Lucianno Maza *** A Mem贸ria dos Meninos Carne Viva No Meio do Caminho Temporal Tr锚s T3mpos
Coleção Primeiras Obras, 9 Ivam Cabral (organizador)
Apoio Cultural
Lucianno Maza *** A Mem贸ria dos Meninos Carne Viva No Meio do Caminho Temporal Tr锚s T3mpos
Pref谩cio
Mem贸ria e Dor alcides nogueira 7 A Mem贸ria dos Meninos 15 Carne Viva 47 No Meio do Caminho 81 Temporal 129 Tr锚s T3mpos 211 5
Memória e Dor
Lucianno Maza escreve no contra-tempo. Assim mesmo, com hífen. Inverte a partitura e trabalha não com o Tempo Recuperado, mas com o Tempo Destruído. Em seus belíssimos textos Três T3mpos, Carne Viva, A Memória dos Meninos, No Meio do Caminho e Temporal, fica clara a diferença que ele faz entre Memória e Lembrança. A primeira, como a camada de tinta que a vida gruda em nós; a segunda, como a possibilidade de recuperação (ou esquecimento) da Dor. A Memória fica, independentemente de nossa ação; a Lembrança manipulada e talvez até mesmo extirpada. Pode ser esquecida. A fina matéria com que Maza trabalha é a Memória. Sempre dolorida. Quase crua, ainda 7
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envolta em uma placenta emocional. Sob a delicadeza e elegância de seus diálogos, por debaixo da poesia que permeia suas peças, o rugido do tempo ecoa, reivindicando sua presença. Três T3mpos esmiúça a relação entre um homem e uma mulher, contada de maneira multifacetada, espelhada, e, a cada movimento, modificada pela ação do tempo e da Memória. A Lembrança permanece como um dado a mais, que é usado ou descartado. A Dor surge, na incompreensão dos atos e das decisões, no desencontro, na história que vai se completando como se fosse um jogo de armar. A perda da Memória é o foco que Maza utiliza para iluminar os labirintos afetivos onde se perderam – e se deixaram perder – os que tanto se amaram. Usando seus corpos como ponteiros de um relógio inventado, é como se a única possibilidade do reencontro fosse a manipulação física da hora, do tempo, com o ir e vir dos corpos. Em Carne Viva, um monólogo, uma mulher trabalha um pedaço de carne. Corta bifes enquanto a Memória escoa junto com o sangue. Aqui, Maza recorre ao Sagrado, rituali8
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zando a automutilação passional e física. A Dor é sublimada pelo vômito catártico, onde a Memória da Dor assume a proporção do inatingível. Essa Uma Mulher, em seu delírio masturbatório diante de um Cristo sexualizado, extirpa o marido de sua vida. E, no recontar de sua história, o sofrimento mostra outra feição. Como uma Santa Tereza de Àvila, ela recupera o elo com Deus, em êxtase. Não é por mero efeito que o autor usa o aramaico para expressar as palavras da Revelação. A Memória dos Meninos coloca em cena a Memória da infância perdida na raiva. A morte do pai (a ausência dele é um tema recorrente na dramaturgia do autor) desencadeia nos filhos Miguel e Rafael a fúria, na medida em que eles colocam o dedo em feridas antigas. O pai morre queimado em sua casa. É como se o fogo pudesse purgar o desencontro de afetos que sempre houve. Mais uma vez a aparente delicadeza das palavras serve como embalagem para uma profunda Dor, que vai emergindo até explodir e depois sossegar, ao menos por um momento, os corações dos filhos. 9
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No Meio do Caminho é, de certa forma, a síntese das angústias de Maza. Por meio de uma arquitetura dramatúrgica sólida, ele confina duas mulheres – Socorro e Vitória – em um ônibus, no momento em que a viagem é interrompida. Em plena noite, com apenas as duas no veículo (o motorista sumiu), um homem jaz morto na estrada. O que era uma conversa banal vai se tornando uma reflexão profunda, emocionante e emocionada, sobre a vida e a morte. Há o desvendar dos segredos das passageiras. Mais uma vez a Memória surge, como se fosse a cobradora das passagens, implacável. As mulheres conseguem escapar das Lembranças, mas a Memória se posta à frente delas, esfregando o Tempo em seus rostos fingidores, até que caem as máscaras. Lucianno Maza mostra um outro lado de sua dramaturgia em seu trabalho mais recente, Temporal. Nesse texto, o autor monta uma estrutura dramática diversa, empregando um discurso muito próximo do naturalismo. Mesmo assim ele não abre mão de seus signos usuais. O Tempo mora junto com o velho carpinteiro 10
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Noah, sua jovem esposa Mayim e Zara, a filha de Noah com sua falecida primeira esposa, e bem mais velha do que Mayim, na casa que ele construiu. Um Taj Mahal fictício, como se Agra fosse ali, em meio a um matagal cercado por um rio. A chuva que cai sem parar, inundando a casa e toda a região, é a metáfora da Memória. Ela confina os três nesse espaço velho, carcomido, que Noah tenta salvar, ao mesmo tempo em que busca desesperadamente resgatar os traços de Ayaliyah, a amada esposa que morreu quando o Tempo ainda não estava com eles dentro da casa. A Dor vem com os pingos da chuva e invade o espaço físico e o emocional. São todos dominados por uma força descontrolada, que os imobiliza mas que, por fim, limpa a Dor, lavando a Memória. Se, nos outros textos, tudo era ilavável, aqui acontece o contrário. A dramaturgia contemporânea brasileira tem revelado nomes promissores. Lucianno Maza não é uma aposta: já é uma voz possante da novíssima cena. Há em seu trabalho a força de quem se joga sem medo, mas ancorado na melhor dramaturgia, que lhe serviu de escola e 11
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lastro. Seu barco não segue à deriva. Ele sabe o que quer, como quer e porque quer! Lucianno Maza demonstra grande conhecimento, por estudo e leitura, dos códigos e claves do teatro. Se Tempo e Memória são os pilares de sua escrita, o uso escolhido das palavras e a elegância do discurso (mesmo quando a Dor surge como faca afiada) marcam o seu estilo. O que enriquece mais ainda a sua obra é que Maza navega por temas próximos a todos – mas de maneira muito própria. O teatro se mostra o canal perfeito para o seu conhecimento do mundo e seu estar nele. Sofisticado, sabe que o melhor é a simplicidade. Como se dirigisse o ônibus de No Meio do Caminho, Lucianno Maza segue, levando a sua angústia – a tocha de José Régio, em seu Cântico Negro. Importa é o não-ir por caminhos já traçados ou delimitados por outras vozes que não as suas. Aí está a beleza da sua obra. Não sei se de maneira confessional ou não, com os caquinhos de vida que Maza recolhe, ele monta painéis instigantes. É importante não ficar somente no que ele expõe, mas tam12
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bém no avesso, pois cada ponto de sua escrita é amarrado com firmeza. Ele escreveu: Os ventos são como os minutos que passam, que voltam, mas são sempre diferentes. Disse tudo! O resto é encenar, sempre, suas peças! Alcides Nogueira
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Um caixão preto fechado no meio do palco sobre um suporte e dois castiçais altos em cada lado. Rafael, mais jovem, vestindo um alinhado terno preto está estático no lado esquerdo do palco, olhar duro e fixo para frente. Tempo. Entra Miguel, mais velho, vestindo um terno idêntico ao de Rafael, traz consigo uma sacola de viagem. Sem que se olhem, Miguel deixa sua sacola no chão e se posiciona no lado direito, estático também. Tempo. Miguel – Me desculpe. Rafael – (irônico) Muito obrigado pela gentileza de vir. Miguel – Me desculpe a demora eu disse. (pausa) O único vôo que consegui foi pra 15
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hoje, você sabe que está complicado vir pra cá. Rafael – Você não precisava ter se dado tanto trabalho! Miguel – E te deixar sozinho? Rafael – Você já fez isso antes, não fez? Silêncio. Miguel – Como você mudou! Rafael – Eu só cresci. Miguel – Pelas fotos eu não notava... Você já é um homem! Miguel vai abraçar Rafael, mas ele se afasta. Miguel – Ele não tinha muitos amigos, não é? Rafael – Não mais. Miguel – Tão vazio... Rafael – Ontem tinham algumas pessoas. Miguel – Eu disse que não precisava me esperar. Rafael – Precisava sim. Você tinha que estar aqui. Ver isso. Viver isso. 16
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Miguel – Pra quê Rafael? Silêncio. Rafael – A dona Carmem foi a única que veio ontem e hoje, foi embora pouco antes de você chegar. Miguel – (tentando lembrar) Carmem? Rafael – (esboçando sorriso) Sim! A dona Carmem da mercearia... Lembra? (pausa.Desânimo) Você não consegue lembrar, claro! (ressentido) Você não lembra de nada da nossa vida, não é? Miguel – A portuguesa que tem aqueles peitões! Rafael – Tinha. Ela teve câncer de mama há uns cinco anos. Miguel – Você sabe que horas são? Rafael – O tio ligou ontem. Pra avisar que não pode vir ao velório nem ao enterro. (alterado) Pode uma coisa dessas Miguel? O próprio irmão! Miguel – Calma! Rafael – Você se parece com nosso tio. 17
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Miguel – Você está vivo e eu estou aqui. Rafael – Até quando? Miguel – E os abutres da funerária onde estão? Rafael – Foram tomar um café, eu queria ficar sozinho com ele um tempo. Miguel – Pra quê? Rafael – Pra me despedir. Miguel – De um monte de carne assada? Silêncio. Miguel – Você está bem? Rafael – O quê você acha? (pausa) Foi tudo tão de repente... Miguel – Essas coisas são assim. Rafael – Assim? Miguel – De repente. Rafael – Eu não pude acreditar quando me ligaram no trabalho. Eu corri pro hospital a pé, esqueci do carro, de avisar as pessoas, tudo. Miguel – Você podia ter me ligado assim que soube! 18
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Rafael – E o que você faria Superman? Miguel – Eu gostaria de ter estado aqui pra ajudar você. Rafael – Mas não estava. Miguel – Eu ainda lembro de toda burocracia de documentos, funerária, aviso em jornal e... Rafael – Nem a casa temos mais... Nada Miguel. Tudo cinzas. Miguel – Você pode vir comigo... Rafael – Minha vida é aqui. Sempre foi. Miguel – A minha também. (pausa) Até eu ir embora. Rafael – Como anda o mundo? Miguel – Cada vez pior. Rafael – Ele às vezes pensava que você ia voltar. Miguel – Eu não tenho nada de filho pródigo. Silêncio. Rafael – Queriam cremar. O que restou. Miguel – Você não quis? Rafael – Seria cruel demais. Até pra ele. 19
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Miguel – Que diferença faz depois da morte? Rafael – Dizem que os funerais são para os vivos, não para os mortos. Que isso tudo é pra ajudar a quem fica a se despedir de quem vai e não volta. Miguel – Escuta Rafael, você pode vir comigo só por algum tempo. Rafael – Eu não sou como você, eu não consigo simplesmente esquecer tudo, o passado, e ir me aventurar por aí. Miguel – E pensar que eu sou o mais velho. Rafael – Você sempre falava isso nas discussões... “Eu sou o mais velho, eu tenho razão”. Miguel – Talvez eu estivesse errado Rafael. Silêncio. Rafael – Você nunca esteve lá. Miguel – Eu também precisava ser salvo. Rafael – Só a mãe... Miguel – Ela também precisava ser salva. Rafael – Todos nós. Miguel – Ele fez das nossas vidas um inferno. 20
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Silêncio. Rafael fala tirando do bolso um pouco de erva e seda, faz um cigarro. Rafael – Suspeitam que foi suicídio. Acredita?! Quem teria uma idéia idiota dessas pra se matar? Atear fogo numa casa inteira! Miguel – (se convencendo) Suicídio? Não... Ele não se mataria Rafael, ele era medíocre. Ele não teria essa coragem. Era um fraco, um fraco que não teria essa coragem. Não teria. Rafael – Claro que não. Ele simplesmente devia estar dormindo quando houve um curto, a cortina pegou fogo e tudo começou... Algo assim. Ele tinha o sono tão pesado, você sabe. Foi bem na hora da sesta. Rafael começa a fumar o cigarro. Miguel – Primeiro a fumaça preta invadindo seus pulmões... Apodrecendo. Ele que nunca colocou um cigarro na boca! Depois a pele queimando tudo, sangue pegajoso misturado com os pêlos. (pausa) Ele entrando 21
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no sol. Imagina o desespero Rafael, os gritos abafados pelo fogo. Rafael passa o cigarro para Miguel, os dois passam a fumar juntos então. Miguel tira a gravata e desabotoa a camisa, em seguida Rafael faz o mesmo. Rafael – (irônico) Será que morrer queimado purifica mais a alma? Miguel – (rindo) Não a dele... Rafael – Lembra quando ele deixava queimar alguma coisa na cozinha? Miguel – Imagina o que ele não pensaria dessa vez. Os dois riem. Em seguida cada um entra numa vibração diferente, tentando não se influenciar pelo outro, mas Rafael vai ficando nervoso. Rafael – Você lembra Miguel, como ele nos rodava no quintal? Girando, girando, girando até ficarmos tontos e cair. Daí vinha o Tiger e subia na gente rosnando de brin22
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cadeira. Era o Tiger ou outro nessa época? Você lembra? Lembra Miguel! Projeção de labaredas de fogo. Miguel – Eu lembro de como ele não ligava pra mãe. Rafael – E aquele macarrão? Ele nunca mais preparou sabia? Desde que você foi embora. Miguel – Eu lembro de como ele me chamava de idiota. Projeção de labaredas de fogo aumentam. Rafael – Ah! Disso você vai lembrar... O mesmo disco dos Beatles toda manhã! Miguel – Eu lembro de como ele te batia! Rafael – As nossas viagens nas férias, uma pior que a outra, lembra? Miguel – Eu lembro de quantas vezes eu desejei a morte dele. Rafael – (descontrolado, chorando muito) Merda Miguel! Eu tô tentando valorizar a 23
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memória que eu tenho dele. As coisas não foram tão ruins assim! Miguel – (duro, mas chorando) Não Rafael? Você lembra quantas vezes ele nos mandou pra fora de casa, dizendo que nós não éramos bem vindos ali? De quantas vezes você chorava num canto e eu noutro por causa dele, e nos olhávamos inchados e vermelhos? Você lembra Rafael da vez que você correu quase nu pela rua inteira até não aguentar mais fugir e voltar pra casa? Lembra Rafael! Lembra de quando ele tentou me amarrar com uma corda feito um bicho selvagem e me levar sei lá pra onde só porque eu gritava meu desespero, dor. Lembra de como ele fazia questão de que tivéssemos medo dele como do próprio diabo. Lembra Rafael! Lembra porque essas são as minhas memórias! Os dois sentam-se no chão, voltam a fumar o cigarro de erva. Silêncio.
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Rafael – Na lápide dele estão as imagens dos anjos Miguel e Rafael. Miguel – Você recebeu o nome do que vem para curar. Rafael – E Miguel é o príncipe de Deus. Miguel – Como se ele fosse um ser divino. Rafael – Você nunca acreditou nele. Miguel – Em qual? Rafael – Nos dois. Miguel – A mãe dizia que nós éramos os anjos protetores da família. Rafael – Mas não pudemos fazer muita coisa por ela não é? Miguel – Você tentou. Rafael – Você desistiu de nós. Miguel – Um por um caiu. Rafael – E você fugiu do destino. Miguel – Tudo deserto. Rafael – Você sempre se achou melhor que essa merda toda. Miguel – E eu sou. E você também, só que não vê. Rafael – Você sempre dizia que ia embora,
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mas eu não acreditava que um dia fosse mesmo. Miguel – Foi só sair andando. Rafael – Sem olhar pra trás não é? Miguel – A mãe morreu. Não tinha mais nada pra fazer naquela casa. Rafael – Não tinha nada que fazer por nós. Miguel – Não me culpe. Rafael – Foi como foi. Miguel – Você não pode me responsabilizar por nada disso. Eu só quis viver. Ir pra longe de toda aquele mal que se repetia sempre, sempre, como inverno que atrasa, mas vem, e cada vez mais forte. Eu não tenho culpa se você decidiu cuidar dele o resto da sua vida. Morrendo dia a dia naquela maldita casa. Eu não podia, tá bem? Eu simplesmente não podia continuar. Rafael – Eu precisei tanto de você, esses anos todos... Eu sempre precisei de você. Tanto. Que imbecil eu sou, não é? Querendo um pouco da sua atenção pra mim. Nunca. Nem antes nem depois. Você nunca me protegeu nas brigas da escola. 26
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Miguel – As brigas eram suas. Se você entra na briga, você precisa saber se defender. Rafael – Quando a Laura morreu eu queria tanto você do meu lado. Aqui. E nem um telefonema Miguel. Nem um telefonema! Miguel – Eu nem conheci essa sua mulher Rafael... Rafael – Mas me conhecia. Miguel – Eu mandei um e-mail, tá bom? Eu estava na Antártida, no meio do gelo! Rafael – Foda-se onde você estava! Miguel – Me desculpe. Rafael – Eu estou sozinho agora Miguel. Miguel – Não! Eu tô aqui, você tem a mim! Miguel abraça Rafael, que se afasta. Silêncio. Rafael – Por quê sempre estivemos tão distantes? Miguel – Porque tem sete anos entre nós. Rafael – E agora isso já não faz diferença. Miguel – Não Rafael, agora isso não faz a menor diferença. Rafael – Nós não temos mais porque brigar, 27
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nem nada novo dele para falar mal. E eu sinto como se não nos reconhecêssemos, sem nenhuma intimidade, nenhuma familiaridade. Estranhos. Silêncio. Miguel – Eu pedi por você. Rafael – O quê?! Miguel – Eu estava cansado de viver sozinho, cansado de não ter um amigo sempre perto. E queria também alguém com quem dividir toda dor de morar naquela casa, daquele jeito. Daí eu pedi pra mãe. Eu tinha seis anos e pedi um irmãozinho. Quase um ano depois você nasceu. Rafael – Eu devo te agradecer pela minha merda de vida? Miguel – Quando fui com a vó na maternidade te ver eu perguntei pra ela quanto tempo demoraria pra jogarmos bola juntos. Ela riu. (pausa) Mas quando você finalmente tinha idade pra jogar bola comigo, eu estava ocupado demais jogando Atari. 28
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Rafael – E a mim restaram seus brinquedos velhos, suas roupas velhas, seus restos. Miguel – Cuidado com o que você deseja. Rafael – E eu nunca aprendi a jogar bola. Miguel – Ele tentava te ensinar, eu lembro, mas você não gostava. Rafael – Não com ele. Mas se fosse você... Miguel – Seria igual. Silêncio. Rafael – Dividimos o mesmo quarto tanto tempo, e eu quase não te via. Miguel – Só nos uníamos contra ele. Rafael – Eu lembro dele brigando contigo quando eu ainda era bem pequeno. Miguel – E anos depois lá estava você no meu lugar, ele repetindo tudo, igual, pior. Rafael – Eu nunca entendi o motivo. Tantos mistérios nessa família. Miguel – Se existia algum motivo, todos que sabiam estão calados pra sempre agora. Rafael – A Laura dizia que numa vida passada nós devemos ter feito muito mal a ele. 29
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Miguel – Bobagem. Rafael – Mas então por quê Miguel? Por quê de tudo aquilo? Eu sempre me perguntei, eu sempre perguntei a Deus, e nunca tive uma resposta. Miguel – Porque não tem respostas nessa história, só perguntas. Rafael – Eu sempre invejei a família dos colegas de escola. Miguel – Nós não somos mais dois meninos com medo. Rafael – E hoje eu invejo a família dos colegas de trabalho. Miguel – Nós somos dois homens Rafael. Rafael – Nada mudou, só crescemos. Miguel – Esse passado... Você precisa romper com isso. Rafael – Como você? Miguel – Como você quiser. Silêncio. Rafael – Eu estava lá quando prepararam o corpo dele. Tentaram impedir que eu visse, 30
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mas eu dei um jeito, disse que era forte. Depois de alguns segundos em choque comecei a chorar e me tiraram da sala. Mas é engraçado como lembro que o rosto dele queimou pouco, muito pouco comparado com o tamanho do incêndio, era como se tivesse sido poupado, ao contrário de todo o corpo. Além das bandagens pra secar tudo, violentaram-no enfiando tampões em todos os seus buracos. (pausa) Disseram que ele podia ter se salvado. A janela do quarto que dava pra rua estava só encostada. Acham que ele entrou em pânico e não conseguiu abrir ou... Miguel – Não quis. Rafael – Por isso a hipótese de suicídio. Miguel – Ele não colocou fogo na casa. Mas talvez ele tenha se deixado morrer. Rafael – Sabe porque eu fiz questão de ver o corpo? (pausa) Porque queria ter certeza que ele estava morto mesmo. E confesso que senti um certo alívio com isso naquele momento.
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Miguel – Eu ajudei quando deram banho na mãe. Não queriam deixar, mas eu insisti. Como uma filha muçulmana eu lavei minha mãe. Eu passava a toalha molhada pela pele dela e me perguntava se a água não estava fria demais. Ela parecia sorrir como se aquele infarto fosse o suspiro da liberdade. Eu nunca amei tanto a mãe como naquele dia. Silêncio. Rafael – Eu estou tão cansado. Miguel – Você tá aqui desde ontem... Rafael – Eu estou cansado da vida. Miguel – Você só precisa respirar pelos seus próprios pulmões. Rafael – Eu te invejo sabia? Eu te invejo por ter se libertado de tudo, por ter feito uma vida só sua e ser feliz. Miguel – (sorrindo) Quem disse que eu sou feliz? Rafael – Ao menos não é patético como eu.
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Miguel – Eu tenho alguém. Além de você, eu tenho mais alguém na vida. É só essa diferença. Rafael – O André ainda? Miguel – Sim. Rafael – Até nisso você deu sorte. Miguel – Você também. Rafael – A Laura morreu. Miguel – Pelo que sei ela te fez muito feliz durante os anos que vocês viveram não foi? Rafael – A morte tá sempre me rondando Miguel. Foram três enterros em pouco mais de dez anos. A mãe, a minha mulher e agora o pai. Quando será que ela vai acertar o alvo em mim? (pausa) Eu sinto o vento da morte batendo no meu rosto todos os dias. Miguel – Pode ser o sopro da vida. Rafael – Eu sinto lá no fundo como se algum dia eu vá finalmente ter algo que valha a pena na vida, e daí a morte vai vir e me tomar tudo outra vez, como sempre. Miguel – É natural que eu morra antes de você.
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Rafael – Pra eu ficar completamente sozinho? Miguel – Me prometa um velório mais animado que esse aqui. Rafael – Deve ter muita gente que gosta de você. Miguel – Eu não apostaria nisso. Rafael – Você conhece o mundo Miguel. E eu mal conheço essa cidade. Miguel – Você que traçou os limites do seu mapa. Rafael – Essa solidão, ninguém se importa comigo. Miguel – Não seja cruel comigo. Rafael – Se eu morrer você estará totalmente livre da família, do passado. Miguel – Vem comigo Rafael! O André e eu vamos pra Dubai assim que ele terminar o trabalho em Quebec. Viajar vai te fazer bem! Rafael – A minha vida é aqui. Miguel – (gritando) A sua vida acabou! Rafael – Minha casa está aqui!
