar o poema. Não entendi. Nijinska – Não precisa. (Um olhar cúmplice) Basta senti-lo (Longa pausa. Ela lê um fragmento do poema.): E que ao lento prelúdio onde nascem as flautas, E que ao prelúdio lento em que nascem as flautas, E que ao lento prelúdio das varas de visgo, Este arroubo de cisnes, ou náiades! foge Este voo de cisnes, náiades! se esquiva Esses signos no ar, mulheres! ludibriam Ou mergulham... Ou imergem... 68


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Ou afundam...” Nijinsky – O público gosta de se espantar. Conhece pouca coisa, por isso se espanta. (Pausa) Sei o que é preciso para deixar o público espantado. Nijinska (Tendo seus pulsos torcidos pelo irmão) – Meu pulso. Está doendo. Nijinsky – Que bom. É um ser vivo, feito de carne, osso, cicatrizes e doenças. É hora da desarmonia, de infestar o palco de discordância, de grotesco, de instinto. (Uma ninfa entra no palco dançando com um lenço vermelho. Nijinsky acompanha seus movimentos, com o olhar hipnotizado. Quando a bailarina deixa cair o lenço e sai do palco, Nijinksy livra-se de seu casaco e começa a dançar, nu. Apanha o lenço caído, acaricia-o, colocando-o no chão cuidadosamente. É quando ele se deita sobre o lenço e faz a cena mais erótica da história do ballet: simula um ato sexual.)

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Ato 2 (Nijinsky está no centro de um palco sentado em uma cadeira, fitando seu público – a plateia. Após alguns segundos, Romola, sua mulher, entra em cena e caminha até ele.) Romola (De mansinho, tentando controlar o nervosismo.) – Você se decidiu sobre a música, Nijinsky? A pianista precisa saber. Nijinsky (Estático e sereno, ele responde aos próprios questionamentos.) – Tenho tão pouca vida real. Momentos assim, como este, me são tão raros que não posso deixar de reproduzi-los em meus devaneios. Romola (Aflita, porém cuidadosa.) – O público já chegou, veja (apontando para a plateia). Não podemos esperar mais. A música. Por favor, Nijinsky, você não pode dançar sem música. Nijinsky (Nijinsky permanece fechado em seu mundo interior) – Eu fico olhando em silêncio, e não faço nenhum tipo de pergunta. Eu não consigo concatenar mais de duas 70


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ou três ideias de modo coerente. Acho que é isso. Diaghlev (Entrando) – Não se eu estivesse aqui. (Subitamente, Nijinsky vira-se para a cortina à esquerda do palco e grita.) Nijinsky – Toque qualquer coisa de Chopin ou Schumann. (A música começa. Diaghlev caminha em direção a Nijinsky, paralisando-o de pavor. Romola não nota a sua presença. Fim da música. Início de outra. Romola está nervosa.) Nijinsky – Sei que Diaghlev dirá “Nijinsky ficou louco”, mas tanto faz, pois já representei o louco em casa. Romola – Nijinsky, seja razoável. Diaghlev (Irônico) – Vamos, Nijinsky, isso já é loucura. Nijinsky (Olhando fixamente para Diaghlev) – Todos pensarão isso, mas não me botarão 71


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numa casa de loucos, pois eu danço muito bem e dou dinheiro a todos os que me pedem. Romola – Deve ser ótimo viver neste seu mundo fantástico. Ótimo e muito confortável se refugiar debaixo dessa loucura toda que você arrumou. Coisa de gênio, mesmo. Diaghlev – Diaghlev tinha razão. Nijinsky (Olhando para Diaghlev, mais agitado.) – As pessoas gostam dos excêntricos, por isso vão me deixar sossegado dizendo que eu sou um palhaço louco. Diaghlev (Ainda com ironia) – Isso acontece com todos os sábios que andam com ideias novas na cabeça. E não gostam de ser importunados, distraídos. Nijinsky (Para Diaghlev) – A falta de originalidade existe em toda a parte, em todo o mundo. Desde que o mundo é mundo sempre foi considerada a primeira qualidade. Romola – Quem sabe um dia as coisas voltem ao seu estado normal de anormalidade. Quem sabe você até dance novamente. Diaghlev – Eu não contaria com isso. 72


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Nijinsky (Para Diaghlev) – Os inventores e os gênios não eram vistos quase sempre pela sociedade senão como imbecis. Romola (Como sempre, sem notar a presença de Diaghlev) – Eu bem que tento te tirar deste seu mundo autista. Tento, vamos deixar isso bem claro. Mas você não reage. Embarca nesta alucinação solitária e nem pisca. Nijinsky (Para Diaghlev, na defensiva) – O acanhamento bem educado e a falta decente de originalidade têm sido até hoje a qualidade inalienável do homem de ação. Romola – Vou pedir para soltarem a música do começo. (A música recomeça. Nijinsky não se move, está petrificado com a presença de Diaghlev, que senta num canto o agredindo com os olhos. Longa pausa). Nijinsky (Procurando algo com o olhar) – Que mãe, que mãe que ame com ternura sua cria não ficaria assustada e nem doente de medo 73


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se o filho ou a filha saísse um mínimo que fosse dos trilhos. (Eleonora, a mãe de Nijinsky, entra falando com naturalidade. Romola é mais uma vez pega de surpresa.) Romola (Para Eleonora) – Já sei. Eleonora – Isso mesmo. Todos nos beneficiaríamos de uma pitada extra de intangibilidade na vida. Diaghlev – Seria uma brilhante solução para aflorar os instintos, reconectar as pessoas com a natureza, enfatizar o que há de comum, de coletivo e, na mesma medida, de único e especial. Eleonora – Estamos todos sofrendo deste mal: a falta de originalidade que domina e rege o mundo. Não é mesmo, meu caro Diaghlev? Diaghlev – Mas é claro, digníssima sogra. Romola – Nijinsky, me salve. Diaghlev (Para Romola) – Não há mais o que fazer por você, minha querida. Para você e 74


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para Nijinsky. Graças a mim, vocês estão condenados. Romola (Saindo) – Basta para mim. Nijinsky (Agitado, para Diaghlev.) – Sei que muita gente dirá que um homem sem inteligência é um homem louco ou um imbecil. Diaghlev (Ameaçador) – Louco. Imbecil. Nijinsky – Digo que um homem com inteligência é um homem louco ou um imbecil. (Diaghlev se levanta, caminha até Nijinsky, convidando-o a uma dança com o passado.) Nijinsky (Nervosamente) – Você não pode fazer isso comigo. Faltei a apenas uma apresentação. Apenas uma. Diaghlev (Para Nijinsky) – Você pode ser louco, desde que dance. Não se esqueça de que fui eu quem te moldei, fui eu quem te poli. Você não passava de um passarinho assustado quando me conheceu. Nijinsky (Nervosamente) – Por favor, Diaghlev, seja razoável. 75


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Diaghlev – Razão nunca faltou. A mim. Nijinsky – Um dia contra todos os longos anos que dancei para você. Diaghlev – O suficiente para você e aquele futuro decadente de onde uma vez te resgatei se reencontrarem. Nijinsky – Eu trabalhava muito a dança, me sentia sempre cansado. Mas fingia não me sentir cansado e estar alegre para Diaghlev não se aborrecer. Diaghlev – Estou livre, inclusive de seus monólogos. Nijinsky – Não vai conseguir surpreender plateia alguma com Fokine. Sabe disso. Diaghlev – Você alucina. Nijinsky – Não estava passando bem. Diaghlev – Seu porco, sujo, mentiroso. Nijinsky – A mentira é a vantagem do homem sobre todos os animais. Diaghlev – A mentira é o único privilégio do homem sobre todos os outros seres. Dostoievski não é sua exclusividade. O vanguardismo não é sua exclusividade. E o ballet moderno vai sobreviver muito bem sem você. 76


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Nijinsky – Além da hipocondria, de certo peso na cabeça e da dor nos membros, não sinto nenhuma outra perturbação. Diaghlev – Controlar as emoções é inútil até para as pessoas normais. Nijinsky (Em crescente descontrole) – Quem te disse que a morte não seria para mim felicidade? Não te disse hoje de modo mais categórico que me era insuportável? Diaghlev – Deve ter dito a si mesmo. E logo depois tido um ataque. Nijinsky – Tem prazer em me torturar? Não percebe que estou agora falando com toda a lucidez? Deixe-me! Deixem-me todos. Deixe-me em paz! Diaghlev – Já o fiz. É exatamente esta a razão de seu infortúnio. Nijinsky – Que fazes tu? – Um trabalho. – Mas que trabalho? – Penso – respondeu. Diaghlev – O que se pode dizer de um homem que não está em seu juízo...

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Nijinsky – Gosto de me esconder das pessoas. Tenho o hábito de viver só. Diaghlev – Diga ao menos para si mesmo: por que faltou na apresentação do Rio de Janeiro? Nijinsky – Eu sou Deus no homem. Diaghlev – Assuma de uma vez porque foi expulso dos Ballets Russos. Eleonora – Diaghlev, suas palavras são bolhas vazias que estouram quando tocam o ar. Nijinsky, isto só está acontecendo dentro da sua cabeça. Diaghlev – Dentro da cabeça de Nijinsky minhas palavras, fictícias ou não, pesam como chumbo. Nijinsky – Eu sou Deus. Deus está em mim. Diaghlev – Sou uma espécie de tumor que não para de se multiplicar dentro de você, Nijinsky. Sou um desconforto crescente que só a morte tem poder de aliviar. Nijinsky – Cometi erros, mas os corrigi. Sofri mais do que ninguém no mundo. Diaghlev – Vamos Nijinsky. Assuma logo esta culpa. Assuma pelo menos para si mesmo. 78


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Eleonora – Ele tinha acabado de se casar. Pronto. Nijinsky – (Dá um grito de pavor) Romola (Entra correndo para ver Nijinsky) – Nijinsky, você está bem? Eleonora – A verdade, Diaghlev, é que Nijinsky e Romola aproveitaram sua ausência para enfiar uma faca em seu peito. Para explodir seus sonhos. Você foi enganado e traído. (Nijinsky desmaia. Romola corre para acudi-lo. Aos poucos, ele recobra consciência.) Nijinsky – Eu amo minha mulher mais que tudo no mundo. Hoje lhe disse isso na mesa durante o jantar. (Caminha até Romola e fala com tranquilidade) Romola – O quê? Quem? Diaghlev – Você alucina, Nijinsky. Romola (Desafiando Diaghlev) – É a minha presença que você quer? Diaghlev – Você mesmo me alertou. Romola não passa de uma oportunista sedentária, 79


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que usou a influência de seus pais para embarcar no navio e acompanhar os ballets russos na sua turnê pela América do Sul. Nijinsky – Não está com fome? Diaghlev – Claro que sim, com este corpinho volumoso... Romola – Depois da sua declaração, meu Nijinsky, estou com fome de vida! Você tem consciência do que acaba de me dizer? Nijinsky – Acho que hoje pedirei pato assado. Será que no Rio de Janeiro tem pato? Não, pato não é exótico o suficiente. O que vou comer? Não gosto de cobras, nem cobra nem macaco. Romola – Nunca pensei que seria tão rápido. Casamento apenas três meses depois do nosso primeiro encontro. Nijinsky – Peixe. Um peixe bem diferente, com banana, abacaxi, algo assim. Romola – Três meses de comunicação escassa, ainda por cima. Você sem falar francês e eu sem entender uma palavra de russo. Só mesmo com a ajuda de um intérprete. Nijinsky – Vamos jantar, Romola. 80


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Romola (Iluminando-se) – Tem certeza? Diaghlev (Se aproximando) – O intérprete, a seu dispor. Se Nijinsky tem certeza? Tem certeza de ter trocado fama por decadência. Romola – Tenho certeza que abrirei o mundo feminino para você, Nijinsky. (Vai até Nijinsky e o beija longa e intensamente. Ele se atrapalha, está confuso.) Do masculino, lhe sobrarão memórias traumáticas e nojo. Diaghlev (Para Nijinsky) – Esta mulher que você arrumou fala do mundo feminino com tanta propriedade, mas termina seus dias como o macho da casa. Romola – Nossa vida, Nijinsky, está apenas começando. (Longa pausa. Nijinsky se afasta, pega uma mala na mão e espera, ansioso, por alguém.) Romola – Ele não vem. Nijinsky – A ansiedade dá piruetas em meu corpo. Romola – Não vem. Ou não o teria demitido por uma carta. Depois de tudo... 81


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Nijinsky – O sangue dança em círculos, o estômago se contorce, o coração bate acelerado. Nijinsky deseja intensamente dividir com Diaghlev o sucesso dessa turnê. Romola – O desprezo de Diaghlev por você é tão profundo que ele nem se deu ao trabalho de te demitir pessoalmente. Nijinsky – Diaghlev não quer ser um ladrão. Romola – Vamos para casa, Nijinsky. Começar nossa vida. Nijinsky – Diaghlev quer ser chamado de mecenas. Transformou Nijinsky num produto inédito. Nunca houve um bailarino tão poderoso na história da dança. Romola – Diaghlev vai passar. Como passou sua irmã, seu pai, seu irmão. Vamos, Nijinsky. Nijinsky – Diaghlev me lembra uma velha má. Romola – A presença deste homem te envenena. Inclusive a abstrata. Deixe-o ir. (Diaghlev se aproxima)

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Diaghlev – Sua fama parecia indestrutível. Você teve a capacidade de se arruinar. Me trocou por um exemplar piorado da mesma espécie. Escolheu um Diaghlev versão saia, despido de talento, elegância e ousadia – e ainda por cima com um corpo desproporcionado. Romola – Foram anos suando por você. Diaghlev – Suando sobretudo sobre mim. Nijinsky – Pensei que você viria. Que entenderia. Diaghlev – Longe ao castelo tornando, Dura reclusão viveu, Sempre mudo e tristonho Como louco ele morreu. Com Pushkin me despeço. (Nijinsky embarca na crise) Nijinsky – Que horrível cena está passando. Senhor! São gritos, gemidos, ranger de dentes, vociferações como ele nunca ouvira... Romola – Vamos, meu querido.

