ARTIGO AUTORALIDADE Rosyane Trotta

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AUTORALIDADE Rosyane Trotta

Em La Représentation Émancipée, 1988, Bernard Dort identifica o surgimento de uma nova concepção de representação que, baseada na autonomia dos criadores do espetáculo, “não postula mais uma fusão ou uma união entre as artes”. (Dort, 1988: 181) O teatro contemporâneo consistiria na interação – ou mesmo na rivalidade, como escreve Dort – entre os sistemas significantes que o compõem. O conceito de polifonia, empregado pelo teórico ao se referir a este espetáculo cuja significação não está mais sob a concepção exclusiva do encenador, permitiria falar em pluralidade autoral. Utilizando alguns dos conceitos empregados por Dort, podemos opor certos procedimentos de encenação: 1) Polifonia x unificação A polifonia pressupõe que todos os sistemas significantes atuem na obra sem que um predomine sobre os demais, sem que caminhem na direção de um mesmo sentido determinado pelo texto ou pela direção. Dort a descreve como “renúncia a uma unidade orgânica prescrita a priori e reconhecimento do fato teatral enquanto polifonia significante, aberta ao espectador”. (p.178) 2) Centralização x autonomia x coletivização Segundo Dort, a autonomia dos sistemas significantes sucedeu a centralização da direção. Trazendo sua formulação para a abordagem do nosso objeto de estudo, percebemos três modalidades: a centralização da autoria no encenador; a pluralização da autoria em sistemas autônomos; a coletivização da autoria em sistemas interdependentes. Enquanto a 

Capítulo 3 (p.67-101) de “A autoria coletiva no processo de criação teatral”. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2008. Tese de Doutorado.


polifonia resulta de um afastamento entre os sistemas, a coletivização se verifica por meio do constante e quase exaustivo diálogo que, se não forma necessariamente um sentido unificador, promove a mútua interferência entre os autores. O encenador deixa de ser o interlocutor exclusivo e coloca em circulação as diversas subjetividades. 3) Concepção anterior ao processo x concepção através do processo O diretor concebe antes de tudo a maneira como constrói seu espetáculo. Em um extremo, ele elabora antecipadamente toda configuração cênica, reservando aos ensaios apenas a execução do espetáculo que está “escrito antes de ser realizado” (Dort, 1988: 174). No caminho oposto, ele se serve do processo para chegar à concepção. Bernard Dort defende uma crítica a Wagner e a Craig para uma definição da obra teatral que, “em lugar de fazer uma articulação estática de signos ou um meta-texto, a enfocaria como um processo dinâmico que ocorre no tempo e é efetivamente produzido pelo ator” (p.177/178). Não se trata portanto de uma contestação do realismo, mas de uma contestação da própria linguagem – um fato teatral só possível depois de Brecht, depois de Grotowski, depois de Artaud. Se, como aponta Derrida, em “A escritura e a diferença”, Artaud pretende libertar os atores do autor-criador que, ausente da cena, comanda o tempo e o sentido do “palco teológico”, o encenador, que inventa o espetáculo como obra, abole a dramaturgia, deslocando a exclusividade autoral do texto para a concepção cênica. Parece-nos então que Bernard Dort identifica a existência de uma ruptura com este segundo “palco teológico”, fora do qual se engendraria uma concepção unificadora. O encenador deixa de solicitar ao ator que destine suas habilidades a uma concepção artística elaborada fora de seu corpo, rompendo com um sistema teatral inaugurado há um século e lentamente implantado ao longo da primeira metade do século XX. Deste ponto de vista, a encenação centralizada equivaleria à formação da modernidade teatral, que se baseou no princípio da unificação da linguagem para se 68


constituir e que agora, deixado para trás o tempo em que a obra teatral era elaborada pelo dramaturgo, pode ser tomada pelos demais artistas-autores. A passagem da encenação moderna ao que Bernard Dort chamou de “representação emancipada” – e que interpretamos como a pluralização da autoria – pode ser identificada como a abertura das diversas áreas do espetáculo à subjetividade de seus respectivos criadores. O diretor abandona a função de sujeito da escrita cênica. Embora os aspectos ligados à linguagem, que só se realizam plenamente no espetáculo, possam ser privilegiados no estudo da estética, os aspectos que se referem ao processo parecem mais reveladores das questões ligadas à formação da autoria. Vamos abordar diferentes processos em que o texto se constrói a partir da experiência cênicas dos atores para fazer um exercício de breve análise da configuração da autoria, da relação texto/cena no processo de criação e do espaço conferido à subjetividade.

3.1. SINGULAR E PLURAL

Nos anos 80, alguns encenadores fizeram a experiência de conjugar texto e cena no processo criativo. Vamos tomar como referência dois espetáculos, levantados por dois métodos distintos, ambos centralizados na função do encenador: o processo de Orlando1, de Bia Lessa, e o processo de Eletra Com Creta2, de Gerald Thomas. Ambos foram iniciados antes de haver um texto e a dramaturgia se consolidou a partir do trabalho em sala de ensaio. Bia Lessa dirigiu um processo de recriação de “Orlando”, de Virginia Wolf. O texto, assinado por Sergio Sant’Anna, foi elaborado a partir de diversas referências, entre elas o

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O espetáculo estreou em 1989, no Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro. O espetáculo estreou 2 de dezembro em 1986, no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro. 69


exercício de improvisação dos atores, que se baseavam tanto em acontecimentos do livro quanto em idéias a partir das quais a diretora queria “ler” a ficção – textos teóricos que serviriam de elementos de composição das ações e das imagens. Cerca de um mês antes da estréia, eu os entrevistei para o programa do espetáculo. Segue abaixo uma síntese desta entrevista, da qual participam Claudia Abreu (CA), Fernanda Torres (FT), Otávio Muller (OM), Marcos Oliveira (MO) e Júlia Lemmertz (JL). Os atores, como mostra a entrevista, se sentem autores do espetáculo.

FT : Foi surpreendente pra todo mundo, eu acho. OM: Para a própria Bia. FT : Ela não sabia em que forma ia dar. OM: A forma foi pintando com a gente. (...) FT : Ela não tem uma maneira estabelecida de trabalho. (...) MO: Ela não sabe o resultado final. Ela sabe o processo. FT : E ela escuta. JL : A gente é extremamente cúmplice nisso. Opina, opta. (...) FT : Acho que ela entendeu que é bom ter um ator entendendo o que está acontecendo em cena. JL : Para poder ser o autor daqui. OM : Não existe um personagem dentro da cabeça do diretor e que você tem que alcançar. Nós somos atores-autores de todos os personagens. (...) FT : De pequenas improvisações você acha a sua primeira lógica. Porque ao tentar resolver você está colocando o seu intelecto. (...) A Bia trabalha com qualquer referência que você traga. O que você leu, viu, observou. Mas ela vai te esclarecendo o tempo todo, vai cultivando no ator o raciocínio sobre o trabalho. Quando passa pela razão você pára de mancar inutilmente – fica confortável. Você está entendendo porque está ali. 3 OM : Outras pessoas vão fazer outros Orlandos. Esse é totalmente nosso.

As falas se completam, um ator continua a idéia do outro em um texto que, se corrido, pareceria de uma única pessoa. Note-se que não são atores estreantes, mas profissionais experientes embora jovens, que na época já haviam atuado em teatro, televisão e, no caso de Fernanda, em cinema. Os depoimentos apontam uma atuação que não consiste em alcançar o personagem criado pelo autor e a linguagem pré-concebida pelo diretor, nem elaborar 3

Programa do espetáculo Orlando. CEDOC/FUNARTE. 70


interpretativamente um desenho espacial fornecido. Se a autoria dos atores de Orlando não abrange a totalidade da obra, promove um alargamento em seu campo tradicional de criação para englobar outros elementos da obra cênica. A autoria coletiva não aparece como criação espontaneísta mas, ao contrário, como técnica de construção. A diretora, que vai “esclarecendo o tempo todo”, planeja o processo, conduz o grupo, provoca a inquietação. Este tipo de procedimento é a exceção e não a regra, como mostra o depoimento de Fernanda Torres, no programa do espetáculo:

No processo normal do trabalho do ator raramente ele se depara com a idéia antes de qualquer coisa, raramente se tem acesso à idéia. (...) Eu estava cada dia num lugar e era contratada para uma função específica – cada vez mais afastada da idéia. Estava perdendo a lógica do meu trabalho, a função dele. (idem)

