Diário de um Crime Delicado Conheço Beto Brant desde a juventude. Praticamente começamos juntos, na escola do Wolney de Assis, no começo dos anos 80. Depois que fui para a Itália, tivemos em Milão um breve encontrom, quando soube que ele tinha virado diretor de cinema. Reencontramo-nos quando o Atelier de Manufactura Suspeita encenou um espetáculo no Sarajevo, excelente antro da Rua Augusta. Ele me disse que deveria fazer um filme sobre Teatro e que talvez precisasse de um intelectual, apaixonado pelo teatro e que não fosse careta ao mesmo tempo - Ele ainda acha que sou intelectual, mas sabe entender o despojamento formal do que penso. Finalmente, disse que a coisa era séria. Dei uma grande gargalhada. Depois de um linfoma, nada mais poderia ser sério. No mês seguinte, fui apresentado a Marco Ricca. Estava formado o “Sinédrio” (posterior explicação). Dei uma olhada no que havia de roteiro. Achei tudo estranho, critiquei severamente o que li. Eles achavam que eu era um ranzinza, mas souberam ouvir e entender o que disse. Foi tudo harmônico, respeitoso, todos nós reconhecíamos as qualidades uns dos outros. Eram qualidades complementares. Quanto aos defeitos, eram os de todo bando de homens (nãofascistas) juntos: monotonamente compensatórios e iguais. Depois, revi o Marçal, que já tinha conhecido no meu espetáculo. Admiração recíproca. Ao fim de uma autocrítica, farejei as enormes qualidades do que havia tanto criticado. Havia milhares de possibilidades, mas não cheguei a perceber o essencial, o que realmente motivava todo mundo a fazer um filme sobre o Teatro. Foi quando o Beto quis a Lílian que tudo ficou claro para mim. De repente, fiquei horrorizado, vislumbrava somente dificuldades. Sentia um medo desesperado, desses de quem tem fobia de elevador. Instantes depois, pensei melhor. Fiquei com mais medo ainda: de mim mesmo. Havia feito um espetáculo, anos antes, onde pedaços de pernas e mãos eram içados por cabos para o topo de uma torre no Castelo Sforzesco, em Milão. No final, os atores se livravam das personagens através disso. Era um espetáculo sobre a linguagem do sofrimento que não se consegue contar. E o primeiro espetáculo do Manufactura Suspeita começava com os atores que dançavam com pernas e mãos de manequins, depois de mortos numa explosão. A coincidência era uma verdadeira fantasmagoria. Pensei: esse cara (o Beto) faz no cinema o que sempre fiz no teatro. Pior, provoca um choque disso com o mundo real.
Entendi porque estava ali: dar uma gramática ao sofrimento da ausência, qualquer que seja ela. Tudo começava a fazer sentido para mim como autor de alguma coisa, e não mais como um “intelectual” a serviço de um roteiro. Passou-se do artesanato à Arte. Mais uma vez, o proverbial messianismo do Beto: intenção de enquadramentos rigorosamente teatrais, numa dinâmica muito similar à câmera baixa de Ozu, em relação ao modo de se sentar japonês e as perspectivas daqueles ângulos. Não há subjetividade de “personagem”, há uma objetividade do ponto de vista de uma linguagem diferente para cada ponto de vista. Tudo virava crível,a subjetividade do romance de Sant ‘Anna, a objetividade do pintor, do crítico, do modelo, do teatro, antes de serem personagens. Isso era novo para mim, pois nada disso teve que ser exatamente escrito no roteiro. Naturalmente estava tudo subentendido. Percebi a coisa quando o Walter Carvalho fez a sua visita ao Sinédrio. Foi num dos últimos dias do roteiro, que influenciou a crítica que começa com “pobre Schubert...”