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Diaghlev (Irônico) – Acalme-se Nijinsky. Recomponha-se. Nijinsky – Ouve vozes, exclamações; “Mas por que isso? Por quê? Como é possível?”, repete, começando a acreditar que a loucura se apodera de seu cérebro. Diaghlev – Abrir-se à imaginação é um ato sábio, necessário. Você mesmo me disse isso. Romola – A loucura não pode tomar conta por completo. Nijinsky – Tudo o que parecia referir-se a um passado distante, tudo o que chegara a esquecer completamente durante dez a quinze anos, tudo isso, volta bruscamente à lembrança. Com uma tão surpreendente exatidão de impressões e pormenores, como se vivesse novamente aquilo. Diaghlev – Através de um ângulo inteiramente novo, inesperado e, sobretudo, inconcebível. Nijinsky (Ainda descontrolado) – Não se trata apenas dos veredictos do espírito, seu espírito sóbrio, solitário e doente. Por que certas recordações me parecem, agora, verdadeiros crimes? 84


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Romola – Por que não abraça meu mundo, o mundo da mediocridade? Renuncia ao irracional, ao intangível – e viva uma vida... Diaghlev (Incrédulo) – Normal? Romola – Uma vida longa. Diaghlev – É ele quem está se envenenando. Não preciso fazer nada. Nijinsky – Tudo atinge uma maldição. Uma verdadeira calamidade. Uma catástrofe definitiva. Eleonora (Nervosamente) – Romola, a conversa agora é sobre Nijinska. Nijinska! (Nijinsky se surpreende. Romola também.) Romola – O que tem Nijinska? Eleonora – Contei para você que minha filha nunca esteve tão feliz? Diaghlev – Olha só quem manipula a mente de Nijinsky... Nijinsky (Despertando para a realidade) – Quem? Eleonora – Nijinska está realizada, desde que nasceu sua Nijinska em miniatura. Nunca esteve tão feliz.

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Nijinsky (Ainda despertando para a realidade) – Minha irmã? Romola – É, Nijinsky. Sua mãe está me contando sobre Nijinska. Diaghlev – Isso. Sua única e melhor irmã. Quem te abandonou quando você mais precisou dela. Eleonora – Ela queria vir te ver. Queria trazer a filha para você conhecer. Sua sobrinha. Nijinsky – Me ver? Romola – Sua irmã é filha, irmã, bailarina e mãe. Nijinsky (Emocionado) – Minha Nijinska é mãe. (Longa pausa) Nijinska é feliz sem mim. Feliz, como se estivesse morrido e, ao mesmo tempo, estivesse viva, aproveitando das vantagens de um estado e de outro. Diaghlev – Se esta é sua definição de felicidade, então assistirei feliz à sua morte em vida. (Senta em um canto, observando a distância.) Nijinsky – Nijinsky com Nijinska. (Abre um sorriso)

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(Entra Nijinska, a irmã de Nijinsky, empurrando uma arara de roupas. Romola observa, num outro canto.) Nijinska – A mamãe disse para você vestir qualquer coisa. Pode escolher. Nijinsky – Qualquer coisa? Nijinska – Não adianta se animar. O uniforme você já sabe que está proibido de usar. (Nijinsky tenta escolher uma roupa da arara, mas não consegue. Se complica, se atrapalha, se enerva.) Qual o problema de não usar uniforme? Sabe o que isso significa? Que Nijinsky agora é bailarino de verdade. Que a aprendizagem agora é com a vida. Nijinsky, você deveria estar dando piruetas de felicidade. Nijinsky – Dou piruetas por necessidade. Nijinska – Não tem cabimento um bailarino formado não usar uniforme. Escolha qualquer uma, criatura. Nijinsky – Me ajuda? Nijinska – Estica a mão e puxa um cabide. Não pode ser tão difícil. 87


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Nijinsky – Só hoje... Nijinska – Vamos Nijinsky, pra que complicar tanto a vida. Nijinsky (Ele tenta puxar um cabide. Desiste.) – Não consigo. Nijinska – Use seu instinto. Escolha pelo toque. Pelo tecido. Acaricie a peça e veja qual desperta mais emoções em seu corpo. Nijinsky – Vou dançar nu. Diaghlev – No palco a nudez crua não funciona. Nijinska – Você pensa que está escolhendo o figurino de seu début no Teatro de Moscou. Nijinsky, é só para hoje. Para usar aqui em casa. Vai. Não faz drama. Diaghlev – No palco é a sugestão da nudez que vale a pena. Nijinsky (Nervoso) – Vou vestir esta calça. (Olha para Diaghlev, esperando uma aprovação que não vem.) Nijinsky – Esta calça não. Ela é um atestado contra minha liberdade. E esta? (Olha novamente para Diaghlev. Ele novamente desaprova.) Um insulto aos meus olhos. 88


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Esta camisa está melhor. (Novamente) E me fantasiar de gente comum? Esta aqui parece mais apropriada. (De novo) Mas não posso desperdiçá-la em deleite próprio. (Pausa) Eternamente este tormento, minha irmã. Não vou aguentar. Diaghlev (Se aproxima, tira do bolso um lenço vermelho e entrega à Nijinsky.) – Toma. (Nijinsky faz um movimento pélvico com o lenço, similar ao que irá fazer na coreografia do Fauno.) Nijinska – Nijinsky, me dá este lenço e escolhe uma roupa. Qualquer uma. Só para você não surpreender sua mãe e sua irmã com nada saltando por aí além das suas pernas. (Os dois riem. Longa pausa.) Nijinsky – Quero minha vida de volta, Nijinska. Diaghlev – Já morreu? Foi mais rápido do que pensei... Nijinsky – Minha vida de estudante.

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Nijinska – Qualquer bailarino daria tudo para se ver livre daquela maratona de treino. Nijinsky – Eu não. Nijinska – Não era muito puxado, muito rígido? Nijinsky – Era. Nijinska – Então pare de sofrer e aproveite. Nijinsky – Acordava com meu dia programado. Nenhuma decisão a tomar. Nenhum espaço para esta dúvida terrível que enfrento agora. Nijinska (Dá risada) – Que exagero! Nijinsky – Todos os dias, a mesma preocupação. Todos os dias, o mesmo tormento. Acordo e tenho um mar de resoluções pela frente. Nijinska (Acha graça) – Sendo a mais desafiante delas que roupa vestir? Nijinsky – Minha vida virou uma série de grandes e intermináveis decisões. Nijinska (Dá risada) – Quando estiver velho demais para o ballet deve partir para o drama. Que vocação você tem! Diaghlev – Se tiver sobrevivido. (Nijinsky co90


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meça a ficar agitado) Para acalmar os nervos excitados, precisava dormir aquela noite, apesar da insônia, custasse o que custasse; e para adormecer era necessário pelo menos ficar cansado. Nijinska – Nijinsky, você precisa dançar. Romola (Entrando) – Dançar? Nijinska – Se exercitar. Gastar suas energias. Seu corpo precisa de uso para o resto de você trabalhar em harmonia. Romola – É, Nijinsky, por que não dança? Nijinsky – Preciso ter uma única preocupação: a dança. (Eleonora aparece) Eleonora – Meu filho, em sua fase de aprendiz, a vida de estudante te deu o que você precisou. Agora é tempo de descobrir novas necessidades. Nijinsky – Minha mãe me lamenta. Eleonora – Desconfie dos seus sentimentos. Nijinsky – Minha mãe sente um amor imenso por mim. 91


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Eleonora – Nos meus sentimentos, pode confiar. Nijinsky – Saí da escola, mãe. Sinto liberdade, mas esta liberdade me dá medo. Eleonora – O ciclo da sua vida de estudante já se fechou. Diaghlev (Se aproximando, novamente, em direção a Nijinsky.) – O ciclo da sua vida toda já se fechou. Nijinsky (Nijinsky fica mais agitado) – Quero minha vida de volta. Minha vida de volta. Nijinska – Mãe, deixa que eu me entendo com ele. Eleonora – Disso eu não tenho dúvida. Vocês dois formam um. Desde pequenininhos. Se ainda fossem irmãos gêmeos eu entenderia... Nijinska – Nijinsky é parte minha de sangue e de alma. Nijinsky – Senti-me, durante um momento, invadido por uma alegria doída. (Os dois se abraçam)

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Diaghlev (Tira uma camisa e uma calça da arara e dá a Nijinsky) – Veste isto aqui. Você precisa estar bem-vestido para o começo do fim. (Nijinsky segura a roupa, sem se desvencilhar da irmã. O abraço continua. Mudança de luz. O clima agora deixa de ser de alegria. Trata-se de uma despedida). Nijinsky – Por que, por qual magia, o pulso acelera, saltam lágrimas dos olhos do sonhador, ardem suas faces pálidas, úmidas e toda a sua existência se enche de um júbilo tão irresistível? Romola – A infância tem sua sentença de morte prescrita em letras capitais no dia do nosso nascimento. Qualquer tentativa de eternizá-la é perda de tempo. Nijinsky (Nijinsky não quer soltar a irmã) – Ao seu lado, Nijinska, noites inteiras de insônia passam como um instante, numa alegria... Diaghlev – Finita. (Dá uma risada sarcástica)

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Nijinsky (Continuando) ... – E quando, minha irmã, a aurora brilha com um raio rosado nas janelas e o amanhecer ilumina o quarto sombrio com sua luz incerta e fantástica, o nosso sonhador se lança ao leito e esmorece, com uma dor doce e atordoante no coração. Nijinska – Nijinsky, a alegria pode ser finita, desde que seja também inesquecível. (Longa pausa. Desvencilha-se do abraço do irmão.) Meu irmão, preciso ir. Nijinsky – Para onde? Nijinska – Para o futuro. Nijinsky – Ele está aqui? (Longa pausa) Nijinska (Emocionada) – Está. Está me esperando. (Pausa) Lá fora. (Longa pausa) Nijinsky – Mande-o entrar. (Longa pausa) Nijinska – Eu adoraria... Nijinsky – Então peça para ele esperar um minutinho. Eu já vou. Só preciso vestir alguma coisa. Nijinska (Emocionada) – Tenho que ir. (Longa pausa) Nijinsky – Vai me deixar? Não aprendeu a viver sem mim. (Longa pausa) 94


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Nijinska (Emocionada) – Você seria tão maravilhosamente bem-vindo... Nijinsky (Em crescente descontrole) – Quero passear com você. Você não quer passear comigo. Acha que eu estou doente. Nijinska – Se eu pudesse ficar... Nijinsky – Quero viver na Hungria e você não quer viver na Hungria. Quero viver na Rússia e você não quer viver na Rússia. Nijinska (Interrompendo) – Nijinsky, parto sem dois braços e duas pernas. Com apenas um coração. (Os irmãos iniciam uma dança juntos, até que Nijinska sai e Nijinsky parte para uma dança desesperada.) Diaghlev – O mundo dirá que Nijinsky ficou louco. Nijinsky – Inclusive eu. (Longa pausa) (Fim da música. Nijinska sai de cena, Romola e Diaghlev observam de longe. Nijinsky fica sozinho no palco, se masturbando.) 95


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Nijinsky – Gosto do meu companheiro de masturbação, mas sinto que ele me ensinou uma coisa má. Sofro quando tenho vontade daquilo. Tenho vontade toda vez que vou para cama. Na escola ninguém sabia nada de meus hábitos, por isso continuei. Continuei até notar que não estava dançando tão bem. Desde então, luto contra a luxúria. (Entra Romola de camisola e deita-se ao lado de Nijinsky, que deixa de se masturbar.) Romola – Nijinsky, foi tudo tão rápido, tão imprevisível. Não parece verdade. Nem a minha e nem a sua. Nijinsky casado. Com uma mulher ainda por cima. Nijinsky – Faço todos os esforços para me convencer de que compreendo nítida e completamente a situação. Romola – Para o mundo é noite de núpcias. Para o maior bailarino de todos os tempos, a mais esperada estreia. Nijinsky – Mas como teria ficado feliz em se livrar e fugir de algumas preocupações. 96


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Romola – Se preocupe apenas com nossa noite de núpcias. Nijinsky – Eu sempre achei interessante como as pessoas enlouquecem e retornam à sanidade. Romola – Esta energia que te devora, por que você não a direciona para fora? (Longa pausa) Nijinsky – Estou perturbado e, ao mesmo tempo, como que desconcertado. Romola – O mundo habita seus sonhos. Por que não eu? (Longa pausa) Nijinsky – Sinto-me incapaz de concatenar as ideias. Confusamente, pressinto algo, assustado. Romola – Não pense em mais nada. Apenas em nossa noite de núpcias. Nijinsky (Começa a ficar agitado) – Diaghlev é um homem horrível. Eu não amo os homens horríveis. Romola – Esqueça Diaghlev, Nijinsky. Nijinsky (Mais agitado) – Não amo os homens horríveis, mas não lhes farei mal. Não quero que os matem. Eles são águias. 97


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Romola – Esqueça Diaghlev e venha. Me faça sua. Nijinsky – Águias impedem aves pequenas de viver. É preciso tomar cuidado. Romola – Esta águia está voando longe daqui. Nijinsky – Quero provocar Diaghlev para um duelo, de modo que o mundo inteiro veja. Quero provar que toda a arte de Diaghlev é tolice. (Diaghlev entra no palco e se aproxima lentamente. Um clima de suspense e terror se instala. Romola não percebe a sua presença.) Romola – É nossa noite de núpcias. Diaghlev (Para Nijinsky) – Compreenda que sua consciência está obscurecida, e que esse estado vai permanecer, com breves intervalos, até a catástrofe definitiva. Nijinsky (Com medo) – O coração bate com tanta força, que chego a recear não ouvir minha própria imaginação.

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(Nijinsky tira um lenço vermelho do bolso e venda seus olhos) Romola – Desisto, Nijinsky. Boa-noite. Diaghlev – O terror que antes experimentava Nijinsky dominava-o agora completamente. Nijinsky (Com medo) – Minha loucura é o amor. Minha loucura é o amor da humanidade. Romola – Minha loucura é você, Nijinsky. Infelizmente. (Vira para o lado e dorme) Nijinsky (Com medo de Diaghlev, que está diante dele) — Não foi diante de ti que me curvei, mas diante de todo o sofrimento humano. (Diaghlev aperta a cabeça de Nijinsky. As luzes se apagam. Som de estouro.) Fim

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A História Dela A Peça A História Dela é um poema cênico sobre memória, loucura e a implacável passagem do tempo. Em cena, o drama existencial de uma mulher que após uma vida adormecida desperta para os sonhos suspensos no passado. Uma experiência extracorpórea na qual os personagens, voyeurs de si mesmos, flutuam no presente, falam no passado, refletindo sobre o agora com distanciamento e profundidade. A História Dela é um texto-joia guardado numa antiga caixinha de música. Ao abrir a caixinha de música, nostalgicamente, a atriznarradora-personagem abre a caixa de Pandora de todos nós libertando os males, assim como a ilusão da esperança. 101


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Escrita originalmente para o projeto DramaMix das Satyrianas, em outubro de 2007, a peça foi ampliada e ficou dois meses em cartaz no Espaço Satyros Dois, em fevereiro e março de 2008, com direção de Lucianno Maza e interpretação de Clóvis Tôrres e Luah Galvão.