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Miguel – Esquece a merda toda Rafael. Esquece as ruínas! Que vire casa de desabrigado! Rafael – Todas as minhas memórias estão aqui. Miguel – Você já se devotou demais quando ele era vivo, não precisa mais, acabou. Você está livre Rafael. Rafael – O meu passado é a única coisa que eu tenho agora. Miguel – Vamos... Rafael – Obrigado Miguel. (pausa) Mas eu vou continuar aqui, onde me reconheço. Na casa dou um jeito quando puder, os pais da Laura moram na esquina, posso ficar bem com eles. Miguel – Eles não são sua família. Rafael – São como se fossem. Miguel – Eu sou sua única família agora Rafael! Rafael – Maldita esterilidade a minha não é? Miguel – Você não tem ambição nenhuma? Rafael – Eu não aprendi a sonhar. Miguel – Ele também não tinha ambição nenhuma Rafael. 35
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Rafael – Você está nos comparando? Miguel – Não é isso... Você não merece ser comparado a um homem desprezível como ele! Rafael – Ele é um pobre coitado que tá ouvindo toda essa conversa e não pode falar nada. Miguel – Quando eu era criança pensava que era mesmo um anjo, e que um dia isso me seria revelado, minhas asas se abririam e eu voaria pra longe daquela casa. Rafael – E assim que pôde você pegou um avião pra nunca mais voltar até agora. Miguel – Ele deve ter ficado muito feliz. Rafael – Você sabe que não. (pausa) Ele foi um pai difícil, mas era um homem bom. Miguel – Como você pode defendê-lo? Você não lembra de tudo que ele fez? Silêncio. Rafael – Eu não consigo esquecer de quando ele tentou a matar a mãe. Miguel – Do que você lembra disso? 36
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Rafael – Eu era muito pequeno, não me lembro direito, mas... Uma faca brilhando na mão dele, a mãe sendo perseguida, os gritos. Eu estava escondido em algum lugar, no quarto, eu acho. Miguel – Você não estava lá. (pausa) Era eu. (pausa) Você ainda não tinha nascido. Rafael – Mas eu lembro! Miguel – Você deve ter ouvido tantas vezes essa história que ela virou real como se você estivesse lá também. Rafael – Suas lembranças se confundem com as minhas. Miguel – Eu nunca entendi como ela pôde perdoá-lo depois disso. Rafael – Ela o amava, não é? Miguel – Por nós! Por quê ela não fez alguma coisa por nós então? Nos deixando viver essa história e tantas outras. Por quê ela simplesmente não saiu. Você não seria mais feliz, você não ia embora com ela se ela fizesse isso? Rafael – Eu não sei. Miguel – Nos primeiros meses, ou anos, eu 37
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sentia falta dele e de todo passado maldito. Foi difícil aceitar a liberdade. E então eu pensava em voltar. Mas daí eu me lembrava de alguma coisa bem ruim que ele tivesse feito contra mim, ou a você, ou a mãe... Rafael – Você é forte em seu ódio. Miguel – Talvez com ele morto você possa fazer tudo isso sem sair daqui. Rafael – É melhor você pensar no que vai dizer mais tarde no enterro. Os pais da Laura vão estar aqui, a dona Carmem também, talvez venha mais alguém... Miguel – O quê eu posso falar desse homem? Rafael – Esse homem é nosso pai Miguel! E ele está morto agora. Miguel – E isso o perdoa? Rafael – Ele nos fez. Miguel – Por mais longe que eu tenha ido... Eu só queria esquecer toda dor que ele me provocou, eu só queria vê-lo como um coitado. Mas eu não consigo, só lembro. Só consigo lembrar. E minhas lembranças são cada vez piores. 38
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Rafael – A gente colore a memória com a cor que quer. Miguel – Não me diga que você perdoou tudo, que esqueceu tudo. Rafael – Você acha que não penso em todas as coisas? No meu coração há uma guerra. Exércitos de memórias boas e ruins. E eu não sei qual lado é o mais forte em mim. Qual vai vencer. Não ache que eu o perdoei Miguel. Que eu esqueci. Eu só não posso odiar um morto, me desculpe. Um morto que é meu pai e morreu dessa forma horrível. Miguel – A morte não ameniza tudo que ele fez. Rafael – O tempo ameniza, não a morte. Miguel – Resignação. Rafael – Nos últimos tempos ele mudou muito. Miguel – Enfraqueceu, envelheceu. Rafael – Seja como for. Miguel – Mas o velho que você dava sopa na boca era o mesmo homem que já te espancou tantas vezes. 39
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Rafael – Eu queria ser inflexível no meu rancor, na minha mágoa profunda. Como você. Fazendo de tudo pra mostrar pro mundo que é melhor que ele. Mas não sou assim, sou fraco. Eu sou um fraco como ele. E sentindo o que aconteceu no passado cada vez menos, tanta dor que me anestesiou. Eu precisei ultrapassar meu ódio e cuidar dele, porque ele precisava de mim. Nos últimos anos nós nos aproximamos acredite você ou não. Nós só tínhamos um ao outro na vida. Quando a Laura morreu era ele quem estava do meu lado, não você como está agora. Eu não esqueci tudo que ele me fez de mal. Mas você parece fazer questão de não lembrar tudo que ele pode ter te feito de bom. Rafael deixa a sala. Tempo. Miguel abre o caixão e fala com o corpo do pai morto. Miguel – (com certo desprezo, depois raiva) Tanto tempo e aí está você, esturricado feito um pernil queimado. Deve ter doído 40
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muito, não é? Quanta morfina você tomou nas suas últimas horas? Até esquecer a dor. Não as das queimaduras, mas a dor da vida. A dor das suas memórias. Esse é o fim que você mereceu. Eu não me importo nem um pouco com isso, só lamento não ter estado lá na frente da casa pra te ver pegar fogo. Pra ver seu desespero pedindo socorro, água. Água! Tão simples, não é? Apagaria tudo. Mas não tinha ninguém lá. Nem mesmo o Rafael. Mas se eu estivesse lá, você acha que eu jogaria uma gota d’água pra te salvar? Eu sempre disse que um dia você precisaria de mim. Sempre disse que nós precisávamos de você, dependíamos de você, que você nos fazia favor, caridade. E eu dizia que um dia você ainda imploraria meu socorro. Eu queria ter vivido esse prazer. (pausa) Sabe pai, eu não te perdôo. Eu não te perdôo pela forma com que você me tratava. Eu não te perdôo pela forma com que você tratava minha mãe, meu irmão. Eu não te perdôo por todas as surras e humilhações. Eu não te perdôo por aquela vez que tentou me 41
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amarrar como um bicho. Eu não te perdôo por sempre ter me mandado pra fora de casa, da sua casa, como você fazia questão de dizer. Eu não te perdôo por todas as vezes que enlouqueceu e disse que queria me matar. Eu não te perdôo por ter dito isso. Eu não te perdôo por ter pensado nisso. Escuta bem o que eu tô dizendo, agora você tem que me escutar em silêncio como nunca fez. Eu quero que você saiba que eu não te perdôo, que você não pode descansar em paz. Eu não te perdôo por não ter me amado, ouviu? Eu não te perdôo por não ter me deixado te amar. Eu não te perdôo por você ter morrido! (chorando) Por quê você fez isso comigo? Eu precisava ter falado com você pai! Eu precisava ter feito as pazes contigo. Se ao menos tivesse aguentado no hospital até eu chegar. Você não tinha esse direito! Você não podia, não podia! Morrer assim... Tão estúpido! Por quê pai? Por quê foi assim com a gente? (pausa) Eu te amo. Apesar de tudo, apesar de não querer... Eu te amo pai. 42
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Rafael retorna com um copo de café e pára diante do irmão chorando, o ampara. Miguel olha pra Rafael e o abraça forte. Rafael – (estranhando) O que deu em você? Miguel – Eu te amo. Silêncio. Rafael – Eu também. Miguel – Vai ficar tudo bem, vai ser tudo como antes. Não. Vai ser tudo diferente de antes! Rafael – Será que vai mesmo? Miguel – Pelo menos nós vamos tentar, não vamos? Rafael – Você vai seguir a sua vida, e eu o que resta da minha. Miguel – Se você não quer ir comigo, eu vou dar um jeito de passar por aqui sempre. Pra te ver. Rafael – A morte dele serviu pra nos unirmos. Ele deve ficar feliz de te ouvir falar em amor. 43
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Miguel – Ele nunca amou ninguém de verdade, não sabe o que é isso. Rafael – Ele te amava. Miguel – Ele nunca disse isso pra mim. Rafael – Quando eu cheguei no hospital ele gritava muito: Fogo! Socorro! Me ajuda! Mas o que ele mais gritava era: Miguel! Miguel – Ele ainda esperava por mim. Rafael – Por isso não enterramos até você chegar. Miguel – E o que eu faço com todo o meu ódio? Rafael – Guarda junto com o amor. Silêncio. Os dois sorriem, se abraçam emocionados. Rafael – (rindo) Homens não choram. Miguel – Meninos sim. Rafael – É... a gente só cresceu Miguel. Rafael – Você já reparou que os cafés em velórios são sempre amargos? Miguel sorri. 44
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Miguel – (saindo) Vou trocar de roupa, não tem ninguém aqui mesmo. Já que vamos ficar até o enterro, melhor vestir alguma coisa mais confortável. Rafael – Não se preocupe, eu falei com o pessoal da funerária e eles vão resolver tudo. Não adianta mesmo ficarmos aqui sozinhos com esse caixão. E você deve estar cansado da viagem. As luzes se apagam, ficando o palco iluminado apenas pelas velas. Miguel e Rafael se colocam cada um atrás de uma das velas. Projeção de um velho vídeo de família, Miguel e Rafael, crianças, brincando com o pai num lugar aberto. Miguel – E o que a gente faz agora? Rafael – Segue em frente, meu irmão. Como você sempre fez. Os dois assopram as velas. Dão as costas para o público e assistem ao vídeo, em certo momento o pai coloca Miguel nas costas e pega Rafael pelo braço e gira, cada vez mais e mais até a 45
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imagem se distorcer. A projeção sai aos poucos. Escuridão. Fim.
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Uma cozinha surrealista com apetrechos pendentes e uma mesa de madeira, do alto pende um gancho de açougue, e ao fundo um painel reproduz a obra “Nature Morte Vivente” de Salvador Dali. No meio do palco uma peça de carne sob a luz. A mesa está em pé, aos poucos vemos dentro dela Uma Mulher nua, em posição fetal. Batidas ocas de coração aumentando cada vez mais e se misturando a sons estridentes. Ápice ensurdecedor. Black-out. Quando a luz volta, a mesa está no lugar e Uma Mulher no meio do palco, faca em punho com a carne à sua frente, vai cortá-la, mas para. Tenta mais uma vez sem conseguir, e repete isso mais três ou quatro vezes sem encostar na carne.
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*** Uma Mulher – Um quilo de maminha. “Um quilo de maminha pra você cortar em bifes”. Assim ele disse. E mais: “bifes não muito finos, mas também não muito grossos”. “Bifes a-pe-ti-to-sos”. Foi essa a palavra que ele usou: apetitosos. Podia ter usado gostosos, saborosos, mas usou apetitosos. Que raios de palavra! Ninguém fala assim, só nos cardápios dos restaurantes. Tem algumas palavras que não cabem na boca. Tem algumas palavras difíceis que não são nossas, mas de algo que interfere. Ele chegou há pouco do trabalho com um pacote do açougue nas mãos. Eu sabia qual era seu conteúdo mórbido. Eu sabia o que tinha dentro daquele pacote e me deu uma angústia aqui dentro. Eu sabia o que tinha naquele pacote e me veio uma coisa na garganta. Algo quente como um grito ou vômito. Pedaço de corpo, animal morto, defunto exumado de sua vida. (Confusa) Exumado, palavra difícil. 48
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Vertigem de três ou quatro segundos deparando-me com o embrulho, simulacro de mortalha. (Confusa) Simulacro? Mortalha? Eu lembro do útero materno. Do mar em que me afogava na inexistência. Sem pânico, sem medo, sem nada. Lembro de mim nascendo, abrindo minha mãe virgem, atravessando-me ao mundo por entre suas carnes. Respirando o primeiro ar. Sopro de vida. Inflando como um vidro sendo criado. Eu lembro do meu pai que nunca vi, eu lembro de quando ele me pegou em seus braços invisíveis e abraçou minha mãe. Eu lembro. Eu lembro dos sonhos que eu não tive. Eu lembro das águas revoltas no novo mar da vida. Lembranças de um tempo qualquer. E então o gosto doce de tetas maternas. Quanto mais tento lembrar mais invento. Quanto mais tento esquecer mais não me aguento. Tenta cortar a carne novamente, sem conseguir. Uma Mulher vendo seu reflexo na faca.
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Às vezes tenho dúvidas de quem seja. Eu. O meu reflexo sem forma me revela mulher, mas minha mente se pensa outro. “Um quilo de maminha, macia”. Ele repetiu. Eu olhei de novo praquele maldito pacote e não sei porque me veio a imagem de Cristo crucificado... O Homem casto sendo erguido à cruz e recebendo os pregos nas mãos e nos pés, abrindo chagas que jamais se fecharam. (Grito de dor) Ai. (Grito de dor) Ai. Bicho ferido. Do Homem esburacado escorreu o sangue rubro e quente. Rubro. Eu sabia que era quente o sangue porque o sentia dentro de mim agora. “Tomai e comei este é o meu corpo”. Aquele líquido escorrendo pela pele branca Dele, maculando, profanando seu corpo sagrado. Maculando, profanando, o sagrado. E Ele, o Cristo, nu. O sangue escorreu das mãos ao peito, e do peito ao púbis escuro Daquele que agonizava como eu agonizava agora. O rosto. O rosto barbado também era tingido pelo vermelho do sangue que vinha da cabeça. Toda coroa 50
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é espinho. Seus olhos estavam fechados. Me concentrei neles: pálpebras pálidas e cílios curtos. Um cacho do longo cabelo queimado caindo por sobre um dos olhos. Meus olhos nos Dele. Estavam fechados e minha agonia crescente como uma música descompassada antes de desaguar no refrão. Eu os olhava: aqueles dois olhos cobertos pela pele com sangue correndo por dentro e por fora. A agonia quase me estraçalhando o peito. Coração explodindo dentro de mim. Foi quando Ele abriu os olhos rútilos de êxtase. (Confusa) Rútilos... O quê é o êxtase? Um soldado romano, cruz distorcida no peito, cravou-lhe a lança transpassando Seu corpo e o grito Dele saiu pela minha boca. Olhos arregalados, soltos na órbita me sentenciando por não tê-Lo salvado. Outro soldado romano, vermelho no peito O matara finalmente. E o terceiro, estrela de múltiplas pontas, puxou da bainha uma espada reluzente e com ela cortou do peito de Cristo um naco de carne, nem muito fino, nem muito grosso, como um bife apetitoso. 51
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“Um quilo de maminha pra você cortar em bifes.” Quando voltei a percorrer com os olhos o corpo Dele ensanguentado, Ele tinha agora uma vagina. Grande e gorda. Peluda. Com um outro grito quente preso na garganta subi meus olhos e Seu rosto era agora o meu rosto. Olhei para seu peito e Ele tinha duas mamas, uma mutilada, nela o buraco de onde saíra o bife. Câncer, metástase na carne de Deus. Mastectomia no Homem. Mas agora era minha mama. Uma Mulher despe parte do vestido mostrando seu peito mutilado: buraco com sangue seco, em seguida fecha seu vestido. Gritos e palavras que não são minhas transpassando minha mente. “Você não vai pegar?” ele perguntou, sem supor ou imaginar tudo que eu tinha acabado de viver. Sensação ancestral de morte na carne. Olhei para o Cristo de madeira na parede: crucificado, ensanguentado, mas com as 52
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partes não-cristãs cobertas. E sem mamas. O rosto era tradicional: fino e delicado, diferente do meu redondo e talhado. Os olhos estavam fechados e eu esperando pelo momento em que tudo aconteceria novamente. “Toma”. Ele me entregou o embrulho de carne. Uma Mulher pega a carne. Mãos ardendo em fogo. Não posso! Eu não posso! Eu não posso segurar isso. “É só um pedaço de carne, vá cortá-lo. Comeremos no jantar.” Comeremos carne. Ele deu a sentença: comeremos carne. Peguei o pacote e vim pra minha cozinha, meu lugar. Por quê eu vim pra cá? Por quê eu peguei o pacote? Por quê? Por quê não disse pra ele que não faria e pronto? Por quê? Uma Mulher joga a carne no chão. Nós comeremos a carne, jantaremos tecidos, fibras e sangue. Ele gosta do bife bem mal53
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passado, transbordando em líquido escarlate, eu vejo e penso em mercúrio. Quanto mais sangrenta melhor, sangue temperado com pimenta. Assim ele gosta. Nós comeremos carne... Nós. Não sou mais eu, nem ele é ele, indivíduos coletivos agora, insolúveis um do outro. Nos fundimos numa única criatura-matrimônio, monstro siamês de duas cabeças. Xifópago. Xifópago... Uma única cabeça comanda o corpo, só um desejo prevalece, só uma vontade é. Uma Mulher se maquia com temperos, e passa molho como um batom. Uma escrava de burca, uma gueixa negra. É esse meu papel. Depósito do que lhe sobra. Companheira silenciosa e fiel, como uma cachorra. Um agrado, uma carne, me alegra. Meu focinho sujo de sangue abre seu apetite sexual. Eu nunca tive a ilusão de me apaixonar. Mas eu tinha a ilusão de que um dia teria a ilusão. Ilusão da ilusão. 54
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Eu o conheci em uma festa. Eu o conheci em um aniversário. Eu o conheci em um funeral. Ele estava de bermuda e sem camisa, e tinha levado um tiro na cabeça, nevava na praia e umas crianças soltavam pipas sem linha. Eu o conheci. E é o que importa. Logo nos casamos. Bonecos de bolo em cima do altar. Eu tinha ainda meus frescos anos. Cheiro de orvalho saindo da pele. Era tão cedo na minha vida. Fizemos festa modesta no salão da igreja. Na esquina tinha um cemitério. Santo alguma coisa. A igreja era usada como capela para os velórios, poucos se casavam lá. Minha mãe comprou uma dúzia de rosas num menino que as vendia na porta do cemitério. Meu buquê. Eu entrei sozinha naquele corredor com um tapete mofado. Sozinha sempre. Eu chorava, mas não era de alegria, nem de tristeza. Eu simplesmente chorava. Como se precisasse colocar pra fora esse sal que não é meu. No início ele até era agradável em sua estranheza como homem. Nunca convivi com nenhum, mas fui criada pra eles. Nós saía55
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mos para namorar antes do ritual branco do casamento. Nós saíamos e ele vestia ternos pretos e cinzas, nunca azul marinho. Tinha cabelos curtos e louros, a pele macia e o corpo forte. Era elegante: me trazia flores, educado deixava-me escolher onde comeríamos. Eu não sabia o que era a paixão que tanto ouvia, que tanto lia, então pensava que era isso, dizia que estava apaixonada, mas sem nenhum ânimo especial. No início ele era até romântico, eu diria. No início... Depois do “sejam felizes pra sempre” tudo mudou. E hoje aquele belo homem se transformou no gordo careca com uma samba-canção rasgada, aquele estranho que estranhamente se senta com sua bunda suada no sofá como se fosse o meu marido. Mas não foi esse com quem eu me casei. O meu marido me trazia flores antes de nos casarmos, esse homem me traz um quilo de carne. Como eu queria estar apaixonada, como eu queria ao menos ter me apaixonado. A paixão iludindo e pintando a paisagem à car56
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vão da minha vida. Eu não sabia o que era paixão. Depois eu descobri. A paixão é um deus que rouba o fogo para os homens. A paixão é uma loucura. A paixão é um copo vazio, mas que mata a sede no deserto. A paixão é um homem árabe que beija a boca de um homem judeu enquanto uma bomba explode. E lembro que quando Cristo se iludiu teve os pés lavados por lágrimas de uma mulher. Uma Mulher abre uma caixinha de música sobre a mesa, dessas com uma bailarina de plástico e deixa tocar por algum tempo, observando. Eu escutei uma caixinha de música, engraçado porque nunca tive uma caixinha de música. E justo hoje, neste momento, nesta página, ouço a música doce e suave da caixinha que nunca tive. O Cristo já não é alvo dos meus pensamentos, mas sim a imaginada caixinha de plástico com um espelho onde uma linda bailarina dança pra lá e pra cá. Ela é pequena e branca, como eu. E desliza 57
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no palco refletido de luz. Dança como se fosse para uma platéia lotada, mas só eu posso vê-la. Amiga imaginária. Uma Mulher pega a peça de carne. Eu quero aplaudir, mas meu tato diz que em minhas mãos há a carne. Conto meu presente, como se fosse possível. Só dá para contar o passado, ou mesmo o futuro. Presente é tempo que não se pega. Então deixo meu corpo escorregar pelos frios azulejos com a carne também fria nas mãos. Delírios são o colírio que a loucura pinga-nos nos olhos. “Meus bifes”. Eu tentei cortar os bifes: uma, duas, três, cinco vezes, mas cada vez que levanto meu braço a imagem me vem à cabeça: Ele com a vagina peluda e as mamas, uma esburacada. E com meu rosto. Eu. Não posso comer a carne Dele, a carne minha. Uma Mulher bate na carne, ficando com as mãos cheias de sangue. 58
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Sangrar sem sofrer, assim minha mãe chamava a menstruação. Sem sofrer? Eu sofri muito. Os dias que antecediam à chacina interna me provocando múltiplas e confusas sensações. As dores alucinantes, a angústia arrebatadora. Da primeira vez que sangrei houve a vergonha. Vergonha ignorante. Vergonha por estar naqueles dias e ela vinha porque eu não sabia que todas as outras mulheres tinham aqueles dias mais vermelhos em sua vida, e que isso era normal, ou pelo menos natural. Eu sangrava muito, como minha avó, dizia minha mãe, parece que era uma sina da minha família de mulheres abandonadas. Eu acho que era tanta dor dentro, que sangrava. Muito. Sempre achei injusto que os homens não menstruem. Sempre. Passam a vida sem saber o que é ter um bando de hormônios dentro de si, derramando sangue após cada batalha. Minha mãe dizia que Deus não deu aos homens a menstruação porque eles tinham que trabalhar. Mas então Deus esqueceu 59
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de tirar esta maldição das mulheres que trabalham. Deus esqueceu as mulheres, nisso também. Uma velha tia minha falava que em compensação os homens faziam a barba todos os dias... Mas eles podem deixá-la se quiserem! Eu não, não posso sair por aí com o sangue escorrendo entre as pernas. Ser vampirazada por bocas. Também nunca entendi porque justamente esta tia dizia isso, já que ela fazia o bigode quase todas as manhãs. “Buço minha filha, buço”. Da primeira vez, manchei a calça que eu mais gostava com o sangue inlavável que sai de dentro de mim. Sangue. Do corpo crucificado. O que corre em mim. O que vem na carne. Nunca aceitei sangrar, mesmo que sem sofrer. Tempo. Quando ele dorme, depois de comer seus bifes apetitosos, eu ligo a televisão e vejo alguma coisa. Entrevistas sonolentas e sem rumo, 60
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festas de gente eufórica em suas vidas de sonho, vendas e revendas: jóias e tapetes persas. Pastores arrebanham ovelhas com copos de água. Eu vejo na televisão uma guerra. O apresentador continua falando, mas não escuto mais. Só consigo me perguntar quantos meninosdeuses estão sendo mortos no deserto. E não é de sede. Com uma explosão de sangue da pólvora que os macula. E o Cristo com sua mama dilacerada: chora. E Allah, e Buda, e Moisés, e todos os outros também. Guerras pelos deuses enfurecidos dizem os homens, guerra de homens sem deuses devem pensar os próprios. Se os deuses vão pra essas batalhas,o que fazem as mulheres dos deuses? Porque se Deus criou a mulher como companhia ao Homem e este à sua semelhança, seria natural que Deus tivesse uma mulher companheira. Mas as mulheres sempre perdem na guerra: maridos, filhos, pais. Sempre foi assim e continuará sendo. As mulheres, às quais é dado tão pouco na vida, têm a missão 61
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de reconstruir povos, raças e mundos. Mas depois os homens esquecem a lição e destroem tudo de novo. Os homens têm péssima memória. Algumas poucas mulheres fazem a guerra, mas normalmente a crueldade feminina é diferente, na maioria das vezes o inimigo não é um coletivo, é apenas um indivíduo, guerra para um homem só. Uma Mulher tenta cortar a carne mais quatro ou cinco vezes, sem conseguir. Não matarás. Esquecemos o mandamento. O único que não pode ser quebrado, e o que mais fazemos dia após dia. Não matarás. E ele me traz um pedaço de cadáver. Maminha morta. Sem leite. Eu li uma vez que algumas vacas podem valer milhões. E quanto será que vale uma mulher? Uma mulher qualquer. Uma mulher como eu. Quanto será que pagariam em leilões de empresários e artistas? Dizem que as vacas caras são as boas parideiras. 62
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Lembro que minha mãe dizia que os homens escolhiam as mulheres com as ancas mais largas porque essas seriam boas parideiras. Será que essas valem tanto quanto uma vaca dessas de leilão? Quanto será que valeria a Virgem Maria? Nos prostíbulos as virgens são as mais valiosas. Uma Mulher delicadamente toca seu corpo, com lascívia. Eu lembrava de como era o sexo pelo que li em romances de banca, das situações deliciosamente eróticas dos livros. Pensava em como seria linda minha primeira noite de amor, sonho rosáceo na minha imaginação pálida. Ele me fez correr pelo corredor, eu ria de champanhe e estava um pouco tonta. Entramos no quarto e ele me beijou com uma fúria desconhecida. Beijava-me fundo como se fosse aquele um dos últimos beijos perdidos. E isso não era poético. Como se sugasse minha alma, a tomasse na boca. Naquela época era novo. 63
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Os braços dele me envolviam com força, me apertavam como uma cobra que quer quebrar os ossos de sua presa. Eu tentei me livrar de seus braços. Corri até a porta do banheiro, mas ele me alcançou rapidamente, eu pedi que parasse, mas ele não me deu ouvidos, me puxou com força pro corpo dele. Me lambeu, passou a língua no meu rosto, meus olhos, minhas orelhas, meu pescoço. O cheiro da saliva pegajosa em mim, me fazendo enjoar. Eu tentava em vão afastá-lo, mas ele tinha bebido muito, parecia não entender que eu não queria daquele jeito. Do carpete do quarto nascem girassóis amarelos. Ele começou a tirar a roupa e, eu muda num canto do quarto. Pela primeira vez eu via na minha frente aquilo que sempre olhei com curiosidade nos livros de Biologia: reprodução, página 134, ainda lembro. Eu olhava praquele... Praquele... Praquele pedaço de carne, duro e pra cima, diferente das figuras coloridas que eu via no colégio. Eu olhava 64
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praquilo e tinha medo. Comecei a chorar. Veio até mim e deu um jeito de tirar minha roupa, meus arranhões não o impediram disso, e ele até rasgou um pouco o vestido branco pra que tirasse com mais facilidade. Arrebentou o sutiã, meus peitos saltaram em órbita, puxou de uma vez minha calcinha revelando-me ainda fechada. Voltou a me beijar, eu querendo sair, ele segurava minhas mãos nas costas. Apertava meus peitos sem nenhuma delicadeza, apertavaos de um jeito como se quisesse mesmo me machucar, arrancá-los de mim. Uma gaivota sangrando sobrevoa nossas cabeças. Eu tentava gritar, mas não conseguia. Uma hora eu até disse que ia gritar, mas ele riu da minha anormalidade. Eu tentava gritar, mas não conseguia. Depois eu comecei a gritar mesmo, mas ele me deu um soco seco. Não sei muito bem como nem onde foi, mas doeu e calou. Eu tentava gritar, mas não conseguia. Seus dedos percorriam todos os meus buracos, parecia divertir-se com minhas retenções, com meus múscu65
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los contraídos de nervoso. “Shiiiii”. Dores e gemidos de ódio. “Shiiii mulher”. Uma criança de quatro anos é acariciada por um monstro peludo embaixo da cama. Eu sou dele ele me diz, sua agora. Ele empurrou minha cabeça pra baixo, com força, segurava meus cabelos e me fez ir de encontro àquele pedaço de carne sobressalente que pendia entre suas pernas. Ele puxou com força meus cabelos de forma com que eu abrisse minha boca pra gritar, rapidamente ele aproveitou e me fez engolir aquele troço de carne. Eu comecei a sentir uma ânsia, a querer vomitar ali em cima dele, sufocandome em meu próprio vômito como um bebê. Mas ele segurava minha cabeça com força e empurrava seu corpo cada vez mais pra dentro. Os pêlos entrando em meu nariz. Cheiro azedo de suor de homem. Quando eu estava quase desmaiando sem ar, ele tirou-se dali. Escuto um samba enredo. Me puxou pelo braço e me jogou na cama. Lambeu minha vagina, eu estava começando a menstruar e só reparei naquele 66
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momento. Ele não se importou e continuou lambendo, devorando-me com a boca, não se importava, ele gosta de sangue. Mendigos imundos comem morangos frescos. Ele me colocou de quatro, não sei se porque gostava dessa posição de máxima dominação ou se porque não tinha coragem de ver minha cara de espanto. Abriu minhas pernas brutalmente e montou-se em mim. Ele forçando aquele pedaço da carne dele a entrar dentro das minhas. Tentou uma vez. E outra. E mais outra. Eu estava tão seca de desespero. Ele não se importou com a aspereza do meu lugar, e continuou forçando até romper a barreira da minha infância à minha maturidade. Um tiro acerta meu miocárdio. Rasgou meu silêncio. Eu sangrei, dessa vez doía não antes ou depois, mas enquanto o vermelho saía. Uma pequena pausa, ficou quieto dentro de mim, parado e latejante.“Doeu? Ele perguntou. Não respondi. Ele deve ter deduzido que não e recomeçou aquela agressão. Por debaixo da porta começa a entrar água. Muita água. 67
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No meu pescoço o crucifixo continuava, a pequena cruz pra frente e pra trás, balançando com nossos corpos. Eu me concentrei nela, na imagem do Mártir. Me ajuda, eu balbuciava, me salva daqui. Me salva. Os olhos de Cristo fechados, os ouvidos também. Era de prata e nele eu via refletida minha imagem distorcida. Desfigurada como eu estava. Demorou algumas horas para que o bicho se saciasse por completo e adormecesse na paz total, com satisfação e tranquilidade por ter sua fêmea. Eu me mantive acordada sozinha. Eu sempre estou acordada e sozinha. Tempo. Eu fiz silêncio. Como me ensinaram. Eu sempre fiz silêncio. Como diziam que uma mulher deve fazer. Muda, seca, desértica. Eu sempre no silêncio. Até hoje. Hoje resolvi falar. Cuspir. Vomitar. Gozar. As palavras. Arrebentar-me de mim e ter minha liberdade. Liberdade é o mais caro que se 68
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pode querer. Uma vez eu vi uma borboleta espetada em um quadro. Asas multicoloridas formando uma mandala com traços abstratos. Eu cheguei meu rosto cada vez mais perto do vidro do quadro. Então reparei nos minúsculos movimentos no corpo da lagarta alada. O fiapo de carne pulsava mínimo. Uma borboleta crucificada viva. Eu quebrei o vidro, cortei as mãos e tirei os alfinetes de suas asas. Mas ela caiu estática no chão. Não quis a liberdade: condenação à morte lenta e doída. Tempo. Noite após noite. Na cama. Ferida exposta e aberta à ele. Sempre que quer cai seu peso sobre mim. Estocadas. Parece querer atingir órgãos profundos. Coração. Dada. Sodomizada. Eu espero a chegada do fim enquanto penso na vida e na morte. Tempo.