. Ele chamou de demente quem fazia um espetáculo tão decadente como o “Farsas Libertinas” e punha o trio de Schubert como leitmotiv... adorei, era exatamente o que queria. Aquele espetáculo refletia o mundo dos encontros fetichistas. Na experiência que tive na Itália (tive brevíssimos contatos com Silvio Soldini, Lina Wertmüller e Raul Ruiz), todos os enquadramentos tinham que ser descritos no roteiro. Beto e Walter já tinham tudo na cabeça, fiquei surpreendido com isso. Fiquei muito amigo do Walter, ele tem uma cultura de humanista, sem ser eurocêntrico. Acho que, a partir daquele momento, virei co-roteirsta de verdade. Passei a gostar de fazer cinema de novo. xxx Havia feito algumas coisas na Itália. Escrevi roteiros de curtas, um roteiro de um longa policial, jamais filmado, e co-dirigi alguns spots publicitários. Desisti do cinema, que me parecia plebeu em relação à nobreza do teatro. Cinema tem que acordar cedo, o teatro ao contrário. Quando vi que era tudo noturno, adorei, era mais teatro que cinema. Ou um cinema nobre, que quer comunicar antes de ser a indústria, que é e não nego. Fiquei feliz de verdade. xxx Não conhecia o romance de Sérgio antes de conversar sobre o filme. É um ótimo romance, quero ressaltar. É uma estória análoga a um ensaio de Otávio Frias Filho sobre o modernismo, que critica os embustes engendrados por muitos artistas que condicionam os contextos de muitas obras de arte em que apresentam. Em minha opinião, o nosso roteiro ou é complementar ou diz
exatamente o contrário do livro, que faz na ambigüidade das manifestações da modernidade um tema principal... ih, acho que há no Sinédrio quem discorde disso... senão não seria Sinédrio. Entretanto, é fiel ao espírito e ao clima criativo do livro. Enfim, eu concordo com o ponto de vista do Sérgio, mas esta estória ganhou uma dimensão muito diferente depois da Lílian. A problemática mudou de eixo. O tema do Homem e da Arte não mais era a contextualização deles. O livro fala sobre o valor da Arte. O filme, sobre o valor do Homem. Há muito de Albert Camus nisso. Ou Dostoievski. Há, ao final uma coisa que os dois dizem, filme e livro: nós somos maiores que a estética, onde pode haver crime ou não, dentro da est;ética. Mas dentro da vida, crime é crime, tudo é vida e quase nada é estética; uma vez mortos, sobra só a estética, que é quem pode contar a estória, isso se o esteta conseguir. O filme é isso. xxx Quem é personagem e quem é real? Personagens são o crítico, o juiz et cetera. O Felipe não o é. E a Lílian soube fazer de Inês uma personagem. Personagem para mim tem a ver com conjecturas de um autor. Quanto ao cinema e ao teatro, estes têm a ver com as ações de uma pessoa, ou sua projeção. Não existe psicologia. Sou severo e radical quanto a isso. Detesto atores que ilustram o autor. Ou que se preocupam com psicologias. Amo atores que desenvolvem as conjecturas escritas de um autor (não são mais que isso, creiame) em ações críveis. Não verossímeis: são críveis. Conheci atores que trabalhavam a verossimilhança dos fantasmas de Shakespeare... mas desde quando um fantasma existe? O jogo é outro, eu tenho, naquele momento da representação, que acreditar que as ações daquele fantasma vão ter conseqüências, isso é o que importa. Portanto, no livro, é impressionante a figura de Antonio. No filme, Marco Ricca traçou e venceu o desafio de interpretar e engrandecer essa figura. Já no roteiro, ainda que ela contemple totalmente o drama de um crítico incapaz de comunicar seus sentimentos, o que é impressionante é a relação desconfortável de Antonio com a vida real de Inês e da atriz que o interpreta. Além da relação dele com o artista real Ehremberg, por sua vez superado por José Torres Campana. Este é, emblemática e paradoxalmente, o autor de uma arte que não é ficção. Mesmo assim, seu quadro não pode extrapolar a estupefaciente e singular qualidade do seu modelo humano: a de não ter uma perna. Não ter uma perna num quadro é simples expressão artística. Na vida de Inês é drama sério. Portanto, o que dizer de Inês que, no final do filme, oferece à obra de arte a perna que falta ao quadro e se sente inteira como atriz, transformando a pessoa que a interpreta, Lílian, numa pessoa liberta? O percurso inverso também é válido: a obra de arte que é a prótese de sua perna transforma o quadro numa