Cena 1 Narrador i – Pouco importa se a natureza já entrou em curso na vida dela. Para ele, sua mulher é a mesma. Narrador ii – Ela perdeu a conta de quantas vezes viu os ponteiros do relógio se arrastarem. Um dia inútil, mas cheio. Com a ajuda de um carro de rodas indelicadas, corre para uma loja de departamentos. Procura um presente para os 20 anos que perdeu. Narrador i – Ainda é setembro e Boston já afunda debaixo de neve. Para sobreviver ao mar branco, gélido, ela se arma de escudos, creme, cachecol, sobretudo e luva. Narrador ii – Ela encontra resposta para a única pergunta para a qual não buscava 102


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solução. Essa sai sem esforço da vendedorachamariz com sua boca rosa-choque, as sandálias verde-limão e o chiclete azul-celeste que é insistentemente exibido. “O homem que aguentou uma mulher, qualquer uma, por 20 anos merece indenização”, fala enquanto acerta o próprio decote – obviamente exagerado. Depois de espremer o repertório numa lista de presentes caros e duvidosos, contaminada pelo desânimo da cliente, a vendedora diz a que veio: “Daqui para a frente, é com a senhora, madame”.

Cena 2 (Passado) Narrador i (Som de ondas do mar) – A mulher é agora pouco mais que menina. A pele de veludo brilhante revela a inocência até o momento intacta. A vida ainda engana com sua máscara de animal domesticável. Narrador ii – Numa praia carioca habitada por um casal de jovens, o rádio de pilha se esforça sem sucesso tenta cantar mais alto do que o oceano. 103


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Narrador i – As ondas rolam e desenrolam, numa ginástica intensa que ensina a quem quiser aprender o significado de eternidade. Narrador ii – Eles buscam seus reflexos nas ondas. Lá está ela, apressada e decidida. É a primeira a chegar e a fugir da areia. Mal encostou na textura granulada, reclama do aspecto sujo do bege, do cheiro desagradável das algas arrastadas pela correnteza e corre para a próxima descoberta. Narrador i – Foge de volta para casa. Narrador ii – Ele nasce de um redemoinho, insiste em bagunçar a ordem. É frágil e selvagem. Vem porque essa é a lei da natureza. Vai porque essa é a lei da natureza. Não mira em nenhuma direção. Chega como alga malcheirosa, levado pela correnteza. Narrador i – Eles brincam de brigar. Um entusiasmo que tem razão de ser: amor. (Longa pausa) Narrador ii – Ainda falta acertar a camisa. Há muitas dobras naquela camisa. Não esquecer de comer devagar, falar baixo, sentar reto. 104


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Narrador i – Voltaram ao mesmo tema de sempre. Estão falando sobre tradicionalismos. (Longa pausa) Ela não gostava de monotonia. Dizia que com ele não correria perigo. Narrador ii – Mas não consegue dançar, Não assim, sem música, em qualquer lugar. Narrador i – “Vem”, ele pede, impulsionado pela melodia do oceano. (Pausa) Ela não dança nem foge para casa. Permanece. O corpo mudo. Ergue o braço enrijecido só para pegar o que ele lhe estende. Um presente. Narrador i (Som de caixinha de música) – Ela ganha uma caixinha de música. Narrador i – Põe a bailarina para dançar admirando como ela se deixa levar.

Cena 3 Narrador i – O som agora nasce em plena civilização. Brota do tintilhar dos copos brindando. Ao fundo, o zum-zum-zum de graves e agudos cosmopolitas. 105


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Narrador ii – Ele enfatiza os 20 anos em comum, ela se aproxima de um tempo só dela. Ela sente falta da diversidade. Narrador i – Vistos pela perspectiva do salão repleto, as mesas habitadas, as histórias vivas, eles não passam de mais um casal, mais um que tirou a noite para agradar o estômago, num levantamento sem sentido de copos e talheres estranhos. Narrador ii – “Feliz aniversário de casamento”, diz ele. Ela retribui com sorriso triste, olhos baixos, pernas relaxadas involuntariamente pelo vinho. Narrador i – Minha mãe sempre dizia, um dia você se olha no espelho e enxerga que o tempo passou. A consciência da passagem do tempo é como uma rasteira, já dizia a mãe dela. Narrador ii – Há muito, talvez sempre, as gentilezas dele só contribuem para o avanço lento das horas. (Pausa) Narrador ii – Suspensa no passado, a dúvida atordoa as certezas dela. (Longa pausa)

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Narrador i – A filha do casal. A esperança que parou de crescer. Não demora, logo alcança faculdade. (Pausa) Ela conversa com a solidão. Não sabe o que dizer. Narrador ii – Ela se ocupa com palavras, Ele escuta o monólogo dela. Ela diz sentir falta de dormir sem tomar banho, de pensar de novo que tem a vida toda pela frente, de não se preocupar com o envelhecer. Quer experimentar, quer seu corpo firme de volta. Não se lembra da última vez em que provou algo pela primeira vez. Narrador i – Ela sente falta do tempo em que não sentia falta de nada. Ele sente falta do tempo em que ela pensava não sentir falta de nada. (Pausa) Ele respira profundamente, guerreia contra medo, superficialidade: “Em nós, do que você sente falta em nós”, quer saber. (Pausa) Um convite para ela se perder em bons pensamentos. Narrador ii – Ela tinha ilusão, tinha certeza, havia se encontrado. Um encontro com suas expectativas. Lembra do primeiro fim de semana que passaram juntos. Da ansiedade 107


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com que fez a mala, tentando adivinhar o destino da viagem. Na dúvida, levou tudo, de casacão a biquíni. Narrador i – Ele se recorda especialmente bem dessa mala. A mala que carregava tudo. A mala que ele teve que carregar. (Sorri) Por um breve instante, a tensão se recolhe. O casal sorri. (Pausa) Narrador ii – Ela se perde na primeira árvore de Natal. Armar aquele mundo encantado para a filha teve magia, a vida adulta em seu momento especial. Narrador i – Ela não se importou de despertar o bebê. Ele lembra do arrependimento depois. Choro estridente. Enfim algo que ela não sente falta. (Longa pausa) Narrador ii – O sorriso não contagia mais. É forçado, duro. Feito a vendedora multicolorida, a garçonete se aproxima: “Ora, se este não é um casal feliz?” Anota os pedidos, diz inconveniências e sai, no rebolar. Narrador i – Uma pergunta que ele não ousa esta sobre felicidade. Se arrisca pisar em outro terreno minado: quer testar ele mesmo, 108


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o Rio de Janeiro. Um convite para comemorar os 20 anos. (Longa pausa) Narrador ii – Ela engasga com as palavras. O efeito do vinho passa. O apetite sai, sem olhar pra trás. As palavras fogem da boca. Recomposta, ela culpa a violência da cidade por sua hesitação. Narrador i – Duas décadas de silêncios ganham força, tomam forma de lança. Perigoso para quem?, ele arremessa. Uma enxurrada de dúvidas cai sobre sua cabeça, pingos gordos ferem as certezas frágeis. (Longa pausa) Narrador ii – Se a garçonete chegasse. Se a dúvida não transbordasse.

Cena 4 (Presente) Narrador i – No lugar das sacolas, o peso do nada. Carregando o vazio nos ombros, ela segue de volta para casa. Narrador ii – Ela se endivida de angústia. A tormenta da suspeita confirmada, do passado inerte, feito carne acinzentada à espera 109


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de enterro, presente frágil que ainda cambaleia, que o tempo tratou de solidificar. Narrador i – Protegida pela solidez do carro, os vidros isoladores, o estofado reconfortante, ela se surpreende nela. O encontro com o desconhecido. Quem é essa estranha que tanto e tão pouco se parece com ela? Narrador ii – A dor enfim se liberta. Corre a face, umedece boca, queixo, dribla pescoço, do precipício do rosto salta direto para o coração. Narrador i – Ela lamenta os canteiros aparados do caminho. Beleza falsa essa moldada. Admite o fascínio pelas flores de beira de estrada, encanto selvagem, encanto gratuito, sem razão de ser. Narrador ii – Um erro perseguir a racionalidade. Uma pena a percepção tardia do erro. O raciocínio que tanto buscou, que tanto controlou, virou loucura. Narrador i – Ela anseia rodar sobre o trilho da imprevisibilidade, perder-se em atalhos misteriosos. Convida à dança frenética, à inteligência da loucura. 110


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Narrador ii – Um pedestre apressado estaciona o corpo no meio da rua. Para para admirar o brilho da beleza dela, olhar limitado que não vê a secura, a aridez reinante. Ela foi ultrapassada pela vida. O mundo passa, não a vê. (Longa pausa) Narrador i – Livros por todo lado. Ela está impaciente inclusive para reclamar. “Terremoto?”, se limita a perguntar à filha, da porta da sala. A jovem se desculpa, culpando a pressa do relógio. E a história do tempo de novo se confunde com a história dela. Narrador ii – Ela se reconhece na filha, se desarma, oferece suas carências, abre um abraço cúmplice, que ao permanecer, pesa. Narrador i – A distância entre ambas se mantém. Feito a mãe, a filha busca refúgio nas palavras. Pergunta sobre os livros de arquitetura, faz uma observação sobre a distância da loja de departamentos, diz algo sobre conhecer a dificuldade que é dar presente para o pai. “Ele tem tudo”, concorda a outra. Feito a mãe, a filha tenta acreditar em verdades inventadas. 111


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Narrador ii – A filha arregala o olhar, recolhe os últimos livros do chão e põe em prática um plano de fuga. A mãe grita sua busca ingrata, quer ordem, conforto, aconchego. Também lhe falta paz. Ao alcançar a porta, a jovem hesita. “Quer saber a novidade?”, pergunta. O silêncio da mãe é desanimador, mas o entusiasmo a faz prosseguir: Decidi meu futuro. Arquitetura, diz, construindo precisamente cada sílaba. Narrador i – Arremesso de tijolos. Antes de ser atingida, a filha fecha a porta. Quando não sobra livro na estante para contar história, à mãe só resta paz. Tira a caixinha de música da escuridão feito um pássaro de dentro da gaiola. (Som da caixinha) Entra em seu mundo mágico e sorri, encantada. Está finalmente viva. Narrador ii – Ele entra decidido. Vai sufocar o inimigo. Passa pelo campo de batalha, e, com um gesto preciso... (Som da caixinha se fechando – a música para de tocar) Assassino. Assassino, ela enfatiza, o sussurro, raivoso. 112


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Cena 5 Narrador ii – Diante de seu desejar, ele brilha. Desprendeu-se da lembrança, liberouse da fotografia, se descobriu do pó. Tudo isso para se aprisionar novamente, mais uma vez, para sempre, na história dela. Narrador i – Feito mulher grávida, seu corpo abre, recepciona vida. O dia toma novo rumo, é o futuro que engatinha para uma nova ordem. Narrador ii – Ela enfeita a pele de luz, se enche de calor. Está inebriada no sonhado reencontro. O faz quebrar tempo, destruir distância. Narrador i – O quer longe. Longe o suficiente para seus olhos não perderem o foco, não o perderem no foco, longe não mais do que o suficiente. Narrador ii – Como cerca viva, os braços muram seu corpo. O olhar é vigilante, ergue grades altas, pontiagudas. Ela não o libertaria novamente.

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Narrador i – Vencidos os limites da moldura, o rosto engrandece. Concorrente da imensidão do mar aquele sorriso aberto, coberto de sal. (Pausa) Mas ele já não suporta o sol como antes, sofre de excesso de vida, abuso de juventude. Narrador ii – Enlaçados eles desafiam o belo. Desorientam o ciclo da vida num êxtase que, é verdade, asfixia. Tira fôlego até mesmo de quem não sente, os que de longe admiram o amor alheio. Narrador i – Ela o afoga com expectativas, nele despeja o atraso do tempo. Ele sorri beleza antiga, brilho perdido na noite, fonte seca de solidão voluntária. Artimanha masculina de homem doente, dependente de diversidade. Narrador ii – Os braços dela corrigem erros, secam feridas. E no cheiro dele, no conforto do cheiro dele, a eterna crueldade do viver se dissolve. Narrador i – A cabeça abandona o viver, perde-se em caminhos conhecidos, no conforto das palavras certas. Atolado na terra da 114


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civilidade, ele permanece, a imobilidade dominante, enquanto a mente angustiada gira atordoadamente, experimentando sozinha o movimento. Narrador ii – A salvação recusada dói fundo, restos de afeto clamando por ele, carinho um dia confundido com algo mais. Assim como passado que renasce, presente, não demora, vira lembrança. Ela levanta o olhar, se projeta na distância. No espelho, o novo se anuncia. Narrador i – Ela lhe ensina o descontrole. Com o manto vermelho imponente no dorso, ele recebe enfim a tal irracionalidade. Esta sobe reinante pelo seu corpo, atiça pelos, poros, provoca faíscas, ondas de tristeza e desespero lhe animam a alma. Vinte anos depois, ele ainda aprende com ela. Narrador ii – Empurrado pela melodia da insensatez, ele se agita. Desorientado se entrega a um ritmo disforme, abandona seus restos num movimento irregular, rodando em círculos feito ela, a bailarina da caixa de música. 115


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Narrador i – Circulando, girando, rodando, circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando. Narrador i e ii – Feito ela, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando.