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“Vamos logo com essa carne.” Eu engravidei. Dizem que a maternidade é o máximo da feminilidade. Eu não sei. Mutação grotesca que gera uma carne dentro de outra carne. Tentei encarar a criança como consequência da minha banalidade. Ele ficou muito feliz quando soube. Muito feliz. Ele nunca ficou feliz comigo. Eu tinha certeza que ele se derreteria totalmente por essa criança, que seria o pai mais feliz do mundo, a maioria é. Se fosse um menino seria seu júnior seguidor, um admirável homem. Se fosse uma menina... Seria uma mulher. A filhinha do papai talvez. Electra. Eu não queria que ele tivesse esse prazer, ele não tinha o direito à felicidade às custas de meus nove meses de dores e vômitos pra que a carne feita de sua porra em meus ovários finalmente saísse de dentro de mim. Eu estava sozinha, aqui na minha simples cozinha. Sozinha como todos os dias. A notícia viera há pouco, eu num desespero silencioso. Desesperos tranquilos são os piores. Eu bebia algo de cheiro forte. Tinha limpado 70
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o chão antes com desinfetante multiuso: azulejos reluzentes. Encostada na parede uma vassoura. Mamãe. Choro de criança ensurdecedor. Eu levantei o vestido. Levantei o vestido e tirei a calcinha bege. Foi tudo muito rápido, mas eu sei contar devagar. Eu levantei o vestido e desnudei-me. Peguei o instrumento de tortura com piaçava. Não podia ser muito lento, então foi rápido, um segundo ou pouco mais. Loucura e desejo. Eu levantei um pouco o vestido, sentei em cima da mesa, a vassoura na minha mão. Então enfiei o falo dentro da minha carne, profundo grito. Os vizinhos devem ter confundido com orgasmos. Inação. Silêncio. Escuridão. Eu sonhava com um inferno com bonecas de plástico derretidas. Coma. O feto saindo de dentro da minha cabeça. Dor. Gritos de perdão num quarto escuro. Luz. Buraco quente e fundo onde me arremesso. Culpa. Uma maça à minha espera. Quando acordei estava sozinha. Continuava sozinha. Mas não estava mais em cima da 71
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mesa na minha cozinha. Não estava mais no presente-passado. Maca de hospital. Futuro-presente. Os médicos me trataram com indiferença nos dias em que morei lá, as enfermeiras cuspiam na minha comida que por si só já era nojenta. As enfermeiras. Elas vinham e eu podia ouvi-las baixinho no meu ouvido. Eu estava perdida em mim, mas ouvia. “Puta. Você merece morrer. Maria Madalena. Deus te jogará nos braços de satanás”. (Grito) Perdoai-me! Quando tive alta peguei um ônibus e vim pra casa. Sozinha. Ele não tinha ido me ver dia algum. Cheguei e ele pediu que eu preparasse o almoço. Carne, é claro. Ele não me olhava, ele não me amava. Mas há muito mais tempo ele não me olhava ou amava. A única diferença de agora era que eu sabia que ele no fundo tinha raiva, muita raiva, ódio. Que ele me odiava pelo que eu fiz. Na cozinha o chão de azulejos 72
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brancos ainda estava com manchas secas de sangue. E lembrei-me menina. Meu sangue inlavável. Uma Mulher limpa suas mãos num pano de prato, e sente o cheiro da carne ainda em seus dedos. Sinto cheiro de outros sexos na carne dele. Tempo. Eu acreditei nas flores, eu acreditei no barulho das folhas secas sendo pisadas numa noite de inverno, eu acreditei no vento quente na areia de uma praia deserta, acreditei na chuva, acreditei nos animais famintos, acreditei nos homens famintos, acreditei na miséria, acreditei na imundice de um dia qualquer, acreditei no que eu via, acreditei no que eu ouvia, acreditei no gosto de frutas frescas desconhecidas, no gosto primeiro do sumo de uma lichia. As lichias não amadurecem depois de colhidas. O fruto para o tempo 73
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em seu passar e mantém-se como no dia de sua colheita. Eu acreditei na paisagem que eu via da janela da minha cozinha, eu acreditei no meu passado, e o pior: acreditei no meu futuro. Eu acreditei e acreditando eu era através do tempo. Mas envelheci, diferente de uma lichia bem conservada. Eu envelheci e morri mil vezes. Morta-viva que sou me pergunto que expectativa, que desejo eu ainda posso ter. Uma Mulher se recompõe. Num dia qualquer desses quaisquer dias que vivemos, eu simplesmente saí pela porta. Não arrumei nada, nem mala nem sacola. Apenas a roupa suada do corpo. Abrir a porta foi o mais difícil. Depois que coloquei o primeiro pé na rua, foi só colocar o outro na frente, e depois voltar ao primeiro, e assim sucessivamente, pé diante de pé, passos. Fui andando cada vez mais rápido por avenidas movimentadas e vielas vazias. Fui 74
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andando depressa vendo passar todo tipo de gente à minha frente. Corri. Fui correndo, esbarrando em algumas pessoas com véus escuros, mas corri cada vez mais e mais e mais. Da Galileia vejo estrelas, na Judeia faço ver-me. Corri como se fugisse num pesadelo. Atravessei mares. Corri sem rumo por horas, ou dias, ou anos. Corri subindo o Monte das Oliveiras. Nos meus pés as chagas se abriram vertendo sangue. Corri descalça cortando a pele fina em cacos e gravetos e pétalas. Corri mais e mais e mais. Corri loucamente em frente, sem nenhuma curva, sem nenhum desvio. Corri até minha carne branca ser vermelha. Corri e corri e corri e corri e corri... Uma cruz de madeira nas costas. Peso da consciência da dor. E só corri, cada vez mais e mais e mais. Sem ter pra onde ir. O destino não interessa. Eu só precisava correr e corri. De tanto correr meu coração explodiu. Lembro do meu corpo caindo teso. Do barulho da carne batendo no asfalto quente. Uma única pancada. E então a escuridão. 75
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Quando abri os olhos no quarto hospitalar vi o crucifixo na parede. Depois descobri que se eu não soubesse aonde queria chegar não adiantava correr, porque por mais que eu corresse desesperadamente voltaria sempre pra esse mesmo lugar. Voltei pra casa e preparei o acompanhamento. Uma Mulher tempera a carne. Eu falo porque preciso pregar a história como foi, como será. Digo aos homens quem são. E quem eu sou? Deus no masculino? Tempo. Uma semente em meu seio brota o câncer. Suas pétalas crescem tomando tudo pra si. Veneno em meu leite. Cancro da minha existência em corpo de Lilith traída. Maldição do estrogênio. Uma Mulher se despe. Do urdimento desce um cabo de aço, na ponta um gancho de açougue, 76
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Uma Mulher se segura à ele e então é içada. Presa como um pedaço de carne Uma Mulher tem o êxtase. Comam-me. Carne. Carne de vaca barata. Salvem Cristo crucificado que morreu por nós. Lambam-Lhe as feridas de sangue, chagas eternas. Devorem a podridão como vermes. Alimento sagrado. Purifica-O. Purifiquemse. Aleluia! Eu sou o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! (Aramaico) Avun dbâshmâya, Nitqâdâsh Shmakh, Têtê Mâlkuthâkh, Nêhué Tsivyanakh, Âykâna d’Bâshmâya Ap Bâra’a, Hâv Lân Lâkhma d’Sunqanân Yaumana, Uâshvoq Lân Khaubâyn, Âykâna Dap Khnân Shuvaqan L’Khâyabâeyn, Ula Tâ’lân Lenisyouna, Êla Pâtsan Min Bisha, Mêtol D’dilakhi Mâlkhuta, Ukhâyla uThishbokhta L’alâm ‘almin.*
* Oração similar ao “Pai Nosso” em aramaico.
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Uma Mulher crucificada. Tempo. O gancho desce e Uma Mulher sai em estado de choque, calma. Delicadeza feminina, genética da sensibilidade, minoria abençoada. Tempo. Primeiro tirei a pele, com uma faquinha de pão fiz um corte em cruz bem rente ao peito, então descamei as quatro partes, não foi fácil, mas saiu todinha a pele: tecido enrugado de tempo, pelo eriçado e selvagem. Precisei de uma boa faca Ginsu pra completar o serviço: minha obra santa. Enterrei tenra na carne gorda e fui cortando com força. Eu tenho braços da limpeza pesada. Depois de algum tempo consegui tirar um grande pedaço. Uma parte do todo. Mais ou menos um quilo. Pra cortar em Apetitosos. Fibras e lembro do primeiro beijo, veias e as rosas brancas do meu buquê. Sangue de outros animais misturados. 78
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Perfume da morte. Em minhas mãos. Carne fresca. Viva. Nós. Vós. Ele. Eu. Aten Iaut Buritchta D Alaha.* Uma Mulher nua em sua carne corta um bife do pedaço de carne animal. O levanta como uma hóstia. E come. Fim
* “Vocês são abençoados por Deus” em aramaico.
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No Meio do Caminho
O cenário é o interior de um velho ônibus de viagem com suas poltronas e janelas. Em um par de poltronas estão sentadas Vitória e Socorro, as duas dormem tranquilamente enquanto o ônibus segue seu caminho na estrada. Som de freada brusca, as duas acordam assustadas. Vitória – Socorro! Socorro – Nossa senhora! Vitória – O quê aconteceu? Socorro – (gritando para frente) Ô seu motorista! O quê está acontecendo? Vitória – (olhando pela janela) O motorista está lá fora! (tentando enxergar algo) O quê é aquilo no chão? 81
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Socorro – (olhando pela janela) Parece um corpo. Vitória – (parando de olhar) Cruzes! Socorro – (olhando para confirmar) É, é um corpo sim. O corpo de um homem! Está todo ensanguentado e está... Dormindo. O motorista está tentando acordá-lo. O motorista está... Chorando. Vitória – O homem morreu? Socorro – Se ainda não, vai morrer logo. É muito sangue. Vitória – Deus o salve! Deus o salve! Socorro – Deus está longe demais pra salvar esse daí, até Ele chegar nesse ponto da estrada o homem já foi pro beleléu. Vitória – Ainda estamos longe de Terra Nova? Socorro – Tem uma placa ali... (tentando enxergar) Não consigo ler direito, mas parece que está escrito que faltam... (exagerando) Mil quilômetros pra cidade! Vitória – Eu não acredito que ainda estamos tão longe! Socorro – (olhando para o lado de fora) E parece que vai demorar pra sairmos daqui, 82
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viu? O motorista deve esperar a polícia e o resgate... Vitória – (interrompendo-a) O homem está morto! Pra quê esperar resgate? Pra quê parar a viagem? (falando pra fora da janela) Deixa o corpo aí mesmo e vamos embora! Eu estou com pressa, muita pressa! (pra Socorro) Não adianta, ele não me escuta, vai ficar parado aqui até todo mundo chegar. Socorro pega um tricô em andamento: é uma roupinha de bebê, e começa a trabalhar nele. Socorro – O jeito é esperar! Vitória – Esperar o quê? Que a gente fique com fome, com sede, com dor, aqui no meio do nada? O meio do nada é um lugar que não me atrai nem um pouco. Socorro – Nós não estamos no meio do nada: estamos no meio de alguma coisa, no meio do caminho, da estrada pra Terra Nova. Vitória percebe o tricô que Socorro está fazendo.
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Vitória – Grávida? Socorro – Eu não, nunca! Isso aqui é só pra passar o tempo. Eu não gosto de crianças, são todas umas pestes que só sabem pedir. Pedir não: exigir! Exigem tempo, exigem dinheiro, exigem amor. Eu não posso conviver com quem me exige amor. E as crianças choram, esperneiam, tudo pra que a mamãe lhes dê uns beijinhos de boa noite. Vitória – A senhora só fala isso porque não tem filhos. Socorro – Você deve ter muitos... Vitória – Quatro. (corrigindo) Três... Um morreu, antes de nascer. Socorro – Que bom, se livrou de mais um pesadelo pra sua vida. Vitória – (tímida) Eu tirei. Socorro – Ah... (pausa) deve ter sido caro, dado trabalho, não é? Até pra não nascer a criança dá trabalho. Vitória – Eu não queria tirar. Precisei. Eu tinha que... Socorro interrompe Vitória. 84
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Socorro – Você não me deve explicação nenhuma. Eu sou só uma desconhecida que se sentou do seu lado no ônibus. Vitória – Eu não achei que devesse explicações, só queria falar. Eu acho que preciso falar do que me dói. Socorro – Procure um bom médico pra ouvir suas dores. Eu estou ocupada o bastante com as minhas. Silêncio. Vitória – Está frio aqui. É melhor fechar a janela. Socorro – Se fecharmos a janela vai ficar abafado. Vitória – (refletindo) Será que a alma do homem vai pro céu? Socorro – Eu não sei, acho que tudo depende do quê ele estava fazendo na hora em que morreu. Vitória – Atravessando a estrada. Socorro – Mas vindo de onde e indo pra onde? 85
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Vitória – Eu não sei... Talvez ele estivesse voltando pra casa depois do trabalho. Socorro – Onde estamos não há casa nem trabalho. Vitória – Então? Socorro – Quem sabe ele não se jogou na frente do ônibus? Vitória – O quê levaria um homem a se matar? Socorro – (irônica) Talvez o mesmo que levou uma mulher a matar seu filho. Silêncio. Socorro – O quê eu quis dizer é que na vida quase tudo nos leva a matar: aos outros e a nós mesmos. Vitória – Eu entendi muito bem o quê a senhora quis dizer. Socorro – Às vezes temos necessidade de matar, ou de morrer. Silêncio.
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Socorro – Não tem mais ninguém indo pra Terra Nova. Vitória – Todo mundo foi descendo pela estrada, não é? Socorro – Só nós duas aqui. Vitória – (olhando pela janela) O motorista! O motorista sumiu! Socorro – (se convencendo) Deve ter ido buscar ajuda. Vitória – (nervosa) Ele nos deixou aqui sozinhas! Socorro – O corpo ainda está lá? Vitória – Sim. Socorro – Enquanto os mortos não se levantarem tudo está certo. Vitória – Mas onde o motorista foi buscar ajuda? Socorro – Se eu reconheço este trecho da estrada, não há absolutamente nada aqui perto, ou ele teria que voltar pra Vila Antiga ou ir até Terra Nova. Vitória – E por quê ele não foi com o ônibus? Socorro – Talvez não quisesse nos assustar.
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Vitória – Ele nos assusta muito mais nos deixando aqui. Socorro – Ou talvez ele não tenha dado conta de que estamos aqui dentro. Vitória – O homem... O homem estava aqui na estrada, deve ter alguma coisa por aqui. Socorro – O homem pode ter sido deixado. (pausa) Alguém pode ter deixado o corpo já morto no meio da estrada e o motorista viu e foi socorrer. Vitória – E como o motorista vai chegar a algum lugar a pé? Socorro – Como você pode saber que ele foi a pé? Vitória – A senhora deve gostar muito de suspense isso sim. Socorro volta a tricotar e Vitória fica ainda mais nervosa. Socorro – Tente se acalmar, ele vai voltar logo. Vitória – A gente está no meio do nada, sozinhas, de madrugada e a senhora aí calma, tricotando! 88
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Socorro – É a minha forma de passar o tempo. Você está neurótica e eu tricoto enquanto isso... Não tenho culpa do seu nervosismo. Vitória fica muito nervosa. Vitória – Um telefone por aqui nem pensar, não é? Socorro se irrita com o nervosismo de Vitória. Socorro – Você ainda não entendeu exatamente em que tipo de lugar nós estamos, não é? Já olhou lá fora? Está escuro, sem uma luz, mas dos dois lados da estrada têm montanhas enormes, nenhuma alma mora a quilômetros daqui. Vitória – Eles vão ficar me esperando, eu disse que chegaria à cidade bem cedo. Socorro – Sua família? Vitória – Não, os chefes do meu trabalho. Socorro – Então você mora em Terra Nova? Vitória – Estou me mudando pra lá. Socorro – Você foi transferida? 89
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Vitória – Não. Socorro – Vai trabalhar em Terra Nova por livre e espontânea vontade? Vitória – Isso. Socorro – Tem maluca pra tudo, não é? Vitória – Eu escutei coisas muito boas da cidade, e eu a vi em alguns postais, Terra Nova é linda. Socorro – E qual cidade não é bonita nos postais? Vitória – Dois colegas passaram alguns dias em Terra Nova, falaram muito bem da cidade, e me mostraram os postais, estavam encantados. Socorro – Turistas. Geralmente eles gostam. Vitória – Eu precisava me mudar, começar uma vida nova longe da minha cidade, que me sufocava cada dia mais. Socorro – (irônica) E escolheu a linda cidade dos postais! Vitória – Quando eu ouvi os meus colegas falarem da cidade, e de como passaram dias felizes lá, eu quis pra mim um pouco dessa felicidade que eles descreviam tão empol90
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gados... (pausa) Eu consegui um emprego numa fábrica, não é grande coisa, vou continuar como operária, mas é só o começo. Socorro – Você largou tudo e está indo sozinha pra lá? Vitória – Meu marido, meu ex-marido, ficou com as crianças. (Pausa) Na verdade ele sempre esteve com elas desde que nos separamos, ganhou as três guardas. A vida deles vai continuar igual, mas a minha vai mudar! Socorro – (irônica) Está em busca de uma vida nova! Vitória – Estou em busca do meu lugar. Eu tenho certeza que ele não era onde eu estava, espero que seja em Terra Nova. Socorro – Você indo e eu voltando. (pausa) Faz muito tempo que deixei essa cidade pra trás: fui pro mundo me procurar. Vitória – E se encontrou? Socorro – Se eu tivesse me encontrado eu não estaria aqui voltando, não é? Acho que fugi com tanta pressa que me esqueci em Terra Nova. 91
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Vitória – Não foi feliz? Socorro – Feliz. O que é ser feliz? Ah, eu preciso das minhas coisas, das minhas lembranças. Preciso de um lugar em que eu realmente me sinta parte dele, me reconheça. Eu preciso de mim mesma. Som de ultrapassagem de carros. Vitória – (olhando pela janela) Eles passam direto, não param pra ajudar! Veem um homem morto e não param pra ajudar! Socorro – O motorista já vai voltar. Vitória – Você parece que não tem pressa nenhuma em chegar a Terra Nova. Socorro – Demorei tanto pra ter coragem pra sair de lá, o quê importa se vai demorar mais um pouco pra eu voltar? Vitória – Pois eu quero chegar logo, eu vou ser muito feliz lá! Socorro – Não está inteira, como vai ser feliz? Vitória – Um dia eu volto para buscar os meus filhos. 92
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Socorro – Um dia pode ser tarde demais. Vitória – Pensei que você não se importasse com crianças. Socorro – Eu não me importo, mas você sim, são suas crianças. Silêncio. Vitória – Eu estou ficando com medo. Daqui. Está uma escuridão lá fora, venta esse vento frio, não tem um barulho a não ser esses carros que passam correndo sem perceber que estamos vivas aqui dentro e aquele homem morto lá fora. Ou se veem fingem que não têm nada a ver com isso. Socorro – E eles têm? Vitória – A compaixão, a solidariedade, a humanidade! Socorro – Você não teve nenhuma das três coisas: lembra o quê gritou pro motorista? Alguma coisa como “deixa esse corpo aí e vamos embora, que eu estou com pressa”. Silêncio. 93
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Vitória – Talvez seja melhor irmos embora daqui! Vamos ficar na estrada e pedir uma carona até Terra Nova. Socorro – (persuasiva) Somos duas mulheres. Se você quer tentar pedir carona nesta estrada é bom que tenha muita sorte senão vai acabar igual àquele homem lá fora, e com uma diferença entre as pernas. Silêncio. Vitória – (refletindo) Aquele homem lá fora... Aquele homem ensanguentado. Aquele homem vai pro céu meu Deus? Socorro – Ele vai para o lugar que merece. Vitória – E nós merecemos o meio do nada? Socorro – Já disse que aqui é o meio de algo: o meio do caminho. Vitória – É o que merece uma mãe que abandona seus filhos. Socorro – Você se despediu deles? Vitória – Disse que eu ia viajar. Socorro – Então não os abandonou. Não na cabeça deles. 94
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Vitória – Eles sorriram, me deram um beijo e pediram que eu levasse muitos presentes da viagem pra eles. Socorro – Assim são as crianças. Vitória – O tempo parece que não passa! Socorro – Numa situação dessas os minutos se arrastam pelo tempo, bem devagar... E a gente se consome esperando o próximo, e o próximo... Vitória – O quê vamos fazer até o motorista voltar? Socorro – Eu vou continuar tricotando. Socorro recomeça a tricotar, mas fica de olho em Vitória. Vitória pega em sua bolsa um livro e começa a ler compenetrada. Socorro – Então a senhora lê... Vitória – Pensou que eu não soubesse? Socorro – Não é isso, é que é difícil a gente ver uma trabalhadora assim feito a senhora lendo... Vitória – Talvez porque na maior parte do tempo estejamos trabalhando. 95
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Vitória volta a ler. Silêncio por algum momento até que Socorro incomodada com o silêncio começa a falar com Vitória que não lhe dá nenhuma atenção. Socorro – Me chamo Socorro. (pausa) Não é Maria do Socorro, é só Socorro! Vitória – Bom saber Socorro. Socorro – É como quando alguém está sofrendo. Daí grita: socorro! É um nome que escutamos muito. Tem muita, muita gente gritando por socorro. (pausa) É impressionante como essas pessoas têm problemas e clamam por ajuda. Tem gente que nem se move, não faz nada pra se ajudar, só há o grito: socorro! (pausa) Normalmente mesmo com o grito mais alto ninguém vem socorrer. (pausa) Me chamo Socorro. Vitória – Eu guardei seu nome. Silêncio. Socorro – É bom ler, não é? Ainda mais em viagens! 96
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Vitória – Nem tanto, em viagens sempre tem alguém pra atrapalhar. Socorro – O livro é de quê? Digo, de quê é feito eu sei: papel, celulose: árvores mortas. Mas de que tipo é? Vitória – É um livro que nos faz refletir sobre nossas vidas, nos ajuda a tomar novos rumos... Socorro – Autoajuda. Vitória – Foi nessa sessão que eu encontrei. Socorro – O que eu acho engraçado é que as pessoas leem esses livros pensando que eles, os livros, vão mudar suas vidas, que basta desembolsar algum dinheiro e comprar a receita da felicidade, como se isso fosse possível. (pausa) Qual o título do livro? Vitória – “No fim da linha está a vida”. Socorro – Típico de um livro de autoajuda! Vitória – É sobre nossa capacidade de renascer diariamente. Socorro – Você leu isso na contracapa, não é? Vitória – O fim da linha é onde eu estou.