Em Orlando, parte-se da obra literária de Virgínia Wolf, que é objeto de uma investigação lúdica. A concepção do espetáculo se coloca à espera da cena – e, neste processo, é o ator que delineia o personagem, a linguagem da contracenação, que descobre as possibilidades e os limites da ação dramática. O diretor conduz o processo e a definição da relação texto/cena, mas não detém previamente a forma. Bia Lessa conduz o elenco no estudo da física quântica, na técnica do tai-chi, propõe improvisações a partir de uma utilização do espaço, de objetos, mas não dirige o intérprete e sim o criador das ações. Com o acesso à idéia, o ator recebe também espaço na autoria dos personagens e da trama. Por outro lado, ele não se desloca da sua função, quer dizer, ele responde ao que lhe é pedido e no campo delineado pelo encenador: personagem, jogo, situação. Pode-se dizer também que Bia Lessa realiza uma obra polissêmica, na medida em que na sua concepção os elementos do espetáculo não procuram se combinar mas se confrontar: os figurinos, a música, os atores não trabalham em benefício do texto mas de uma teatralidade sem unidade – mistura-se um figurino de rainha com uma

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citação de Beatles sem que estes elementos sejam extraídos da obra de Virgínia Wolf, do texto de Sergio Sant’Anna ou de uma unidade de linguagem. Já no processo de Eletra Com Creta, é o próprio diretor que se encarrega da dramaturgia. O “acesso à idéia” ali não é tão facultado e a minuciosa condução da interpretação se faz pela imagem da palavra:

Gerald: (para Maria Alice Vergueiro) Tenta fazer com que esse bloco de fala saia com uma respiração rápida. É como uma guilhotina em cima dela. Gerald: (para Vera Holtz) Primeiro é o espanto do encontro. Depois, a felicidade torturada pela impossibilidade de possuí-la. Gerald: (para Bete Coelho) Você tem que aproveitar mais os momentos de sacanear, de debochar. Vocês estão se espetando uma à outra. O que é que os loucos num hospício têm pra fazer a não ser ficar remoendo, se remoendo, cutucando...4

Por meio da palavra, o diretor compõe imagens que descrevem tanto uma ação (guilhotinar), quanto um conflito de sentimento (felicidade torturada) ou uma situação (loucos num hospício). Cada uma dessas formulações verbais procura atingir o imaginário do ator para que ele encontre a maneira de produzir uma dada teatralidade.

Gerald: Gente, o que vocês estão fazendo parece asilo de loucos. Não podemos dar ao espectador a impressão de que ele está diante de um bando de loucos. Não é de loucura que se trata. No máximo, de piração, o que é bem diferente. (...) Gerald : (para Vera Holtz) Isso aqui é um asilo dantesco. É a décima Medeia e a décima Electra que vocês carregam hoje, e estão de saco cheio. De repente, você tem um momento sozinha com Damasceno. É a primeira vez que você não está na situação de enfermeira, a única situação em que você está verdadeira na peça. (idem)

As palavras soam contraditórias: é um asilo de loucos, mas eles não devem parecer loucos. “Piração” ao invés de loucura. O que parece contradição espelha as tentativas do diretor de circunscrever, por meio da produção de imagens verbais, uma linguagem que habita 4

Programa do espetáculo Eletra Com Creta. CEDOC/FUNARTE. 72


sua imaginação. Trata-se de um processo centralizado – os atores precisam encontrar cada um o seu caminho dentro daquilo que é exigido pela direção. Gerald Thomas não apenas se ocupa da escritura do texto, da concepção cenográfica e da luz, das marcas, do subtexto, como também dos signos do corpo e da voz. Ele desenha no corpo do ator a postura. Seu desafio, na sala de ensaio, é encontrar a chave que aciona em cada ator a forma que ele tem em mente. Bete Coelho: O Gerald deixa muito claro que é um manipulador e cada um sente que está sendo manipulado. (...) E o material somos nós. (...) Eu não me vejo como criadora, eu me vejo muito como realizadora. 5

Ser um “manipulador” talvez signifique saber de antemão o que deseja e lidar com o ator como seu material. Na encenação centralizada, a unidade da linguagem depende da habilidade do diretor em conduzir os elementos cênicos. No caso de Gerald Thomas, isso significa não dizer onde pretende chegar, mas dizer aquilo que fará com que o ator chegue onde ele pretende. Ele não fala de suas motivações como dramaturgo (evita fazê-lo e, quando o faz, interrompe-se dizendo “você não precisa saber disso”6). Habilidoso autor dos processos de construção de seus espetáculos, ele se assemelha a um compositor-arranjador-maestro que rege seus instrumentistas no ato de criação, querendo extrair, como prevê Gordon Craig, “materiais em estado bruto” (apud Dort, 1988:176). Vera Holtz: Eu me sinto uma cor na mão dele. (...) Eu tenho que ser intensamente azul ou intensamente vermelho. (...) ele me escreveu o seguinte: “(...) Vera, me dê menos a coisa pronta, produza e invista mais na crueza.” (idem)

O ator não conhece o texto, recebe falas ou diálogos ao longo do processo, não participa da concepção do espetáculo, não se ocupa da narrativa, não racionaliza a trajetória do personagem. Dedica-se à elaboração individual do material fornecido (postura física, 5 6

Programa do espetáculo Eletra Com Creta. CEDOC/FUNARTE. Registro de ensaios do programa do espetáculo. 73


informações sobre o sentido de que deve revestir a cena, sobre a atitude do personagem), procurando na voz, no ritmo, na tonicidade, a interpretação orientada pela voz de comando.

Vera Holtz: A gente se volta muito pra dentro da gente e o próprio comportamento vai se modificando. (idem) Bete Coelho: Você faz uma cara de ódio, a sobrancelha de ódio, tem a perna que vai pesar, tem esse andar, essa paradinha, essa virada – você usou o teu físico. (...) Comigo é como se toda essa coisa exterior (...) e física se voltasse para dentro de mim e dentro de mim existisse um buraco enorme que eu não conhecesse e como se de repente eu visse que ali tem uma pedra estranhíssima que eu tô conhecendo naquele momento e é aquela cara que tá me dando isso. Aí vira o jogo, a brincadeira. Você vai lá dentro e volta, vai lá dentro e volta. E tanto o interior como o exterior são dentro. (idem)

Os depoimentos dos atores de Eletra Com Creta testemunham uma viva inquietação, positivamente angustiada. Não são os depoimentos nem a própria obra, no entanto, que permitiriam analisar o método de direção: apenas a observação direta dos ensaios, parte predominante do fazer da obra teatral, torna visíveis os princípios e procedimentos de criação do espetáculo, a dinâmica da autoria. Permite constatar, por exemplo, que a criação não é retilínea, não caminha para frente em direção à construção. Freqüentemente o autor apaga mais do que escreve. Apagar também é um ato autoral e aquilo que se apaga subsiste por trás do próximo traço, que precisou de algumas recusas para ser encontrado. O movimento de construção e demolição criativas não desenha uma linearidade. Bete Coelho: (...) neste trabalho não existe constância, é oscilante mesmo, é como o palco dele: tá sempre respirando, tá sempre pulsando. É muito contraditório, muito contraditório. Há uma necessidade de todo dia destruir alguma coisa. (idem)

A fala de Bete Coelho parece demonstrar a afirmação de Dieter Henrich na descrição da relação entre subjetividade e arte: “somente no tempo podemos pensar em fases do autoentendimento destacadas uma da outra, de modo que se possa falar de uma transformação na

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auto-interpretação” (Henrich, 2001:60). No caso de Eletra Com Creta, o movimento de escrever e apagar, que corresponde à dinâmica da autoria, diz respeito exclusivamente ao encenador: é sempre ele quem escreve ou quem apaga no ator os sinais da sua subjetividade.