Cena 6 Narrador i – A noite começa a delinear formas. O céu se enche de luz, feito o mundo inventado dela, e com um avermelhado mágico abençoa a terra. É o dia que se renova, a nova vida que se anuncia. Mas a escuridão do casal é insistente, não cansa de escurecer. Realidade sem cor, sem graça, realidade de treva. Narrador ii – Ele desiste da cama, leito frio, em pleno verão. Por um momento desiste do sonho também. Para não ser notado, sai sem fazer barulho, não quer atrapalhar a quietude dela. (Ela sorri, ironicamente.) Narrador i – A madrugada invade suas entranhas, entra pelos pés nus, sobe o corpo há 116


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tempos gelado. Ele caminha para a cozinha. Confortar o paladar é o que lhe resta. Narrador ii – A solidão enfim saboreada. Os olhos não fingem mais sono, não precisam forçar amor, disfarçar dor. Rola e desenrola na cama só dela. O lençol acaricia sua pele, o vai e vem levanta a camisola, revela o corpo intacto, aquele que há uma vida ainda insiste em esperar o toque dele. Narrador i – Os pés mudam de ideia, rumam nova direção. Mais do que preencher, precisa esvaziar. Está certo, decidido, vai exercer seu título de marido. A ela caberá cumprir o dever de esposa. Narrador ii – Ela ainda se alimenta de histórias despigmentadas. Reveste-as com cores e emoções vivas. Produto de ilusão e infelicidade. O corpo infla de esperança, excitação infantil se rejuvenesce. Narrador i – Ele se aproxima. Chega engolindo lógica, faminto para cuspir no passado, debochar do sempre, como acontece quando a natureza mostra garras, resolve dominar. 117


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Narrador ii – Feito oceano prestes a arrasar civilização, ele a invade. Mergulho com força de onda violenta. Desafia ordem, torce ossos, afasta poses, pernas, convenções. Narrador i – Os braços dela parecem convidar a uma dança tardia, marcada por movimentos intensos, vigorosos, gemidos e sussurros ajustados ao tom da melodia raivosa. A respiração é testemunha, eles inspiram vida. Narrador ii – Servindo-se da delicadeza com que fera mastiga presa, ele se apodera da carne dela. Abala estruturas, desbrava caminhos, irrompe intimidades. E o corpo, ferido, dominado, não se oferece mais à fantasia. Narrador i – Ele investiga territórios que não mais conhecia. Com sabores novos sacia fome. Também entope-se de odores antigos. Narrador ii – Resta a ela desejar o avanço do tempo. Ansiar pelo gozo do macho. Narrador i (Num riso irônico) – A ela resta a falta do tédio, a saudade do casamento insosso, da monotonia do viver ao lado dele. Narrador ii – Sobre ela o animal permanece. Desfruta a pausa restauradora. Dorme o 118


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sono dos exauridos, transbordando um suor fétido na pele. Da boca babada um ronco asqueroso, melodia ensurdecedora. Humilhada, ela espera o avanço do tempo.

Cena 7 (Continuação cena 3) Narrador i – Diante da agitação do restaurante, a sobriedade da mesa deles destoa. Deficiência cercada por excessos. Solidários da mudez, eles parecem esquecidos. Dois abandonados no canto escuro do salão, do universo. Narrador ii – No contraste da paisagem, a realidade salta aos olhos. Cúmplices da derrota, companheiros do vazio, estão suspensos num tempo que parece ser generoso com todos – cruel com eles. Narrador i – Enquanto os pratos não vêm, se alimentam das histórias dos outros. De um lado a família que parece ter saltado do porta-retrato. A constância dos sorrisos em bocas estranhas incita alegrias mortas.

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Narrador ii – Procuram salvação na mesa oposta. Semelhante vivacidade seria contagiante, se não fosse por eles, pelo silêncio constrangedor. (Pausa) Narrador i – Ele se embriaga do tagarelismo da dupla, o casal que tanto tem a dizer. Rende-se hipnotizado ao milagre do verdadeiro compartilhar. Além de dor, diagnostica 20 anos de enfermidade. Narrador ii – Ele os projeta num filme, reinventa sua composição. Na certa são mãe e filho, diz, diversão assim não acontece entre marido e mulher. Narrador i – Ela o corrige. Mirando o coração, atira certeiramente: “Amantes”. A esperança se recusa a acreditar, mas a mulher repete, desafiadora. Narrador ii – Inexplicavelmente, como num truque de mágica, a barulheira do ambiente se esvai. Um único som grita. É a ilusão dele que explode, que se parte em mil pedaços, jorram no ar restos de um sonho inútil. (Longa pausa)

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Narrador i – A explosão não restabeleceu. Enfatizou a distância, e isso é tudo. A noite anterior caiu, mas não amanheceu. Narrador ii – Voam pelos ares fantasias. Diz conhecer a esposa melhor do que ela própria. A mulher engana a si mesma, desperdiça vida com sonhos mentirosos, troca realidade por inconsistências mortas. Narrador i – Emoção interrompida. O tempo gastou o poder do outro. Ironias femininas ainda ferem, já deixaram de matar. 20 anos de convívio com dor. Narrador ii – Ele insiste em comemorar. Ela festeja sobrevivência, opta pela realidade. A escolha está feita, quer tempo integral de calor, sol e mar. Narrador i – Ele perde sede, paciência, delicadeza. Também desiste de levá-la ao Rio de Janeiro. Se recusa a sustentar vícios ridículos, deformações de um passado interrompido. Narrador ii – Ele pede a conta, quebra o suspense, pergunta de uma vez pelo presente.

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Narrador i – Isso, no tempo exato em que ela perde a pressa. Quando a inexplicável ela passa a desejar a eternidade da noite. Narrador ii – Admirada com as revelações dela, a desconhecida de traços familiares, ela quer fazer 20 anos do jantar. Narrador i – Ela não recusa nada. Prolonga conversa, preenche estômago, pede mais vinho. A cabeça gira, o salão esvazia, o ponteiro avança. Finalmente, saca da bolsa a sua arma, seu escudo contra os tais 20 anos. Narrador ii – Ele recebe o presente aberto. A caixinha de música. Até as pilhas estão gastas.

Cena 8 Narrador ii – O coração bate uma melodia que celebra a vida, a ansiedade toca seus acordes, ela se surpreende humana. Os olhos brilham, as mãos tremem, o corpo todo parece dançar neste salão pouco convidativo, habitado por pontas de cigarro, maquetes empoeiradas, velhas lembranças. É neste mundo estranho que ela se descobre 122


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mais inteira, onde a informalidade impera, regras são regidas pelo improviso. A voz não sai, e ela se esforça em expulsá-la. Uma tentativa inútil de manter o controle. Narrador i – Ele poderia. Poderia ter sido dela. Ter sido ao lado dela. Narrador ii – Seus planos foram desatados, desfeitos por ela. Ele pertence ao destino incerto, que se anuncia, que se renova, sempre, a cada dia. Narrador i – Vinte anos depois, ela se aproxima. A camisa desalinhada. Intacta. As mãos tocam o passado, se espetam na barba por fazer. E o que era desleixo já não é. E o que era presente, não passa de ausência. Narrador ii – Em vez de tijolos, ela atira datas. Faz aniversário amanhã, aniversário de casamento. A curiosidade dela está faminta. E parabéns é tudo o que ele lhe dá para mastigar. Narrador i – Ela já imaginava. Ele não se casou, não pensa em arrependimento. Ocupase com o concreto. Ela lhe deseja uma vida miserável. 123


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Narrador ii – Ela se preocupa com o que deixou de ter. Fecha os olhos, mas a eternidade não se acerta. E já que nada muda, nada acontece, culpa a juventude. Se não a tivesse perdido, diz, seria inteira. Narrador i – É unânime a nostalgia dos velhos tempos – frase dele. Ela se agita. Os pés dançam, esperançosos. Entre adulto e criança, ele é a distância mais curta e bela. Nostalgia unânime, mas pouco significativa. Ele não atira números por maldade, convida à realidade. Mais de 20 anos se passaram, diz. Narrador ii – Ela pergunta sobre a casa de vidro. Ele finalmente construiu? A segurança parece ser a preocupação de todos, ele diz. Ela se anima, prefere respostas assim, espaçosas, vagas, dão conforto para a ilusão. Ele não se importa. Desde que a vida lhe ensinou a viver a realidade, ele realmente não se importa. Narrador ii – Ela lhe aponta o dedo. Lhe atinge rosto, escritório, fracassos. Ele agradece. Agradece críticas e preocupações. É grato sobretudo à partida dela. Pôde viver 124


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a liberdade, a vida segundo suas próprias expectativas e verdade.

Cena 9 Narrador ii – A bailarina da caixinha de música ganha vida. Dança, gira, em desespero, até exaustão. Esgotamento de corpo e mente. Narrador i – Circulando, girando, rodando, circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando. Narrador i e ii (Em tempos diferentes) – Rodando, circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando. Circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando. Rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, entristecendo. Orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando. Rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando, orbitando 125


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em falso. Orbitando, rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando. Narrador i – O ritmo diminui. Lentamente. Feito pilha fraca. O desespero da bailarina roda em emoções lentas, até pifar. Narrador i e ii (Em tempos diferentes. O ritmo diminui lentamente, até parar.) – Rolando, cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando, orbitando, vivendo. Cercando, endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando, orbitando, rolando. Endoidando, circulando, girando, rodando, circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando. Errando, circulando, rodando, circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando, girando. Estourando, circulando, girando, circundando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando, rodando. Circulando, girando, rodando, rodeando, orbitando, rolando, cercando, endoidando, circundando. (Longa pausa)

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Cena 10 Narrador i – Nas mãos dele, a caixinha de música ganha dimensão de realidade. O encanto se desfaz. Num movimento grosseiro, sem polidez, ele entrega a bailarina ao silêncio, à imobilidade. Fecha a caixa. (Pausa) Percebe admirado o peso leve, o acabamento malfeito, o plástico barato do material. Ele ainda detém o objeto em suas mãos quando gira seus olhos para dentro dos olhos dela e a convida: “Vamos dançar?” Fim

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Parasita A Peça Parasita investiga a relação de dependência entre uma mulher e um homem, à primeira vista um senhor de feições espectrais, que, no desenrolar da história, se desdobra em um duplo rejuvenescido e sarcástico. *** (Uma mulher debilitada por problemas psicológicos está sentada em uma cadeira. Ao seu lado, um senhor de face espectral.) Senhor – Seja bem-vinda. Moça – Bem-vinda... Bem-vinda... onde? Senhor – À vida. 129


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Moça – Que vida? Esta? Senhor – Tem outra? Moça – Tinha. (Pausa) Infelizmente. (Longa pausa) Senhor (Estende a mão para cumprimentá-la) – Saudosista eu também. (A moça não corresponde) Saudosista e inconveniente. (Longa pausa. Se recompõe.) Deveria cuidar de seu psicológico. Te contar histórias felizes, encher você de esperança. Eu sei. Qualquer um sabe. Peço perdão. Tenho apenas minha companhia para dar. (Longa pausa) Moça – Melhor do que eu você está. Senhor – Se eu fosse você, não acreditaria no que diz sua consciência. Você ficou desacordada muitos dias. Deve estar com a cabeça confusa. Tente descansar. Moça – Descansar? Senhor – Também não tenho pele enrugada, cabelos brancos e um vazio doído no peito. O estranhamento é normal no decorrer da vida. (Pausa) Não acredito que você se lembre de mim. Desde que chegou aqui, venho sempre ouvir a sua respiração. 130


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Moça – A tristeza me acordou. Ontem. O choro do meu corpo despertou meus ouvidos. (Pausa) Sou assim. Choro por debaixo da pele. (Longa pausa) Tinha esperanças em reencontrar minha vida quando abrisse os olhos novamente. Não. Senhor – Sei. Normal agora é “isso”. Moça – Você não conhece a minha dor. Senhor – A vontade é fugir. Correr do mundo, carregando no bolso presente, passado e futuro. Não deixar para trás resquício algum de história. (A Moça estranha a colocação do Senhor) Sei o que é sofrer uma perda. Moça – Pelo menos você não é daqueles que congelam um sorriso no rosto e só falam de flores. Senhor – Dizem que a vida é mais forte do que a morte. Ditado animador. Me tira do ciclo de tristeza e me faz entrar em outro: o da desconfiança. Moça – Longe de mim estar reclamando... Mas que método é este que você está aplicando em mim?

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Senhor – (Surpreso, com animação.) Meu método? (Pausa) Não. Não passo de um ultrapassado. Desculpe-me. Não sei o que faço aqui. Você deve querer ficar sozinha... Moça – Não. Por favor. Fica (Longa pausa) *** Moça – Passei a noite escavando o que fiz sem me dar conta. O que eu deixei de fazer. Minha vida virou passado. Meu futuro, sonho. E você ainda considera a possibilidade de eu ter dormido bem? Senhor – Pensei ter feito em você o mesmo bem que você fez em mim. Pela primeira vez em alguns meses acordei com vontade de levantar-me. Moça – Lançar os pés ao chão, senti-lo amplo, convidativo, esticar, pernas, crescer dorso, pescoço e cabeça. Encher peito. Inaugurar dia. Experimentar as miudezas do viver que tornam especial o que é rotineiro. Senhor – Ter vontade já é meio caminho andado. 132


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Moça – Gostei mais de você ontem. Senhor – Entendo o seu desejo. (Com um tom sarcástico) Nada como desvirginar o orvalho da manhã, sentir o arrepio do corpo com o toque da aurora sobre a pele. Toque doce, porém intenso. Moça – Traída pelo meu próprio destino. Vida interrompida. Trajetória incompleta. Senhor – Se preocupe em descansar. Vai precisar de energia para retomar os prazeres da vida. *** Senhor – Bom-dia. Moça – Com dias como este o ano deveria durar 24 horas. Ainda assim, seria insuportável. Pelo menos eu ficaria livre mais rápido. Quero sair daqui. Reencontrar meu mundo. Minha antiga família, meus velhos amigos. Quero minha vida de volta. A vida que não me pertence mais. Senhor – A recuperação leva tempo. Não por acaso. Seu corpo precisa reaprender a viver. 133


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Sua cabeça também. (Pausa) O primeiro passo é você compreender o que aconteceu. (Longa pausa) Moça – Não me venha você também dizer o que devo fazer. Senhor – Há quatro meses, enterrei minha mulher e a vida que tive com ela. Pensei estar habituado a perder, mas não. Desta vez não me acostumo ao vazio, ao silêncio do tempo. (Pausa) Mas continuo vivo. Por mais que o peito reclame, o sangue ainda circula. Os dias recomeçam. Não tenho escolha, enquanto o meu tempo não descansar. *** (O senhor se revela um jovem sarcástico) Moça – Quem é você? Senhor – Seu acompanhante. Moça – Um mentiroso. Meu acompanhante você não é. Quem é você? Senhor – Ninguém. Moça – Como ninguém? 134


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Senhor – Ninguém especial. Moça – Especial não é mesmo. Mas alguém tem que ser. Senhor – Seu amigo? Moça – Meu amigo você não é. Senhor – Tem certeza? Moça – Se está atrás de ajuda, errou o alvo. Não tenho pena de ninguém. Aliás, tenho orgulho de não ter pena de ninguém. Senhor – Não quer que eu vá embora. Moça – O pouco que sei de você nada tem de animador. Senhor – Isto aqui é a minha segunda morada. Do mesmo jeito que vai ser a sua. Moça – Estar excluída do mundo tem uma vantagem: fico dispensada da falsidade que move as pessoas lá fora. Aqui não preciso aturar ninguém contra a minha vontade. (Indica a porta) Você não vai me negar meu único prazer, vai? (O Senhor fica imóvel) Desejar a imobilidade é inconcebível. (O Senhor continua imóvel) Sinto apenas indiferença por você. Indiferença e constrangimento. Já notou o papel ao qual está se prestando? 135