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Socorro – Não, você está no meio da linha, do caminho. (pausa) Aposto que foi depois de ler uns livros desses aí que você tomou sua decisão de deixar a cidade. Vitória – Eu já estava pensando em mudar. Socorro levanta-se e fala de forma quase cruel. Socorro – Esses livros ajudam a esquecer, esquecer os outros e a si própria. Na verdade esses livros todos são feitos para mulheres, assim como você, eles usam uma espécie de feminismo barato pregando uma liberdade eufórica... Eles dizem que a liberdade feminina é esquecer, esquecer a família, esquecer os filhos, esquecer os sentimentos, esquecer que é mulher, esquecer de si própria. Dizem que a sua felicidade é quando você é bem-sucedida profissionalmente, rica, casada com alguém que você nunca briga porque na verdade você mal fala, mãe de filhos perfeitos e, principalmente, quando você aprende a não ouvir seu coração, sua emoção, se torna racional como um 98
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homem, ou como um robô: tanto faz. Esses livros criam zumbis em busca da felicidade que você procura. Vitória levanta-se. Vitória – Acho melhor eu ir me sentar em outra poltrona. Socorro – Mesmo que você vá pra outro lugar ainda vai escutar minha voz. Porque aqui dentro não é tão grande, e porque só estamos nós duas aqui. Nós duas aqui dentro e aquele homem lá fora. Vitória volta a sentar-se. Silêncio. Socorro – Minha amiga desconhecida, nosso destino é ficar aqui dentro esperando o motorista, vamos tentar continuar nos entendendo, sim? Me diz, qual seu nome? Vitória – Isso importa? Socorro – Acho que não realmente. Vitória – Então me chame de você. Não aguento falar meu nome agora. 99
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Socorro – Eu entendo, o nome traz muito da gente. Vitória – Será que o motorista vai demorar muito? Socorro – Eu não sei, não sabemos como ele foi, nem pra onde. Silêncio. Vitória – O motorista pode ter atropelado sem querer o homem. Socorro – Atropelado? Vitória – Sim. (pausa) Sabe o que eu queria saber? O que se passa na mente de um homem quando mata outro? Socorro – Nós não sabemos se... Vitória – Imaginemos que sim, que o motorista atropelou sem querer o homem. Socorro – Deve ser uma dor, uma dor profunda. Culpa, das piores, das que não existem de fato a não ser em nossas mentes e por isso nos enlouquece ainda mais. Vitória – E na cabeça do morto, o que há?
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Socorro – Há a redenção, há o grito de perdão por todo o malfeito. E há o socorro, a última tentativa clamorosa de que alguém impeça que ele viaje para o lugar desconhecido. Vitória – Morrer. Deve ser uma sensação maravilhosa, por isso só nos é dada uma única vez, e depois dela não há mais sensação maior pra se ter. A morte é a verdadeira liberdade, não é? Socorro – Ou a verdadeira prisão. Vitória – Nós logo saberemos. Quero dizer, não tão logo espero. Silêncio. Socorro – O que você sonhou? Vitória – Sonhei? Socorro – É, enquanto dormíamos. Vitória – Não sei, acho que me esqueci. Eu não tenho o costume de sonhar. Socorro – Todos sonham. Alguns até acordados. Vitória – E você sonhou com o quê? Socorro – Bobagem... 101
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Vitória – Conte, eu vou gostar de sonhar seu sonho. Socorro – O sonho é de cada um, não dá pra sonhar o sonho dos outros. Vitória – Conte. Socorro – Eu sempre sonho com a música. Vitória – Com a música? Socorro – É... Eu num grande salão vestindo um longo, vermelho, as mesas do lugar todas lotadas, homens elegantes fumando charutos perfumados e suas mulheres louras lindas, mas nenhuma tanto quanto eu. Eu vejo tudo isso por uma fresta das cortinas. E então elas se abrem e eu no palco, como uma grande diva, abro minha boca aos poucos, acompanhada pelos músicos e então a mais bela música invade o espaço acariciando os ouvidos de toda a gente. Socorro levanta-se, tira o casaco que veste ficando apenas com um lindo vestido longo vermelho. Ela então canta a música de seu sonho. Vitória fica encantada. No fim Socorro veste o casaco novamente. 102
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Vitória – O seu sonho é lindo. Socorro – E triste, como todo sonho. Mas esquece, é bobagem sem importância. Vitória – Eu gostaria de ter um sonho assim. Socorro – Você tem o de ser feliz, não é? Vitória – Claro. Socorro – (olhando para a janela) Melhor fechar a janela, aquele vento frio não parou. Vitória – Não! O homem lá fora... Não vamos deixá-lo mais sozinho que está. Socorro – (olhando pela janela) O homem continua dormindo, e assim vai continuar mesmo quando o Sol bater-lhe na cara, mesmo quando o asfalto quente derreter sua pele. Vitória – Daqui a pouco chega a luz na escuridão. Eu tenho tanto medo de perder o emprego. Socorro – Você ainda pode voltar como eu estou fazendo. Vitória – (seca) Você ainda não voltou. Talvez nem volte.
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Silêncio. Agora é Socorro quem entra em paranoia. Socorro – Eu tenho outra suposição: o motorista pode ter assassinado o homem na estrada. Vitória – Como assim? Isso é loucura! Socorro – O homem podia estar calmamente caminhando, atravessando a estrada por algum motivo. Foi quando o motorista o viu, e então com sua natureza assassina não pensou nada antes de chocar o para-choque do ônibus contra o corpo daquele homem. Vitória – Então o motorista seria um criminoso! Se ele foi capaz de fazer isso com um homem desconhecido imagine o que ele pode nos fazer! Socorro – Talvez seja melhor sairmos daqui e pedir ajuda. Vitória – Sim! Vitória sai de cena, mas retorna desolada. Vitória – Está trancada. 104
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Socorro – O quê? Vitória – A porta do ônibus. Está trancada. Socorro – Aquele assassino nos trancou aqui dentro. (pausa) As janelas, vamos pular! Vitória – O ônibus é alto demais pra isso, a gente vai acabar se espatifando no chão. Socorro – Eu prefiro morrer de uma queda a sofrer atrocidades na mão de um maníaco que atropela sem dó homens na estrada. Vitória – Calma! Você mesma disse, foi só uma suposição, assim como as outras. A gente não pode entrar em paranoia ouviu? A gente não pode se desesperar assim! Socorro – A gente tem que sair daqui. A gente precisa sair daqui. Vitória – Como? Gritando socorro aos carros que correm lá fora sem olhar as luzes acesas do ônibus? Socorro – Eu não sei, mas não podemos ficar as duas aqui, juntas e sozinhas. Vitória – Juntas. E sozinhas. Socorro – Maldita hora em que eu decidi voltar. Vitória – Você precisava. 105
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Socorro – Mas eu sentia que lá também não era o meu lugar. Vitória – E aqui neste ônibus é seu lugar? Socorro – Eu não sei, são tantos lugares os que existem... Como encontrar o meu? Vitória – Olha pra quem você pergunta! Eu também estou à procura. Desesperadamente. Socorro – Tem razão. Silêncio. Socorro – Quando eu saí da cidade, prometi pra mim mesma que ia ser feliz. (pausa) Quando cheguei na minha nova morada eu pensei que ali seria meu lugar. No início, com todas as novidades e novas pessoas, eu fiquei fascinada. Mas com o passar do tempo vi que nunca seria de lá, que eu era diferente daquela gente que anda depressa pra chegar à lugar nenhum. Eu não, eu queria chegar em algum lugar, foi pra isso que eu tinha ido pra lá... Mas tudo foi tão difícil... Uma hora não aguentei mais. E 106
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como os pássaros estou voltando pro lar depois de um longo inverno na minha vida. Vitória – Você não manteve contato com Terra Nova? Socorro – Não fui sequer nos enterros dos meus parentes. Vitória – O que você faz? Socorro – Canto. Vitória – Mas trabalha no quê? Socorro – Na música. Vitória – Então não era sonho! Socorro – Era sim, o sonho da minha vida. Vitória – Cantora! Socorro – Poucas pessoas me chamam disso. Vitória – Eu gostaria de ouvir você cantando uma música. Socorro – Eu já cantei hoje, no sonho, não lembra? Vitória – Eu lembro do sonho, mas queria ouvir sua voz de novo. Socorro canta uma música delicada para Vitória que ao final aplaude.
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Vitória – Sua voz é linda! Socorro – Minha garganta está seca, eu não devia ter cantado. Vitória – Aposto que você faria sucesso em qualquer lugar. Socorro – Nunca fiz em lugar nenhum. Vitória – Fez aqui, dentro deste ônibus, esta noite! Socorro – A senhora está sendo gentil, mas... Vitória – O homem lá fora: tenho certeza que adoraria escutar sua voz também! Socorro – De plateias mortas já bastam as dos shows que eu fiz. Vitória – Onde você cantava? Socorro – Por aí... Nunca deixaram eu me apresentar em nenhum lugar bacana mesmo, então cantava nuns bares, numas churrascarias... E principalmente nas ruas. O meu público eram os mendigos dormindo e as pessoas que passavam, mas nunca paravam pra ouvir de verdade. Sempre a pressa. Algumas pessoas até paravam quando achavam que tinham tempo e ficavam 108
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em pé olhando pra mim, mas a cabeça e o coração não: estavam em outro lugar, pensando em outras coisas, e música precisa de atenção, não é só para ser ouvida é para ser sentida. Vitória – Eu senti. Socorro – É, você sentiu. Uma operária que gosta de ler e de boa música! Vitória – Então está voltando pra Terra Nova porque fracassou. Socorro – E eu fui embora de lá por isso também. Vitória – Eu não entendo como você não fez sucesso. Socorro – Talvez porque tenham outras mulheres que cantem como eu, tantas... Com vozes até melhores. O dom da música não é tão restrito, mas o da sorte é, e eu não tive. (pausa) Eu só fiz um grande show, com casa lotada e tudo... Ainda agora, no sonho. Vitória – Sua família deve se orgulhar muito de você, independentemente do sucesso que não fez.
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Silêncio. Socorro – E a sua família? Por quê não deu certo com seu marido? Vitória – Teve uma ocasião em que ele não me perdoou. Socorro – Quando? Vitória – O aborto. Socorro – Ele era contra? Vitória – A favor. Foi ele quem deu a ideia, quer dizer, ele deu a entender... Disse que não tínhamos como sustentar mais uma criança. Quando eu perguntei se ele estava querendo dizer que era melhor dar um jeito, ele confirmou, incentivou. (pausa) Mas ele não assumiu depois que eu fiz, disse que eu como mãe não podia ter feito isso, não podia ter dado ouvido a ele. Ele não olhava mais na minha cara, daí nos separamos, e ele usou meu ato condenável a favor dele na Justiça, e ficou com as crianças. Silêncio.
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Socorro – Infanticídio é um crime muito grave, não é? Vitória – O bebê não tinha nascido! Socorro – Mas ia nascer. E você o iria matar mesmo assim se fosse preciso. Vitória – Você não gosta de crianças. Socorro – Mas não matei nenhuma. Vitória – O bebê não tinha nascido! Socorro – Mas ia nascer. Vitória – Daí quem eu mataria seria a mim mesma. Se bem que quando fiz aquilo o risco era esse, talvez o bebê sobrevivesse e eu não. Mas Deus quis assim. Socorro – Sim, Deus... Eu não te culpo nem um pouco. Mas acho que você sim, leva essa culpa dentro. Vitória – É como se eu estivesse grávida de um fantasma agora. Socorro – Mas eu não entendo. Se alguém tem essa coragem não devia sentir culpa nenhuma. Você precisa se livrar da culpa se quer ser feliz! Vitória – Será que meus filhos vão me culpar por tê-los deixado? 111
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Socorro – Sabe qual é o bom de estar no meio do caminho? É que ainda se está perto pra voltar. Vitória – Não, eu não vou voltar. Eu saí em busca de um novo lugar e vou chegar. Socorro – Bem, você já está num novo lugar agora. Não é Terra Nova ainda, mas... E mesmo estando em outro lugar, como você se sente? Silêncio. Vitória – O homem... Será que ele vai pra um lugar melhor? Socorro – Ir para um lugar melhor... É isso que toda gente quer. Vitória – Eu tô começando a ter fome, e sede, e dor. Socorro – Não trouxe nada pra comer na viagem, não esperava que fosse demorar tanto até uma próxima parada. Vitória – Aqui não tem água. Meu Deus, nós estamos sem água! Socorro – Engole a saliva que mata a sede. 112
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E abafa a dor. (para si) Até quando a gente vai ficar aqui?! Vitória – O resgate vem, se não for com o motorista, virá sozinho. As pessoas vão ver o corpo e o ônibus na estrada quando o sol nascer. Socorro – E será que terão tanta piedade pra chamar alguém? Vitória – Depois do medo e da indiferença, espero que tenham alguma. Socorro – Eu acho que estamos esperando muito das pessoas. (pausa) Eu vou embora! Vou seguir o resto do caminho a pé, o motorista seja pra onde ele foi, se estava a pé, eu vou chegar também! Vitória – O quê? Socorro – Eu vou pular. Socorro se prepara para pular pela janela. Vitória – Você não pode fazer isso. Socorro – Eu posso fazer muitas coisas. Vitória – Vão ser dois corpos lá fora e eu sozinha aqui dentro. 113
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Socorro – Se quiser junte-se a nós. Vitória – Eu pensei que você fosse me fazer companhia, eu pensei que você fosse minha amiga e... Socorro – Eu sou uma desconhecida que sentou do seu lado neste maldito ônibus. Vitória – Espera, não vai... Socorro – Onde quer que eu chegue vou pedir o resgate pra você. Vitória – Não vai. Socorro – Você vai ficar bem. Vitória – Fica. Socorro – Foi bom te conhecer. Vitória – Por mim. Socorro – (olhando pela janela) Olha a lua! Como ela está linda... Silêncio. Vitória – (olhando pela janela) A gente olhou pra fora e só viu o corpo morto. Socorro volta a se acomodar na cadeira, como se nada tivesse acontecido. 114
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Socorro – Nós sempre olhamos pras piores coisas não é? Silêncio. Vitória – Até você que canta coisas tão bonitas. Socorro – Por quê você se tornou operária? Vitória – Eu sempre quis trabalhar com máquinas... Meu pai era operário e quando ele me levava à fábrica, eu criança ainda, adorava vê-lo mexendo em todas as coisas e fazendo peças... Meu pai fazia peças. Automotivas. Nós saíamos à rua e ele apontava pra um ônibus como esse daqui e falava: “Está vendo aquele ônibus? Fui eu quem fiz!” E eu ficava toda orgulhosa e pensando que ser industrial, operário, era o melhor emprego do mundo e que eu seria igual ao meu pai. Um dia eu descobri que não era o melhor emprego do mundo... Mas já era tarde e era o meu... Dez, às vezes até 12, 13 horas dentro de uma fábrica, e minhas amigas não eram as colegas de trabalho, 115
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mas as máquinas: era tanto tempo mexendo nelas, instruindo o que deviam fazer que peguei afeição como se fossem gente, e eu falava dos meus problemas, elas ouviam em silêncio ou respondiam com os barulhos das engrenagens. Eu até chorei quando me despedi das minhas máquinas! Socorro ri. Vitória – Eu espero me dar bem com as máquinas de Terra Nova. Socorro – Você sabe por quê Terra Nova recebeu esse nome? Porque quando imigrantes chegaram lá tinham a certeza de que construiriam um lugar perfeito onde poderiam ser felizes com seus descendentes. Um lugar sem os problemas da pátria-mãe. Uma Terra Nova onde suas vidas seriam corrigidas e a felicidade alcançada. Vitória – “A Cidade do Começo”. Socorro – Deviam dizer “A Cidade do Recomeço”. Parece que todos vão para Terra Nova procurando recomeçar, consertar ou 116
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esquecer seus erros, sempre foi assim. Como se fosse possível apagar memórias e lembranças e começar de novo e de novo e de novo a cada erro que cometemos. Vitória – Será que o homem morto estava indo pra Terra Nova? Socorro – Eu não lembro dele no ônibus. Vitória – E o seu erro, qual foi? Socorro – Como assim? Vitória – O erro que cometeu e está indo para Terra Nova tentar esquecer. Você quem disse. Socorro – Eu disse dos outros, não de mim. Vitória – O meu você já sabe. E o seu? (pausa) Por quê você não gosta de crianças? Socorro – Porque elas me exigem demais já disse. Vitória – Quais crianças te exigem demais? Socorro – Todas. Vitória – Você nunca teve um homem, não é? Socorro – Você me respeite! Vitória – Por isso a sua infelicidade: nunca teve um homem pra te fazer um filho! 117
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Socorro – Então para ter a felicidade eu preciso ter um homem e uma criança? Aliás, essas duas coisas você também não tem, não mais. Vitória – Ah, já entendi porque você não se interessa por homens... Socorro – O quê você quer dizer? Vitória – Seu nervosismo quando comecei a falar de homens, filhos... Por isso a sua indiferença com o homem lá fora. Socorro – Você não sabe do que está falando! Vitória – Por quê você não gosta de crianças? Socorro – Eu já disse! Vitória – Não me convenceu. Socorro – Eu não tenho que te convencer de nada. Você é uma desconhecida. Vitória – A única capaz de ouvir agora! (pausa) Eu te contei minha maior dor, me conte a sua. Socorro – Eu não tenho dor nenhuma. Vitória – Eu sinto. Socorro – Você está sentindo demais agora. Vitória – Fala.
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Silêncio. Socorro – Eu nasci do ventre podre da minha mãe, um milagre, diziam em Terra Nova, minha mãe ia me batizar com o nome de uma santa se eu nascesse saudável em agradecimento a Deus. Mas ela morreu, não aguentou o parto tão difícil, e no meio de toda dor, enquanto eu nascia, ela gritava... Vitória – Socorro. Socorro – Me chamo Socorro. Vitória – Somos assassinas. Você matou sua mãe. Eu matei meu filho. Socorro – Eu cresci com essa culpa, eu vivi com ela durante toda minha vida, achava que ia me livrar dela assim que saísse de Terra Nova, mas nada mudou em mim. Eu queria ter um filho então, poder preencher o vazio que existe desde que nasci. (pausa) Eu tentei tanto ter uma criança, mas eu não posso. (pausa) É a vingança de minha mãe. A herança maldita que me seca. (pausa) Não consegui ter nenhuma gravidez, diferente de você com suas quatro. 119
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Vitória – Agora eu entendo porque não gosta de crianças. A gente odeia aquilo que não pode ter, não é? Socorro – Ou tenta odiar, mesmo que o coração chore. Vitória – Mas por quê das roupinhas no tricô? Socorro – Pra passar o tempo. Vitória – A verdade... Por quê das roupinhas? Socorro – Eu tenho esperanças. Vitória – Pensei que já tivesse perdido todas. Socorro – Todas as que eu pude. Lá no fundo eu ainda espero que aconteça o mesmo milagre que aconteceu a minha mãe. Vitória – Mesmo que te custe a vida? Socorro – Mesmo que aconteça o mesmo. Vitória – Por quê você não cria uma criança? Socorro – Eu penso nisso, mas tenho medo de ser odiada por que não veio do meu ventre, ou que eu me odeie e me envergonhe por ela não ter estado nele. (pausa) Essa é a minha dor e é por ela, também, que estou voltando pro meu lugar. Silêncio. 120
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Vitória – E o homem lá fora, será que ele encontrou o lugar dele? Socorro – Antes ou depois de morto? Antes não: quem encontra seu lugar não sai. Depois... Bem, eu não sei o que acontece depois. Vitória – A gente nunca vai saber, não é? Socorro – Um dia vamos. Silêncio. Vitória entra em êxtase. Vitória – Eu quero saber agora. Socorro – O quê? Vitória – Eu quero morrer. Socorro – Não, você não pode morrer antes de chegar à Terra Nova. Vitória – Talvez nós já estejamos mortas! Silêncio. Socorro – A Lua! Lembra da Lua! Vitória – (olhando pela janela, delirando) Meu filho. Meu filho morto na estrada. Meu filho... 121
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Socorro – Não, aquele não é o seu filho! Vitória – Meu filhinho amado, morto, jogado na lixeira daquele quarto, aos pedaços, mas agora está inteiro, no meio do nada. Socorro tenta puxar Vitória para a realidade. Socorro – Nós estamos presas dentro de um ônibus no meio da estrada rumo à Terra Nova! Vitória olhando pela janela, como se visse o morto pela primeira vez. Vitória – Socorro: há um homem morto no meio do caminho! Socorro – Não. Há duas mulheres, vivas, partindo rumo aos seus destinos. Silêncio. Vitória – (carinhosa) Eu queria te fazer um filho. O meu filho morto. Eu queria gerar na tua barriga podre. 122
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Socorro – Quem seria o pai dessa criança com duas mães? Vitória – O homem lá fora. Socorro – (sorrindo) Você está sonhando! (pausa) Pela primeira vez, você está sonhando. Mas é melhor que esqueça esse como nunca lembrou dos outros que não teve. Silêncio. Vitória – Nós vamos apodrecer aqui... Ninguém vai dar falta de nós duas. Nós não somos ninguém, não temos ninguém, nem filho nem mãe. Socorro – Nós temos uma à outra. Vitória – E o que vamos ficar fazendo? Confissões dos nossos segredos? Contar nossos sonhos e frustrações? Contar nossas mortes? Conversar eternamente sobre nós mesmas sem nos importarmos com o que acontece lá fora? Socorro – Nós estamos aqui dentro. Nós duas. É o que importa. Vitória – Eu quero voltar! Eu quero voltar pra 123
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minha cidade, me escuta! Você disse que eu podia voltar! Socorro – Você ainda não chegou. Vitória – Mas eu estou mais próxima do que nunca. No meio do caminho. Socorro – Você aprendeu! Vitória – Falta muito pra chegarmos? Socorro – Não. Nós já estamos chegando. Talvez nós até já chegamos onde devíamos. Vitória – Há um homem morto lá fora! Socorro – É só um homem morto lá fora. Socorro fecha a janela e começa a cantar uma música para Vitória. Termina e Vitória sorri pra ela. Socorro – O livro... Me empresta? Vitória pega o livro e entrega pra Socorro. Socorro – Já que não sabemos até quando ficaremos aqui, melhor fazer algo. Você quer meu tricô?