3.2. FORMAÇÃO DA AUTORALIDADE EM APOCALIPSE 1,11

De outubro de 1998 a janeiro de 2000, o diretor Antônio Araújo conduziu um processo com o Teatro da Vertigem para a criação do espetáculo Apocalipse, 1,11, que se passava dentro de um presídio e, como os espetáculos anteriores, trazia uma interpretação visceral dos atores pela violação física e moral dos corpos, e foi criado em um processo colaborativo que reuniu na sala de ensaio atores, diretor, assistente de direção, assistente de dramaturgia e dramaturgo. Foram utilizadas diferentes fontes e técnicas de criação: - a experiência de vida e o imaginário do ator ativados por meio de diversas técnicas: vivência, jogos, improvisação, depoimento pessoal, workshops e escrita automática - material bibliográfico (textos literários e teóricos) e iconográfico sobre o tema, reuniões de análise e discussão - pesquisa de campo (entrevistas e visitas a grupos e instituições); - proposições cênicas do diretor, proposições textuais do dramaturgo e apropriação de cenas criadas por outros atores do processo. A direção estruturou os ensaios em uma seqüência que se repetia. Depois de uma hora de aquecimento com kempô, capoeira e meditação, os atores faziam uma “vivência” proposta pelo diretor que durava 30 minutos e era seguida de uma “escrita automática” e sua leitura para os demais. Com estímulo de um tema ou situação (tais como: O que você faria se tivesse apenas vinte e quatro horas de vida; quais os mortos que você julgaria; o que é o apocalipse 75


para você), o ator deveria explorar sua imaginação, concentrando-se principalmente na visualização, e interagir corporalmente com as imagens que afloram de sua mente, sem estabelecer relação com os demais ou com a voz de comando. Após o intervalo, faziam-se leituras de capítulos do Apocalipse de João e, em duplas e trios, o grupo preparava improvisações que deveriam ser planejadas em vinte minutos. Depois das improvisações, os atores apresentavam os workshops que tinham preparado em casa, a partir de um tema ou pergunta. “No workshop, mesmo que os demais atores participem, a autoria é sempre individual”. (Rinaldi, 2005: 60) O ensaio terminava com uma reunião para troca de impressões sobre o material do dia. A pesquisa de campo se dava em momentos pontuais do trabalho. “A produção diária e contínua de workshops e improvisações fazia com que os atores se sentissem num permanente brainstorm, num fluxo contínuo de criação” (p.45) Ao final de três semanas, Bonassi e Araújo fazem a decupagem do texto bíblico como roteiro, indicando o tipo de técnica que deveria gerar cada cena (improvisação, escrita automática, etc) para iniciar a segunda fase de trabalho, que dura novamente três semanas. De acordo com o planejamento, após a segunda fase se faria o aprimoramento do roteiro e, após a terceira e última fase de trabalho com os atores, a elaboração da primeira versão do texto. O planejamento previa um intervalo entre cada fase para reflexão sobre a produção daquele período, seleção dos materiais e organização da fase seguinte. Após a segunda fase de trabalho, diretor e dramaturgo elaboram um novo roteiro, mesclando imagens, textos, personagens e situações apresentados. Na terceira fase, o ator deveria seguir o texto escrito. Os temas passam a ser encaminhados a determinados atores, na perspectiva de uma distribuição das personagens. Todas as lacunas identificadas pelo diretor e pelo dramaturgo são colocadas como questão para o grupo na forma de tema para workshop, sem serem antecipadamente resolvidas, como 76


por exemplo: “o que é a utopia” ou “que imagem, texto ou cena você acha que deveria ser a primeira coisa que o espectador deveria ver ou ouvir no início do espetáculo?”. Nesta fase, há uma interferência maior do diretor, tanto no comentário e na seleção dos materiais quanto na indicação da abordagem dos personagens e da pesquisa de interpretação. Ao final de nove semanas de produção, há mais de 540 cenas criadas que, apresentadas à equipe, duram mais de cinco horas. A seleção do material e a escritura do texto final são feitas pelo dramaturgo em diálogo com o grupo. Depois, ainda de acordo com o planejamento, o grupo se reúne para decidir se dá continuidade ao projeto. Dando início à fase dos ensaios propriamente ditos, fazem-se estudos de composição física do personagem com base em pinturas que retratam figuras míticas e religiosas: relação entre peso e equilíbrio, linhas de assimetria, inclinações, oposições. O texto permanece em construção e desconstrução, como relata Miriam Rinaldi:

Já nos primeiros ensaios da cena, partimos para experimentações, ainda de maneira bastante solta e desprendida do texto escrito. Em geral, nosso procedimento era o seguinte: após ler a cena várias vezes, os atores mais o diretor dividiam-na em momentos, nomeando cada parte com uma frase ou palavra que sintetizasse ou remetesse à ação principal daquela unidade. (...) Depois, em cena, dilatávamos o tempo e as possíveis expressões sugeridas em cada unidade. Tentávamos valorizar e preencher as ações de cada parte, explorando seu potencial. (p.110)

Miriam Rinaldi faz algumas considerações que colaboram para o entendimento da especificidade da função do encenador neste método de criação. No início do processo, “não há um conceito prévio”, uma vez que “os critérios que balizam a seleção dos materiais nascem com a construção da obra” (p.16). Por mais que o diretor planeje o processo, “não há como garantir a qualidade dos workshops” (p.44), que não podem atender portanto à função de uma cena acabada, mas apenas como elemento propulsor da dinâmica que se estabelece ao longo do tempo e das mútuas e múltiplas interferências. Se o diretor planeja o processo imaginando

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colher um determinado resultado, a expectativa é frustrada, como mostra o depoimento de Fernando Bonassi à pesquisadora, no qual afirma que, por mais que tenham selecionado os temas para as improvisações, “o material que os atores trouxeram nunca correspondia aquilo que nós imaginávamos” (apud. Rinaldi, p.47). “O valor dos resultados não se deve a uma contribuição individual ou mesmo à soma das contribuições individuais, mas às múltiplas interações entre os criadores dentro do grupo” (p.156).

3.3. CRIAÇÃO COLETIVA E PROCESSO COLABORATIVO

Em seu dicionário, Patrice Pavis não define a criação coletiva como um texto e sim como um espetáculo elaborado pelo grupo. No entanto, o processo de criação, extremamente variável de acordo com cada experiência, pode priorizar a construção dramatúrgica, como acontece com o grupo La Candelaria. No livro “Teoria e prática do teatro”, 1988, o diretor Santiago García descreve alguns processos em que a prática de improvisação tem por objetivo a investigação dos aspectos que envolvem determinado fato histórico estudado pelo grupo. Garcia nomeia etapas eminentemente ligadas à construção da dramaturgia, tais como “linhas argumentais”, “linhas temáticas”, “hipótese de estrutura”. Ainda assim, trata-se de um texto criado por aqueles que o encenarão, constituído por uma determinada concepção de teatro. O processo colaborativo, tal como foi descrito e definido por Antônio Araújo, consiste em um modo de criação conduzido pela idéia de autonomia de cada um dos elementos cênicos envolvidos e de compartilhamento entre eles. Este é um dos aspectos que o distingue da criação coletiva, uma vez que cada sistema possui especialistas diferentes e específicos. Ao contrário do que era tácito na criação coletiva, o processo colaborativo não prevê que o escritor conserve o material individual dos atores. Existe uma prioridade outorgada ao 78


espetáculo em detrimento do desejo dos autores envolvidos. Embora associado à pratica de um teatro contínuo, ele não se constitui como expressão de uma identidade, mas como contraposição e justaposição de diversidades cujo elo comum é o espetáculo, não o grupo. O texto, individualmente assinado, é saturado de interferências e contaminações7 que se verificam na dinâmica da sala de ensaio. O dramaturgo participa deste processo de construção e desconstrução, conferindo à sua escrita um grau de efemeridade semelhante àquele próprio à criação cênica. Foi a partir da inserção do dramaturgo no processo mutante da performance que Rubens Rewald (1998: 34), identificou a existência de uma instância que ele chamou de autor-espectador, aquele que vê o texto encenado à medida que escreve, percebendo outras possibilidade de leitura e agregando esta experiência à escrita. Antônio Araújo define o processo colaborativo como uma dinâmica criativa em que “todos os integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, sem qualquer espécie de hierarquias, produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos” (Araújo, 2002: 43). Não se trata portanto de uma técnica usada pontualmente em uma área ou etapa da elaboração do espetáculo, mas de um procedimento que abarca todo o percurso criativo e todas as áreas.8 A criação permanece provisória, pois o não há um elemento anteriormente acabado em torno do qual os demais se lancem à experimentação, como afirma Antônio Araújo na dissertação sobre a Trilogia Bíblica: A perspectiva do compartilhamento não é apenas entre outros colaboradores e o dramaturgo, mas de todos com todos, simultaneamente (...). Portanto, cumpre falar de uma encenação em processo, de uma cenografia em processo, de uma sonoplastia em processo e assim por diante, com todos esses desenvolvimentos juntos compondo o que chamamos de processo colaborativo. (p. 46)

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ANDRADE, 2000. Este princípio distingue o processo colaborativo de laboratórios de dramaturgia ou de experimentações e colaborações exclusivamente voltadas para o texto ou de apropriações, pela encenação, de elementos verbais produzidos pelos atores no processo de ensaios. 8