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Senhor – Não há nada mais difícil do que aceitar uma perda, eu compreendo. Moça – Qual é a sua? Senhor – Alguma vez realmente se aventurou em uma conversa que a princípio não te interessava? As pessoas surpreendem. (Silêncio) Pensei que tivesse encontrado uma companhia. (Pausa) Faz bem conversar. Todo mundo tem algo que vale a pena. Mesmo eu. (Longa pausa) Moça – Desejo toda a sorte para você e sua próxima vítima. Senhor – Não é por mim. (Pausa) Não só. É bom ter alguém. Abuse de meu tempo de aposentado. Moça – Agora sim. Aposentado combina com você. Senhor – Aposentado, pai, viúvo, solitário. Tudo o que eu fui um dia, já não sou. Moça – Rumine sozinho sua velhice, escuridão de sonho e futuro... Duro contar apenas com os restos do nostálgico passado. Senhor – Você acha? Moça – Como ousa igualar meu caso ao seu? 136


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Senhor – Para que os outros tenham compaixão por você, é preciso ter com os outros. Moça – Sou uma pessoa normal. Dispenso este tipo de privilégio. Prefiro a indiferença. Entre companhias piedosas e o vazio, fico com o vazio. Senhor – Você ainda tem muito o que aprender com a solidão. Moça – Suas mentiras não vão me contaminar – menos ainda a sua carência. Senhor – Também adoraria creditar minhas frustrações em alguém. Se adiantasse. Moça – Se eu pudesse, já teria fugido daqui. De você. Senhor – Você foge daqui e eu fujo para cá. Você foge de mim e eu fujo para você. A vida não perde sua graça (Pausa) Essas paredes pálidas e frias tinham desaparecido da minha memória. Minha recordação só guardou a atmosfera familiar. Moça – Não é porque avisto o silêncio que tenho intenção em compartilhar sua decadência. (Pausa, os dois se olham longamente.) 137


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Senhor – Sua braveza não me assusta, se você quer saber. Me aquece. *** Senhor (Novamente velho e fragilizado) – Incomodo? Moça – Resistente você. Quem me dera ser assim. Senhor – Você é e nem sabe.Vai descobrir. Tem a vida pela frente. Moça – Não se empolgue. Falei sem pensar. Agora me dê licença, quero ficar sozinha. Senhor – Não tem medo da solidão? Moça – Deus está me fazendo companhia. Nunca nos demos tão bem. A gente não se conhecia direito, mas agora estamos íntimos. Senhor – Se preferir ombros ou braços de ver­ dade... Estou aqui, do seu lado, em carne viva e a postos para te ajudar no que precisar. Moça – Minha família está do meu lado. Meus amigos. (Pausa) Meu namorado. Como você vê, meu coração está repleto. Na minha vida não tem espaço para mais ninguém. 138


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Senhor – Não sabia que você tinha namorado. Moça – Nem eu que você me conhecia tão profundamente. Senhor – Você nunca comentou... Moça – Estranho, não, nesses nossos anos de convivência eu nunca ter destrancado meu coração para você? Não seria insensível a ponto de declamar minha paixão para um viúvo amargurado. Dizer que encontrei o que ele perdeu pra quê? Cutucar a ferida de seu peito aberto? Não, seria muito cruel. (Silêncio) Não é possível que prefira o maltrato ao silêncio. Senhor – Faz bem expressar os sentimentos. Continue. Moça – Essa é ótima! Senhor – Não há necessidade de esconder sua felicidade de mim. Moça (Maldosamente) – Tem certeza? Senhor – Amor, até dos outros, faz bem. Ilumina a alma. Deixe-me participar de suas alegrias. Mesmo que seja como ouvinte. (Pausa)

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Moça – Tudo isso é carência? Tinha esperanças na insanidade. Senhor – Nunca passei perto da loucura. Deve me faltar inteligência. De uns tempos para cá, dei para falar sozinho. Recomendo. Rende conversas inteiramente gratificantes. Você nunca escuta o que não quer. Moça – Adoro que discordem de mim. Posso convencer as pessoas do contrário. Me sinto viva. Senhor – Você gosta de discutir. Já percebi. O namorado não reclama? Moça (Hesita) – Sou assim com qualquer pessoa. Qualquer pessoa que mereça. Senhor – (Curioso) Ele merece? Moça – Não interessa. Senhor – Ajude o tempo a passar. O meu e o seu. Moça – Seu prazo de validade já venceu. Senhor – Graças a você, eu estou sobrevivendo. (Longa pausa) ***

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Senhor (Novamente rejuvenescido, em tom irônico e sarcástico.) – Posso entrar? Tenho um recado do seu namorado. Moça – Se quer tanto me ver por que não imagina uma desculpa melhor? Senhor – Um dia a gente sente falta inclusive do que rejeitou. Arrependimento pesa mais que fracasso. Moça – Não sou como você que se alimenta de migalhas. Senhor – Orgulho só leva à solidão. Se tivesse ido embora no seu primeiro insulto, não teria ganho você de presente. (Silêncio) Moça – Estou cansada de ficar sozinha. Cansada de sofrer sozinha. Senhor – (Aproveitando da fraqueza dela, ele se aproxima.) Não está sozinha. Tem a mim. Estou aqui. E fico o tempo que for necessário. (Ela vai dizer algo, ele não deixa.) Não se preocupe. Esforço é ficar sem você. Agora me peça. Qualquer coisa. Eu te peço. Por favor. Moça – Conhecer a leveza. Ignorar a desprote-

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ção. Contar com alguém, ao menos comigo mesma. Senhor (Tocando nela, com malicia.) – Não fica assim. *** Senhor (Novamente fragilizado e envelhecido) – O namorado não vai ter ciúmes de um velho como eu, vai? Moça – São lindas. Obrigada. Senhor – Uma amostra da beleza que reina lá fora. Moça – Faz tempo que eu não recebo flores. Senhor – Vou ter uma conversa com esse jovem. De homem pra homem. Moça – Deixa pra lá. Senhor – Não se preocupe. Velhos só inibem eles mesmos. E são ótimos para dar conselhos. Moça – Você não está tão velho. Senhor – Menos do que gostaria. Moça – Temos mais em comum do que o sofrer. 142


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*** Senhor – Ele viu as minhas rosas? (Diverte-se) Nunca pensei que ainda causaria ciúmes na minha vida. Moça (Ri) – Você está doido para eu falar que sim. Senhor – Gente velha precisa de massagem: no pescoço, nas costas, no ego. Moça – Na alma. Você quer massagem na alma. (O senhor se anima) *** Senhor – Uma pausa. Uma semana. Cansada de descansar-se de mim? Estou exausto. Deficiente da nova mulher da minha vida. Deficiente da única mulher da minha nova vida. Moça – Uma semana? Um ano. Um século. Uma eternidade desperdiçada. Senhor – Quem me dera um futuro aberto como o seu. Um corpo jovem. Pele quente, macia. 143


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Moça – Trocaria tudo por memórias. Senhor – Meu corpo é gelado, veja. É a morte que suga pouco a pouco todo meu calor. Moça – Prefiro um passado cansado, de cabelos tingidos, mas vivido... Senhor – O que você precisa é esquecer essa dor. Moça – Queria uma história. Nem que fosse a sua. Senhor – Ex-enfermeiro, viúvo, capaz apenas de seguir os ponteiros do relógio... (Circulando em volta dela) Moça – De agora em diante, acumulo existência. A vivência se estagnou. Invejo que tenha desfrutado quatro décadas a mais do que eu. Por piores que possam ter sido as escolhas, os caminhos optados, as possibilidades se abriram diante de você. (Longa pausa) Senhor – (Ele mexe nas pernas dela) Vão se abrir para você também. (Tomba a cadeira no chão, incorporando o jovem sarcástico.) Mas, antes, você precisa de vida. Luz para desafiar esta escuridão. Precisa esquecer, 144


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para então se lembrar; se esvaziar, para então preencher; morrer para, por fim, ressuscitar. *** Moça – Encontrei com minha família. Ela estava uns 5cm mais baixa. Alguns quilos mais pesada. Abri meu coração a ela. Minha família não aguentou olhar lá no fundo. Foi embora. Senhor (Ainda jovem e sarcástico) – Falou sobre nós? Moça (Em seu próprio universo) – O quê? Senhor – Por que não falou sobre nós dois? Eles teriam gostado de saber que você tem alguém, que é cuidada com tanto carinho. Moça – Minha família não é como você que precisa de mim para se fazer útil. É saudável. (Pausa) Senhor – Quem não fez menos do que gostaria? Todo mundo quer mais. Moça – A insatisfação é natural, eu sei. O problema é que deixei de ser maioria. Me 145


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falta o básico, independência, dignidade, liberdade. Senhor – Com ou sem surpresas, a vida é um funil que corre estreitando nossas possibilidades. *** Moça – Tirou férias de mim? Senhor (Novamente fragilizado e envelhecido) – Sentiu minha falta? Moça – Um teste? Senhor – Involuntário. Fiquei doente. Moça (Preocupada) – O que você teve? Senhor – (Sorri) Sentiu minha falta. Moça (Dá de ombros) – A distração é escassa por aqui, você sabe. Senhor (Feliz) – Bom saber. Moça – É grave? Foi medicado? Senhor (Olha nos olhos dela) – Estou sendo. Moça – Desculpe-me se afastei você de mim. Me afastaria de mim mesma. (Longa pausa) Não está fácil. Mas sozinha fica ainda pior. 146


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Senhor (Os dois sorriem) – O mais próximo que cheguei de um sorriso na semana passada foi um choro. *** Senhor (Nervoso) – Embora? Moça (Satisfeita) – No fim da semana. Senhor (Apavorado) – Quinta ou sexta? Moça (Ri) – Que diferença faz? Senhor – Como que diferença? (Saindo do controle) Será que você ainda não entendeu? Há um tempo infinito que distancia um segundo de outro. Momentos que desafiam a lógica do mundo, que não se medem segundo a cronologia do tempo. Não duram horas, dias ou minutos, permanecem para além do fim. (Longa pausa) Moça – Sexta. (Pausa) Vou embora na sextafeira. Senhor (Alterado) – Um dia? Menina mesquinha. Isso é miséria. Insignificância. Nada, isso é um nada. (Pausa)

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Moça – Disseram que era uma surpresa. Senhor – Que surpresa mais imprevista. Surpresa inesperada. Moça (Riso nervoso) – Uma surpresa inesperada, isso. (Silêncio, baixa o tom.) Metade de mim está eufórica com a perspectiva de voltar. A outra quer se esconder debaixo da minha própria saia e de lá nunca mais sair. (Silêncio) Senhor (Deprimido) – Você não vai nem lembrar disso aqui. Moça – Mal domino a vida por aqui... Senhor – A vida por aqui você passou a dominar. Moça – Lá fora tenho um encontro com o desconhecido. (Longa pausa) Senhor – Vai se apaixonar por ele. Moça – Espero que sim. (Longa pausa) Senhor – Com a mesma intensidade que minha vida se apaixonou por você. ***

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(O senhor está no mesmo cenário. A cadeira está vazia. Tristemente, fala para si.) Senhor – Bem-vindo. Bem-vindo à vida. (tempo) Que vida? Esta? (Tempo) Teve outra? (Tempo) Felizmente. (Longa pausa) Fim

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Em Camadas

A Peça Em Camadas retrata o reencontro de duas camadas de uma mulher. Uma delas sobreviveu às múltiplas possibilidades que acercam uma existência no início de seu caminhar. A outra teve sua trajetória abruptamente interrompida. Há ainda algo em comum entre elas, ambas insistem em se alimentar de ilusão. A primeira por ter vivido em vão. A segunda pela expectativa de um viver. ***

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Mulher – A infância é majestosa, coroada por caminhos infinitos. Mulher – Possibilidades múltiplas que o tempo não demora a apagar. (Mudança de luz – passado) Mulher – Peguei você. Não te disse? Mulher – Eu é que te peguei. Mulher – Pegou nada. Mulher – Claro que peguei. Mulher – Coisa nenhuma. Fui eu. *** Mulher – Fui eu. Você bem sabe que quem te pegou fui eu. Mulher – Você coisa nenhuma. Mulher – Eu ganhei. Mulher – Eu ganhei. Mulher – Quer apostar? Mulher – Por mim... Mulher – De novo. Mulher – Tudo outra vez. (Pausa) 152


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Mulher – Engraçada esta vida. Mulher – Muito. (Longa pausa) *** (Mudança de luz – passado) Mulher – Qualquer bicho: cavalo, gato, papagaio... Mulher – Lagartixa, siri e sapo incluídos? Mulher – Cuido de todos esses, e também de girinos, tartarugas, vaca, galinha... Mulher – Tem piores ainda... rato... deixa eu ver... barata, gorila, besouro... Mulher – Besouro até que é bonitinho... E dá sorte. Os animais vão fazer da minha vida uma alegria. Tenho certeza. Mulher – Fico feliz que tenha arrumado companheiros tão fiéis e calorosos para compartilhar a vida com você. De sofrer de solidão você já escapou. Que dádiva conservar essa relação tão comunicativa, ter pelos voando para dentro do seu nariz, poças de baba inundando seu corpo, o perfume agradável 153


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com que nos presenteia os orifícios desses simpáticos animaizinhos... Sem falar nas doenças que eles passam. Uma verdadeira alegria, realmente. Mulher – Prefere se relacionar com homens e lidar, das duas uma, com bonecos manipulados por algum líder que tem, na mesma medida, poder e estupidez, ou, pior ainda, conviver com seres amargos, marginalizados. Mulher – Como você é radical. Mulher – O homem é bem mais perigoso do que os animais. Mulher – Ah, é? Eu, sou perigosa por acaso? Mulher – Ameaçadora. Tanto quanto eu. *** Mulher – E então? Mulher – Eu é que pergunto. Mulher – Gostou ou não gostou? Mulher – Melhor falar você. Mulher – Foi tão ruim assim, foi? (Longa pausa) Senti saudades. 154


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Mulher – Eu também. (Longa pausa) Saudade é bom, esconde os defeitos. Mulher – Você não. Não tem defeitos. Você tem qualidades. Mulher – Não estou me lembrando de nenhuma. Mulher – É forte. Uma sobrevivente. Mulher – Qualidades nós duas temos. Ou pelo menos tínhamos. (Silêncio) Faltou espaço para os defeitos entrarem e se esparramarem na sua vida, como fizeram na minha. (Pausa) No fim, você é quem teve sorte. (Longa pausa) Mulher – Quer dizer que aquele pedaço de gente virou este mulherão? Mulher – Esta carcaça tamanho família, você quer dizer. Escultura oca que não tarda a virar pó. (Silêncio) Como pôde sentir saudades do tempo em que se esmagava dentro de mim? ***

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(Mudança de luz – passado) Mulher – Por que não aceitou o convite da nossa prima? Esse tédio é mais divertido, por acaso? Mulher – E chegar ao baile acompanhada de mulher? Quer morrer solteira, minha querida? Mulher – Quero botar minhas juntas para trabalhar, tomar um suco com alguma surpresinha etílica dentro, talvez, quem sabe, fazer amigos... Estou fadada a alguma maldição dos deuses da filosofia, por isso? Mulher – Tenha um pouco de paciência. Nossa vida vai ser ótima, você vai ver. Mulher – É? Quando? Mulher – Um dia. (Pausa) A minha, pelo menos, vai ser. *** Mulher – Bom te ver. (Longa pausa) Mulher – Não pensei...