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As duas riem. Socorro começa a ler. Desta vez é Vitória quem fala enquanto a outra tenta ler. Vitória – Dizem que Terra Nova é protegida pelos santos, não é? Que lá o solo é milagroso e as mais belas flores nascem, dizem que se escutam as trombetas dos anjos quando o Sol nasce e se vai, não é? Socorro – Mas à noite a Terra está desprotegida e todos os demônios vêm à tona aproveitando o sono dos anjos e dos santos. Vitória – Foi por isso que eu comprei a passagem pra chegar bem cedinho, junto com o Sol! (olhando pela janela) A Lua foi embora. (pausa) Você reparou como parece que o homem está sorrindo? Silêncio. Socorro – (lendo o livro) “Às vezes parece que temos um compromisso com a Felicidade, que a vida só vale à pena se somos felizes, que essa é uma obrigação”. Vitória – Foi aí que parei, na última página. 125
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Socorro – (lendo) “E que essa felicidade vem de fora, das coisas que temos e onde as temos. Dos outros. Mas não adianta buscarmos a felicidade em outros lugares, porque ela está unicamente num: dentro de nós mesmos. E no fim da linha de uma longa viagem iniciada nas primeiras páginas deste livro eis o ponto de chegada: a vida. Fim”. (pausa. rindo muito) É, típico livrinho de autoajuda este! Vitória – Que bom que você não gostou. Socorro – E nada do motorista chegar! Vitória – O que faremos para passar o tempo agora? Há algo que você ainda não me contou? Ou algo que você ainda não cantou? Socorro começa a cantar. Enquanto isso uma luz branca é acesa em crescente, na direção das mulheres e do público. Socorro – O Sol! Vitória – Nós vamos ser salvas! Socorro – Nós vamos chegar à Terra Nova. Vitória – Eu preciso chegar para voltar, não é? 126
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Socorro – Ainda é o meio do caminho da viagem, vamos ter tempo pra conversar um bocado. Vitória – E tem mais coisas pra se falar? Socorro – Sempre tem. Mas nada mais será importante de verdade. Vitória olhando atentamente para fora do ônibus. Vitória – Você notou como parece que o homem está sorrindo? Socorro – (olhando pela janela) É, parece mesmo que ele está sorrindo. Vitória – Morreu feliz o homem! Socorro – Talvez fosse isso que ele queria. Morrer. Vitória – Eu não quero mais agora. Socorro – Não se trata de querer às vezes. Vitória – E a gente nunca sabe quando ela, a morte, chegará, ou se ela já não chegou e nos levou. Socorro – É como pegar um ônibus e não saber quem se sentará do nosso lado na 127
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viagem. Por falar nisso, você não disse seu nome. Vitória – Vitória. As duas riem. Socorro – Vitória? Vitória – É esse o meu nome. Socorro – Bon voyage Vitória, bon voyage! Muitos refletores brancos são acesos em resistência causando o efeito de “cegueira” no público, num contrário ao black-out. Então black-out rápido. Fim
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Temporal
1º Dia Interior de uma velha casa de madeira com janelas por onde vemos a chuva cair. Noah, um homem de 80 anos, toma chá enquanto lê uma carta. Sons do temporal. Tempo depois entra Zara, uma mulher de pouco mais de 50 anos, acompanhada de Mayim, uma jovem de 30 anos. As duas carregam sacolas com verduras e têm as roupas molhadas como quem correu na chuva. Noah ri ao escutá-las entrar. Zara – A água começou a cair feito uma cascata do céu. Noah – Eu bem que avisei. Mayim – Olha só, molhou tudo. 129
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Noah – Nenhuma das duas quis me escutar. Eu bem que avisei. Zara – Nós já sabemos que o senhor avisou, velho. Noah – Sim, porque sempre que sinto repuxar por trás do meu joelho direito é sinal de que vai chover muito. Batata! Mas vocês duas não me escutam. Mayim – Pensamos que era só aquela chuva de fim de tarde de todo dia, mas não, esta não para! Noah – Eu fiquei bem aqui, dentro de casa, tomando um bom chá quente. Zara – Ah sim, mas se nós não fôssemos comprar comida íamos morrer de fome os três. Noah – Você anda precisando de uma dieta minha filha. Noah sorri pra Zara, que resmunga e sai com as sacolas de compras. Mayim beija Noah. Mayim – Da próxima vez eu prometo que vou te escutar Noah.
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Noah – A Zara é uma teimosa. Se me ouvisse estaria bem. Mayim – É que apareceu um sol tão bonito esta manhã. Noah – Ele vem e vai, não há dia em que a escuridão não chegue. Mayim – Você tem razão, você sempre tem razão nosso mestre supremo. Os dois riem. Noah – Você trouxe o que pedi? Mayim – Eu tinha até me esquecido, mas a Zara lembrou no caminho de volta. Mayim pega em uma sacola um pequeno pacote com Cannabis. Noah cheira o pacote. Noah – Essa parece ótima! Mayim – Pra você o melhor. Noah – Vou misturar aqui com esta cidreira. Mayim tomando o pacote e colocando dentro do bule de chá. 131
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Mayim – Me dá aqui, deixa eu colocar em infusão. Noah – É melhor você ir se secar, colocar uma roupa bem quentinha. Depois vem tomar o chá comigo. Mayim – Eu não, você sabe que não gosto de ficar tomando esse seu chá. Aliás, eu acho que você também devia parar com isso. Noah – O médico quem mandou. Diz que é bom para a doença. Mayim – Sei bem, esse seu amigo doutor é um louco, isso sim. Noah – E quer um especialista melhor pra cuidar de mim do que um louco? Mayim sorri e sai. Volta Zara com um pesado casaco. Noah – O quê teremos pra jantar minha filha? Zara – (Desanimada) Sopa. Noah – Hum, que apetitoso! Zara – (Irritada) Ah sim, faz muito tempo que não tomamos sopa não é mesmo meu pai? 132
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Noah – Ora Zara, deixe disso. Zara – Eu nem lembro qual foi a última vez que comemos outra coisa. Todo santo dia a mesma concha servindo sopa. Noah – Do que será feita hoje? Zara – Rabanete com batatas. Noah – (Tentando lembrar) E do que era feita a sopa de ontem? Zara – (Preocupada) Ontem? O senhor não lembra? Noah – (Um pouco constrangido) Não, não me lembro. Zara – Ontem a sopa foi de cenoura e alho. Noah – (Tentando lembrar) Cenoura? (Sorrindo) Pois então... Você devia estar feliz em podermos variar o sabor da sopa. Zara – (Dando um meio sorriso) Papai, o senhor é um velho engraçado. Quisera eu não me importar que todas as nossas comidas tenham sido afogadas em água. Quisera eu ter seu bom humor. Noah – Você puxou sua mãe. Ela também era ranzinza, não sabia rir da vida. (Pausa) Mas a vida riu dela. 133
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Zara – O senhor sabe que eu penso nela toda vez que chove. Noah – Eu também Zara. Mas ela está bem. Ela tem que estar bem. Não seria justo se fosse diferente. Zara – Aquela noite... Eu tenho tanto medo que se repita com o senhor neste estado. Noah – Eu sou um velho minha filha, não precisa anoitecer pra eu morrer. Noah sorri e Zara faz um carinho no rosto dele. Entra Mayim bem agasalhada, enxugando os cabelos. Noah – Olha meus dois amores aqui, com água nos cabelos e cheiro de rato molhado. Mayim ri, Zara a olha. Mayim – Seu chá já deve estar pronto Noah. Noah serve-se uma xícara de chá.
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Noah – As belas senhoritas me acompanham? Mayim – Eu já tomei um copo de leite na cozinha. Noah – E você minha filha? Zara – Por favor. Noah serve uma xícara de chá para Zara, os dois o tomam calmamente. Mayim vê a carta que Noah estava lendo. Mayim – O quê é isso? Noah – Besteira da prefeitura minha menina, não dê bola pra isso. Zara – (Nervosa) Outra carta? Noah – Vamos terminar de tomar nosso chá minha filha, você sabe que a hora do chá é sagrada. Mayim – Eu não acredito nisso Zara, no quê eles estão pensando? Zara toma a carta de Mayim e lê. Noah – Depois resolvemos isso crianças.
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Zara – Uma semana, diz aqui que temos uma semana pai! Quando é que o senhor ia nos contar? Noah – Na hora do jantar Zara. Zara – Mayim. Mayim... Esse velho só pode estar brincando com a gente. Noah – O chá vai esfriar filha. Mayim – O quê nós vamos fazer? Zara – Eu falei tanto. Avisei que era melhor termos aceitado aquele acordo. Agora vão nos escorraçar daqui sem nos pagar um centavo. Noah – (Sentindo o gosto do chá) Você tem que reclamar com quem te vendeu esta erva Zara, está muito fraquinha. Zara – Eu vou procurar aquele advogado da cidade. Noah – Você sabe que gosto forte, não é Mayim? Mayim – É melhor começarmos a arrumar nossas coisas imediatamente. Zara – Sim, senão é capaz de colocarem tudo que é nosso no meio da rua ainda.
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As duas se levantam, começam a arrastar móveis, dobrar roupas, juntar papéis. Noah apenas observa. Tempo. Noah – (Gritando em sobressalto) Basta! Ninguém vai a lugar nenhum. Agora nem depois. Ninguém vai nos tirar nossa casa. Mayim – Eles são poderosos. Noah – Só Deus tem o poder de me levar pra um lugar que eu não queira. Essa casa é minha, é nossa residência, nosso lar. Eu continuarei fazendo o mesmo que antes. Ignorando estas cartas. Nada nos aconteceu até agora. Nem vai acontecer. Zara – O senhor não vê que está criando problemas, que pode ser tudo ainda pior? Noah – O que eu vejo é que eles pensam que nós vamos sair daqui sem nenhum problema, que ainda vamos beijar-lhes a mão se nos derem algum trocado. E nem eu, nem minha filha, nem minha esposa, faremos isso. Nenhum de nós vai deixar esta casa. Eu a construí para deixar pra você Zara. E ninguém vai lhe tirar isto. 137
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Zara – Eu não me importo com a casa, eu me importo com o inferno que podem transformar a sua vida meu pai. Como fizeram antes. Noah – Eu sobrevivi antes e vou continuar sobrevivendo. Até que eu morra. Mayim – Não queremos que você fique nervoso, sofra com isso. É para seu bem Noah. Noah – Do meu bem cuido eu. E não vai ser deixando minha vida pra trás que vou melhorar. Zara – Sua saúde... Noah – Chega! Chega Mayim, chega Zara! Acabou. Ninguém vai arrumar coisa alguma pra ir pra lugar nenhum. (Pausa) Sentem-se. (Pausa) Sentem-se andem, não respeitam mais quando um velho manda? (Pausa) Pede... Zara e Mayim sentam-se. Zara – Isso não está certo. Noah – Tome seu chá minha filha. A hora do chá é sagrada. 138
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Os três sentados, Noah tomando calmamente seu chá e sorri. Sons do temporal. As luzes se apagam. Zara observa um filete de água que corre por uma parede, entra Mayim. Mayim – O quê foi? Zara – A água está entrando. Mayim – De novo? Zara – Uma fresta na madeira, vê? Mayim – Nós precisamos consertar isso. Zara – Vamos tapar esse buraco e aparecerão outros. Tantos remendos... Essa casa já era. A madeira e todo resto já estão podres. Mayim – O Noah já viu? Zara – Todo verão é a mesma coisa. Ela vem arrasando tudo. Mayim – Quem? Zara – A água Mayim, a água. Chovendo sem parar dias e noites inundando toda cidade, toda mata. Você sabe. Mayim – Sim, eu sei. Zara – E cada ano que passa as chuvas maltratam ainda mais essa casa. Meu pai... Não sei se ele realmente não está nem aí 139
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pra esses buracos ou se o velho finge que não vê. Mayim – Nós podemos chamar alguém. Zara – Mal temos dinheiro pra comer Mayim. Mayim – Se vocês me deixassem ajudar... Eu podia procurar emprego na cidade. Zara – (Irônica) Não seja tola, meu pai nunca permitiria. Ele já acha que você ajuda muito aqui em casa, que a bonequinha dele não pode trabalhar por aí, fazer esforço nem machucar as mãos. Mayim – E você, o que acha Zara? Zara – Eu não tenho que achar nada. Não fui eu quem te escolhi. Foi ele. Zara sai. Tempo. Entra Noah trazendo consigo um livro, sorri ao ver Mayim. Noah – Minha menina! Mayim – Noah... Noah beija Mayim.
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Noah – Acho que essa chuva é daquelas que não passa. Mayim – Como está seu joelho? Noah – Doendo. Mayim – (Sorri) Então é melhor andar de guarda-chuva. Noah – Eu só espero que não chova tanto que faça o rio transbordar de novo. Senão você precisará de um barco, não de guardachuva. Mayim – Você fala da vez em que choveu 40 dias sem parar? Noah – 40 dias e 40 noites. Um temporal! A chuva não parava de cair sobre tudo. A enchente foi inevitável. Logo toda região estava embaixo d’água. Mayim – Mas isso faz tanto tempo... Noah – Vinte anos. Mayim – Disso você não esquece. Noah – (Nostálgico) Aalyiah. Silêncio.
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Mayim – Acho que com todas as obras que foram feitas não corremos o risco de que aconteça de novo. Noah – Eles dizem que se fizessem a tal barragem a cidade estaria livre do perigo. Mas se eles dependem desse terreno pro tal projeto sair do papel vão ter que esperar eu morrer. Ou me matar antes. Mayim – Cruzes Noah. A barragem é pro bem de todo mundo, segurança. Noah – Isso é o que eles dizem, o que querem mesmo é faturar uma grana com a água do rio, isso sim. Mayim – Em todo caso ia ajudar com as chuvas. Noah – Com barragem ou sem isso aqui vai continuar alagando como Deus quiser. O homem pensa que é maior que a natureza, mas não... Mayim – Estamos com aquele problema na parede de novo. Noah – (Dando de ombros) Ah... Depois vemos isso. Temos tempo até o fim do verão.
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Noah senta-se e começa a ler o livro. Mayim vai para seu lado. Mayim – Que livro é esse Noah? Noah – Achei jogado no fundo da estante esta manhã. Parece interessante. Mayim – Ele estava aí e você não leu todo esse tempo? Noah – Eu... Eu acho que não Mayim. Mayim pega o livro de suas mãos e lê o título na capa. Mayim – Você estava lendo esse livro quando cheguei aqui. Noah – (Consternado) Ah, sim? Bem... Você lembra se eu gostei? Silêncio. Mayim – (Triste) Adorou. Noah – Então merece que eu o leia de novo, não é? Mayim – Claro. 143
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Noah – Uma história sempre se renova de acordo com o ponto de vista que temos da vida naquele momento. Reler um bom livro é como ler pela primeira vez. Mayim – Eu me lembro que você contou que era a história de um jovem casal fugindo do mundo. Um romance juvenil. Tem certeza que quer reler isso? Não prefere algo mais maduro? Noah – Só porque eu estou velho você acha que devo ler livros de velhos? Silêncio. Mayim – Nós precisamos chamar um marceneiro ou a casa não vai resistir se continuar chovendo assim. Noah – E Zara minha filha? Mayim – Deve ter ido preparar as encomendas de sopa. Acho que vou ajudá-la. Noah – Não... Por quê você trabalha tanto nesta casa? Zara é que é a cozinheira, que inventou de fazer comida pra fora, deixe que
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ela prepare seus pedidos e depois entregue. Sozinha. Ela tem boas pernas! Mayim – E eu estou aqui pra quê afinal? Noah – (Sorrindo) Pra me fazer companhia. Noah passa a mão pelo rosto de Mayim e então volta a ler. Silêncio. Mayim – Você me quer aqui como sua mulher ou sua dama de companhia Noah? Noah – Como minha mulher que me faz companhia. Mayim – Às vezes eu acho que pra você tanto faz. Noah – Não cobre virilidade de um homem na minha idade. Mayim – Não se trata disso. Noah – Então? Mayim – Amor. Às vezes parece que você não me ama. Noah – Eu te amo minha menina, é claro que eu te amo. Muito. Mayim – Como uma filha Noah?
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Noah – Eu já tenho Zara como filha. Você é minha esposa. Mayim – (Triste) Então me faça me sentir como tal. Noah – (Apaixonado) Você trouxe minha vida de volta Mayim! Eu estava enterrado aqui nesta casa, no meio da mata, Zara e eu, os poucos vizinhos. O máximo que eu fazia era me sentar nesta escrivaninha e olhar o rio pela janela, pensando na minha mulher que se foi. E então um dia você apareceu nesta casa, pediu abrigo, era menina, tão bonita... Não foi nem um pouco difícil me apaixonar por você e nunca mais te deixar ir embora. Mayim emociona-se e abraça Noah. Mayim – (Chorando) Eu te amo tanto seu velho! Noah – Só porque eu não te deixo ver outros homens. Mayim – Eu tenho medo de te perder. Noah – Não vai demorar muito... 146
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Mayim – Ou que você me perca. Me esqueça. Noah – Tem certas coisas que não estão na cabeça pra serem apagadas por uma doença qualquer. Você está no meu coração menina. Mayim – Que Deus te proteja. Noah – Agora vai, deixa eu ler. Reler. Um velho como eu precisa de muito esforço pra se concentrar. Mayim dá um beijo em Noah e sai. Noah lê uma página do livro. Noah – (Lendo) “Então seguiram pisando firme nas folhas que caíram pelo caminho, enquanto...” (Parando de ler, recitando de cabeça) “Enquanto a Lua seguia seus passos e os engolia com sua luz azulada.” (Animado) Eu lembro. (Gritando) Eu lembro! (Gritando ainda mais) Eu lembro! As luzes se apagam. Zara tirando a mesa de jantar, Mayim ajudando.
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Noah – Estava deliciosa! Mayim – Você é mesmo uma cozinheira de mão-cheia Zara! Zara – Não precisam me agradar. É só água, alguns legumes e sal. Noah – Mas este é o mistério da comida minha filha, a alquimia dos ingredientes simples que se transformam nessa sopa maravilhosa! Zara – Se ao menos ainda tivéssemos as galinhas eu faria uma canja. Mas o senhor fez o favor de soltá-las todas. Noah – Elas iam morrer de fome, ou bem comíamos o milho ou as alimentávamos. E elas estavam tristes, senti que precisava libertá-las. Zara – E onde já se viu galinha solta na mata? Mayim – Com galinha ou sem galinha, sua sopa estava realmente maravilhosa. Eu adoraria aprender a receita. Assim eu poderia cozinhar pra vocês às vezes. Zara – Não precisa se incomodar. Eu sempre cozinhei nesta casa. Desde que a mãe... Eu sempre cozinhei pro pai e depois que você 148
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chegou, pra você também. Nada precisa mudar aqui. Mayim – Não é justo, você trabalha demais preparando o que te encomendam, e ainda fica se preocupando com a gente. Noah – Deixa ela Mayim, Zara sempre foi uma menina que gostava de trabalhar! Nasceu forte, roliça, pra pegar no pesado. Zara – (Bufando) Ah sim papai... Noah – Você não, tão frágil... Mãos delicadas. Não foi acostumada ao batente de uma casa. Mayim – Quê isso, de onde eu vim eu... Zara – Ele tem razão. Deixe com a roliça aqui pra pegar no pesado. Zara olha pra Noah e recolhe sozinha a louça, sai. Mayim – Você não devia... Noah – Eu só quero te poupar minha bonequinha. Mayim – Pois desse jeito você coloca sua filha contra mim. Ela já não gosta de mim, você sabe... Nunca gostou. 149
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Noah – Bobagem, ela só está envelhecendo e se tornando uma velha rabugenta como o pai. Noah veste um casaco. Mayim – Deixe eu te ajudar. Noah – Não se preocupe, eu consigo me vestir sozinho. Zara volta, senta-se em outro ponto da sala, de forma que cada um esteja numa extremidade. Zara – Deu no rádio que a chuva vai piorar. Noah – Bem que eu estava sentindo. Mayim – Mais um ano presa dentro de casa no verão. Zara – Do jeito que vai, as poucas encomendas vão parar de vez. Noah – Eu ainda tenho aquelas economias... Zara – Suas economias não vão pagar nem seu caixão pai. Noah – Pois pegue minhas economias e me enterre sem caixão, direto na terra. 150
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Mayim – Acho que é proibido. Noah – Não importa. Vocês dizem que foi meu último pedido. Não poderão negar. Zara – Deixa de besteira. Nós precisamos é estar preparados pro pior. Mayim – Misericórdia. Zara – Um vento mais forte e leva o telhado. Noah – Eu construí esta casa com a melhor madeira! Zara – Há mais de meio século. E com as chuvas deste lugar, a falta de manutenção... Mayim – Ela tem razão Noah, está tudo podre. Noah – Vocês não entendem de nada. São só uns remendos aqui e outros ali e pronto. Zara – Talvez seja melhor aceitarmos a oferta da prefeitura pai, pensa direito! Noah – Eu já disse que nestas paredes eles não tocam. Se quiserem colocar a casa abaixo vão ter que fazer isso comigo dentro. (Pausa) Com nós três dentro! Mayim – Se é assim que você quer...
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Noah pega coisas, martelo, pregos e uma pequena ripa de madeira, sobe em cima de uma cadeira. Zara – O quê o senhor vai fazer? Noah – Consertar este buraco por onde a água está escorrendo. Noah martela a ripa na parede sob o olhar desconfiado de Zara e Mayim. Mayim – Ficou firme? Noah – Está aí, é só secar e será como se nunca tivesse entrado água por aqui. Noah sorri admirando seu feito, assusta-se ao ver algo, sente uma tontura. Rapidamente Mayim e Zara o seguram. Mayim – O que foi Noah? Noah – Não foi nada. Zara – Pai, o senhor sabe que não pode fazer esforço assim. Pelo amor de Deus! Noah – Foi um segundo, um segundo escuro 152
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e então eu... Eu senti que já tinha vivido isso, em cima desta cadeira martelando a parede e... Zara – Claro, essa casa está cheia de remendos por todo lado. Noah – Por um segundo eu vi sua mãe, minha filha, ela me observava ali. Mayim – (Nervosa) Eu já disse que você precisa tomar os remédios! Noah – Ela sempre desconfia dos meus serviços. Zara – Desconfia? Noah – Desconfiava. Eu sei que não tem nada ali. Eu só me lembrei disso, sabe? Mayim – É melhor ligarmos pra um médico, um médico de verdade. Essa tontura agora... Noah – Eu estou bem. Não se preocupem comigo. Eu estou bem. Só preciso descansar um pouco. Noah saindo.. Mayim – Eu vou contigo Noah. 153
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Noah – Não, fica aí... Eu só preciso de um pequeno sono pra recompor as energias. (Sorrindo) Fica aí com Zara contemplando minha obra de arte. Noah sai. Mayim e Zara olham para o remendo na parede. Sons do temporal. As luzes se apagam. Mayim parece pensativa, entra Zara. Zara – E o pai, não acordou? Mayim – Desde que foi deitar. Zara – Eu só espero que ele não levante de madrugada, senão já viu. (Pausa) Eu vou me deitar também que já está tarde. E com essa chuva que não passa, não tem nada melhor pra fazer. Mayim – Você acredita no que ele disse? Zara – O quê? Mayim – Que viu sua mãe. Zara – Na cabeça dele. Mayim – Eu tenho medo que a doença esteja avançando. Zara – O médico disse que estas confusões estavam sob controle. 154
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Mayim – Mas ele também disse que a qualquer momento tudo podia piorar e muito rápido. Zara – O pai vai ficar bem. Mayim – Eu tenho medo Zara, eu não quero ver o Noah maluco. Zara – É só a gente não descuidar dele. Mayim – Eu espero que sim. Zara – Boa-noite Mayim. Zara sai, Mayim fica pensativa. As luzes se apagam. Sons do temporal.
7° Dia A luz revela novos pontos de corrimento de água nas paredes. Noah entrando com uma carta na mão. Tempo. Ele lê a carta. Noah – (Gritando nervoso) Quem eles pensam que são?! Quem?! (Ele rasga brutalmente a carta) É isso que vocês merecem: virar pó!
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Noah tenta se acalmar, entra Zara com seu avental de cozinha. Zara – O que foi seu velho, pra quê gritar tanto? (Vendo os pedaços de papel na mão de Noah) Da prefeitura? Noah – Não. Zara – Então? Noah – Da justiça Zara. Zara – O quê dizia? Noah – Um monte de absurdos minha filha, absurdos! Zara – Diz pai! Noah – Desapropriados. Zara – Como assim? Noah – Dizia que por questão de segurança maior a defesa civil exige a derrubada desta casa pra construção da tal barreira. Zara – Meu Deus! Quanto tempo nós temos? Noah – (Sorrindo) Todo que quisermos. Zara – Não brinca com isso. Noah – A carta dizia que temos alguns dias, nem lembro quantos, mas nós não vamos sair daqui Zara. 156
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Zara – O senhor está louco. É uma ordem judicial... Noah – Debaixo da chuva! Quanto esforço... Se deram ao trabalho de enfrentar a água pra entregar este maldito pedaço de papel. Zara – Será que nós perdemos o direito à indenização porque não fizemos acordo pai? Nós não vamos ganhar nenhum dinheiro da prefeitura... Noah – Indenização. Dinheiro da prefeitura. Dinheiro que o governo me tomou a vida toda enquanto eu trabalhava dia após dia isso sim. Vão querer me devolver uma migalha disso agora em nome da minha casa, das minhas memórias, não... Não quero saber de dinheiro nenhum. Zara – Pois é, mas a casa vai ser derrubada querendo o senhor ou não. Noah – Você parece que não se importa. Zara – Daqui a pouco não vai ter pano que seque o chão e o assoalho vai apodrecer que nem o teto, as paredes, nem pisar direito nós vamos poder. Esta casa velha só vai 157
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nos trazer desgraça daqui pra frente se não sairmos logo dela. Noah – Zara, minha filha, não fala assim. Não maltrata seu passado, nem da nossa família. Tanta coisa aconteceu aqui. Foi nesta casa que sua mãe e eu fomos felizes tantos anos. Você veio ao mundo debaixo destas telhas. Zara – E foi desta casa que a mãe saiu e nunca mais voltou! Noah – Se ela tivesse ficado aqui dentro não se perderia debaixo da chuva. Zara – Se o senhor tivesse entregado esse terreno desde o início, já tinha barragem, a mãe não tinha... Noah – Você quer dizer que a culpa é minha, filha? Zara – Desculpa. Eu só estou cansada de ver essa gente brigando com o senhor tantos anos. A mãe também não aguentava mais pai! E o senhor com esse orgulho deste monte de madeira velha? Noah – É porque não foi com seu suor que esta casa foi erguida! 158
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Zara – Mas é com ele que eu coloco comida na nossa mesa. Noah – Atrevida! Zara – O senhor vive achando que ainda manda nesta casa, mas sou eu quem cuido de tudo. O senhor e aquela lá não fazem nada, comem da minha comida... Eu quem devia ser a responsável, ter os direitos pra decidir as coisas, ser a dona da casa. Noah – Quando eu morrer ela será sua Zara, não se preocupe. Zara – Do jeito que o senhor é forte vai estar neste mundo muito mais tempo que esta casa velha. Silêncio. Noah – Eu não gostaria de ser um fardo pra você minha filha. Zara – Não foi isso que eu quis dizer. Noah – Mas disse. Zara – É que o senhor às vezes não dá conta da gravidade.