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O processo colaborativo conta com a presença de todos os autores (mesmo que o dramaturgo ou o cenógrafo, por exemplo, formalize seu trabalho em um espaço reservado e individual, é ali que ele o experimenta e é supostamente dali que ele colhe material), fazendo com que inexistam criações à margem do percurso coletivo. Trata-se de uma obra em contínua formação e transformação. Na revista Sala Preta n.º2, 2002, Adélia Nicolete estabelecendo um paralelo entre a criação coletiva dos anos 70 e o processo colaborativo, afirma que em ambos os procedimentos “o dramaturgo desceu, finalmente, de sua torre de marfim e foi para a sala de ensaio” (Nicolete, 2002: 319), e que, na criação coletiva, apenas “em alguns casos, as funções de dramaturgo/organizador e diretor/coordenador eram desempenhadas pela mesma pessoa” (p.324). No entanto, não encontramos, nas fichas técnicas da época, nenhum espetáculo em que o termo “criação coletiva” seja acompanhado de uma assinatura em dramaturgia; quando a função existe dentro da sala de ensaio, ela recebe o nome de “roteiro” e/ou “concepção”, sendo assinada pelo diretor, e neste caso, o termo “criação coletiva” não é utilizado. 9 Certos grupos – Asdrúbal Trouxe o Trombone, Navegando, Pão&Circo, Jaz-o-coração – utilizam a criação coletiva em alguns de seus espetáculo, enquanto outros – Pod Minoga, Diz-ritmia, Manhas e Manias, Contadores de Histórias – fazem deste processo o elemento definidor de sua linha de trabalho. É curioso notar, no caso do Asdrúbal, o modo como os créditos mudam ao longo da trajetória do grupo. Nos primeiros espetáculos, que são, mais que releituras, triturações de um texto de base, o crédito ao grupo é feito na função “adaptação”. Na segunda fase, a criação coletiva tem assinatura do grupo, com “direção e texto final”

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Utilizamos como fonte o livro de Silvia Fernandes sobre os grupos teatrais nos anos 70 e a Enciclopédia de Teatro Brasileiro Itaú Cultural. 80


assinados por Hamilton Vaz Pereira. No último espetáculo, o diretor Hamilton Vaz Pereira assina “concepção, roteiro e direção” e já não há crédito autoral para o grupo. A criação coletiva, tal como foi praticada no Brasil dos anos 70, significou sempre a supressão do dramaturgo. O diretor está sempre presente nas fichas técnicas, com exceção do grupo Pod Minoga, que suprime também esta função e todas as demais, e assina unicamente o nome do grupo em “criação coletiva” e “produção”. Antônio Araújo, a seu tempo, necessita afirmar idéias como compartilhamento, colaboração, contaminação, efemeridade, porque existem funções individualizadas, embora com outras atribuições. Enquanto que, na criação coletiva, os atores e o diretor assimilam as demais funções do espetáculo, o processo colaborativo recupera as funções especializadas e o campo autoral individualizado. Outra distinção importante entre as duas modalidades de criação, é que nos espetáculos de criação coletiva dos anos 70 o grupo era anterior ao projeto, ou seja, estava já reunido quando tratava de se colocar a pergunta “o que faremos”, ao passo que os espetáculos produzidos em processo colaborativo a partir dos anos 90 nascem de um projeto pessoal do diretor, que reúne a partir de então a equipe de que necessita para empreender a criação. A colaboração entre territórios autorais preservados aumenta a tensão entre os autores, principalmente em relação à dramaturgia, uma vez que o texto impresso parece uma obra autônoma e individual, à qual podem se aplicar valores relativos à autoridade e à expressão de um sujeito individual. O modo como texto e cena se tecem mutuamente está em aberto, podendo haver diversos níveis e graus de relação entre eles. Em alguns casos, eles podem correr quase em paralelo. É o caso de O Livro de Jó, cujo texto foi fruto muito mais do diálogo do escritor com o material bíblico do que da resposta aos elementos surgidos em ensaio. Ao optar por uma menor contaminação, para usar o termo de Antônio Araújo, o escritor, 81


distanciado, resguarda seu território, sua técnica e seu estilo, preserva a estrutura literária, evita as irregularidades estruturais que surgem de um material cênico livre. Já no terceiro espetáculo da trilogia, o dramaturgo acompanha os ensaios e incorpora as criações dos atores e as sugestões do encenador. Em Apocalipse 1,11, 2000, Fernando Bonassi, diferentemente de Abreu, não recorre a tradições dos gêneros dramáticos e assimila no seu território autoral as contribuições de outras autorias, o resultado do encontro entre o texto e a cena. “Em O Livro de Jó, a gente não criou o texto, como em Apocalipse 1, 11, mas todos os atores experimentaram todas as personagens” (Sergio Siviero in VERTIGEM: 2002, 47). Pode-se perguntar se a função deste texto se torna cênica, sonora e volátil, como o próprio teatro, ou se ela se mantém agarrada às normas literárias, à leitura e à permanência autônoma. No segundo caso, dramaturgia e cena se mantêm como dois sistemas separados. Um bom exemplo disso é que no livro do Teatro da Vertigem a versão publicada do segundo trabalho não coincide inteiramente com aquela apresentada no espetáculo: Luis Alberto de Abreu quis que se publicasse o final escrito por ele e não aquele feito pelo grupo. O texto não absorve a performance, não abarca aquilo que vem da cena. Pode-se dizer que, neste caso, trata-se de um texto feito para a cena ou tratam-se de sistemas criados em paralelo e em comunicação? Dois pensamentos distintos, dois processos. Michael Vanden Heuvel, em Performing Drama/Dramatizing Performance, analisa que mesmo os textos tradicionais, trabalhados a partir da concepção performática, geram formas híbridas em que os elementos estruturais da dramaturgia são desestabilizados, uma vez que a performance descobre a “turbulência” dentro da ordenação (Heuvel, 1993: 100). Neste sentido, o texto de Luis Alberto de Abreu, que mostra a trajetória de um herói mítico e não apresentando um rompimento com a tradição dramática, foi confrontado com a escrita cênica

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elaborada pelo grupo e, deste modo, mesmo tomando um texto fechado, a cena esgarça a obra dramatúrgica, abrindo-lhe espaços internos e corrompendo sua linearidade. Ana Maria Rebouças Rocha Silva, na dissertação Poética cênica na dramaturgia brasileira contemporânea, 2001, levanta a hipótese de que os processos de criação dramatúrgica influenciariam ou mesmo determinariam a forma final do texto, resultando em uma

poética

original

distinta

dos

gêneros

dramáticos

tradicionais.

Analisando

comparativamente espetáculos, textos e métodos, a pesquisadora, embora verifique que há vínculos entre os processos e as formas deles resultantes, conclui que “o fato de um texto ser construído em sistema de parceria entre encenador e dramaturgo, com a participação colaborativa dos atores, não garante que haja uma forma específica decorrente deste processo” (Rebouças, 2002: 118). No entanto, pode-se supor que, se o processo colaborativo ocorre com o dramaturgo na sala de ensaio, haverá um maior hibridismo na obra final. A diversidade de vozes e funções supostamente conferirá ao espetáculo um traço narrativo específico – a falta de linearidade, de unidade, de continuidade.

E por mais que lidássemos com obras literárias que narravam determinados mitos, nossas improvisações nunca – ou quase nunca – produziam enredos concatenados nem contavam histórias. (...) Por que não abolir a idéia de construção de uma narrativa e da presença de personagens condutores? (Araújo, 2002: 52)

Diversamente dos espetáculos construídos dentro dos limites de cada função artística, o processo colaborativo, colocando em constante diálogo e intercâmbio os diversos sistemas criativos, procura criar certo entendimento, certa visão comum no acordo entre as partes. Cada autor, neste processo, tem sua liberdade reduzida em função do projeto coletivo, das proposições que interferem na sua criação, do imperativo de uma elaboração em conjunto e da negociação que por vezes necessita empreender. A perda da autoridade plena sobre seu

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território é acompanhada da mobilidade com que se transita da parte ao todo, de sua área específica à concepção da obra. Se o processo colaborativo cumpre a negação do “ator-linhade-montagem” (p. 42), é para transformá-lo em sujeito, mas um sujeito incompleto que necessita estabelecer parcerias consumar a autoria. Neste contexto, o conceito de técnica sai do sentido restrito de domínio de meios para uma área de interseção entre as diversas funções e resulta de “um comprometimento com um determinado tipo de teatro” (Meiches e Fernandes, 1999: 166). É comum se dizer que este processo consiste em fragmentar ou diluir a autoria. Esta formulação supõe a existência de uma matéria previamente existente que foi reduzida, como território submetido a partilha, como unidade desfeita em partes. O parâmetro desta visão é um modelo supostamente pleno (a obra fundada por um discurso individual e por isso estilisticamente fechado). No entanto, no aqui-agora do processo, não há a matéria inicial, não há a unidade como ponto de partida, nem há um teatro anterior subtraído da obra literária. Do ponto de vista da função-autor, há pluralidade. A idéia de autoria compartilhada comporta dois movimentos: aquele de compartilhar (distribuir) e aquele de compartilhar de (participar de). A autoria se realiza na reciprocidade do fazer. Nesta dinâmica, as funções agregam e cedem território. O processo de formação da autoria se instala na área dimensionada pela diversidade de autores e de funções, enfrentando o problema de encontrar o consenso dentro do dissenso tanto quanto permitir o dissenso dentro do consenso. O quadro que se segue coloca em paralelo as duas formas de criação – criação coletiva e processo colaborativo – para descolá-las do contexto histórico e defini-las a partir das funções e da estruturação do processo.