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Mulher – Nem eu... (Longa pausa) Mulher – Não me olha assim. Mulher – Estou me vendo. Mulher – Uma imagem distorcida. Mulher – Olho para mim e não me reconheço. Mulher – Está deformada. Adulterada. (Longa pausa) *** (Mudança de luz – passado) Mulher – Pra que esse troca-troca de roupa? Mulher – Estou escolhendo o vestido. Mulher – Que vestido? Mulher – Do baile. Mulher – Que baile? Mulher – A gente vai, não sabia? Mulher – (Anima-se) Sério? Mudou de ideia? Mulher – No próximo, vai chover pedido. É bom a gente estar preparada. ***

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Mulher – Me habituei à falsidade. É dela que as pessoas vivem. Mulher – O tempo que passamos juntos foi verdadeiro. Mulher – Vem cá. Dá um abraço. Devia ter deixado você ganhar. Olhando para trás, admito, deveria. Mulher – O jogo não acabou. Estou aqui. Mulher – Pra você o jogo terminou há muito tempo. Estou aqui repassando os piores momentos. (Silêncio) Mulher – Daqui não saio. E desta vez vou me dar bem. Mulher – Não tem nada a ganhar. Esquece. Não está cansada? Mulher – De quê? Na minha fase atual, qualquer prazer é bem-vindo. Mulher – Não gostaria de se alimentar com falsas esperanças, se saciar com prazeres que não se sustentam. Mulher – Um baratozinho, já está valendo. Parei no tempo da cola de sapateiro e do lança-perfume.

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Mulher – A busca agora é pelo prazer imediato. É só o que se tem hoje. Mulher – Vou me acostumar aos novos tempos. Mulher – A facilidade é perigosa. Vicia. *** (Mudança de luz – passado) Narradora/Mulher – (Sobre a Mulher, enquanto esta se diverte no baile) Transformou a vida num amontoado de êxtases miseráveis. Foi desperdiçada, nem sabe no que. Tem vontade de descarregar esta culpa em alguém, jogar a responsabilidade em mim, na sua geração, dizer que foi vítima de uma época em que se olha pra fora para não enxergar a própria história. Teria sido mais inteira trilhando outros caminhos. O meu, por exemplo. Se tivesse feito mais ginástica. Se tivesse se alimentado melhor. Visto menos televisão. Talvez assim. A vida demorou para começar. Quando dobrou a esquina, ia, finalmente, se aproximar, foi embora. 159


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*** Mulher – Vivi como quem tinha a vida toda pela frente. Mulher – H-hum, como quem tinha a vida toda pela frente. (Longa pausa) Mulher – Este reencontro é uma boa notícia. Mulher – Mais uma vez reunidas, inteiriças. (Longa pausa) Não estou te achando muito bem. Mulher – Cresceu a bunda. Cresceu o peito. Não a autoestima. Mulher – Ficou mais consciente... Mulher – Seria um privilégio terminar meus dias com ignorância. A consciência tardia só traz angústia. Mulher – Você cresceu. Mulher – Para os lados. Mulher – A aparência também está mais forte. Mulher – Aprendi a me preencher com comida e a me afogar em bebida. Mulher – Bebida boa, pelo menos? (Longa pausa) 160


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Mulher – Senti sua falta. *** (Mudança de luz) Mulher – Curto ou comprido? Preto, rosa ou... vermelho? Justo ou... justo. Mulher – Pra que pergunta se já tem a resposta? Mulher – Ora, para ter uma segunda opinião. Mulher – Que não serve pra nada. Mulher – Quem manda sempre responder o que eu não quero. Mulher – Quanto autoritarismo. Mulher – Para alguma coisa tinha certeza de que você serviria. *** Mulher – Imperfeições. Nunca vivi sem elas. Mulher – Você queria me amarrar no porão escuro quando eu começava a colocar tudo 161


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no lugar. Também não aguentava sua necessidade de fazer tudo para todo mundo. Mulher – Minha bondade, você quer dizer. Mulher – De bondoso aquilo não tinha nada. Egoísmo puro. Uma maneira conveniente e socialmente bem-vista de fugir de você. Mulher – Fugir de você. (Longa pausa) Mulher – No lugar que você ocupou, um vazio verdadeiro no peito. (Longa pausa) Mulher – A infância é a grande companheira da vida. Testemunha e cúmplice de todos os segredos. Mulher – Até a morte. (Longa pausa) Mulher – Até o tempo é mais generoso na infância – a magia da infância nos acompanha sempre. Inexplicavelmente, fica mais distante e mais próxima a cada dia. Mulher – A infância é uma sombra que arrasta seu peso, pendurada sobre minhas costas. Mulher – E não é que você se tornou jeitosa com as palavras? Mulher – Nada como o sofrer. Mulher – Eu era a sua salvação.

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Mulher – Poderia ter sido. (Pausa) Impossível saber, na verdade. Mulher – Se você tivesse deixado. (Pausa) Mulher – Se a vida tivesse deixado. (Pausa) Teria sido divertido. Mulher – Alguns arrependimentos já teriam me feito feliz. Mulher – Estou falando dos flashes que nos visitam na hora do fim, para nos fazer constatar que a vida valeu a pena. Momentos inesquecíveis de tão bons nos voltam à memória. Na falta dos nossos, os testemunhados por nós, vividos por personagens com quem desenvolvemos grande identificação em vida, de cinema, teatro... Mulher – Estou falando de vida. Do existir, mesmo que triste, mesmo que em vão. (Silêncio) Mulher – Ilusão não se sustenta. Pelo menos não por muito tempo. (Longa pausa) Um instante pode levar séculos. E a eternidade, será mesmo longa? *** 163


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Mulher – Esperei tanto por este encontro e agora que ele chegou, sinto-o escorregar pelos meus dedos. Não consigo fazer nada. (Pausa) Eu é que não estou muito bem. Mulher – Oscila entre excitamento e apatia. É a expectativa, que, por fim, descansou. A esperança que nos abandonou. Mulher – A minha? A sua? A de nós duas? Mulher – Não precisa ter medo. Não há com o que se preocupar. Mulher – Você costumava saber das coisas. Mulher – Minhas certezas se foram. Mulher – (Com medo) É? (Pausa) Mulher – Isto aqui não tem conserto. (Longa pausa) As gargalhadas dos meus filhos me abasteciam. Não precisava de mais nada. Mulher – Você sempre teve talento para se enganar. Mulher – Minha caçula tem uma leveza forte, inesquecível. Um olhar que, apesar de doce, não descansa até encontrar as profundezas das pessoas. Ela é terrível. Desde pequena. Antes de andar, já dava um jeito de ser in-

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dependente. Testou minhas estruturas mais do que você. Mulher – Você deixava ela fazer alguma coisa sozinha? Mulher – Sou uma caixinha de surpresas. Sem música e sem dança. Mas cheia de surpresas. (Longa pausa) Aguarde o grand finale. Mulher – É só o que faço. (Longa pausa) *** Mulher – Chegou a hora de deixar minhas raízes se desenvolverem. É isso. Demorou, mas chegou. Mulher – É tarde. Mulher – Já tentaram crescer, as pobrezinhas. Mulher – Quando menos esperavam, eu ia lá e lançava a enxada. (Num acesso de riso) Você não tem sorte mesmo. (Longa pausa) Mulher – O seu infortúnio te dói. O meu te diverte. Mulher – (Tentando parar de rir) Desculpe-me. Mulher – Sem pompa é bem melhor. 165


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Mulher – (Mais risos) Estou à vontade. Talvez à vontade demais. (Mais risos) Justo a mais liberal. A mais consciente, experiente... Experiência teórica nunca te faltou... (Pausa, tenta se recompor.) Não queria que sentisse raiva. Mulher – A raiva tem uma força vital, uma energia admirável. Mulher – Você é um amor. (Ainda risos) (Longa pausa, se recompõe.) A vida poderia não ser uma série de escolhas, um incessante abrir mão. Uma pena. *** (Mudança de luz – passado) Mulher – (Eufórica) Não falei que o baile não demoraria a chegar? Será que a gente ainda serve naquele vestido? Mulher – Você vai ao baile, eu estou fora. Mulher – Imagina se você vai me abandonar numa hora dessas. Sabe muito bem que sem você eu empaco. Gaguejo e travo. Preciso 166


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da sua presença irritante me mandando deixar levar. Mulher – Com aquele pamonha? Me recuso. A noite é toda sua. Ele só me inspira desânimo. Mulher – Abertura. Futuro. Esperança. Ilumine nossas vida com um pouco mais de poesia, faça-me o favor. Mulher – Ele vai pisar nos seus pés a noite toda. Não tem ideia de como se dança, não vai trocar duas palavras com você. Pegar então, pegar mesmo, com vontade... Mulher – Ele só precisa beijar. Mulher – Não vou dizer mais nada. Assim ele estraga sozinho a sua noite. Mulher – Nova e já tão traumatizada? Qual o problema de se divertir um pouco? Mulher – Mal começou e já está nivelando por baixo. Se eu fosse você, me preocuparia com o futuro. Mulher – Se eu fosse você, com o presente. ***

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Mulher – Filhos não solucionam problema de ninguém. Eles crescem e vão embora. Mulher – Ainda bem. Incondicionalidade eterna não é para mim. Mulher – Os dois primeiros saíram de casa com uma facilidade! Eu nem percebi – a caçula fazia barulho por três. O problema foi quando a pequena arrumou as malas. Aquela menina parecia ter saído de você. De mim, ela não tinha nada. Teimosa, rebelde, uma dor de cabeça. Mulher – Cheia de qualidades. Mulher – Depois que os três foram embora, eu até pensei em endireitar as coisas. Pensei mesmo. Por você. Por mim. Mas a infância já estava longe... As oportunidades distantes... Mulher – Quem diria! Seus filhos dando grito de independência! Sua vida está cercada de bons exemplos. Bons exemplos desperdiçados. Qualquer direção que você tomar agora, vai acertar. É um recomeço. Mulher – Uma despedida. (Longa pausa)

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Mulher – Com os filhos fora de casa, deve estar boa a vida de casada. Ele ainda funciona? Mulher – Separada. Faz tempo. Mulher – Deu para aproveitar um pouquinho? Mulher – (Com estranhamento) Você não se interessa por ele. Mulher – Me interesso por você. Mulher – Não se casaria com ele. Mulher – Não. Mulher – Mas para mim ele estava bom. Mulher – Não fui eu que escolhi. Ele tinha o que você buscava. Mulher – Por um tempo. Mulher – Os tradicionalismos todos que tanto te encantavam. Mulher – Há tempos deixaram de encantar. Mulher – Já eu começo a ter alguma afinidade com eles. Engraçado. O tempo acaba impondo o equilíbrio. (Longa pausa) ***

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(Mudança de luz – passado) Mulher – Já disse, não quero saber. Mulher – Como assim, não quer saber? Mulher – Pensei a noite toda sobre isso. Já foi suficiente. Posso adivinhar o que você tem para contar. Mulher – Sua curiosidade pelas coisas costumava me surpreender. (Pausa) Você tinha uma força inesgotável, um talento incrível para ser única, diferente de todo mundo... Mulher – Devo ter mudado. Mulher – Era mais desafiante. Mais viva. Mulher – Vai ver, começo a me conformar com a infelicidade. Mulher – Quanto peso. Quanta amargura. Mulher – Deixa pra lá. É só cansaço. Mulher – Pensei que eu é que tinha vocação para a depressão. (Pausa) Está com ciúmes, é isso? Vem cá. (Abraça a mulher e percebe que ela está fria) Nossa, como você está fria. Mulher – Estou? Mulher – Há quanto tempo está assim? Mulher – Há uma vida. 170


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*** Mulher – Está bonita também. Mulher – São seus olhos. (Risos) Mulher – Fez alguma coisa? Mulher – Deixei de fazer. Mulher – Isso eu também fiz, e veja só o resultado! (Pausa) Pensei que nada batesse uma alimentação saudável, uma vida sem estresse e sem desfortúnios sentimentais... Mulher – Uma poesia. Um sonho. A sua realidade. Mulher – A realidade da sua imaginação. A vida de ninguém é assim. (Pausa) Não quer saber o que eu fiz na minha pele? Mulher – Cortou o sol? Está branquinha. Opaca. Mulher – Sem vida. Mulher – Casou, cuidou do marido, preencheu o tempo com amenidades, teve filhos, separou, cuidou da casa. Desfrutou a vida que você escolheu. Mulher – Isso mesmo. Do começo ao fim. (Longa pausa) 171


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*** (Mudança de luz – passado) Mulher – Se você está doente, eu também estou. Ao menos, deveria. Mulher – Deveria. Mulher – Mas estou disposta, com energia de sobra. Mulher – Fico feliz. Mulher – O que está sentindo? O que está acontecendo com você? Mulher – Não sei bem. Cansaço, desânimo. Mulher – Estranho. (Longa pausa) Como posso estar bem com você assim? Alguma coisa muito estranha está acontecendo. Mulher – Talvez. Não sei. Mulher – Posso fazer alguma coisa por você? Quer remédio? Massagem? Cobertor? Mulher – Fica comigo. (Pausa) Não me deixe sozinha. Me abraça. Me abraça. ***

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Mulher – Esperei tanto por este encontro. Na minha fantasia, ele chegaria acompanhado por emoções grandiosas, confissões arrebatadoras, descobertas surpreendentes. E agora, esse nada, encontro mais desencontrado... Mulher – Não há nada mais surpreendente do que a morte. Todo mundo se espanta com ela, mesmo os doentes, os velhos... (Pausa) Aqui jaz a mulher que sobreviveu de uma infância fértil, repleta de sonhos e possibilidades. (Pausa) Mulher – Não somos tão diferentes, no final das contas. Mulher – Há quanto tempo não fazia algo para mim mesma. (Longa pausa) Mulher – Da multiplicidade que nos faz inteira, restou farelos. Mulher – O tempo me corroeu. A vida me desgastou. Primeiro perdi você, depois me esfarelei aos poucos. Camada por camada, até me transformar num nada, uma sujeira que o vento carrega junto com pequenos papéis jogados fora, sujeiras e outras porcarias. (Longa pausa) 173


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Mulher – Deixou de ter cara de reencontro para parecer despedida. *** (Mudança de luz – passado) (Ao som de Casta Diva, de Norma, Mulher enfeita de flores a mulher, celebrando sua morte.) Mulher – Morri, morri sim. Mulher – Está certo. Está certo. Mulher – Não é brincadeira, não. Mulher – Afinal, há vida depois da morte? Mulher – Não posso morrer? Morte é privilégio seu, por acaso? Mulher – Então tá. E você morreu como? Mulher – Morte natural. (Pausa) A vida foi me corroendo, me dissolvendo por dentro. Mulher – Ah, claro! A morte que visita diariamente todos os vivos. Mulher – Primeiro foi você. Agora fui eu. (Longa pausa) Mulher – Simples assim? 174


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Mulher – Simples assim. (Longa pausa) Mulher – É bom, não é? Dá uma súbita e irresistível vontade de viver. Mulher – Quem diria que eu teria tanto prazer em morrer! Mulher – Sua vida de esposa, dona de casa e mãe de família está morta. Mulher – A vida que sobrou dessa também. Mulher – Você é quem manda. Mulher – Nunca me entendeu, mesmo. (Pausa) Viu como te peguei? *** Mulher – Um desperdício de último desejo. Mulher – O que é um desperdício de um último desejo, no meio de uma imensidão de êxtases nunca vividos? Mulher – A vida me preparou para a morte. Foi cortando minhas alegrias, eliminando minhas esperanças, uma por uma. Tanto prazer para relembrar uma última vez e... Mulher – Pois é.