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Noah – Você sabe que eu não tenho dado conta de muitas coisas. Zara – Me deixa ir falar com o pessoal da prefeitura, conversar com eles. Noah – Você vai dizer que nós não vamos sair? Zara – Eu vou dizer que nós vamos vender. Noah – Então é melhor você voltar pro seu trabalho na cozinha. Zara – O senhor quer ver a gente no meio desta mata sem ter pra onde ir? Noah – Deus está conosco. Zara – Sei. (Pausa) E a donzela, onde está? Noah – Se está falando de Mayim, ela ainda não levantou... É cedo, você sabe. Zara – Ah sim, sua esposa não acorda antes das dez não é meu pai? Noah – Você também era uma dorminhoca quando tinha a idade dela. Zara sai. Noah olha para os pedaços de carta. Rasga-os ainda mais. As luzes se apagam. Sons do temporal.
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15° Dia Noah tomando chá e Mayim observando. Mayim – Você mal tocou no prato do almoço. Cansou da sopa também? Noah – Não, a sopa estava ótima, mas eu estava sem fome. Mayim – Mas seu chazinho você tem vontade de tomar, não é? Noah – Ele me acalma, você sabe. Mayim – E por quê você precisa se acalmar? Noah – Eu só estou um pouco preocupado. Mayim – A casa? Noah – Essa chuva que não para! Mayim – Será que o rio vai transbordar? Noah – Parece que todo mundo estava esperando que acontecesse de novo. Mayim – As pessoas daqui estão acostumadas com chuva, todo fim de tarde ela vem... Mas vai embora rápido. Desta vez parece que é diferente, já tem 15 dias. Noah – 15 dias? Parecia mais.
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Mayim – Aqui dentro o tempo não passa, é sempre uma eternidade. Noah veste seu casaco, pega um guarda-chuva e começa a sair. Noah – Eu vou até a cidade. Mayim – Fazer o quê Noah? Noah – Eu volto logo, não se preocupe! Noah sai. Tempo. Entra Zara. Zara – Onde está meu pai? Mayim – Acabou de sair. Zara – E onde ele foi? Mayim – À cidade. Mais não disse. Zara – Debaixo dessa chuva, se ele pega um resfriado, uma gripe... Mayim – Não quero nem pensar. Zara – Velho irresponsável... Nem dinheiro pro remédio nós vamos ter. Mayim – Como estão as encomendas? Zara – Pararam desde ontem; no meio dessa chuva ninguém quer gastar dinheiro e ficar 162
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assim... Ainda mais pra comer sopa com tanta água caindo. Mayim – De fome não vamos morrer. Zara – Tem maneiras bem mais humilhantes de morrer Mayim. Zara sai, Mayim fica preocupada. As luzes se apagam. Mayim e Zara nervosas. Entra Noah confuso. Mayim – Onde você se meteu Noah? Zara – Nós ficamos preocupadas pai! Mayim – Você disse que ia à cidade depois do almoço, e já passam das dez da noite! Zara – Pensamos que podia ter acontecido o pior. Mayim – Fala alguma coisa homem! Zara – Onde você foi afinal? Noah – Eu... Eu fui até a cidade.. Até à prefeitura. Mayim – E então? Noah – Eu não fui atendido, acredita? O prefeito não quis me receber. Zara – Claro, não é pai? 163
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Noah – Me trataram como um velho louco, eu disse que tinha direitos, que queria ser ouvido, mas não adiantou. Mayim – E você? Noah – Eu gritei, bradei, eu fiz um escândalo. Zara – E te expulsaram da prefeitura, não é? Noah – A casa do povo minha filha! Mayim – Noah, você não devia... Zara – Que horas foi isso? Noah – Antes das três da tarde. Mayim – E o quê você ficou fazendo todo esse tempo? Noah – (Confuso) Eu não sei. Saí daquele lugar com tanta raiva, com tanto ódio. Zara – Mas onde você estava? Noah – Eu caminhei. Mayim – Andando por aí debaixo dessa chuva? Noah – Só andei, vendo a cidade que eu ajudei a construir com as minhas mãos, tanta casa que eu fiz e querem tomar a minha. Eu passei pelo velho teatro e acabei entrando. Está completamente abandonado, sem carpete, sem cortina, só o esqueleto do tablado de madeira e de uma ou outra 164
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poltrona. Um teatro fantasma. Goteiras por todo lado, mais de três dedos de água pelo chão, ratazanas procurando alguma comida naquele nada. Você tinha que ver a beleza que era antigamente Mayim, você adoraria! Eu dediquei mais de um ano da minha vida pra levantar aquela obra, eu te levava lá aos domingos, lembra, Zara? Sua mãe também adorava o teatro. Nada mais está no lugar. E eu lembro tão bem da beleza dali, de repente tudo um amontoado de lixo molhado. Eu fiquei lá, sentado olhando pro palco, me perguntando afinal o quê tinha acontecido pra acabar assim? Mayim – Noah... Noah – Minha cabeça começou a ver o que estava na minha memória, e não os escombros. Então fiquei lá, parado no tempo. Zara – Você nos deixou preocupadas! Noah – Eu já estou aqui. Mayim – Eu tive medo, a chuva não para! Noah – Em alguns pontos a mata já está completamente alagada, a cheia se aproxima. Mayim – Meu Deus! 165
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Zara – O senhor precisa se cuidar! Mayim – Vem, vamos tomar um banho quente Noah. Noah – Eu quero meu chá. Zara – Depois pai, depois. Vai com sua mulher, toma um banho, tira essa roupa. Só me falta o senhor pegar um resfriado. Noah – (Constrangido) Me desculpem. Eu não queria deixar vocês preocupadas. Noah e Mayim saem. Zara apreensiva olha pela janela vendo a chuva cair bravamente. As luzes se apagam. Sons do temporal.
22° Dia A luz revela ainda mais filetes de água escorrendo pelas paredes. Noah tomando calmamente o chá, Mayim arrumando alguns papéis. Tempo. Noah – Aalyiah, você pode pegar meu casaco? Mayim o olha assustada e triste. Silêncio. Ele sorri para ela. 166
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Mayim – Mayim, Noah. Noah – (Um pouco confuso) Sim, meu amor, é como você se chama, não é? Mayim pega o casaco de Noah e o ajuda a vestir. Mayim – Cada vez esfria mais, nem parece que estamos onde estamos. Noah – A água refresca, não é minha menina? Mayim – Quase um mês... Eu ouvi no rádio que o rio pode transbordar a qualquer momento Noah. Acho que é melhor a gente sair daqui. Noah – Esta casa está sobre vigas, estamos a salvo. Mayim – De que adianta se vamos ficar presos aqui dentro e a qualquer momento essa casa vai abaixo com a chuva? Noah – Vocês não entendem nada de construção. Mayim – Deixa de ser cabeça-dura Noah. Noah – Além do mais se a gente sair daqui eles derrubam a casa em dois tempos. Não 167
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podemos descuidar, ela só tem a gente pra protegê-la. Mayim – Uma casa velha que não serve pra mais nada. Noah – Você achava esta casa linda quando chegou. Mayim – Mais de dez anos... Noah – Uma menina que você era, uma menina encantadora. Mayim – E perdida. Noah – Veio bater nesta porta pedindo um prato de comida, como pode? Uma menina linda pedindo um prato de comida. Às vezes eu não entendo o meu Deus. Nós te botamos pra dentro e lhe demos um bom prato, de quê mesmo? Mayim – Sopa Noah, sopa. Noah – Isso, e você lambeu os beiços. Eu só te olhando, sem dizer nada. Mayim – Você era calado. Noah – Desde que minha mulher tinha ido eu mal falava com Zara. Você terminou e ficou olhando pra esta casa, disse que era bonita, perguntou pra minha filha quem 168
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tinha construído, e ela disse que fui eu. Você sorriu. Depois ficou tímida de novo. Daí eu resolvi falar. “Se você quiser, pode ficar.” Mayim – E aqui eu estou. Noah – Você ficou porque não tinha pra onde ir. Mayim – Não é verdade. Eu fiquei por vocês. Porque eu senti que podia ser feliz nesta casa antiga. Noah – E foi? Mayim – (Sorrindo) Estou sendo. Noah – Eu pensei que ia ganhar uma filha nova, e terminei com uma esposa. Mayim – Eu só queria ser amada, e amar, só isso. Noah – E do seu filho, você não sente falta Mayim? Mayim – Eu tento não pensar. Eu era muito jovem. Noah – A vida segue. Mayim – Sempre. Noah e Mayim se abraçam emocionados. Tempo. Entra Zara com marca de água em sua roupa na altura dos joelhos, traz compras. 169
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Zara – A água na cidade já chega quase aos joelhos. Falta pouco pro rio encher de vez e ficarmos alagados. A cidade e a mata. O comércio já começou a complicar, tudo muito caro! Mal deu pra comprar uma abóbora, um talo de salsão e meia dúzia de tomates. Se continuar assim logo vai ter gente passando fome. Mayim – Se eu soubesse que você ia fazer compras eu teria ido te ajudar Zara. Zara – Esse nada de comida nem pesa, não se preocupe. Noah – Então hoje teremos sopa de abóbora? É uma das minhas preferidas! Mayim – Só você Noah! Zara – A propósito, eu estive na prefeitura. Noah – (Nervoso) Você o quê? Mayim – Te atenderam? Zara – Eu insisti com o prefeito, pedi desculpas pela confusão que o senhor arrumou lá ontem. Noah – Confusão? Desculpas Zara? Zara – Disse que o senhor anda nervoso, ex-
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pliquei que esses rompantes de humores é coisa da doença e... Noah – Não tem nada a ver com doença nenhuma! Se trata dos nossos direitos, da nossa vida! Mayim – E então, Zara? Zara – Eu fui muito bem atendida. Eles querem nos ajudar pai. Noah – Ajudar em quê? Nos deixando em paz com nossa casa? Zara – Ofereceram uma ajuda em dinheiro, é menos que da última vez, mas paciência. Me prometeram que amanhã mesmo eu posso ir buscar o cheque. Noah – Você não vai a lugar nenhum Zara! Zara – É pro nosso bem, se não pegarmos esse trocado, vão nos botar pra fora só com a roupa do corpo. Mayim – E pra onde nós vamos Zara? Zara – Isso se arruma... O próprio prefeito falou do abrigo municipal. Noah – Abrigo municipal? Nós não somos mendigos, nós temos nosso teto, não vamos
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pra abrigo nenhum, onde já se viu Zara? E você se deixando levar pelo papo deles? Zara – Será só até a chuva passar, depois, com o dinheiro que ganharmos compramos alguma terrinha mais pro interior do Estado, não sei. Mayim – E as nossas coisas, como vamos tirar daqui debaixo dessa chuva? Zara – As coisas vão ter que ficar Mayim... É tudo velho como essa casa. Mayim – Mas são nossas coisas! Noah – Você está bem feliz em ir embora daqui, não é Zara? Zara – Estou! Estou muito feliz! Eu não aguento mais essa casa podre, essa umidade, essa miséria. Essa casa só tem nos feito infelizes, o senhor não vê? Noah – Essa casa é tudo pra mim! Zara – A nova casa também será. Noah – Construir uma nova casa? Na minha idade Zara? Eu vou morrer nesse tal abrigo municipal! Mayim – Não fala assim Noah!
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Noah – E pra você tanto faz onde o corpo do teu pai caia, não é? Mayim – Vocês dois precisam se acalmar! Zara – Eu estou cansada pai, cansada. Noah – Pois então descanse, fora desta casa, onde você quiser. Mayim e eu ficamos. Mayim – Noah... Noah – Nós não vamos a lugar nenhum, nem nós, nem essas madeiras aqui. Noah como se tentasse segurar uma das paredes. Zara – Madeira cheia de buraco, com a água entrando, pingando, molhando. Noah – A água vem do céu, é de Deus, é água benta! Zara – Então essa chuva destruindo tudo é uma benção? Noah – Sobreviver a ela é, e sempre sobrevivemos dentro desta casa! Zara – Está feito pai, eu já assinei o acordo e amanhã pego o cheque. Noah – Mentira! Você está mentindo! Garota atrevida, eu ainda posso te dar uma surra! 173
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Zara – O senhor não pode fazer nada, a não ser se conformar e parar de ser um velho encrenqueiro. Noah – Você não podia fazer, não podia! Mayim – Zara, isso é verdade? Zara – Sim Mayim, eu disse que o pai estava impossibilitado, que qualquer médico confirmaria, e assinei o acordo. Zara entrega um papel para Mayim, Noah toma de suas mãos, lê e o amassa. Noah – (Muito nervoso) Maldição! Zara – É melhor que o senhor não rasgue, esta é só a nossa cópia, eles têm outra. Noah – Quem é você demônio? Eu não reconheço minha filha em você! Zara – Um dia o senhor vai me dar razão, vai ver que fiz o melhor pra gente. Mayim – (Nervosa) Zara! Você não devia ter feito isso sem nos consultar! Zara – Consultar vocês? O pai é um velho louco que não dá o braço a torcer, e você Mayim, não tem que ser consultada pra 174
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nada aqui, essa casa não é sua nem nunca será. Mayim – Seu pai não merece ser tratado assim, como um inválido, como alguém que não pode tomar as próprias decisões! Zara – Mas é isso que ele é. Mayim – Não fala isso! Zara – Vocês dois não fazem nada e querem mandar e desmandar aqui. Chega! Eu cansei de ser a empregada de vocês, enquanto esta casa está caindo sobre nossas cabeças. Eu quem devia mandar aqui dentro, desde sempre. Noah observando pela janela enquanto Mayim e Zara discutem. Mayim – Você não pode falar assim com a gente. Zara – Eu falo como quiser, se você não gosta, vai embora. Sai por aquela porta do mesmo jeito que você entrou: do nada. Mayim – Eu sou a mulher do teu pai. Zara – Claro que é. Mas não é a minha mãe. 175
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Mayim – Se eu fosse a sua mãe... Zara – Você não é mãe de ninguém, nem do próprio filho... Ou do seu irmão, sei lá como você chama aquela aberração. Mayim – Você está sendo cruel Zara. Zara – Não fui eu quem deitou com meu pai. Noah – Zara! Zara – É verdade, ou não? Mayim – Você não faz ideia do quê está falando. Zara – Não banque a vítima, você deitava com seu pai, teve um filho com ele. E depois fugiu sei lá porque, culpa, veio parar aqui na minha casa, tomar o meu pai. Você só queria um velho que te sustentasse, mas não tivesse o seu sangue, não é pecadora? Mayim – (Nervosa, chorando) Bicho. Bicho infeliz. Solteirona. Virgem. Bruxa maldita. Ferida podre. Demônio. Mayim sai. Noah – Mayim... (Para Zara) Você não podia ter faltado com o respeito com ela! Zara – Respeito? Vocês dois não se dão ao res176
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peito. O senhor também, casado com essa menina que tem idade para ser sua filha. Noah – E sua também! Zara – Mas não é nada minha. Noah – É sua madrasta, não é como dizem? E pode ser a mãe de seus irmãos. Zara – Irmãos? O senhor está pensando em ter um filho com esta menina? Noah – Deus me fez homem! Eu posso ter um filho a qualquer momento que eu quiser. Mas você não... Seu tempo já passou. E ninguém te quis. Agora é seca! Zara – É melhor o senhor escolher um ou dois livros que queira levar consigo. Zara arrumando as verduras compradas, Noah volta a olhar pela janela. Mayim entra. Mayim – Nós não vamos. Zara – O quê? Mayim – Nós não vamos a lugar nenhum! Zara – Quem você acha que é? Mayim – Eu moro nesta casa como esposa do teu pai há dez anos. Eu também tenho direi177
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tos. Sobre a casa, sobre ele. E estou dizendo que não vamos a lugar nenhum. Zara – Você só pode estar brincando! Mayim – Não Zara, você me conhece pouco se acha que eu estou brincando. Zara – Pai! Mayim – Nós vamos ficar bem aqui, dentro desta casa. Zara – Pra quê isso agora Mayim, você sempre concordou que era loucura ficarmos aqui. Mayim – Porque seu pai quer ficar e eu lutarei com ele por isso. Você não entende, mas eu amo o Noah. Zara – Amor... Amor... Quero ver esse amor todo quando estivermos na rua, debaixo de água. Mayim – Você não entende porque nunca amou ninguém, nunca teve um homem na vida, nunca sentiu desejo, por ninguém, por nada. Você é só uma pobre infeliz Zara. Zara – Pai! Mayim – Se quiser ir embora, pode ir... Aliás, eu sei fazer uma sopa ótima desde criança!
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Zara – Pai, o senhor não está escutando?! Noah – O rio! Zara – O quê? Mayim – O quê tem o rio Noah? Noah – (Sorrindo) O rio transbordou! As luzes se apagam. Sons do temporal.
23º Dia A luz revela novos filetes de água nas paredes, muitos. O chão já é dominado por dois ou três dedos de água, móveis no alto. Noah tomando chá, ao lado de Mayim. Noah – Perdoe minha filha Zara, o que ela te disse ontem. Ela mal sabe o que é a vida, cresceu dentro desta casa cuidada por mim, e depois cuidando de mim. Não faz ideia do que de fato é o mundo lá fora pra onde ela quer tanto ir. Mayim – Mas ela sabe o que me dói. Noah – Ela não devia...
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Mayim – Falar desta história assim... Ainda bem que Deus a poupou de viver o que eu passei. Noah – Eu? Eu seria incapaz de tocar na minha filha. Mayim – Eu sei Noah. Noah – Eu não sou um monstro como teu pai. (Pausa) Desculpe, mas é verdade, não é? Mayim – Nem sei mais o quê pensar sobre isso. Aquela vida está tão distante agora. É só um passado. Noah – Passado todos nós temos. Futuro só os jovens, como você. Mayim – O que você está dizendo Noah? Noah – Logo será minha hora. Não que eu queira morrer, mas... Eu sei que essa doença a qualquer hora me leva. Ela ou outra qualquer, um resfriado e pronto: o fim. Mayim – A doença está controlada, não sei se é esta tal erva, mas você está bem. Noah – O chá ajuda muito, verdade. Mas você sabe que dizem que ele também destrói os neurônios; retarda os efeitos da doença, mas no fim pode acelerar o processo. 180
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Mayim – Se você voltasse a tomar os remédios! Noah – É só ilusão, eu já sinto dentro de mim que não sou o mesmo. Mayim – Pois pra mim você continua ótimo. Noah – Você já me conheceu velho, não viu o quanto eu era vivo, forte, feliz. Aalyiah sim pegou o melhor de mim. Você, minha menina, teve que se contentar com meus restos. Mayim – Eu amo tudo que você pode me dar Noah. Noah – Eu sinto como se estivesse perdido no tempo. Não falo mais que é pra não preocupar vocês duas, mas eu sei que cada vez as ruínas aumentam na minha memória. Não lembro do que comi ontem e minha vida de 20 anos atrás parece que é agora. Eu tenho medo do dia que olhar no espelho e não reconhecer esta pele enrugada. Ou pior, olhar pra você, pra Zara, e não me lembrar quem são. O esquecimento é uma bomba-relógio prestes a estourar a qualquer momento em minha vida. Eu leio muito à respeito, sabe? 181
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Um homem sem seu passado está morto Mayim. E a cada lembrança que perco é um tanto de mim que se esvai. Eu estou perseguindo a mim mesmo no tempo. Mayim – Você às vezes fala umas coisas, que eu... Noah – Você precisa estar preparada. Mayim – Eu nunca estarei preparada pra te perder. Você é a minha salvação Noah. Meu sentido. Meu destino final. Noah – Só peço que Deus não te desampare, que você não fique sozinha depois que eu for embora, que você não tenha que voltar pra casa do seu pai. Mayim – Nunca. Noah – E que você também perdoe seu filho. Mayim – Quem sabe um dia? Noah – (Sorrindo) Quem sabe um dia? Mayim sorri e beija Noah, e o abraça com carinho. Mayim – Acho que precisamos enxugar o chão. 182
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Noah – Não adianta lutar contra o temporal, depois a água seca, como sempre. Noah volta a tomar seu chá, Mayim olha para o chão sob a água. As luzes se apagam.
24º Dia Zara em silêncio colocando no alto algumas coisas para que não molhem. Entra Noah. Noah – Você precisa de ajuda minha filha? Zara – Não, não é necessário. Noah – Sabe, eu estive pensando muito. Zara – É o que o senhor faz de melhor, não é? Noah – O quê será de você depois que isso tudo passar? Zara – Isso tudo o quê? Noah – O temporal e eu. Zara – O senhor não vai morrer. Noah – Ah, eu vou sim. Você banca a durona, mas eu sei que isso te apavora. E não é tanto por mim, mas por você ficar sozinha. 183
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Zara – O senhor também logo vai me abandonar, não é? Como ela... Minha mãe. Noah – Os pais vão antes dos filhos, é a ordem natural de Deus. Zara – Só que os filhos costumam ter seus filhos. Noah – Você não me deu um neto, verdade. Mas me deu muito mais. Me deu sua vida. E eu sou grato por isso. Mesmo que não pareça. Zara – Eu só quero o melhor pros seus últimos dias. Noah – Só preciso ficar dentro desta casa. Zara – A água já cobre tudo. Noah – Muito provavelmente no próximo verão você não estará aqui. Eu já terei ido embora e você poderá fazer o que quiser com esta casa, que eu sei que é velha, que está caindo aos pedaços, só um monte de madeira impregnada de velhas lembranças. Zara – A mãe sempre gostou desta casa. Noah – E foi por ela que eu lutei pra não derrubarem desde sempre. Aaliyah fingia que queria ceder às pressões, ir embora, mas ela 184
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morreria se saísse daqui. E foi o que aconteceu naquela noite. Nós nos conhecemos crianças brincando no forte. Zara – Eu já conheço esta história pai. Noah – Sei que sim. Mas eu quero lembrá-la. Você me escuta? Zara – É claro. Mayim entra e para ouvindo o que Noah diz. Noah – (Muito apaixonado) Nós morávamos perto do forte e nossos pais não eram amigos, sei lá quantas vezes podemos ter nos cruzado sem darmos conta. Numa manhã uma das minhas bolinhas de gude rolou até bater em seus pequenos pés descalços. Nós não tínhamos ainda 15 anos. Aaliyah sorriu esticando em minha direção sua mão com a bolinha verde da cor de seus olhos. Naquele momento eu entendi o que era uma porção de palavras de que tinha ouvido falar: beleza, encanto, amor! A mãe dela lhe gritou para voltar pra casa, eu perguntei como se chamava e ela disse Aaliyah, ou o nome que quiser 185
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me dar. Esposa, eu disse. Sim, minha mulher. Eu vou me casar com você e construir uma casa onde seremos felizes pra sempre! Ela foi embora rindo e não demorou para nos reencontrarmos dia após dia naquele forte e um dia meus lábios encontraram sua boca e eu a pedi em casamento. Foi então que comecei a construir esta casa, atravessando noites quentes, enfrentando as chuvas e erguendo esta morada com a mais bela vista para o rio. Eu prometi à Aaliyah que a faria feliz em todos os dias, mas nem sempre pude cumprir minha promessa para sua mãe, a mulher que eu mais amei nesta vida. Mayim muito triste sai sem ser vista. Zara sorri e abraça seu pai emocionado. As luzes se apagam. Sons do temporal. Mayim, vestindo um penhoar, segura o livro que Noah lia em outra cena. Tempo. Entra Zara, também vestida para dormir. Zara – Mayim? O quê você faz acordada a uma hora dessas? 186
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Mayim – Não consigo dormir. E estava aqui: pensando. Zara – Como o pai. Mayim – Como ele. Zara senta-se ao lado de Mayim e vê a capa do livro. Zara – A mãe adorava esse. Mayim – Mesmo? Zara – Era seu romance preferido. Mayim – Então por isso Noah o lê tanto? Zara – É natural, lembra-se dela com a história. Mayim – E você já leu? Zara – Não, não tive tempo ainda. Mas se você ler me conte o que acontece de tão bonito nessa história. Mayim – E meu romance preferido, será que ele lê? Zara – Você está viva e bem aqui, ele não precisa de um livro pra se lembrar de você. Mayim – Mais cedo eu o ouvi contando a história de como conheceu sua mãe. 187
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Zara – Aquilo? Ele me conta essa velha história toda semana. Mayim – Ele nunca me contou. Zara – Delicadeza provavelmente. Mayim – Enquanto ele falava eu via em seus olhos amor, como nunca vi na minha frente. Zara – Então esse é o problema? Mayim – Eu gostaria que ele sentisse por mim metade que fosse do amor que tem por Aaliyah. Zara – Ele sente outro amor por você, completo. Você não vai competir com uma morta, vai? Aceite seu lugar, que é ao lado dele, agora. E deixe-o lembrar do que quiser, ele não terá muito mais tempo disso, você sabe. Mayim – Eu só queria que esta doença o fizesse esquecer-se dela! Zara – O médico disse que não se tratava de memória seletiva, que ele esqueceria das coisas que pode, e o que lhe restaria seriam aquelas lembranças das quais ele não poderia se desapegar. Minha mãe é uma delas. Mayim – E nós duas? 188
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Zara saindo. Zara – Eu espero que também sejamos: inesquecíveis. Mayim – O que fez ela sair de casa naquela noite? Zara para. Zara – Pergunte a ele. Mayim – Há dez anos eu pergunto e há dez anos ele não diz. Zara – Então por quê eu faria isso? Zara sai. Mayim fica pensativa enquanto olha para a capa do livro. As luzes se apagam. Sons do temporal.