coisa viva que è a atriz, liberta da “personagem” de si mesma...Acho isso vasto e ilimitado, uma obra divinamente misteriosa e multifacetada, que vai além de sua forma. xxx Acredito que o filme deva chamar-se, na melhor tradição italiana do século XVIII, “Crime Delicado ou A Vida É Mais que a Estética”. Assim mesmo: um título, mais que um tema. Naquela tradição, o título é o nome, é o que designa a obra. Contrariamente ao que aparenta, essa tradição não é explicativa; ajuda a desenvolvê-la. Jamais vou me separar da formação tradicional, eclética e acadêmica que tive na Itália. Acho que por isso fui chamado e depois consegui continuar a fazer parte do “colegiado”, que apelidei de “Alto Sinédrio, reunido na casa do Ricca”... até hoje ele deve ter saudade daquele grupo de doidos todas as tardes ali... e eu cozinhava também...bem, quando das reuniões do roteiro, tinha esse título na mente e no coração, principalmente depois que o Beto, primeiramente, tomou a decisão de trazer a Lílian ao elenco (que eu não chamaria de elenco: eu chamaria de amostras várias de Humanidade). O título secreto, dizia, defendeu-me das crises de falso humanitarismo... ou da temática centrada na deficiência física, da qual poderíamos vir a ser acometidos, estimulados pela problemática real, imperativa, mas perigosamente desviante, que se nos apresentava trazida pela condição especial de Lílian. Lílian foi maravilhosa ao também saber se livrar desse perigo: ela mesma é a própria estória verdadeira que o roteiro conta e por isso o trabalho sobre um paralelismo tão delicado foi o principal foco que impostei na preparação da sua interpretação. Foi extremamente difícil. Falar da personagem era como falar dela, e é duro desenhar os limites, que, aliás, foram a paixão e fulcro da obra de um dos maiores dramaturgos do século XX, Luigi Pirandello, do qual o filme está eivado. Utilizei muitas técnicas e lembranças da minha brevíssima convivência com o americano Jô Chaikin quando fomos colegas por dois dias na escola do Piccolo de Milão. Ator, diretor e roteirista de grande peso, Chaikin foi co-autor de vários espetáculos de Sam Shepard, e com ele fundou o Open Theatre. Particularmente comigo a coisa era forte e eu sentia medo real, porque padecia de um paralelismo análogo; recuperava-me de um linfoma, além de também ser deficiente físico, pois portador de esclerose múltipla, felizmente ainda relativamente remissiva. Mais um exemplo de paralelismo: tenho um irmão gêmeo que é um importante bailarino e coreógrafo na Inglaterra. A minha dificuldade de caminhar valoriza a dança dele. Cada movimento dele tem para nós um valor subjetivo gigantesco. Nem precisamos falar disso.
O Humanitarismo perigoso que mencionei anteriormente destrói essa visão, enquanto esse filme a valoriza. Em suma, não dá para falar desse filme sem falar de si mesmo... De resto, “O amante de Lady Chaterley” é a mesma coisa. Mas voltemos ao tema: o humano é sempre maior que a arte, do ponto-de-vista moral. Ou, pelo menos, trata-se de mundos diferentes e paralelos. Pirandello tratou exaustivamente do problema. Condicionou tudo o que veio depois dele. O roteiro tem muito disso. Numa das críticas, aproveitei a oportunidade para mencionar que, nas ícones bizantinas, o corte do enquadramento das molduras (com a resultante reprodução apenas parcial do corpo dos santos nelas representados) gerou violentos conflitos entre os fiéis da cidade de Bizâncio. A parcialidade retiraria a santidade imanente das mesmas. Assim que cheguei com a crítica, escrita pela décima vez, o Sinédrio prosseguiu o seu trabalho maravilhosamente severo. Entretanto, desta feita a alusão foi imediatamente aproveitada, mais uma vez, pela vertiginosa