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Mulher – Meus filhos, posso contar sobre o prazer de ter filhos. Paixão mesmo, daquelas transbordantes, quem desperta em uma mulher são seus filhos. Mulher – Quero viver uma etapa de cada vez. Mulher – (Silêncio) Você não está entendendo. (Longa pausa) Mulher – Nunca vi uma morta tão cheia de vida. Mulher – Não sinto nada: alegria, amargura, felicidade, dor, tristeza, frustração... Nada. Mulher – Então morrer é como estar vivo. Mulher – (Longa pausa) O futuro é um tiro no escuro. A gente pode fazer tudo certo e quebrar a cara, ou fazer tudo errado e ter uma baita sorte, um destino maravilhoso. (Longa pausa) *** Mulher – É evidente que você vai estar fria. Friorenta do jeito que é. (Pausa) Me belisca. Mulher – O quê? Mulher – Me belisca. (A Mulher obedece). 176


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Ai. Doeu. Que bom. (A Mulher belisca a outra) Mulher – Ai. Mulher – Você sente dor? Mulher – Você me beliscou. Mulher – Ué, não estava morta? Mulher – Isso não quer dizer muita coisa. Já estudei casos de amputados que sofrem de unha encravada nos dedos que não têm mais. Mulher – Ah, é, estudou? Onde? Mulher – Na faculdade de fisioterapia. Mulher – Durante os 15 dias que frequentou? Mulher – Estava demorando! Cada um faz o que dá. E foi o que eu consegui. Mulher – Foi um desperdício, mas um ato de coragem você ter largado tudo para seguir um amor. Se não tivesse se apaixonado quem sabe teria vivido a minha vida. Ninguém está livre de trocar um punhado de sonhos por um. Mulher – Do que você está falando? Mulher – O que quero dizer é que hoje entendo suas escolhas. Mulher – Que escolhas? 177


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Mulher – Minha intuição dizia que aquele pamonha arruinaria nossos sonhos. Faria você desistir de seus projetos, um por um. Se bem que você não tinha nenhum... Mulher – Na época, não. Mulher – Na época? Mulher – Minha vida foi monótona, mas nem tanto. Empaquei depois que você foi embora, por um tempo, mas depois segui meu rumo... (Sorri) Pensou que...? Mulher – Pensar no que você deixou de viver. Talvez esse fosse meu único prazer. Mulher – Vai de novo escolher o caminho mais fácil? Mulher – Poderia ter bebido mais, comido mais, gozado mais. Teria dado no mesmo. Mulher – E perder mais uma oportunidade para beber melhor, comer melhor, gozar melhor. Mulher – Mesmo na sua ausência, você vivia dentro de mim, seus talentos me apertando por dentro. Agora não sofro por ninguém. Um sentimento confortante. (Longa pausa) Se você morreu, eu deveria sentir. 178


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Mulher – Deveria. (Longa pausa) Mulher – Sua morte deveria estar anunciada em mim. Mulher – Deveria. (Longa pausa) Mulher – Estou ficando com medo. Mulher – De quê? Mulher – Da morte. Mulher – Uma mulher experiente como você? Medo eu tenho da vida. (Longa pausa) Mulher – Deixei de fazer tantas coisas antes de morrer. Deixei de viver antes de morrer. (Longa pausa) Mulher – Ninguém faz o suficiente. Nunca. Mulher – É a vida. (Longa pausa) Mulher – Posso te perguntar uma coisa? Mulher – Claro! Mulher – Existe inferno? Mulher – É claro que existe. O inferno é o piques. (Luzes se apagam) Fim

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DesolaDor (A partir de cartas e escritos pessoais de Antonin Artaud)

Como um personagem de teatro, capaz de ser eu e ao mesmo tempo outro, eu, inventor de mim.

A Peça Muito se sabe sobre a obra de Antonin Artaud (1896-1948). Dramaturgo, escritor, poeta, ator e diretor francês dos mais importantes do século xx, Artaud deixou um legado artístico substancial que continua influenciando as artes da atualidade, 60 anos após sua morte. Suas peças teatrais são constantemente encenadas. Seus livros – sobretudo O Teatro e seu Duplo – ocupam lugar de honra em livrarias de todo o mundo e servem como referência para 181


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diretores fundamentais do desenvolvimento do teatro contemporâneo, como Peter Brook, Jerzy Grotowisky e Eugenio Barba. Muito se sabe sobre o artista, mas sobre o homem pouco é conhecido. DesolaDor destrincha a essência de Antonin Artaud. O espetáculo foi inspirado em cartas e textos pessoais do autor, escritos que datam de seu último período de internação, no manicômio de Rodez, época em que ele esteve mais fragilizado – mesmo assim, consciente de sua doença e do valor de suas crenças artísticas e humanas. Através de um texto sufocante, Artaud exprime seu pensar, às vezes lógico e genial e outras vezes absolutamente surrealista. Vomita as palavras em fluxo contínuo, ininterruptamente, exprimindo suas angústias mais profundas tanto no conteúdo como na forma de seu discurso. DesolaDor revela a grandiosidade de seus pensamentos cotidianos; sua imensa dor, expelida sob forma de loucura; a angústia que o consumia diariamente, já que sua extraordinária sensibilidade percebia a fragilidade reinante de seu corpo e mente que se expandia sem 182


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tréguas. Ao mesmo tempo que apresenta o que há de particular em Artaud, DesolaDor busca também o que existe de universal. É curioso que – justamente ao descortinar a personalidade excepcional de Antonin Artaud – o texto evidencia o que este homem tinha de mais comum. *** parto da caverna pobre cavidade de mim liberto de si respira o espírito como um personagem de teatro capaz de ser eu e ao mesmo tempo outro eu, inventor de mim abro a porta eles estão lá os conheço (tempo)

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hesito nada deles restou sou eu também o antagonista de mim e os que existem entre nós esta é a minha superioridade superioridade do outro o em mim e o fora dele e a discussão torna-se teatral caracterizem, então, os personagens! deem a eles forma física timbre, postura, magia humanidade! Paolo Uccello pensa na vida e em si mesmo conhece o amor? aventura-se pelos mistérios da alma? quem é ele? eu mesmo, quem sou? imagine, invente, fantasie como quiser 184


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como o desejo mandar eu o outro que gostaria de ser paisagem de mim avisto através de meus olhos quando não são meus não importa quem seja quem escapa de mim sou eu Paolo Uccello será seu nome o inconsciente me impulsiona avanço sobre ele me aproprio de sua arte de sua marginalidade renasço agora mulher (tempo. Num pingue-pongue com si mesmo)

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quantas vezes você imagina amar novamente? um soldado na guerrilha. O soldado está só. olha a fotografia que acaba de tirar da carteira. a morte tem importância na sua vida? está na hora de dormir. você acredita em amor imortal? não acredito que pobreza seja um vício. o que mais te enoja no amor? você, querido amigo, eu. (tempo) um homem na tentativa de sentir não renuncia nem ao sentimento faz valer a emoção em toda densidade poética ele procura se perder dentro de poemas e que os outros se percam com ele (tempo) ilusão, devaneio realidades soberanas 186


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a verdade da vida reside na impulsividade da matéria há uma razão nas imagens esta carne que a vida não mais encosta essa língua permanece casca essa voz deixou de caminhar sobre os trilhos do som mãos que esqueceram o simples pegar Artaud, múmia de carne fresca nem a vida está completa, nem a morte abortada a besta adormecida destruo a mim mesmo já não me aceito vivo na infância, já o amargo da dor contração física nos nervos face e língua retorcidas a crise se foi o doente sedimentou

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(tempo) dolorido mesmo é o espasmo moral Duplo o grito de desespero você não ouviu silêncio soprou fragmentariamente assim se revela meu mundo (tempo) com exceção de minha dor inteiriça Duplo feito de noite sombras confusão (tempo)

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sofrer uma palavra toda esta dor carta em branco é visível este amontoado de letras serve a uma descrição luxuosa do vazio Duplo a vida como tantas outras alegrias, emoções paixões de todo tipo me esperam espero prazeres sutis pequenas satisfações entusiasmo pelo simples, o rotineiro eis a busca maior Carta Resposta morto eu ingênuo você me sugere humildade 189


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paciência, resignação virtudes de almas intactas a revolta sólida que brota do melhor de mim se justifica indignidade intelectual multiplicado de mim rarefação de existência carnificina Duplo superior você quem quer que seja que aspire vida mas o fogo virtual ainda queima consciência que se ilumina brasa de momento reúne a vida com suas flores ao redor da múmia voluntária realidade movimenta-se paisagem fragmentária estilhaços de mim 190


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Duplo a arte é feita para nos reconduzir ao centro âmago de nossa intolerável solidão (tempo) de uma vez por todas, façamos a paz façamos a paz com nós mesmos doentes, todos vocês o espírito do homem adoeceu não lhe exigem satisfação apenas calma mas só os loucos dormem em paz minha efervescência interna em fúria, duela com o passado não me pertence mais imagens correm em minha direção poros abertos para a colisão promessas de vida infiltram entranhas

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(tempo) atravessam meu corpo seco império vazio sinto algo apodrecido em mim que vicio é este que me impede de desfrutar os presentes do destino? há anos não me encontro mais onde estou, que não no gozo salvador? digo de antemão, sou um sujeito antissocial produto da podridão humana doentes desde os primórdios condenados já na nascença corpos e almas congenitamente adulterados há uma questão em você que a medicina jamais compreenderá o que, para mim, representa a própria salvação Duplo você carrega o mal do homem ordinário

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estou fora ausente de vida abaixo de existência quietude humana aprisionada poder encarcerado estabilidades dissolvidas dores profundas cuja essência se resume ao que não é capaz à incapacidade de se adaptar de se capacitar Duplo e eu, que participo desse mal te pergunto: quem ousará nos abençoar? morte? droga? êxtase? ou dor que, quando real, interfere na consciência? se os deuses me amam, serei visto preciso de um milagre, um enviado divino preciso de você de mim ou quem sabe uma dosesinha de ópio 193


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que entre o duplo triplo que se abra caminho para a multiplicidade dor escalando corpos, mentes, espíritos à procura de um porto seguro em busca de paz (tempo) é preciso nos deixar em paz deixar os doentes em paz nada pedimos aos homens além de um pouco de alívio deixem-nos rir (tempo) asilo território estrangeiro da ciência alheio à justiça terra de alienados

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caverna, prisão que eu chamo de casa êxtase de vida confundido com loucura cárcere arbitrário estranha a vida normal é estar morto vagar sem luz pelos desencontros do caminho Duplo onde não há luz não há sombra não há estrada loucos por existir eu, tu, dementes e elevados temos direito ao destino direito ao cárcere delírio, livre pensar dádiva que aprisiona os loucos estão soltos o mundo pertence aos repressores

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estou melhor penso, falo, escrevo engordo corpo e alma o longo silêncio me fez aprendiz o mau pode desaparecer Duplo estado de fraqueza toma forma afina corpo fragiliza desejo promessa roubada descrição de um estado mental leão que cospe fogo galopa cego, solto o rosto coberto de larvas me surpreendi como pode um doutor dar tão pouco valor manifestações da dor como pode um doutor dar tão pouco valor (tempo) 196


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jamais notei mudança verdadeira em meu estado agora, como antes trabalho imerso no sofrer Duplo sua observação diante de mim espelho de dor espelho de trevas não pode haver inteligência sem grande dor intelecto pede distância exige afastamento ignorante és tu, que não sofre não se ensina a pensar é preciso ser doer é quando se pesa vida se mede o valor da opinião o eu entregue à maravilha da existência 197


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a lacuna de um ser sou eu a falta a falha o vazio sofrimento persistente repouso isolamento sem valor Duplo (interrompendo) choques que me arrancaram a alma e os dentes inútil, sem ação sobre o mal Carta a um Morto conheço meu espírito sei bem a tensão mental que corresponde a mim não existe não mais penso debilitadamente o sentimento da escrita indispensável desapareceu

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estar aqui para quê? ruas, mundo, manicômio humanidade fere, apavora tudo o que avisto é doença fixo os olhos em minha sombra que lugar é este que não faz bem lágrimas choram baixinho ar sufoca mais uma eternidade de espera saúde, eu imploro, um sinal de vida ou me jogo no tempo o tempo vida a ganhar tempo a perder urgência de um medicamento mais forte algo agressivo, capaz feito eu feito esta doença que me devora o inconsciente é a densidade da alma a continuidade do pensar 199


gabriela mellão

o resto é vida vegetal que cresce em mim se apodera de meu pensar cheguei ao ponto de partir desejaria o ponto de partida não há mais o que esperar ainda resta muito o que fazer mas o quê? a dor de cabeça atordoa a alma medicamento alivia tamanha violência que toma posse de meu corpo, de meu viver você me indaga deseja compreender a agressividade estou em guerra combato depressão luto em favor de meu cérebro medicamento para curar desespero há quatro anos me deito sobre seus lençóis e sigo desprovido 200