31º Dia Noah tomando seu chá, Mayim a sua frente e Zara descascando batatas. Mayim – Tem hora que a gente até esquece. 189
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Noah – Do quê? Mayim – Da água que cobre nossos pés. Noah – Ah, isso? Zara – Um mês desde que essa chuva começou. Mayim – Parece que sempre choveu. Noah – Deus está lavando o mundo. Mayim – E maltratando essa terra, não é? Zara – Quanto tempo falta pai? Noah – Meu joelho ainda dói, parece que vai chover um pouco mais. Zara sai levando as batatas. Mayim – Noah... Noah – O que foi minha menina? Mayim – Quando chove você lembra dela? Noah – Eu sempre lembro de Aaliyah. (Pausa) Assim como sempre lembro de você. Mayim – Você confia em mim? Noah – Em você e Zara, mais ninguém. Mayim – Então por quê? Noah – Por quê o quê? Mayim – Ela se foi. 190
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Noah – As águas. Mayim – Por quê ela saiu de casa mesmo embaixo de chuva? Noah – Ela era corajosa. Mayim – Você nunca fala sobre isso, sempre foge quando eu pergunto. Noah – Não. Só não há mais nada que ser dito. Mayim – Eu respeito seu silêncio. Noah – Eu sei que sim. Mayim – Mas gostaria de saber. Quando você estiver pronto pra contar. Mayim sai. Noah toma seu chá reflexivo. As luzes se apagam. Sons altos do temporal. Luz de raios e trovões, num clima de sonho começa a chover dentro da sala da casa, Noah se apoia em algum móvel, perdido no caos. Noah – (Gritando) Aaliyah onde está você? Volta! Eu não me recordo do seu rosto. Como posso te encontrar na minha lembrança se não sei quem você é? Só tenho esse sentimento encharcado que é amar, 191
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essa bússola que me guia, mas seus ponteiros parecem quebrados agora como um velho relógio. Onde você se meteu na minha memória? Eu preciso lembrar! Lembrar de tudo. Só assim eu estarei vivo. Será que morrer é isso Aaliyah? Esquecer? Que eu esqueça de tudo, abro mão da única coisa que um homem tem que é seu passado, não me importo. Mas você, não posso perder no caos do esquecimento. Volte meu amor, volte pra mim. Quando você me deixou? Foi ontem ou há um ano? Ou foi noutra vida? O tempo é feito de água escorrendo pelas paredes, eu tento pará-la na superfície, mas ela escorre entre meus dedos inundando tudo: o tempo. E eu já não sei quem eu fui. Só que te amei. Temporal desabando... É o tempo confundindo tudo e te levando cada vez mais pra longe de mim. Sons do temporal cada vez mais forte. A voz de Mayim chamando Noah. Mayim – Noah? Noah? Noah? 192
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As luzes se apagam. Noah dormindo. Mayim chamando por ele. Mayim – Noah? Noah – (Acordando) Aaliyah? Mayim – Eu me pareço com ela? Noah – Não sei. Mayim – O quê é isso agora? Noah – Eu acho que ela quer que eu a encontre. Mayim – Esse seu chá... Noah – Que horas são? Mayim – De que adianta saber? Não temos compromisso nenhum até que passem essas chuvas. Noah – E Zara? Mayim – Sua filha já foi se deitar. Noah – Já é tarde. Mayim – Vem, vamos para o quarto. Noah – Eu já vou. Mayim – Não demore. Mayim sai. Noah pensativo por um momento, então procura em gavetas e dentro de livros, até 193
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encontrar uma foto para a qual olha com surpresa e atenção, emociona-se. As luzes se apagam.
40° Dia Noah tomando seu chá, Zara entra. Noah – Bom dia, Zara. Zara – Cinza como todos os outros. Noah – E devemos ser gratos por estarmos neles. Zara – Mayim disse que o senhor pegou no sono aqui ontem. Noah – Um cochilo. Zara – Ela acha que é por causa do chá. Noah – É que ela fica impressionada com as coisas que falam por aí. Zara – Então por que o senhor o está tomando desde que acordou? Noah – Você não entenderia. Zara – Diz... Noah – Estou tentando encontrar sua mãe. Zara – Como assim?
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Noah – Na minha cabeça. Estou tentando encontrar sua mãe em meus sonhos. Eu senti que estive com ela ontem, mas não me lembrava do seu rosto. Agora sim posso vê-la. Zara – Mayim está certa, esse chá está enlouquecendo o senhor. Noah – Chá ou doença, antes ou depois, a loucura ia chegar de qualquer forma, não é? Zara – O senhor me deixa preocupada, com medo. É melhor chamar alguém. Noah – (Sorrindo) Quem virá da cidade no meio dessa chuva? Zara – Vou chamar Mayim. Noah – Deixe-me em paz, faça este favor a seu velho pai. Zara sai. Tempo. Mayim entra. Mayim – É horrível. Noah – O quê? Mayim – Eu fui até a varanda. Noah – Não são vocês que dizem que ela está prestes a se soltar da casa? 195
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Mayim – Eu fui até a varanda e pude ver melhor. Noah – O quê? Mayim – O lado de fora Noah. Lá embaixo a água engoliu tudo, o rio virou um sem fim, só as copas das árvores aparecendo, um monte de animal morto boiando, algumas pessoas passando em barco, jangada, as casinhas do pessoal que morava lá na frente sumiram completamente, é como se nunca tivessem estado ali, como se aquela vila nunca tivesse existido. Noah – Eu avisei a essa gente, sempre falei que as casas perto do rio precisavam ser construídas aqui junto ao morro e mesmo assim, bem suspensas. Mas ninguém me ouviu. Mayim – (Apreensiva) Só na varanda eu comecei a me perguntar se essa chuva está caindo nas cidades vizinhas. E se acontece alguma desgraça? Noah – Você está preocupada com ele, não é? Seu filho. Mayim – Eu não quero que ele morra. Noah – Com Deus ele estará melhor que com o pai dele. 196
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Mayim – Não diz uma coisa dessas. Ele é uma criança, precisa viver, conhecer o mundo quando ele estiver seco. Noah – Talvez você deva ir ao encontro dele se assegurar que ele está bem. Mayim – Não, isso não. Noah – Se você seguir por cima do morro da casa e depois conseguir um barco que te dê carona até a cidade você consegue chegar lá. Zara entra. Zara – Deu no rádio que tem não sei quantos desabrigados aqui na região, que estão levando pra cidade para se juntarem com os outros tantos que tem por lá. Já tem gente de fora fazendo doação. Pediram pra quem puder ajudar. Mayim – Nós podíamos fazer alguma coisa, ajudar de algum jeito. Zara – E a nós, quem ajuda? Noah – Podíamos receber aqui em casa essa gente que ficou sem teto. 197
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Zara – Seria desumano. Mayim – A ideia é generosa, mas Zara tem razão, seria uma irresponsabilidade, nós já estamos correndo risco aqui. Noah – Deus sabe o que faz. Zara – Esse teu Deus meu pai. Mayim – A enchente se alastrou até aonde Zara? Noah – Fica calma menina. Zara – Foi por dentro da mata, chegou até às cidades vizinhas. Mayim – Até aonde? Zara olha sem jeito para Noah. Zara – A sua cidade é uma das mais abatidas pela chuva. Sons do temporal. As luzes se apagam. A casa tem vários pontos onde a água escorre pelas paredes, molhando tudo. O chão já é dominado pela água. Noah toma de forma apreensiva seu chá. Entra Zara, bastante nervosa.
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Zara – E Mayim? Silêncio. Noah – Está lá fora. Zara – Ainda? Noah – Logo ela voltará. Zara – E o senhor vai ficar aqui simplesmente esperando ela voltar? Noah – O quê você quer que eu faça minha filha? Zara – Com este temporal... Tudo está inundado por aí. Noah – Ela está bem. Zara – O senhor não viu pelas janelas o estado em que as chuvas deixaram a cidade? Noah – Logo Mayim vai voltar. Zara – Ela pode ficar presa em algum lugar. Noah – Ela sempre voltou pra casa. Zara – Morrer afogada num córrego qualquer. Como minha... Noah – (Gritando) Ela está bem! Já disse! Zara – O senhor não quer aceitar... Noah – Vamos, sente-se aqui comigo, tome 199
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o chá ainda está quente. (Pausa) Vamos esperar que ela volte. Noah visivelmente apreensivo serve uma xícara de chá. Zara – Aquela menina, ela não estava aqui da outra vez, não imagina como pode ficar essa cidade quando há um temporal destes. Noah – Você quer açúcar minha filha? Zara o olha com repreensão. Zara – Velho louco! Zara veste um casaco. Noah – Aonde você vai? Zara – Tentar encontrar sua esposa. Zara saindo, Noah fica apreensivo, sente um aperto em seu peito, tontura. Noah – Ai! 200
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Zara – O que foi pai? Noah – Nada minha filha. Nada. Só estou um pouco cansado. Zara – Eu volto logo! Noah – É perigoso, você não vê? Zara – Eu vou pedir o barco do vizinho e vou procurá-la. (Pausa) Eu volto logo! Zara sai. Noah – (Gritando) Zara! (Pausa, aperto no peito, ele senta-se) Eu não posso perder minhas três mulheres para suas águas meu Deus. As luzes se apagam. Noah lendo o livro das cenas anteriores, para e balbucia uma oração. Tempo. As luzes se apagam. Sons do temporal. Noah está visivelmente nervoso, apreensivo, bebendo chá. Tempo. Surge Mayim completamente molhada. Noah parece não acreditar no que vê, tempo de silêncio e tensão entre os dois. Noah – (Deslumbrado) Você! Mayim – Noah! 201
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Noah – Você voltou pra mim... Mayim – Eu pensei que não conseguiria meu amor. Noah – Senti tanto sua falta. Mayim – Eu tive medo de nunca mais te ver, fui resgatada por uns bombeiros. Noah – (Apaixonado) Aaliyah! Mayim se aproxima de Noah que está muito agitado. Mayim – (Preocupada) Não... Noah – Eu sabia que um dia as águas te trariam de volta. Mayim – Noah, eu... Noah – Quanto amor eu guardei pra esse dia Aaliyah. Mayim – (Nervosa) Eu não sou Aaliyah! Silêncio. Noah desconfiado, sente-se tonto, se apoia em um móvel, Mayim o ajuda. Noah – Eu... Te esperei todos esses anos. Aguardei todos os dias seu retorno. Sobrevivi para 202
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te encontrar de novo. As pessoas diziam que eu era louco, e eu fingi que tinha te esquecido. Mas não. Eu não deixei de pensar em você Aaliyah. Mayim – (Chorando, nervosa) Eu sou Mayim! Noah a olha e sorri. Noah – Que brincadeira é essa? Você pensa que eu confundiria seus olhos verdes, essas esmeraldas que te iluminam o rosto? Mayim – Eu não tenho os olhos verdes. São castanhos, vê? Eu não sou quem você pensa. Noah! Eu sou Mayim, seu amor. Noah – Não, meu amor é você Aalyiah! Mayim – Você está delirando... Quanto de chá você tomou? Noah – Você também quer? Está forte como eu gosto. Noah servindo uma xícara de chá. Mayim – Noah, me olha, vê quem eu sou. Noah – A mãe de minha filha Zara. 203
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Mayim – (Gritando nervosa) Não! Você enlouqueceu de vez? Eu sou, Mayim! Noah toma um pouco do chá,sente-se mal, deixa a xícara cair no chão. Noah – Eu... Mayim acode Noah. Mayim – Você está bem Noah? Noah olhando nos olhos de Mayim. Noah – (Doce) Diz que você tem os olhos verdes. Mayim se afasta, muito nervosa, chorando. Mayim – Noah... Noah – (Nervoso) Diz! Por favor... Diz que eu não estou louco! Mayim acaba assentindo com a cabeça. 204
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Mayim – Meus olhos... São verdes meu amor. Noah – (Sorrindo) Como esmeraldas. Mayim – (Chorando) Sim... Como esmeraldas. Noah – E qual é seu nome meu amor? (Pausa. Mayim muito abalada, nega) Diz seu nome, o mais lindo de todos. (Pausa. Gritando) Diz! Mayim – (Ressentindo) Aaliyah. Noah – Aaliyah? Mayim – Sim. Noah – (Sorrindo) Então é mesmo você? Mayim – (Chorando) Sim, sou eu meu amado Noah, sua Aaliyah. Noah e Mayim a distância se olham. Noah – Você! Noah vai na direção de Mayim para abraçá-la, mas uma tontura o faz cair no meio do caminho, Mayim vai acudi-lo. Mayim – Noah! 205
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Noah fica nos braços de Mayim, ambos no chão, no meio da sala. Noah – Aaliyah meu amor, eu estou tão cansado. (Pausa) Você veio para me levar? (Pausa. Mayim, nervosa, assente com a cabeça. Noah sorri) Eu sabia que você cuidaria de mim... (Pausa, nervoso) Mas quem vai cuidar das minhas meninas? Zara, nossa filha já é uma senhora, mas precisa de seu velho pai, eu sei. Ela ficará bem? (Crescendo no nervosismo) E Mayim? Você não a conheceu... Mas é uma jovem adorável, que me ama muito. Mayim – (Entre lágrimas) Eu sei. Noah – Mayim ficará bem sem mim Aaliyah? Mayim – (Sorrindo) Sim, ela ficará bem Noah. Noah – Então eu posso ir em paz contigo, meu amor. Noah sente um aperto no coração. Mayim beija-lhe os lábios. Ele morre em seus braços. Mayim chorando, acaricia o rosto de Noah. 206
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Tempo. Ouvimos a voz de Zara e então a porta é aberta, é ela carregando um grande remo de madeira. Zara – Não a encontrei meu pai... (Ela entra, sem notar os dois, fecha a porta e carrega com dificuldade o remo) Mas logo vou sair de novo, parece que a chuva está finalmente parando de cair e... (Então nota Mayim e Noah) Mayim. (Ela joga o grande remo no chão e corre para Noah, muito nervosa) Meu pai! Noah, meu pai! Velho? Pai! Zara ao lado de Mayim, as duas ficam com Noah em seus colos. Mayim – Ele... Zara – Como ele estava na hora? Mayim – Alucinado com o chá. Zara – Boa alucinação? Mayim – A que ele mais desejou ter. Tempo.
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Zara – E seu filho? Mayim – Ele está bem, eu consegui vê-los de longe no abrigo, reconheci meu pai. Tempo. Zara – A mãe saiu naquela noite porque... Mayim – (Interrompendo) Eu não preciso saber. Tempo. Zara – Precisamos organizar as coisas. Mayim – Como vamos conseguir enterrá-lo debaixo dessa chuva? Zara – Podemos amarrá-lo a pedras e afundálo no rio. Mayim – Entregar seu corpo às águas como ela? Tempo. Zara – A chuva está passando. Mayim – Já faz quantos dias que começou? 208
primeiras obras
Zara – Quarenta. Tempo. Mayim – O quê nós vamos fazer agora sem Noah? Tempo. Zara se levanta e pega as ferramentas de Noah, começa a martelar um remendo de madeira na parede. Olha para Mayim. Zara – É preciso consertar nossa casa. Você não vai me ajudar? Mayim beija a testa de Noah e sorri. Levanta-se, pega ferramentas e se junta a Zara, martelando outro remendo. Sons do temporal cessando. As luzes se apagam. Fim
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Três T3mpos
1 O brinquedo pra dois. A Mulher espera. Mulher – Quanto tempo? Muito. Muito tempo. Porque eu fui embora? Porque eu voltei? Saudade. O Homem entra em cena, os dois se olham por um momento. Mulher – Você está diferente... Homem – Você continua igual... Mulher – Os anos. Homem – A menina mais linda. Mulher – Não sou mais uma menina. (Pausa) 211
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Eu pensei que você não viesse, eu estou te esperando há horas... Homem – Eu te esperei por uma vida toda. Mulher – Vindo pra cá eu pensei que encontraria a mesma paisagem que existe na minha memória. E olha só, nada é como antes... Os prédios, o asfalto, o barulho. Isso aqui está completamente destruído. (Pausa) Começou depois que eu fui embora? Homem – Não. Você ainda estava aqui, mas naquela época não dávamos conta. Mulher – Tudo agora é cinza. Prédios e rostos. (Pausa) Tudo é morto. Homem – O tempo muda as coisas. Mulher – Nem todas, as pessoas não. Homem – Elas principalmente. Silêncio. Mulher – Este brinquedo velho continua aqui! Homem – Disso eles ainda não se livraram. Mulher – Um pouco enferrujado... Homem – O que você tem feito? 212
primeiras obras
Mulher – Vivido. Homem – O que você tem vivido? Mulher – Histórias. Minhas histórias. As histórias que invento pra mim. Homem – E como você ganha dinheiro? Mulher – Histórias... Eu escrevo. Homem – O quê? Mulher – Livros. Homem – Lembra dos versos nos pedaços de papel? Mulher – Como se fosse possível esquecer. Homem – Em qualquer papel, por menor que fosse, do quê fosse, papel de bala... Você escrevia uma poesia. Dizia que... Mulher – “É minha forma de preencher o vazio, pintar o branco, embelezar o mundo.” Homem – Dizia. Era lindo. Mulher – Não escrevo mais poemas. (Silêncio) Escrevo romance de banca de jornal, prosa barata... Invento sonhos para vidas miseráveis. E ganho assim algum dinheiro. Homem – Por quê você deixou de escrever poesia? Mulher – Há espaço para ela agora? 213
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Homem – Não há espaço para muita coisa. Mulher – É difícil tentar ver poesia, acreditar nela, sê-la. Homem – Por que você foi embora? Pequeno silêncio. Mulher – Você continua como professor, não é? Homem – Me especializei em Literatura. Foi a forma que encontrei. (Pausa) De estar um pouco mais perto, de você. Mulher – Eu te encontrei por intermédio da universidade, sua mãe deve se orgulhar de você. Homem – Ela morreu. (Pausa) Faz tempo. Mulher – Quanto? Homem – O suficiente para eu não chorar mais. Mulher – Lamento. Homem – As pessoas morrem, não é? (Pausa) Nada é para sempre. Mulher – Para sempre, nada... Para sempre é tempo demais. A última vez que escutei isso foi de um padre: “unidos para sempre”! 214
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Homem – Felizes para sempre só nas histórias, não é? Mulher – Não nas que eu vivo. Silêncio. O Homem procura as palavras. Homem – Eu senti tanto, a sua falta. Por quê você foi embora? A Mulher olhando para o brinquedo. Mulher – (Sorrindo) Vamos brincar? Silêncio. Os dois sobem no brinquedo. A Mulher faz algum movimento diferente, o que dá um tranco no Homem que cai. Homem – Você tinha razão, tem coisas que não mudam. Mulher – Saudade de você. O Homem vai até a Mulher que está sentada no brinquedo, cobre seus olhos. Há uma elipse de tempo, os dois estão jovens. 215
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Homem – Adivinha quem é... Mulher – O homem que mais gosto na cidade, no mundo, no universo! Homem – Desculpe o atraso. Mulher – Você sempre se atrasa. Nunca na hora certa, nunca. Homem – Eu fui pegar uma coisa para você. Mulher – O quê é? O Homem dá à Mulher uma flor, ela pega, sorri em agradecimento e brinca distraidamente de bem-me-quer e malmequer. Homem – Desde que eu te vi. Naquela fila... Atrás de outras mulheres. Todas esperando sua vez. Haviam mais bonitas, mas o que isso importava? Foi por você que senti aquela coisa estranha dentro de mim. Os minutos parados, suspensos. Tudo desapareceu, só eu e você num espaço vazio. Presos na eternidade de um segundo. E foi aí que eu descobri que... (Pausa) Eu te amo. Mulher – (Falando alto ao arrancar a última pétala) Malmequer. 216
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O Homem arranca a flor da mão da Mulher que está desolada, ele a beija, e se afasta. Tempo. A Mulher corre até o Homem e lhe dá um beijo demorado. Ao terminarem, ambos estão de volta ao presente. Mulher – Eu não devia ter feito isso. Homem – Está tudo bem. Mulher – Isso é passado, não está acontecendo agora, não pode mais acontecer, agora. Homem – Eu quero. Mulher – Eu não. Homem – Mentira. Mulher – Foi uma lembrança, só isso. Rapidamente no passado. Homem – Eu te amo. Quero passar o resto dos meus dias ao teu lado. Você aceita? A Mulher confirma com a cabeça, caminha na direção do Homem, para. De volta ao presente. Mulher – Lembrança. 217
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Silêncio. Homem – Bons tempos. Mulher – O passado não volta. Homem – Devia. Mulher – Isso aconteceu há quanto tempo? Homem – Sabe, as únicas lembranças que eu pude me apegar foram os poemas que você escreveu. A gente precisa se apegar em alguma coisa, não é? E as lembranças... Você devia voltar a escrever poesia. Devia voltar. Mulher – Eu acho que não consigo. Homem – Voltar é sempre difícil. Mulher – Partir é mais, acredite. Homem – Por que você foi embora? Mulher – Obrigado por você ter vindo até aqui. Homem – Você me trouxe. A Mulher se senta no brinquedo e gira, sozinha. Mulher – Você podia ter recusado. Homem – Você gosta mesmo deste brinquedo, não é? 218
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Elipse de tempo. No passado. Mulher – Negaram o livro. Homem – São uns ignorantes, você é ótima. Mulher – Foi a quinta editora. Homem – Mas a sexta, você vai ver, a sexta... Mulher – Não vai ter sexta. Homem – Não desiste. Mulher – Desde que te conheci a minha vida melhorou muito. (Pausa) Mas meu trabalho está cada vez pior. Homem – Isso quer dizer alguma coisa? Mulher – Não sei, sinceramente não sei. Homem – Eu te amo. Elipse de tempo, no presente. Mulher – Ainda? Homem – Nunca deixei de te amar. Mulher – Eu acho que você é quem estava certo. Homem – Em quê? Mulher – As coisas mudam, tudo muda, se transmuta. 219
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Homem – Por que você mudou de ideia? Mulher – Agora, neste momento, pensando em quem fui, quem eu sou e quem serei. Homem – Você continua pensando só em você mesma. (Pausa) Talvez você se ache tão fascinante, que não consegue desviar o olhar do espelho. E mesmo quando alguém te suplica você não sabe olhar. (Pausa) Eu sempre lidei bem com isso. Mulher – Eu não. Homem – Você quer falar, tem certeza que você quer falar? Mulher – Eu vim até aqui para fazer isso. Mas é tão difícil. Homem – Talvez se você sair da superfície. Mulher – Eu estou afogada, em mim mesma, há muito tempo. Homem – Por que você foi embora? Uma elipse de tempo para o passado. A Mulher parece chegar, os dois brigam. Mulher – Eu não te devo explicações. Homem – Você me deixou sozinho daquele 220
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jeito, eu te procurei em todo lugar, e você aqui? O que está acontecendo? Mulher – Eu não sei, não me peça explicações. Eu não me entendo, não queira você entender. Homem – É outra pessoa? Mulher – Não é ninguém. Homem – Então por que você me deixou sozinho? Mulher – Para de achar que tudo gira em torno de você, eu não “te” deixei sozinho, eu sai de lá por mim, porque precisei. Em nenhum momento pensei em você. O Homem tenta disfarçar o sentimento de humilhação. Homem – Você sabe que horas são? Mulher – Três da manhã? Cinco da tarde? Dez da noite? O que isso importa? Homem – Eu quero te ajudar, me deixa te ajudar. (Pausa) Eu te amo. Mulher – Se você quer me ajudar para de dizer que me ama. 221
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Homem – Eu não posso fazer isso. Mulher – Por que você entrou na minha vida? Quem te convidou? Quem te deu a chave? Porque eu não fui, não. Eu estava vivendo as histórias que eu queria viver, eu não queria viver a minha história, porque você me fez viver? Me deixa morrer. Me deixa. Homem – Escreve. Escreve isso em um poema. Escreve o que está sentindo. Mulher – É impossível, eu não consigo, eu não posso escrever... Viver isso é forte demais para escrever. Tem coisa que não dá para falar, nem escrever, nem nada... Homem – Vamos voltar? Mulher – Você vai me prender de novo. Homem – Eu, nunca... Mulher – Eu preciso ficar livre de você. (Pausa) Eu preciso ficar livre do amor. Homem – Eu te amo. Mulher – Adeus. A Mulher se vira. Elipse de tempo, eles estão no presente.