intuição do Beto. Ele anteviu e deu o final seguro ao filme ao guiar a entrevista de Ehremberg (“falta uma perna...”) a um final de silêncio Antonionesco presente em todo o filme na interpretação do Ricca. Digo mais uma vez porque isso havia sido a causa primeira da escolha da peça do meu grupo Manufactura Suspeita “Farsas Libertinas”. Havia uma cena em que a deuteragonista se liberta do cinto de castidade que era obrigada a usar. O Beto associou isso aos vários momentos – sobretudo ao momento final - em que a protagonista do nosso filme retira a prótese para todas as atividades em que se requer a liberdade. Ou seja, o final do filme, onde ela deposita a prótese embaixo da obra de arte. A prótese, instrumento estético e vital para ela, vira uma obra de arte; ela voa para a liberdade de sua inteireza. Esse o tema, não? Pois bem, como a personagem de Antonio vê tudo isso? Como fato estético “puro”, em choque direto com uma atração sexual que não compreende, mas que não é fetichista. Ele é mais uma vítima de uma formação intelectual bloqueadora de sentimentos humanos (grande personagem essa, e o Marco pontificou, no “Sinédrio”, para que nós atentássemos ao fato de que este também era um imenso problema humano: a ele falta não o sentimento, mas um mínimo instrumental afetivo para compreender a própria realidade existencial). Antonio Martins é desprovido do uso vital do instrumento estético que Inês/Lilan possui. Para ele, estética é só estética. Há ainda uma série de inspirações buñuelescas no filme, que vão além da mera influência plástica. Octavio Paz declarou, ao falar de Buñuel, que “ao homem acorrentado basta fechar os olhos [e sonhar] para mandar o mundo em pedaços”. Quais inspirações seriam? A elas: a fragmentação de tudo (diálogos, corpos, estórias, cenas, e, finalmente, a própria prótese) se recompõe a partir dos
enquadramentos teatrais, da música e do silêncio que ligam as cenas, das declarações abertamente humanas em total e constante contradição com os aspectos artísticos e formais. Esse choque entre a interpretação teatral a proximidade de uma ator à própria estória de vida sempre foi base de uma certa estética surrealista. xxx Acho uma incógnita o que acontecerá na cabeça do espectador e de algum crítico. Mas tenho algumas certezas: que algum hipócrita se choque com o filme e use a sua estética aparentemente antiartística para denegri-lo. Ou que outro hipócrita se aproveite do tema tratado para defender deficientes físicos supostamente agredidos pelo filme. Por outro lado, a tocante sinceridade do filme chegará e como. Será difícil enquadrá-lo, defini-lo, decodificá-lo, o que sempre foi o prato cheio dos medíocres. Tais pessoas querem coisas que podem classificar sem necessidade de se colocar muito em discussão. É diferente da água com açúcar ou do comércio. Irritará pseudo-intelectuais porque invade a “praia” deles, que deveria ser Salvador, onde há água de coco e brisa fresca à vontade, além de Caetano. Irritará os que não encontrarem termos para rotular uma gramática tão complexa, refinada, que, entretanto, “não combina” com a singeleza do filme e das interpretações que respeitam a pessoa antes da carreira artística. Repito, o paralelismo entre vida e arte deste é sem igual no cinema, pelo menos no cinema brasileiro, até onde eu conheça. xxx Este filme, como o Marco declarou com pompa e solenidade no Sinédrio: é eivado de Mauricio até a medula...Acho que diluí esta resposta quando conto da entrada da Lílian no roteiro... Igualmente, ao mencionar a estética da interpretação, quando descrevo o problema da verossimilhança, e ainda mais, quando do oferecimento da prótese à obra de arte e da ausência dela à vida da atriz. Tem muito de todos os meus trabalhos. Seria capaz de desfiar por horas coisas de meus espetáculos e este filme. É melhor poupar o leitor de tal pregação.