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CRIAÇÃO COLETIVA

PROCESSO COLABORATIVO

O texto não existe antes do processo

O texto não existe antes do processo

Os atores e o diretor elaboram a concepção, a Os atores participam da construção do construção e a produção do espetáculo espetáculo

Elimina-se o autor dramático como função Insere-se o escritor no processo de criação, específica e especializada como função individual e especializada

O ponto de partida para a experimentação O ponto de partida para a experimentação cênica é a proposta criada pelo grupo cênica e para a criação do texto é o projeto apresentado pelo encenador

O texto emerge da cena

O texto é construído em diálogo com a cena

As escolhas ligadas ao texto cabem aos atores e As escolhas ligadas ao texto cabem ao ao diretor escritor

Texto e cena são instâncias indissociáveis

Cabe ao diretor e ao escritor estabelecer a forma como se opera o diálogo entre o texto e a cena

O grupo se forma por afinidade entre os O grupo se forma por afinidade com o participantes e as funções se estabelecem no projeto, cada integrante sendo convidado processo pelo diretor a ocupar determinada função

Campo autoral coletivo

Campo autoral plural

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3.4. GRUPO E AUTORALIDADE

Na medida em que o processo teatral assimila as noções de performance, de roteirização, de teatro improvisacional, componentes empíricos relativizam a racionalidade metodológica, com diversas variações da relação entre projeto (concepção e planejamento) e processo (experimentação e percurso). O diretor da Cia dos Atores10 descreve um método baseado no flutuante aqui/agora da prática coletiva:

... não existe um projeto a priori, não existe uma autoridade a priori, não existe uma hierarquia a priori. Existe basicamente uma convivência. Nessa convivência, a maneira de cada um se colocar, a maneira do processo ser sugerido, do próprio repertório da companhia, é a maneira de se estabelecer uma maneira de trabalhar. Tudo isso vai 11 acontecer organicamente. (Enrique Dias, Fita 8, lado B)

A “maneira de se estabelecer uma maneira” é a forma como se faz a concepção do processo. No processo radicalmente empírico, ela está em aberto e decorre da interação entre os indivíduos. Supõe-se que este tipo de processo não pode prescindir de uma equipe experiente, que tenha tido tempo e terreno para disseminar internamente um vocabulário em comum ou no mínimo um entendimento sobre este fazer empírico.

... o método básico da companhia (...) é: chegou, bate um papo, tem uma música, começa a aquecer, vai aquecendo, vai aquecendo, vai enlouquecendo, vai pirando, quando vê a gente já criou um monte de coisa. Depois pára, conversa. Bom, o quê que a gente tem que fazer? Qual é o texto? O que é? (...) O espírito é esse. Tem um espaço, tem um lugar, tem – sei lá – uns objetos, umas roupas, o que quer que seja, tem esse espírito de “eu gosto disso aqui”. Eu gosto de chegar. Eu gosto de me aquecer, eu gosto de jogar, eu gosto de brincar, eu gosto também de avaliar o que eu tô fazendo, eu gosto de, mais ou menos, também, começar a estabelecer metas. (Dias,

Fita 9, lado A)

10

Fundada em 1988, Rio de Janeiro, com direção de Enrique Dias. Seminário de Teatro de Grupo 30 anos: aspectos da produção do teatro contemporâneo em São Paulo. A construção do intérprete no processo coletivo: teoria e práxis do intérprete, 24 de junho de 2003. São Paulo, Centro Cultural São Paulo. 11

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Esta breve descrição sugere um trabalho que se realiza de dentro para fora, da cena para a reflexão, da experiência para o planejamento. Sugere também que os primeiros elementos para uma concepção de projeto partem do ator em movimento. Este tipo de percurso se mostra bastante raro – mesmo na Cia dos Atores ele não chega a ser regra. Na maioria dos grupos contemporâneos, não apenas o projeto aglutina os atores mas também o diretor aglutina o próprio grupo. No Teatro da Vertigem, o projeto consta de tema, fonte, linha de pesquisa, motivação, definição de espaço - como em Apocalipse 1,11: Os atores receberam o novo projeto num misto de alívio e perplexidade. (...) Dessa forma, pela violência dos casos, a morte do índio pataxó se associava à chacina dos 111 presos, fato ocorrido em 2 de outubro de 1992. O dia do Juízo Final, profetizado por João, encontrava seu espaço metafórico nas celas dos punidos de um presídio de São Paulo. (Rinaldi, 2005: 5)

A função primeira do diretor seria conceber a idéia central, desenvolver suas bases teóricas, esclarecê-las aos colaboradores cuja função se inicia a partir deste momento. Diferentemente do Teatro da Vertigem, na Cia dos Atores a função do diretor parece ser a de colocar os atores em movimento não conclusivo de criação, para depreender desta dinâmica o “espírito” que emerge do coletivo. (...) o diretor tá ali para não estar muito. Ele tá ali para poder fazer que as pessoas vão, e não para ficar determinando (…) mantendo uma certa ludicidade, uma certa intuição, um certo espaço caótico, que é uma característica, eu acho, da Companhia dos Atores, uma certa anarquia positiva. A gente pode, quer dizer, especificamente eu posso ajudar a companhia a fazer o trabalho ir mais além se eu conseguir reconhecer o que é interessante nessa anarquia e o que é interessante em algum tipo de organização. (Dias, Fita 9, lado A)

Não fica evidente se esta prática emana do próprio grupo, se está presente pelo exercício dos anos de convívio ou se necessita ser construída por meio da condução do diretor. Mas, mesmo que os atores criem a partir de si mesmos, o projeto não nasce espontaneamente

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do exercício cênico mas do encontro entre ele e o olhar do diretor, que abriga um marcante componente autoral no exercício de reconhecer as portas que se abrem, os embriões passíveis de serem trabalhados de modo a gerar uma proposta de projeto e de encenação. O diretor, em tal função, busca a identidade artística do coletivo. Seu método – avesso a metodologias – persegue as questões que, naquele momento, reverberam no corpo e no jogo. O processo que deflagra a autoria não começa na mesa, mas no espaço. Quando passa pelo conjunto da equipe, a concepção do projeto pode significar uma das etapas mais difíceis e conflituosas, uma vez cada proposta é uma tentativa de interpretação sobre o grupo – quem ele é – e a projeção de um desejo – o que ele poderia ou deveria ser. O projeto necessita encontrar um ponto em comum entre as diversidades e não pode contentar inteiramente cada individuo. Como sintetiza Enrique Dias, em seu depoimento: “Eu tenho um lado que tem a ver com aquele consenso, mas que não se satisfaz com aquele consenso. (...) Então, esse lado fica ali ‘onde é que eu entro?, deixa eu ter o meu espaço’” (fita 9, lado A). Da tentativa do artista de abrir espaço no grupo para a sua subjetividade, resulta o conflito entre o indivíduo e o grupo. Tal processo pode se dar de forma racionalista ou empírica, pode ser fruto do diálogo e da negociação ou da experiência, ou mesmo conjugar ambas as práticas: ... acontece, muitas vezes, de uma peça ser escolhida quase no grito. É um ator que tá querendo sugerir aquele espetáculo por tais e tais motivos, e alguma hora, ele vai convencendo as pessoas que aquilo é interessante. Aconteceu comigo, no “Rei da Vela” mesmo. (...) Morria de medo do “Rei da Vela”. Não queria fazer “O Rei da Vela” (...). E a gente foi fazendo, foi ficando apaixonante, e foi acontecendo. Não houve uma decisão unânime, nada disso. (Dias, Fita 8, lado B)

Se a informalidade se define como método, elementos como a afinidade e o tempo de convivência substituem a hierarquia e o planejamento. Abrir mão da hierarquia das funções e