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nu te peço tentar ou exterminar tudo, todos estou em ruínas tombo numa queda sem cessar é preciso se arriscar, se aventurar a fragilidade da vida dependo de uma tentativa mas qual? é preciso tudo tentar o absurdo? experimento – não me falta apetite o disparate me é familiar nado diariamente nas águas da loucura imóvel, mudo me comunico comigo e com você todos sumiram de meu mundo as paredes estão vazias o espelho brilha solitário 201


gabriela mellão

dominado e de tal maneira possuído que para me restituir de mim me entrego a qualquer loucura desabituei a pensar a ligação entre razão e espírito me foi degolada amputada e como as palavras, me fazem falta de fato não mais sou o espírito quando se limita a ausências inconsistência, esquecimento lá se foi a fusão pensar e agir lá se foi a fusão uso a fala para me reencontrar na tentativa de um novo embate quem sabe assim me redescubro

202


primeiras obras

eu o antigo eu em mim meu dizer não é o mesmo o mesmo de meu dizer sentenças não mais me expressam deixaram de gritar meu pensar Duplo fadiga lembranças regresso por que Artaud não retorna? surrealismo é vida realidade filtrada pelo sono ciência do inconsciente o surrealismo sou eu que nada demasiadamente dadaísta para o surrealismo (tempo) surrealismo, movimento que reinventa o mundo 203


gabriela mellão

o pensar o surrealismo sou eu Carta de Condolência surrealismo está de luto contra todo o aspecto possível da realidade não se trata de ideologia a revolução surrealista perfura a carne estou um pouco perdido digo, nos últimos dias nos últimos dois ou três dias Cartas de um Exilado me perdoe não escrever antes. (pausa) ou nunca mais esperava fazê-lo quando estivesse melhor quando minha situação moral estivesse mais uma vez clara, luminosa mais uma vez atravesso uma estrada menos esburacada mesmo assim, me falta engajamento além de alimento 204


primeiras obras

me sinto um pouco inquieto um pouco mais do que um pouco Duplo intervenho em nome de um camarada um camarada feito eu oprimido, aprisionado carente de crenças ator de talento incontestável poderia recomendá-lo? ele passa necessidades Cartas de um Fugitivo perdoe minha ausência faltou disposição para levantar minha jornada é prisioneira de mim tanto quanto eu que sou prisioneiro dela Carta de um Desertor pela partida apressada peço perdão saída um tanto brusca, você tem razão me dei conta 205


gabriela mellão

nada mais ter a fazer ali (tempo) faltou coragem para dizer adeus Duplo em nome de meu camarada, peço perdão por ele, por seu estado imaginário de depressão além de perdão, peço trabalho se você souber de algo fácil – que não exija demais quem sabe um artigo curto qualquer serviço seria de grande utilidade para mim exercício espontâneo magia você ato criador mesmo em seu duplo mais banal mergulho garantido na doçura do viver mas a vida fede 206


primeiras obras

não posso mais tratar de teatro nada que remeta arte dramática ou cenográfica não posso mais tratar de mim Duplo meu camarada acaba de me presentear uma decepção terrível me fez ver a mim mesmo com horror (tempo) nada que exija organização de qualquer ordem ideias me escaparam uma evasão de mim vertigem tontura quando contamina mundo dor violenta contamina sentidos exaure carne viola espírito 207


gabriela mellão

esperança dilacerada membros tremem horizonte em ebulição a nuance do pensar não me visita mais (tempo) a ameaça quando se torna realidade Carta Necessária ajuda preciso urgentemente de ajuda quanto ao meu camarada veio em minha direção e em seguida desapareceu Carta ao Ego se o mundo me achasse realmente belo, admirável seria uma estrela estaria famoso, ganhando cem mil francos por ano – por mês 208


primeiras obras

minha arte produz algum tipo de emoção não nego produz em mim pelo menos em mim (tempo) há muito deixei de comandar as emoções que provoco Duplo jamais acreditei que o surrealismo poderia se apropriar da realidade (tempo) tudo isso sempre me pareceu distante dos propósitos da alma dos objetivos verdadeiros, anteriores à essência superiores ao espírito a própria base do surrealismo e assim caio no fundo efervescência de contradições 209


gabriela mellão

apesar de incoerente, pronuncio a verdade: teatro tudo o que posso fazer é repetir mais uma vez repetir revolução, a palavra revolução não me remete algo carnal ela não é real Duplo quando necessário me desamarro de você a distância não é natural duplo sentir numa só trajetória nossos caminhos de luz são vias estreitas estradas oblíquas duvide de minhas inspirações dos lampejos mais intensos mais reais duvide sonho com estradas luminosas 210


primeiras obras

e isso é tudo um combate com o existir o dever da maldade temos que distribuir o mal à nossa volta depois nos cabe destruir os vestígios você está mumificado a paralisia da múmia contaminou o mundo você nem mesmo sabe o que te envergonha Duplo se não nos reunimos para formar um complô, como explicar o encontro? não vejo outro caminho para nossa existência se não o da atividade revolucionária – no que se refere ao caos de espírito ou então, que nos separem! seu problema é comportar-se como criança desconhecer o caráter real da força a realidade segue a ordem da revolução a qual deve seu senso apenas a tu, inconsciente

211


gabriela mellão

diante do chamado soberano, o movimento desagradável do espírito se retrai ou nós não somos poetas ou o surrealismo não me interessa mais me recuso a renunciar a manifestação da alma através dela, o inconsciente urge Carta da Desesperança meu estado não sinaliza melhora vivo num limbo contínuo palavras o dia todo à procura de palavras em busca de meu pensamento sofrimento de todo o tipo, desespero real o qual se manifesta não somente na mente o desespero se anuncia em minhas tripas Carta do Vazio fiz conforme o combinado escrevo tendo nada a dizer ficaria feliz em receber notícias minhas, disse mesmo tristes, mesmo ruins 212


primeiras obras

são escabrosas meu espírito está paralisado persisto na esperança mas ela, como você, parece ter desistido de mim nado numa espécie de bacia infectada de dor o ódio contamina uma desolação nado em águas áridas (tempo) nada mais tenho a dizer as mesmas queixas repetição sem fim te peço perdão espero que compreenda não reclamo de forma alguma desejo contribuir com o horror talvez seja você a pessoa 213


gabriela mellão

com quem mais perto me sinto neste mundo marasmo pavoroso de vida asilo como refúgio e essa loucura que se transformou em mim espero mudança para reaver esperança faria qualquer coisa (tempo) uma ansiedade intolerável me consome Carta da Impossibilidade é terrível meu sangue escorre para fora do corpo tinge paredes espirra em tudo o que é belo não me pergunte nada, nem tente me encontrar mais não posso alma lançada ao mar não faço 214


primeiras obras

não tento além de pensar no que me atordoa nada posso Escritos sobre a Imensidão de Mim impossível fazer este trabalho passividade me devora e eu cada vez mais doente incapaz de esforços físicos e mentais se engana se pensas que o esforço seria grande imenso ele seria Duplo a ruína do espírito é desastrosa para um operário da mente decomposição do viver preciso encontrar uma maneira de entrar em mim de me restaurar solidão imerso em meu próprio mundo afogado em um tempo só meu 215


gabriela mellão

quatro anos se foram de mais ninguém não preciso não mais Carta do Suplício um pedido ao meu querido amigo se tiver recursos uma soma qualquer pense em mim estou precisando poemas de amor também os poemas de amor de Rimbaud urgência em sentir o sofrer o sofrer do outro não estou só nessa dor não estou me é generosa a dor a dor do desejo insatisfeito presente em toda tentativa de amar me aproxima do que se entende por normalidade 216


primeiras obras

eu andarilho perdido pelo labirinto do ser Duplo o coração é meu guia emoções me conduzem um contato muralhas se esvaem alguém para desarmar minhas trancas mesmo que seja eu Carta Existente a impressão foi incrivelmente forte ou esta carta seria inexistente personagens de sonho me despertam lamento, um lamento profundo obviamente estaria aí ao seu lado (tempo) agradeço a simpatia 217


gabriela mellão

mas a fase é dura para ser exato aterrorizadora se é que existe exatidão a esperança não sobreviveu de que modo ultrapassar estagnação crise nervosa dor na alma corpo, coração Duplo deixou de fazer sentido (tempo) para mim. (tempo) gestos humanos não me dizem mais nada me prostituo lanço meu espírito sobre a correnteza nas águas escuras do oceano minha alma navega solitária 218


primeiras obras

não me alinho com existência bem, mal pouco importa heroísmo aborrece moralidade irrita nada mais quer dizer algo neste mundo o significado das coisas só interessa a mim persisto em fugir da psicanálise escaparei sempre como de qualquer tentativa de encarcerar a consciência fórmulas, normas, tradições combato tudo isso com vômito Carta de Urgência algo apodrece em mim algum vício inexplicável me impede não desfruto a oferenda do destino (pausa) não se desinteresse de mim 219


gabriela mellão

digo não se desinteresse de mim ainda preciso de socorro o seu mais do que nunca angustiada minha lucidez sobrevive antes de me suicidar, preciso a morte conhecer se me matar, não será para me destruir mas sim para me reconstituir o suicídio é uma maneira violenta de reconquistar o pavor do morrer o retorno ao centro ao buraco original retorno definitivo necessário O Duplo em busca de reconexão avanço rumo em direção ao deus incerto 220


primeiras obras

através do suicídio, na natureza reintroduzo meu corpo faço, pela primeira vez em muito tempo, algo fruto da minha própria vontade me livro dos órgãos que me constituem tão pessimamente ajustados ao meu eu a vida deixa de ser essa coincidência absurda na qual os pensamentos devem estar alinhados comigo com o que os outros esperam do pensar escolho minha mente a individualidade de minhas forças minhas tendências, minha realidade eu, paralisado ali bem no meio do caminho O Duplo sigo suspenso sem inclinação destino insosso busca de um equilíbrio impossível a vida, ela mesma, não é solução 221


gabriela mellão

espécie alguma de existência escolhida ela não passa de forças adversas contradições que abortam o destino verdadeiro da humanidade ninho odioso de coincidências medonhas Duplo o mau habita cada homem, do gênio ao louco, inevitavelmente Carta sobre mim Mesmo depois de viver minha existência, concluo: na realidade somos árvores e provavelmente está escrito em um tronco qualquer em alguma de minhas ramificações contorcidas que começam a secar: me matarei a própria ideia de liberdade de um suicida tomba como árvore degolada desconheço tempo, lugar e as circunstâncias de meu suicídio invento a morte com a força do pensamento

222


primeiras obras

O Duplo sentirei a bala rasgar minhas entranhas perfurar essa existência inútil? no instante exato do morrer, sentirei meu ser se dissolver? como reagirão meus órgãos em ruínas? (tempo) sinto a morte irromper em mim como uma tormenta cobrir de flores o corpo cinzento colorir sofrimento preencher vazios de delícias me recarregar de doçura e lá está deus sua presença diante de mim feixe de luz abusivo serviu-se de mim sem misericórdia me entregou a uma trajetória absurda sem trégua, sem piedade deus este que me manteve vivo para desfrute de uma vida de negações 223


gabriela mellão

destruiu em mim qualquer resquício de vida pensante reduziu-me ao automático O Duplo o que dizes, deus? o que dizes? deus me presenteou com desespero também me deu uma constelação de impasses (tempo) minha existência se resume a uma generosa dose de decepção estranha a realidade desconhecida individualidade ideias movimentavam-se dentro do rio seco que se tornou meu corpo O Duplo saio de mim e me vejo imóvel impossibilitado 224


primeiras obras

lágrimas caem sobre meu corpo podre também a atrofiada mente que não consegue destino melhor impossibilitado inclusive de suicídio se o eu em mim não retornar, de que forma conquistarei a morte? não posso morrer menos ainda viver nem mesmo desejar – morte, vida, prato de comida tenho o direito da dúvida eu, sobretudo eu, que não estou convencido que não estou preenchido a fantasia é dádiva real ou consolo pro estômago vazio? em busca da verdade conhecimento sobre vida, morte, arte doce e salgado também a privação deixou de ser teórica fome de existência, instinto, trigo 225


gabriela mellão

O Duplo a existência humana enoja abomino sobretudo o viver realidade falsa vão o suicídio é uma conquista fabulosa dos homens que possuem o dom do pensar incompreensível o estado propriamente dito do suicida se eu tivesse algum resquício de vida alimento interno ou externo a vida seria um sofrimento necessário O Duplo não há estado de alma que eu possa atingir não sou um provável suicida provavelmente já está morto há algum tempo se suicidou (tempo)

226


primeiras obras

O Duplo a vida me aniquilou (tempo) não sinto apetite de morte apenas de não ser (tempo) não me submeter reduzir a existência a uma vida de abdicações de renúncias aos que têm fome de destruição existência ou pão suicidem-se suicidem-se desesperados vocês, torturados de corpo e de alma percam as esperanças não há alívio neste mundo O Duplo meu consolo 227


gabriela mellão

todos os homens são como eu Antonin Artaud incapaz de vida ou suicídio encontros obtusos somados constituem Artaud ser virtual impossível e mesmo assim real vocês têm direito de esperar de mim algo que ultrapasse o grito de impotência que a impossibilidade deixe de ser tema que eu silencie o problema é que ainda vivo Fim

228


Coleção Primeiras Obras 1. Otávio Martins 2. Gabriela Mellão 3. Ivam Cabral 4. Sérgio Roveri 5. Vera de Sá 6. Sergio Mello 7. Rudifran Pompeu 8. Marcos Damaceno 9. Lucianno Maza 10. Dramamix 2007


© Gabriela Mellão, 2009 Crédito fotográfico: Lenise Pinheiro Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Biblioteca da Imprensa Oficial) Mellão, Gabriela Nijinsky; A história dela; Parasita; Em camadas; Desolador / Gabriela Mellão [Organização de Ivam Cabral]. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 236 p. – (Coleção Primeiras Obras, 2) isbn 978-85-7060-799-7 Apoio: Grupo Satyros Literatura. Associação dos Artistas Amigos da Praça 1. Teatro – Brasil 2. Literatura – Teatro 3. Textos literários i. Mellão, Gabriela ii. Título iii. Série. cdd 808.2 Índice para catálogo sistemático: 1. Textos literários   808.2

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei n. 10.994, de 14.12.2004) Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia dos editores Direitos reservados e protegidos (lei n. 9.610, de 19.02.1998) Impresso no Brasil 2010 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca 1.921 Mooca 03103-902  São Paulo  sp  Brasil sac 0800 0123 401 sac@imprensaoficial.com.br livros@imprensaoficial.com.br www.imprensaoficial.com.br


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Imprensa Oficial do Estado de São Paulo diretor-presidente

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Governo do Estado de SĂŁo Paulo governador

JosĂŠ Serra



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