xxx
Na preparação da Lilian Taublib, lutou-se através da superação de uma dura condição através do esforço e da urgência de comunicar o próprio sofrimento e felicidade. Não se é feliz sem ter uma gramática para contar a própria felicidade e se vai ao inferno quando o próprio sofrimento não pode ser contado. O Homem é social. Isso é o Homem, a condição humana, não é preciso ler Sartre para perceber. Se houvesse só um homem, não haveria o humano. A última galesa já não se comunicava com o seu Galês natal: ninguém a podia entender. A língua e uma cultura, por conseguinte a Humanidade, morrem quando já não há mais possibilidade de comunicação interna e externas. Esse foi o trunfo da Lílian e do acordo que fizemos. Quem for ver o filme verá esse esforço, essa magnífica vitória, à qual o Beto deu o eco que merecia; eco elevado à declaração final do filme, quando ela deixa a prótese. Uma perna amputada, um pedaço físico da vida de uma pessoa foi transformado em obra de arte, nesse caso um filme e um quadro. Não poderei nunca mais viver coisa mais magnífica que esta na Arte. Dá para se ter uma idéia da dimensão disso? Da grandiosidade dessa pessoa, dessas pessoas que viveram isso no set e depois a compartilharão com o público? Uma missão que honra a carreira de qualquer um. Difícil foi dar uma linguagem formal ao que já existia. Digo sempre isso aos atores, principalmente aos iniciantes. Cito Michelangelo, que declarou que ele apenas removeu o excesso de mármore do bloco que virou o seu magnífico David, o padrão de beleza que até hoje usamos para definir as proporções das pessoas consideradas belas. Concentrei-me em prover a Lílian de condições de conferir Beleza à sua condição, através da comunicação artística. Ela conseguia dar-lhe forma, como num claro escuro, além da tridimensionalidade que se exige de qualquer bom ator. Mas isso ela já tinha de natureza. Foi só dar um empurrão. Tínhamos uma palavra secreta, por isso mágica, para superar as dificuldades naturais das filmagens, mas não a posso revelar; deixaria de ser mágica. Era neologismo entre o Italiano e o Português. Espero que isso a ajude em outras coisas também. Acho que fui um “gramaticador” de atores, mais que um preparador... xxx
Dirigi duas peças no filme. Farsas Libertinas, logo no início, leva o final embutido nela: o do vôo para a liberdade que a prisão da ausência e do cinto de castidade encerram. Leonor de Mendonça é uma velha paixão minha, acho o melhor texto dramático produzido em língua portuguesa. Não poderia faltar numa homenagem responsável ao nosso teatro come é esse filme. Mas, claro, há uma razão lógica: o ciúme do protagonista e a sua acusação de adultério motivaram certeiramente a escolha do trecho. Trabalhei as cenas especialmente para o filme, fui absolutamente detalhista quanto à interpretação teatral deles. Depois o Beto transformou tudo em cinema. A mesma razão – o ciúme determinou a escolha do ótimo Woyzek, de Buchner, esta com a direção da Cibele Forjaz. (sofri muito para escrever a crítica, pois se trata de uma colega. Se me diverti muito malhando a mim mesmo, vi que jamais poderia ser um crítico na vida real. Uma coisa é odiar um espetáculo que se vê. Outra é escrever sobre ele num jornal, com poucas linhas). Havia ainda outra possibilidade riquíssima, trazida pelo Ricca, que era “A Gaivota”, do Tchekov. Existencial, verdadeiro monumento ao teatro em sua forma mais perfeita, era uma certeza maravilhosa sobre a qual se trabalhou e se escreveu por pelo menos um mês. Depois, o Beto e o Ricca acordaram-se em diluir esse trabalho nos diálogos. Coisa difícil, de gente abnegada e capaz. Foi um gesto de nobreza de legionário por parte do Ricca, que, por sinal, parece-se incrivelmente com um centurião dos tempos do início da Urbe. Durante as discussões sobre o tema, observava-o sorrir quando defendia suas idéias e, para relaxar, comparava-o às maravilhosas estátuas que eu admirei por anos de passeios em ruínas romanas atrás da minha casa na Itália. Até combinamos de um dia sair fantasiados de romanos por aí... assim como tenho o sonho de bombardear a Daslu a bordo de um dirigível pilotado pelo Marçal quando o ACM fizer compras por lá... essas, as digressões que davam oxigênio às discussões tão sérias daquele apartamento. Voltemos ao Tchekov. Acredito, entretanto, que a herança do Tchekov esteja toda lá, com mais força ainda. Pois a necessidade era da incomunicabilidade patética da alma de Antonio, enquanto as falas diretas de Tchekov evocariam mais um patetismo de tipo existencial. Cito um exemplo disso, entre tantos: a cena em que Antonio se ajoelha ao pé de Inês e implora o seu amor. Tinha tudo para ser patético-romântica. Mas graças aos diálogos do Ricca, ao enquadramento teatral, além de sua interpretação teatralmente tocante, há nela uma precisão de enfoque nos desencontros de universos afetivos que não vi em qualquer montagem de Tchekov, e olha que eu vi Tchekov no mundo inteiro.