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do sistema racionalista de concepção metodológica e artística significa tomar o conflito da pluralidade como matéria prima: (...) você tem que conseguir conviver na fricção, senão é uma mentira. (…) Um teatro criativo tem que ter fricção. Tem que ter diferença. Tem que ter pluralidade, diversidade. (...) Para mim, é isso: eles são meus amigos, têm todos mais de 30 anos e a gente trabalha, a gente produz a liberdade e a liberdade produz a fricção. A fricção é o lance ali. É exatamente na fricção que vai acontecer, não é pelo “você agora faz isso”. Não. É na fricção. (Dias, Fita 9, lado A. Grifo nosso)

Quando afirma que o grupo produz a liberdade, o diretor da Cia dos Atores não se refere ao contexto social em que o grupo está inserido: ele nomeia a existência de um espaço interno de produção de subjetividade, de forma que os participantes possam agir liberados de regras, convenções e hierarquias. A “maneira de trabalhar” parece estar muito ligada à própria constituição do grupo. A centralização pode ser uma forma de compensação da falta de afinidade e de intimidade, quando por exemplo a companhia tem uma disparidade entre membros antigos e novatos, como mostra o depoimento de Georgette Fadel, da Companhia São Jorge12: ... o primeiro projeto eu escrevi inteiro, e nem mostrei muito pras pessoas. E agora, por exemplo, a gente escreveu um projeto, e a gente se reúne cinco vezes e todo mundo palpita muito no texto do outro. (…) chegou um momento que as pessoas deixaram de ser da companhia. E passaram a ser a companhia, sabe? (...) você deixa de ser objeto da coisa para ser sujeito. É exatamente isso. Isso é muito perceptível, pelo tom que a pessoa fala da companhia. Pelo como ela se coloca numa improvisação, pelo – sei lá – pela energia dela mesmo ali, pelo quanto ela tá inteira ou não ali, e isso no tempo, né? Porque tem atores que estão muito inteiros durante um mês, e depois, no segundo mês, já não estão mais. (Fadel, fita 10, lado A)13

O discurso de Fadel aponta um intervalo de tempo na comparação entre dois momentos – o primeiro de centralização e o segundo de coletivização – cuja transformação se explica 12

Fundada em 1998, São Paulo, com projeto coletivo. Seminário de Teatro de Grupo 30 anos: aspectos da produção do teatro contemporâneo em São Paulo. A construção do intérprete no processo coletivo: teoria e práxis do intérprete, 24 de junho de 2003. São Paulo, Centro Cultural São Paulo. 13

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pela passagem, na constituição do grupo, de um ator visitante a um ator integrante, ou, como ela mesma diz, do ator objeto para o ator sujeito. No começo do capítulo, tratamos de duas direções centralizadas, uma que trabalhava com o ator-intérprete, outra com a idéia de atorautor. O termo ator-objeto parece qualificar o intérprete, enquanto a noção de ator-sujeito dimensiona a autoria para além das áreas do espetáculo, envolvendo, com a prática contínua de um grupo, a concepção metodológica e estética. As diversas funções e modelos que um ator pode assumir não parecem inerentes a particularidades pessoais ou profissionais mas aos objetivos e à condução do processo. Talvez possamos dizer que reside no processo, e no conceito de teatro que se coloca em movimento, a especificidade da função do ator. Em certo sentido, o processo forma o ator que almeja. Bel Garcia, em depoimento para o livro Na companhia dos atores, diz: “Minha relação com a Cia foi esquentando aos poucos. Ela foi se fortalecendo com os espetáculos, com a relação com as pessoas, com a relação com os processos. E, hoje em dia, ela é a minha companhia.”14 Há grupos em que a formação antecede o próprio processo criativo ou se serve dele para preparar o ator e gradativamente retirá-lo da função de intérprete, que ele imagina ter sido chamado a desempenhar, para conduzi-lo à função de autor, que ele necessita de tempo e exercício para exercer. Entre estes grupos, a Companhia dos Atores de Laura 15 vem há mais de dez anos realizando um projeto que vai da pedagogia da interpretação ao exercício da autoria, e desenvolveu três processos de criação coletiva em que os atores eram estimulados a criar cenas e escrever os diálogos. Transcrevo a fala do diretor Daniel Hertz sobre os princípios de trabalho do grupo, que encerra, com suficiente clareza, a extensão e os limites desta autoria:

14 15

citado em DIAZ, OLINTO e CORDEIRO (org), 2006: 237. Fundada em 1993, Rio de Janeiro, com direção de Daniel Hertz e Susana Krüger. 90


Na Companhia de Teatro Atores de Laura, o processo é extremamente democrático. (...) porque a gente pensa que é fundamental (...) todos eles se sentirem meio que autores daquele trabalho, mesmo quando o texto é um texto pronto (...). Então, tem que se descobrir o processo pra produzir essa sensação de que todos são um pouco, assim, donos daquela bola mesmo, né? Isso tem conseqüências, boas e conflitantes. (...) E, nesse momento, tem alguns artistas da companhia que formaram um outro grupo porque eles queriam falar de uma questão que, naquele momento, não foi a questão que a direção queria encaminhar. E isso foi um momento interessante no grupo, um momento um pouco traumático porque sempre esse momento de cisão é um momento difícil, é um momento duro pro grupo (...) ele apareceu como produto de uma coisa que eu acho linda, que é essa capacidade que nós desenvolvemos ao longo dos anos, dos artistas todos se sentirem autores do processo da companhia. Eles são tão autores que, hoje em dia, eles querem tomar a decisão de qual é o próximo projeto. E isso é legítimo. Foi dado a eles o espaço pra desenvolver esse desejo. E, a partir disso, se formou um conflito dentro da companhia. Eu acho esse conflito muito interessante. (...) mas é o processo deles porque eu não me identifiquei. Não queria falar daquilo naquele momento. (Hertz, fita 8, lado A) 16

Para efeito de comparação, vejamos o que diz Enrique Dias sobre o seu papel na decisão sobre o projeto a ser encenado: Se eu for capaz de argumentar, ou de gritar mais alto, ou de botar o pau em cima da mesa, ou qualquer coisa do tipo – botar o pau em cima da mesa não vai funcionar, não funciona – eu vou conseguir fazer isso que eu tô querendo. Se eu não conseguir fazer isso, vai ficar o caos, aí eu vou ter que ver se eu gosto daquele caos a ponto de ficar ali, ou não ficar ali. (Dias, Fita 9, lado A)

Muitos diretores usam a palavra democracia para definir as relações de seu grupo. No entanto, em cada caso ela encontra um contexto distinto ou, podemos também dizer, limites específicos. Segundo Enrique Dias (que, a bem dizer fala em liberdade e não em democracia), sua proposta passa pela aceitação dos atores, que tanto podem recusá-la e seguir adiante quanto ele pode recusar o que está sendo proposto e, neste caso, não participar (Meu destino é pecar, por exemplo, teve Gilberto Gawronski como diretor convidado). Segundo Daniel Hertz, diante do desinteresse do diretor, os autores do projeto devem eles constituir um outro grupo.

16

Seminário de Teatro de Grupo 30 anos: aspectos da produção do teatro contemporâneo em São Paulo. A construção do texto no processo coletivo: pesquisa, experimentação e colaboração na construção da dramaturgia. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 17 de junho de 2003. Grifo nosso. 91


Na Cia dos Atores, o grupo está onde estiver o conjunto dos artistas e o projeto, não se vinculando a nenhum membro em particular. Na Cia Atores de Laura, o grupo permanece ligado ao diretor, cujo projeto será indubitavelmente realizado enquanto que o projeto dos atores deve passar por sua aceitação – um espetáculo com outro diretor não pode ser considerado projeto do grupo. A democracia neste caso encontra seu limite na fixidez do vínculo entre a função de diretor e uma pessoa específica. Trata-se, neste caso, do sujeito do grupo. Talvez por isso Hertz diga que considera fundamental que todos os participantes “se sintam meio que autores”, o que é diferente de dizer que todos são inteiramente autores. Os Atores de Laura podem ser autores de cenas em particular, de diálogos em particular, mas não do projeto, da concepção ou do processo. Por outro lado, a função do ator na prática do grupo, embora delimitada, abrange áreas técnicas, organizativas, de criação e produção da obra. Há diversas áreas de autoria no teatro: os personagens, a narrativa, a encenação, a concepção, o projeto, o processo. É possível que a distinção formulada por Georgette Fadel, entre o ator que é da companhia e o ator que é a companhia, esteja relacionada à possibilidade de empreender uma autoria plena, ou seja, desempenhar a função de sujeito em toda a extensão do processo. A autoria coletiva, em sentido estrito, partiria da pergunta primeira – o que queremos fazer? Seja por que meios e procedimentos ela se coloque, a pergunta só parece possível em um coletivo que se reconheça como tal ou, no mínimo, em que o ator seja chamado a esta função, que se disponibilize para ela e que esteja apto a desempenhá-la. Em alguns casos, a opção pelo teatro de grupo como modalidade artística está intimamente relacionada à possibilidade de chegar à autoria coletiva plena, que abriga uma utopia: Eu acho que isso não é uma premissa dessa nossa época, mas uma grande possibilidade. Uma dádiva da nossa época. Que a gente possa perceber que é possível fazer conviver indivíduos fortes num coletivo forte. (...) A gente conseguir construir uma inteligência coletiva – e o teatro é um ambiente mais do que fértil para isso – a