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Homem – Por quê? Mulher – Não sei. Homem – Eu não chorei. Mulher – Você lembra de quanto tempo faz? Homem – Por quê? Mulher – Aquele tempo. Tão triste. Devia ser feliz, devia, como no início. Mas não foi. E eu não conseguia suportar, não conseguia me suportar, o lugar, as pessoas, você. Homem – Eu tive medo de que nunca mais fôssemos nos ver. Mulher – Nunca mais nos vimos. Silêncio. Os dois se abraçam. Mulher – Eu tive medo de te perder. O Homem se desprende. Homem – Eu te perdi. Mulher – Eu te amo. Homem – E isso importa? Silêncio. 223
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Mulher – Você não me ama. Homem – Eu nunca te esqueci, eu não vivi presente nenhum em todo esse tempo, minha vida foi feita só das suas lembranças, até você voltar. Mas... Mulher – Eu vou embora. Homem – Espera. (Pausa) De novo não. O Homem entrega os poemas da Mulher em pedaços de papel envelhecidos. Ela os olha com carinho, em seguida os joga no chão, e senta-se no brinquedo, olha para o Homem. Mulher – Vem, mais uma vez. Eu prometo que não te derrubo. O Homem senta-se no brinquedo. Os dois brincam um tempo em silêncio. Mulher – Preencher o silêncio de palavras ditas é tão mais difícil que preencher um papel com palavras desenhadas. Homem – Você não conseguiu mais escrever nenhum poema? 224
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Mulher – Não. Homem – Tenta pensar num, agora. Mulher – Como? Homem – Sobre o quê você sentiu, o quê está sentindo. Mulher – Como falar das coisas que desconheço o nome? Homem – Não sou eu que vou te ensinar a fazer poesia. Silêncio. A Mulher em silêncio, tenta começar a falar, para, olha para o lugar, o brinquedo, e finalmente o homem. A Mulher declama o poema que acaba de criar, procurando as palavras certas. Mulher – Tempo enganado Que me diz que é passado O que quero aqui, a teu lado Tempo enferrujado Onde giro eternamente em torno de mim mesma Me perdendo nesse limbo pra mais além ser teu achado Tempo morto 225
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Destruído, vazio, parado, empoeirado. Tempo tem pó Tem você Volto me revolto. Antes. Agora. Depois
Silêncio. Mulher – É primário... Homem – É lindo. Mulher – Há quanto tempo eu não fazia uma poesia? Homem – Antes de me deixar... Mulher – Eu me deixei junto com você. Homem – Não pensou em mim quando tomou sua decisão. Mulher – Você não atendeu o meu chamado. Homem – Eu não pude, minha vida estava... Mulher – Eu tive que buscá-lo para vir. Homem – O tempo passou, ainda mais. Mulher – Fala de novo o que um dia eu te pedi que calasse. Homem – Quem não pode agora sou eu. Mulher – Fala. 226
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Homem – Isso importa? Mulher – Eu vim até aqui para ouvir. O passado funde-se ao presente. O Homem dá à Mulher uma flor, ela pega, sorri em agradecimento e brinca distraidamente de bem-me-quer e malmequer. Homem – Eu te amo. Mulher – (Falando alto ao arrancar a última pétala) Malmequer. O Homem arranca a flor da mão da Mulher que está desolada, ele a beija, e se afasta. Tempo. A Mulher corre até o Homem e lhe dá um beijo demorado. Desfazem o beijo aos poucos.
2 Duas janelas para o horizonte. O Homem e a Mulher se encontram. Homem – Eu não sei porque eu vim. Mulher – Por mim? 227
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Homem – Então é aqui que você vive agora? Mulher – Aqui. Homem – É amplo. Mulher – Vazio. Homem – Pensei que você fosse trazer mais gente. Mulher – Só quem eu quis. Homem – Aqui é bonito. Mulher – A paisagem lá fora é bonita. Eu tenho passado muito tempo olhando pra ela, contemplando-a dia após dia. Vendo as coisas mudarem até que eu nem lembre mais de como elas eram antes. Homem – É estranho como a gente se apega ao passado, não é? Mulher – Ou como só planejamos o futuro. Silêncio. Homem – Eu não podia ter vindo. Mulher – Você está aqui, agora. Esquece. Homem – Esquecer. Foi pra isso que me trouxe até aqui?
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Mulher – Não! Foi justamente pra não te esquecer. Homem – Por que não pegou uma foto? Mulher – As fotos amarelam com o tempo. Homem – Eu podia ter te mandado uma foto recente. Mulher – Estou mal. Homem – Você está bem, muito bem. Mulher – Como você pode saber? Homem – Eu estou vendo daqui. Mulher – Você vê a carapaça, a pele, os cabelos. E por dentro? E o que levo dentro? Homem – O que você... Mulher – (Interrompendo) Dor. É o que sinto. (Pausa) O corpo não, ele está inteiro, mas dentro de mim há a ausência de alguma coisa. Eu sinto falta de algo que nem sei o que é. (Pausa) Pensei que pudesse ser de você. Homem – Tanto tempo e de repente você me traz até aqui pra contar o que sente. Mulher – Me ajuda. Homem – Eu não devia ter vindo, não mesmo. Mas alguma coisa me trouxe até aqui. 229
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A Mulher se aproxima do Homem. Mulher – Está doendo, é como uma farpa no meu coração fazendo sangrar. O Homem se afastando. Homem – Arranca. Mulher – Às vezes eu penso que preciso da dor. Homem – Ou do incômodo. É pra isso que eu estou aqui, pra te incomodar. Mulher – Eu não sei o que fazer agora. Passei todo esse tempo presa à sua lembrança, a não me deixar esquecer de você, e agora você está aqui. Não preciso mais fechar os olhos pra ver, você está aqui. Homem – O que está acontecendo com você? Eu não entendo... Mulher – Você não precisa entender, mas me ajuda. Homem – Você precisa de um médico. Mulher – Ele não vai poder me dar aquilo que preciso. 230
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Silêncio. Mulher – Por que você sumiu? Homem – Passou muito tempo entre aqueles dias e hoje. Mulher – As coisas não precisavam ter mudado. Homem – Você mudou as coisas! Mulher – Eu não! Eu acho que não. Silêncio. Mulher – Eu não lembro. Homem – Você não lembra? Mulher – Eu não lembro. Homem – Você só pode estar brincando. Mulher – Eu perdi as minhas lembranças. Homem – Mas de mim você lembra. Mulher – De você eu não “consegui” esquecer. Homem – Como isso aconteceu? Mulher – Eu acordei e não lembrava do ontem, nem do antes de ontem, nem do antes de antes de ontem. Nem de nunca. 231
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Silêncio. Mulher – Eu não tenho mais passado. Só presente. Foi pra isso que eu te chamei aqui, pra te trazer pro meu presente. Homem – E como você me encontrou? A Mulher recolhe os papéis envelhecidos do chão. Mulher – Papéis. Lembranças escritas, documentadas. Homem – Você lembra quem eu sou? Mulher – Não, agora não. No meu presente só há o vazio branco. Mas eu sinto. Quem você é pra mim. Homem – Não estamos juntos, há muito tempo. Mulher – Eu sei. Você é outro. Homem – É inacreditável! Mulher – Me conta. Sobre nós. (Pausa) Como tudo acabou. Homem – Dessas lembranças você não precisa. Mulher – Quem causou o fim? 232
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O Homem tem a intenção de falar que foi ela, mas repensa. Homem – Eu. Mulher – Eu te perdoo. Homem – Me perdoa? Mulher – Eu não sei o que você fez, mas esquece também, fica comigo, finge que também perdeu essas lembranças. Homem – Não é tão simples assim, não dá pra apagar o que aconteceu. Mulher – Estamos aqui não estamos? Juntos outra vez. O que passou, passou. Eu nem lembro! Homem – Essa história de ter perdido a memória. Você está mentindo não está? Mulher – Vamos dançar? Homem – Não... Mulher – Deixa de ser bobo. Homem – Sem música? Mulher – Lembra. Os dois dançam em silêncio, muito próximos, mas sem se tocar. 233
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Mulher – Eu gosto de dançar? Homem – Você está gostando agora? Mulher – Como nos conhecemos? Aposto que você me salvou de um assalto no meio de uma avenida movimentada! Homem – Nos esbarramos. Na fila do supermercado. Os dois se afastam. Mulher – É estranho. Cada lembrança é uma surpresa. Homem – E do quê você lembra agora? Mulher – (Vislumbrando) Eu lembro de um barulho. Da escuridão. E da dor. Homem – Tem coisas que você precisa saber. Mulher – Não! Homem – Você precisa saber quem você é. Mulher – Eu não preciso saber como eu me chamo. Qual a minha idade. Não importa se eu sei falar francês ou pintar quadros. O meu prato preferido, nem a cor do vestido que eu mais gosto, não me interessa nada
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disso. Me interessa o que eu sou agora, neste momento, aqui! Homem – Talvez seja um privilégio não ter a nostalgia na qual estou enterrado e de onde eu não vou sair. Mulher – Esquece. Homem – Como? Não dá pra esquecer. (Pausa) Nosso passado. As coisas que fizemos, são elas que nos fazem ser como somos, agora, aqui. Mulher – Você pode se assustar com quem você é. O Homem olha através da janela. Homem – O tempo demora a passar. Mulher – Mas passa, não é? Homem – A última vez que eu te vi você ainda era morena. Mulher – Me beija. Eles tentam se beijar, mas seus corpos não se tocam.
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Mulher – O meu corpo lembra do seu. Homem – Eu não quero. Eu não posso. (Parando) Eu não consigo. Mulher – Dói. A falta. A necessidade de te ter. Homem – Entende, você não está em condições. Eu sou um estranho pra você. Mulher – Nós estamos nos conhecendo. Homem – Olha à sua volta. Você está num outro lugar, sua vida mudou. Você não vê? Eu não faço parte disso. É preciso aceitar o presente. Mulher – Meu presente é você! Homem – Me deixa ir embora daqui. Você me trouxe. Você me leva. Mulher – (Delirando) Havia um brilho. Um brilho prateado que me seduzia. Homem – (Gritando) É preciso aceitar o presente! Mulher – Sabe quando alguém perde um membro do corpo? O aleijado sem perna? Ela foi massacrada, cortada, arrancada fora depois da podridão. Mas ela doeu tanto por tanto tempo, que mesmo quando não está mais lá, o aleijado a sente. 236
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Silêncio. Mulher – Eu sou esse aleijado. Silêncio. Homem – Por que você fez aquilo? Por que foi embora daquele jeito? Eu me perguntava todos os dias e todas as noites. A culpa era minha? Houve alguma culpa? Eu sempre, sempre tentei entender você, e mesmo sem conseguir eu aceitava o seu desânimo. Eu te via como um ser indefeso, e te cuidava... Eu nunca pensei que você... Por quê? Mulher – Esquece. Silêncio. Homem – Naquele dia você estava linda. Mulher – Obrigada. Homem – Toda branca e a mancha vermelha. Mulher – E agora? Homem – Agora não há mais mancha.
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Mulher – Eu lembro da explosão dentro da minha cabeça. Homem – Talvez daí que venha a dor. Mulher – Não. Homem – Eu não chorei. Mulher – Você é insensível. Homem – Foi sua escolha. Eu não achei que tivesse o direito de me sentir triste. Mulher – Eu te amo? Silêncio. Homem – Me deixa ir! Mulher – Me ajuda! (Pausa) Eu preciso tanto de você, aqui é tão vazio. Dentro de mim está tão vazio. Homem – Eu não sou seu presente. Mulher – Só você pode estancar a minha dor. Homem – Lembra do que aconteceu. Mulher – Faz muito tempo que estamos separados? Homem – Você precisa lembrar do que você fez! Mulher – A explosão dentro da minha cabeça! 238
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Homem – Você quis assim. Mulher – A mancha, era vermelha não era? Homem – Um ponto vermelho na sua brancura. Mulher – Você não estava lá. Silêncio. Mulher – Mas você está aqui agora. Homem – Eu não queria que você tivesse feito isso. Mulher – Eu não queria que você tivesse feito isso. Homem – Você quem fez! Mulher – O sabor do ferro na boca é ruim. Homem – Você precisa entrar de uma forma definitiva nas minhas lembranças, não é? Essa era a única forma de você estar em mim pra sempre. Você vai me fazer sentir atormentado pro resto da vida por uma culpa que não é minha. Mulher – Esquece. Homem – Lembra! Mulher – Fica. 239
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Homem – Me deixa ir! Mulher – Preenche a ausência que há em mim. Homem – O que te falta eu nunca vou poder dar. Mulher – Eu não lembro de nada, só da necessidade de ter você. Pra sempre. Silêncio. Mulher – Você estava dormindo feito um anjo quando tudo aconteceu. Homem – A explosão na minha cabeça. Mulher – Eu sempre disse que era perigoso dormir com as janelas abertas. Homem – Minha vida. Mulher – Agora estamos juntos, nós dois, aqui. Homem – Minhas lembranças. Mulher – Não há como sentir saudade daquilo que não lembramos.
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3 Relógio invisível. O Homem e a Mulher estão deitados formando um ângulo como ponteiros de um relógio. Homem – Está na hora? Mulher – Eu já disse que não. Homem – Tem razão. O Homem muda de posição, formando outra angulação. Homem – E agora? Mulher – Agora o quê? Homem – Agora está na hora? Mulher – (Gritando) Eu disse que não! Homem – Você disse que não era a hora quando era aquela hora, agora é outra. Mulher – Seja a hora que for ainda não é a hora. Homem – Nunca é a hora, não é? Isso de hora é mentira! Isso de que tem uma hora pra
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tudo: para nascer, para viver, para amar, para morrer. As horas não existem. Mulher – Claro que existem! Você não vê o relógio? Ele marca as horas, então: elas existem. Homem – E quem as inventou? Silêncio. Homem – O tempo? Mulher – (Lembrando) Tempo tem pó. Tem você. Homem – Nós vamos ficar aqui até quando? (Pausa) Por que estamos aqui esperando? Mulher – Calma. Eu estou aqui há mais tempo. Você chegou depois. Depois de mim, só pode ficar ansioso depois de mim, entendeu? Homem – Como você sabe que eu cheguei depois? Mulher – Eu lembro. Homem – Lembra? (Ele ri) Esta é boa, lembra! (Pausa) Você não lembra, nunca lembrou e nem lembrará. 242
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Mulher – Se eu não tenho posso inventar as minhas lembranças. Homem – E qual o próximo passo? Forjar o futuro? Mulher – Talvez. Homem – Hora de perguntar. (Pausa) E agora? Que horas são? Mulher – Que horas marca o relógio? Homem – Seis, onze, duas, oito... Marca todas as horas. Mulher – Então escolha uma. Homem – Sabe o que eu mais gosto no relógio? Mulher – O quê? Homem – De como é fácil passar o tempo com eles. Basta girar os ponteiros para se adiantar as horas ou para voltar no tempo. Mulher – Antes você dizia que eu era bonita. (Pausa) Você não me acha mais bonita? Homem – Eu nunca disse que você era bonita. (Pausa) Você está inventando isto como inventa tudo, cria tudo, suas histórias... Mulher – Hora do acontecimento. (Pausa) Era nesta mesma hora ontem, seja que hora for. Você lembra? 243
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A Mulher começa a falar. Alguns segundos depois o Homem começa de forma que falem ao mesmo tempo. Mulher – Hora de brincar. Balas goela abaixo. Azuis, rosas, brancas, roxas, de todas as cores. Diziam para eu não chupar, engolir. Sucos amargos dados em colheres. Camisa de mangas longas, bem longas. Davam voltas no meu corpo, me abraçavam, as mangas. Eu rindo. (Ela ri) Rindo muito. (Ela ri mais) Meu corpo jogado aqui. Luz apagada. Uma peça, estão me pregando uma peça! É uma peça! Tão divertida! (Ela ri histericamente). Homem – Hora de sofrer. Cordas amarrando pés e mãos. Uma cama de fórmica fria. Risos. (Nesta hora a Mulher deve estar dando o primeiro riso). Fios coloridos na cabeça, a minha. Palhaço de peruca multicolorida. Mordaça-pão na boca alimentando o silêncio. Botão pressionado. Choque 1: lágrimas, suor, mijo, porra e merda. Vômito engolido. Abdômen sobe. Braços o descem. (Soluço 244
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de choro curto) Choque 2: cabeça comprimida. Ilusão de compressão. Nenhuma compreensão. (Soluço de choro prolongado) Choque 3: Desligamento. A luz é apagada. É a vida eu sonho. A vida não sonhada. Tão triste. (Ele chora compulsivamente). Pausa. Homem e Mulher – (Ao mesmo tempo) Quando acordo tudo continua igual menos o relógio: os ponteiros andaram. Mulher – Você roubou o meu relógio? Homem – Este relógio nunca existiu, você o inventou. Mulher – Junto com você! Homem – Está aqui, não está vendo? Mulher – Vejo. Silêncio. Homem – Me conta uma história, pra passar o tempo? Mulher – Não. 245
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Homem – Por quê? Mulher – Porque você não gosta das minhas histórias. Homem – Não, eu gosto. Mulher – Mentira. Homem – E isso importa? Mulher – Eu não lembro de nenhuma história. Homem – Inventa. Mulher – Você gostava de contos de fadas e bruxas quando era criança. Eu lembro de como você gostava. Assim que nasceu. Eu lembro. Homem – Você não estava lá. Mulher – Estava sim! Eu até te amamentei. E você não lembra, é um ingrato mesmo. Eu não devia contar história nenhuma, mas eu vou. Das de fada. (Pausa) Era uma vez Cinderela: uma menina bonita que vestia uma capa vermelha e tinha longas tranças, ela morava na Terra do Sempre. Um dia teve que levar maçãs envenenadas para a vovozinha que mora bem longe. Ela foi sozinha e jogava migalhas de pão para não 246
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perder o caminho de volta. Mas comeram as migalhas. As nossas migalhas. (A Mulher entra em surto) Comeram! Você comeu? Você comeu as migalhas? Você comeu as minhas migalhas? (Gritando) Eu quero as minhas migalhas! Homem – Hora de te amar. O Homem faz que deita forçadamente sobre a Mulher, que grita e chora por suas migalhas. Seus corpos não se tocam. Ele a estupra, ela cala, para de se debater, fecha os olhos. Silêncio, só a respiração do Homem. Ele termina seu ato, a beija suavemente sem tocá-la. Homem – (Extremamente terno) Você está bem? Você sabia que era a hora disso. Você sempre sabe. Você sabia e fez de novo. Silêncio. (Pausa) Fala comigo... Eu preciso que você fale comigo. (Pausa) Uns minutos passaram, outros voltaram, mas os ponteiros todos saíram do lugar. Continua ventando lá fora, eu acho, é outro o vento, um vento não corre duas vezes, cada vez é um diferente. Este 247
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aqui é um. (Assopra delicadamente o cabelo da Mulher) Este aqui já é um outro. (Assopra novamente, mais forte, acordando a Mulher) Os ventos são como os minutos que passam, que voltam, mas são sempre diferentes. Mulher – Eu te amo por me amar. Homem – E isso importa? Mulher – Não. Homem – Nós nem nos conhecemos. Mulher – Você não lembra? Homem – Tanto quanto você. Mulher – Nada? Homem – Só lembro do que invento, ou do que você cria para mim. Mulher – Como chegamos aqui? Homem – Você. Mulher – Há quanto tempo estamos? Homem – Olha as manchas nas paredes. Mulher – Quanto tempo ainda vamos ficar? Homem – Olha os espaços brancos nas paredes ainda a manchar. Mulher – Tempo enganado. Tempo enferrujado. Tempo morto. Homem – Já está na hora? 248
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Mulher – Eu já disse que não! Silêncio. O Homem se aproxima da Mulher. Homem – Você é bonita. (Pausa) Tão bonita. A mais bonita. Os dois se olham, sorriem ao mesmo tempo. Homem – Às vezes eu penso que nós dois estamos sozinhos no universo, que somos dois únicos seres perdidos na imensidão de um cosmos que não existe. Olha à nossa volta, vê? Estamos sozinhos, mesmo sendo observados. Eles não estão com a gente, estão em outro lugar, separados. Não são como nós, aqui. Estamos sozinhos. Mulher – João. Maria. Perdidos longe e sem as migalhas-lembranças que nos levam de volta. Homem – A luz é o que separa. Uns têm, outros não. Aqui as trevas, lá a claridade. Se calarmos nosso pensamento e eles pensarem, trocamos de lado. 249
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Mudança de clima rápido. Mulher – Durou pouco. Homem – Durou muito. Mulher – Os ponteiros do relógio! Homem – O que têm? Mulher – Eles pararam! Homem – Eles sempre param. Mulher – Os ponteiros? Homem – Os segundos, os minutos, as horas, os dias, as semanas, os meses, os anos, as vidas. Tudo para, ainda que os ponteiros não. Mulher – O que fizemos para sermos condenados a olhar o tempo passar na eternidade? Homem – Estamos sendo punidos por algo que ainda faremos no futuro. Mulher – E qual será nosso pecado? Homem – Amar. Mulher – Talvez. Homem – Enlouquecer. Mulher – Talvez. Homem – Talvez sim, talvez não. Talvez nada disso, talvez tudo isso e mais. Quando vamos elucidar tudo? 250
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Mulher – A lucidez é o mal. A lucidez é a mentira. A lucidez é o fim. Homem – E a salvação, qual é? Mulher – Eu estou com medo. Homem – Só podemos ter medo do que está para acontecer e não do que já aconteceu. Mulher – Ainda não aconteceu. Será depois. Homem – Mas será. E se será é, e se é foi. O futuro sempre vem, não tem como escapar. Mulher – E se eu voltar os ponteiros do relógio? Homem – Qual deles? Mulher – Eu quero ir embora, acabar com isso tudo. Homem – Não dá. Estamos chegando, não há como voltar atrás. Mulher – Prisão entre o que foi e o que será. Homem – Já está na hora? Mulher – Hora de nascer. Hora de brincar. Hora de chorar. Hora de sangrar. Hora de pensar. Hora de confundir. Hora de calar. Hora de engolir. Hora de cuspir. Hora de levar o choque. Hora de babar. Hora de vomitar. Hora de doer. Hora de fazer dor. 251
lucianno maza
Hora de enlouquecer. Hora de te amar. Hora... Todas as horas prescritas menos a hora esperada. Maldita hora libertadora que não chega nunca! Silêncio. Homem – Aqui é amplo. Mulher – Vazio. Homem – Isso não está acontecendo, Isso já aconteceu. Mulher – É o futuro do passado. Silêncio. Homem – E Deus? Mulher – Ele não tem nada a ver com isso. Ninguém tem nada a ver com isso. Homem – Eu te amo. Com mancha, ou sem mancha. Você é minha punição. Mulher – Nós vamos embora. Homem – Está na hora? Mulher – Não.
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primeiras obras
Homem – E o que vamos fazer enquanto a hora não chega? Mulher – Vamos ficar aqui, agora. (Pausa) Vivendo... Eles voltam a se deitar como no início, mas agora se movem como ponteiros. O relógio aparece. Fim
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Coleção Primeiras Obras 1. Otávio Martins 2. Gabriela Mellão 3. Ivam Cabral 4. Sérgio Roveri 5. Vera de Sá 6. Sergio Mello 7. Rudifran Pompeu 8. Marcos Damaceno 9. Lucianno Maza 10. Dramamix 2007
© Lucianno Maza, 2009 Crédito de fotografia: Luiz Valcazaras Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Biblioteca da Imprensa Oficial) Maza, Lucianno A memória dos meninos; Carne viva; No meio do caminho; Temporal; Três t3mpos / Lucianno Maza [Organização de Ivam Cabral]. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 260 p. – (Coleção Primeiras Obras, 9) isbn 978-85-7060-801-7 Apoio: Grupo Satyros Literatura Associação dos Artistas Amigos da Praça 1. Teatro – Brasil 2. Literatura – Teatro 3. Textos literários i. Maza, Lucianno ii. Título iii. Série. cdd 808.2 Índice para catálogo sistemático: 1. Textos literários 808.2
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