O misterioso Sinédrio Gostaria de ressaltar uma coisa que eu acho muito importante. É o que chamo interiormente (adoro pensar o tempo todo em coisas sérias e empenhadas, tipo Lógica ou Epistemologia, com acidez, aplicadas ao meu quotidiano, do amor às fezes e à alimentação), chamo, dizia, de “estranho mecanismo do Sinédrio”. É um mecanismo antigo e mediterrâneo, com muito de religioso, no sentido que Borges consagrou. Com o tempo, descobri que o núcleo inicial, Marco, Beto e Marçal, escreveram, sem querer, através das pessoas que a ele se agregaram, além de através daspróprias pessoas que eles também são. Coerência admirável brotou disso. Eu fui chamado pelo Beto, aceito com alegria pelo Ricca, escrevi as críticas pelas quais fui chamado e depois funcionei como “teólogo”, fundamentando ou demolindo as centenas de conjecturas naturalmente nascidas de um roteiro que mistura pelo menos cinco linguagens artísticas diferentes. Por minha vez, sugeri o “rábula”, “il legale”, Chico (Francisco Carvalho Filho escreveu a magnífica cena do julgamento, o acerto de contas com a realidade objetiva do bando de doidos que são aquelas figuras. Sentava-se, fumava suas cigarrilhas, conhecia um mundo novo e invariavelmente voltava com uma cena melhor que a outra. O mesmo acontecia com os diálogos do Marco, que realmente sabe como escrevê-los.) O grande mérito desse Sinédrio foi ter-se servido despudoradamente da contradição entre as diferentes linguagens empregadas, ao invés de operar à ocidental, por teses cartesianas. O Beto, cabalista, foi o responsável por isso, porque a gasolina intelectual dele é azul, daquelas de pura intuição pascaliana, que trabalha por círculos concêntricos de poder e de idéias. O Sinédrio operou à hebréia, origem da imensa e antiga cultura-mãe do mediterrâneo, mãe do Brasil, mas esquecida porque distante geograficamente. Não adianta me vir com essa estória de África exclusiva, que não cola. Os africanos foram obrigados brutalmente a vir para cá. A África veio depois, se juntou, se fundiu maravilhosamente e se fortaleceu, ainda bem. Qualquer terreiro ou escola de samba trabalha assim. Infelizmente outra cultura-mãe, a dos índios, foi massacrada, não sobreviveu, vítima da lógica pestilenta que rege a dominação entre os diferentes que se temem cegamente. Mas até isso está nesse filme: o México originário entrou através de um de seus protagonistas, o Felipe – trazido pelo Marçal - olha aí o mecanismo concêntrico mediterrâneo funcionando. Por falar nisso, o Marçal veio a ser “rechamado” para vindimar o que se produzia naquelas tardes maravilhosas. Um bom papa, diferente deste, que tarde fez sua
magnífica entrada no merecido Inferno. O círculo estava fechado, como o antiqüíssimo Sinédrio. Precisamos de mais Sinédrios como aqueles, já que estamos quase sufocados desse horrível integralismo protestante, que serve ao reacionarismo daquele papa que já se foi tarde. Mas esse é o meu lado anticatólico e antidaslu de que um dia o Marçal tecerá os louvores, quando estivermos concentricamente dispostos diante de novos vinhos e risotti que com certeza vou cozinhar. Durante os dias do Sinédrio, tive a certeza de que iria sobreviver ao linfoma. Não é pouco: estou feliz de estar vivo para contar a história desta estória maravilhosa. Numa conclusão mais ou menos provisória, resumo esse filme num imenso ato de amor ao Cinema, à Arte, ao Humano, no sentido que Erasmo de Rotterdam utilizouem seu Elogio da Loucura. O Humano sem separações ou remoções de qualquer gênero, o Amor no mais alto sentido, o da Compaixão Universal que o Budismo elucida tão bem. Nada poderia me fascinar tanto, esse é um filme para depois, não é processozinho de vanguarda. Será lindo vê-lo daqui a uns anos. Será compreendido no tempo certo. Durará muito. De certa forma o fizemos POR nós mesmos (veja bem: por e não para). O Beto sempre menciona o meu velho mestre Kantor, inserido subrepticiamente no filme, como ele mesmo certamente gostaria: a obra de arte se desenrola diante do público e não somente para o público. Isso é pouco? Apenas acrescentaria que o filme brota de nós mesmos para todos e em qualquer tempo. Estou muito orgulhoso de ter feito coisa tão bela. Ele preza uma das quintessências da vida: a própria, a única que podemos conhecer. Mauricio Paroni de Castro