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gente tá falando desse ator-cidadão, desse ator que interpreta a realidade, da possibilidade de construção de um coletivo inteligente. Ou seja, com indivíduos inteligentes, indivíduos inteligentes e potentes pra um coletivo, como a gente nunca viu. (Fadel, Fita 10, lado A)

O discurso parte de uma diretora que fez a opção pelo teatro de grupo e que empreendeu, em sua companhia, uma trajetória com o objetivo de chegar à coletivização, de forma que os atores se tornassem autores do projeto e do processo. Para isso, estruturou seu trabalho como diretora e fez opções nas áreas organizativa, artística, ética e técnica em consonância com este objetivo – como, por exemplo, manter uma rotina fixa de trabalho independente da criação e da produção de espetáculos. Podemos comparar seu discurso, que emerge deste contexto específico, com outra citação de um diretor que não tomou para si a tarefa de constituir e dar formação a um conjunto de atores para transformá-los em um grupo de acordo com um modelo específico, uma vez que sua companhia se constituiu depois da experiência dos primeiros espetáculos. O pensamento de Enrique Dias é elaborado num contexto em que os atores, antes de assinar a autoria de um projeto ou mesmo de um processo, foram autores do próprio grupo: A perspectiva daquilo deixar de existir, por exemplo, é uma instância que sempre existe, sempre existe. (...) as pessoas estão ali porque elas querem estar ali. E querem estar com aquelas pessoas, e só existe porque isso acontece. (Dias, Fita 9,

lado A)

Este discurso explicita que não está sob o controle de um indivíduo o projeto e a continuidade da companhia, porque não foi apenas por uma ação individual que ela se fundou. A maioria dos atores e o diretor se conheceram no colégio e fizeram juntos seu primeiro curso de teatro – “creio estar aí a semente de tudo.”, diz Gustavo Gasparini (apud Diaz, 2006: 244). A formação da companhia, se foi uma iniciativa do diretor – “não dá pra negar a figura do

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Kike como centralizadora desse processo (...) foi o Kike que chamou, que juntou umas pessoas em torno de si” (Bel Garcia, idem, p.236) – encontrou respaldo em um terreno de relações de afinidade. No primeiro momento, a formação do grupo se baseia nos pontos de semelhança,

... vem de um encontro de pessoas que resolveram pensar em teatro, formas de atuação, em afinidades. Ela se formou como um congraçamento de pessoas que têm as mesmas idéias, as mesmas vontades artísticas e ideais. (César Augusto, idem,

p.239)

Neste movimento, a identidade que se vê ou entrevê entre os outros e sua consonância com o desejo individual caminham juntas. A confluência entre o “eu” e o “nós” oferece possibilidades para o coletivo alavancar o projeto individual e vice-versa. Desta forma, o surgimento do grupo se deve à necessidade de:

... se aglutinar e dialogar e ter interlocução com pessoas que pensem parecido, que se propõem a discutir, a questionar o fazer e o querer fazer teatro. (...) o que a gente pode fazer, o que a gente pode querer fazer, o que eu quero fazer, o que eu quero falar, como eu quero falar, isso nos uniu. (Olinto, idem, p.237/238)

Na Cia dos Atores não apenas o processo e o projeto tendem ao empirismo, mas o próprio grupo se constituiu empiricamente. E quem sabe se a primeira característica não descende da segunda. Talvez isso explique tanto a coletivização quanto a constituição de um espaço aberto às subjetividades e a consciência de que delas emerge o coletivo, diferentemente dos grupos fundados antes das relações, como projeto de um diretor. Se as afinidades exercem papel importante na constituição e manutenção do grupo, o processo de discussão do “fazer” e do “querer” apresenta as diferenças. O conflito das diferenças é mais acirrado e incômodo nos primeiros anos – com o tempo, os integrantes reconhecem que ele potencializa a criação e a própria formação estética e ética do grupo:

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... a química da Cia são as pessoas, são os atores, é o grupo. A gente tem que, cada vez mais, ser generoso, ver as diferenças das pessoas e entender as diferenças, usar as diferenças para criar o coletivo. (Bel Garcia, p. 237) Somos um grupo, mas não somos iguais. Pensamos e desejamos de diferentes maneiras. E talvez seja essa a nossa maior riqueza. (...) Para um grupo é bom ter um perfil, mas como ator prefiro não me enquadrar em nenhuma máscara e buscar a pluralidade. (Gustavo Gasparini, p.245)

A segunda frase de Gasparini aponta uma questão da relação ator/grupo, que se torna especialmente difícil nos tempos atuais. De um lado, o grupo tende a definir uma linguagem e uma identidade; de outro, valoriza-se a pluralidade, a mutabilidade e a não permanência. A autoria coletiva poderia ser definida então como o processo pelo qual um conjunto de artistas trabalha na formação de um modo de criação, dando-lhe forma e conceito, sendo ambos os procedimentos – formação e formalização – dinâmicos, simultâneos, não lineares, não progressivos, mas cumulativos, e a partir de indivíduos que, pelo objetivo da criação, se colocam em questão, quer dizer, se abrem à crise. O espetáculo apresenta uma espécie de jogo de embate e conciliação de subjetividades que se organizam para funcionar em conjunto. A aparente harmonia com que os elementos funcionam na obra concilia, na representação, as tensões e os conflitos inerentes a este processo, que não foram eliminados, mas que encontram um consenso para permitir uma fixação da forma. Um grupo-autor instaura uma tensão entre os valores que cultiva entre si – e que pretende afirmar artisticamente – e os valores socialmente aceitos – em relação aos quais ele pretende se contrapor. Lá onde se cultivam valores que ele recusa é também onde ele imagina encontrar o público que poderá acompanhá-lo, partilhando de suas obras. A tensão entre o “dentro” e o “fora” do grupo podem ser sua principal ferramenta no desafio de escapar do teatro sem autoria, elaborado pelo moto contínuo da profissão e da tradição. No contraponto a este modelo, a originalidade se associa à transgressão. A constituição de um grupo que, com a

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experiência de diversos processos, tem a oportunidade de amadurecer suas relações pessoais e artísticas, se apresenta como um terreno propício ao exercício da autoria coletiva. O grupo reúne regras, convenções e valores próprios e se constitui como espaço de privacidade em relação ao mundo. Ao mesmo tempo, para cada um dos integrantes de um grupo, o coletivo é um espaço público, com o qual ele freqüentemente entra em conflito e cujas escolhas ele pode elaborar e questionar. Se a democracia capitalista se revela excludente e gera, no mundo contemporâneo, um controle das subjetividades, no grupo teatral a produção de subjetividade constitui sua experiência histórica e coletiva. Nesta abordagem, o processo de criação significaria a tentativa de dar forma a esta subjetividade e torná-la pública, sendo a apresentação do espetáculo o momento em que ela entra em contato com o mundo procurando eco junto a outras identidades, outros indivíduos. A concepção coletiva do processo e do projeto só parece possível em equipes que gozam de experiência e memória comum, sendo a experiência da coletivização posterior a um período de questionamentos e reflexões sobre esta memória. “Podemos dizer que a memória de um trajeto artístico coletivo teria funcionado como uma espécie de fonte luminosa para o percurso a ser cumprido até a estréia”, escreve Fábio Cordeiro dos Santos (2004: 62) sobre a primeira criação coletiva da Cia dos Atores. Antes do início do projeto de A Bao A Qu17 há um período de gestação e amadurecimento da identidade teatral coletiva. “Questões estéticas foram sendo reelaboradas, reaproveitadas, como procedimentos de criação, assim como na constituição de códigos de linguagens cênicas” (p.56). A experimentação cênica funciona como propulsora da concepção dramatúrgica, sendo o primeiro elemento de criação e norteador dos demais. Sobre o processo de criação de Melodrama, Santos escreve:

17

Estréia no Teatro Sérgio Porto, Rio de Janeiro, julho de 1990, com direção de Enrique Dias. 96


Antes da formação da equipe de pesquisa dramatúrgica, Diaz e os atores já buscavam reunir materiais “melodramáticos”. (...) Os chamados “cocos” são textos escritos pelo elenco, em uma fase anterior a presença de Filipe Miguez, que ao ingressar na equipe de criação, os recebeu como primeiros materiais a serem trabalhados. O termo “cocos” é na verdade um deboche interno frente a estes textos, que teriam qualidades até certo ponto duvidosas. Talvez por isso teria surgido a necessidade de contar com um dramaturgo na equipe, que garantisse alguma “qualidade dramatúrgica” ao projeto. (p. 63)

O mesmo acontece com a concepção da direção para O rei da vela, elaborada numa fase posterior a um longo período de prática e reflexão – debates com o elenco, com a equipe de direção, sessões de improvisações, exercícios técnicos e workshops. Se, em Melodrama, personagens, cenas e roteiro se originam da circulação de materiais promovida pela dinâmica artística, em O rei da vela, a concepção e a autoria do espetáculo, “como noção absoluta sobre o objeto, não parece ser fixável em uma única função teatral”, sendo móvel e “simultaneamente individual e coletiva”. (p.80) A observação leva o pesquisador a concluir que a companhia pratica uma autoria coletiva em que “o encenador não estaria no ‘topo da hierarquia de autorias’, mas talvez, no centro, como um eixo de articulação”. (p.120) Grifamos dois aspectos que parecem interligados: a configuração da autoria e o lugar do diretor. De um lado a possibilidade do exercício da autoria encontrar uma configuração de tal forma móvel e descentralizada que as instâncias individual e coletiva se fundam. De outro, a sugestão de um reposicionamento do diretor no processo, retirando-se do alto da pirâmide e deslocando-se para o centro – o que faria mover toda a estrutura para uma circularidade. O coletivo, por mais coeso que se pretenda, não consegue agir como um corpo único. Mesmo na estrutura de um grupo experiente, qualquer iniciativa a que se poderia chamar de coletiva não se constitui senão como uma série de iniciativas individuais que se confrontam e se completam de modo a produzir, como resultante, uma ação amadurecida pelo processo de participação. Por outro lado, a ação do indivíduo pode se fechar em si mesma, fruto de uma

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motivação individualista, ou apontar para o coletivo, movida por um objetivo de compartilhamento. Parece ser este segundo tipo aquele que se encontra mais freqüentemente em certos grupos. Neles supostamente existiu um processo de formação que permite ao indivíduo o norteamento de sua ação, uma vez que este espaço “além de si” se apresenta como uma extensão de si (ainda que parcial, como aponta Enrique Dias ao falar de “consenso”). A autoria coletiva estaria ligada ao exercício de ações individuais colaborativas de tal forma dialógicas e generalizadas (não restritas a um momento ou área específica), que a idéia de posse e de território se minimiza. Podemos dizer que nestes casos a propriedade autoral se recolhe às áreas de não interseção entre funções. A configuração circular espelha a coletivização. E talvez o diretor não apenas deixe de ocupar o topo da pirâmide como possa abandonar o centro deste espaço, colocando-se como integrante da circularidade. Então seria necessário falar em uma poética do teatro de grupo, que comporte a conotação política e estética que associamos a esta categoria, embora nem sempre seja aplicada pelos grupos de teatro – uma poética segundo a qual os integrantes de um grupo o orientam em sentido próprio, criando um teatro marcado pela alteridade.

3.5. ENCENAÇÃO E AUTORALIDADE

A noção de escrita cênica, que sustenta a autonomia da arte teatral, compreende duas modalidades de estrutura organizativa e de processo de criação do teatro contemporâneo: de um lado, a estrutura piramidal cujo diretor imprime no espaço e no corpo do ator a escrita de uma subjetividade particular; de outro lado, a estrutura circular em que o diretor e os atores costuram a escrita de um alfabeto coletivo. O “gosto pelo absoluto” e a criação coletiva partilham um mesmo tempo histórico e, em certos casos, um mesmo espaço cênico: 98


Vale notar que encenadores como Peter Brook e Ariane Mnouschine, se dizem grupo e no entanto são fortemente centralizados. Há assim uma esquizofrenia: por um lado a arte suprema destas companhias está na encenação, por outro lado coloca-se em questão a organização teatral e a relação entre as pessoas. (Bruno Tackels, em palestra no Itaú Cultural, por ocasião do Próximo Ato, São Paulo, novembro de 2006)

Cabe perguntar se a “esquizofrenia” não constitui intrinsecamente o paradoxo do teatro contemporâneo: a valorização do espetáculo como obra de assinatura individual e a valorização da originalidade que emerge de um processo coletivo de criação. A configuração da autoria que se ergue sobre estes dois pilares – coletivo e encenação – varia de acordo com cada encenador e cada grupo. Em um extremo, pode-se colocar o ator que fornece material bruto, partituras a serem selecionadas e editadas pelo encenador; em outro extremo, o ator participa do projeto em toda a sua extensão, da concepção à composição da obra. Quanto maior a flexibilização das funções, maiores os conflitos de que se constitui o processo. Vem daí o seu sentido político – e, podemos dizer, mais profundamente político do que aquele restrito a formulações verbais ou fabulares da obra acabada. Nas práticas teatrais em que a sala de ensaio se torna o lugar onde se engendra o projeto, o fazer teatral resulta do diálogo da equipe e a concepção se detém sobre o processo. A função do encenador sofre uma transformação paradigmática, uma vez que já não se trata da competência de realização de uma idéia, da fisicalização de uma linguagem, mas da fundação das formas e das relações de criação. Ele não pode mais ser comparado ao pintor que assina o quadro: ele está diante do espaço e da necessidade de conceber a gênese da autoria, de promover a apropriação dos meios de produção da subjetividade, individual e coletivamente. Sua concepção se refere, antes de tudo, à função que ele confere a si próprio e aos demais:

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como configura o coletivo, como coloca em relação os diversos autores, através de que caminhos deflagra a autoralidade. Se na modernidade admite-se que o sujeito, ao invés de determinar as relações, é justamente por elas definido, também a função do ator se forma na dinâmica do processo. A possibilidade de reconhecer em um grupo a presença da categoria de “ator-autor” não está ligada à existência prévia ou não de um texto, à presença ou não do dramaturgo na sala de ensaio, mas à concepção do teatro como lugar de uma pluralidade autoral, à renúncia ao espetáculo como unidade forjada por uma função singular. A noção de espetáculo como unidade corresponde a uma configuração piramidal da autoralidade. No topo está o diretor como autor do espetáculo, função que concentra a concepção da obra e centraliza as relações chamando para si cada elemento e cada criador, que mantém com ele um diálogo privado e exclusivo. A noção de pluralidade, ao contrário, postula a autonomia dos discursos artísticos, sem que haja predomínio de um elemento sobre os demais: o encenador, ao invés de soldar os elementos em uma unidade de estilo e um sentido comum, promove o afastamento entre eles. A autoria coletiva, ao contrário, se configura por meio do constante e quase exaustivo diálogo coletivo que, se não forma necessariamente um sentido unificador, promove a mútua interferência e mútua contaminação entre os autores. O encenador não se toma para si a exclusividade de interlocução das demais funções artísticas mas, ao contrário, coloca em circulação as diversas subjetividades. Nas três concepções, portanto, o diretor desempenha um papel fundamental, embora distinto. A terceira via de configuração da autoria toma a pluralidade não como objetivo mas como ponto de partida, matéria-prima para o diálogo e o conflito das diferenças. Neste tipo de processo, a autoralidade avança além dos territórios individuais que produzem fragmentos 100


criativos a serem inseridos na obra: ela se projeta no espaço que se estabelece como território existencial coletivo. A concepção sai da privacidade para o espaço público da sala. Se ao “euautor” plural vem se reunir um “nós-autores”, pode-se falar então em produção de uma subjetividade coletiva, fonte para a coletivização da autoria. Neste caso, ao invés daquela “esquizofrenia” apontada por Bruno Tackels, talvez se possa falar em hibridismo, como no exemplo da Cia dos Atores (RJ), em que, no campo das decisões artísticas, “ora as escolhas são totalmente do diretor, ora são coletivas” (Santos, 2004:58). O diretor Enrique Dias, ao se referir ao modo de criação do grupo, considera que os atores são ghosts directors, uma vez que...

... em todos os espetáculos há sempre uma ou mais proposições estéticas que são lançadas como enigmas e que são seguidas de uma busca incessante de verificações, raciocínios, questionamentos, novos materiais, dúvidas e conclusões, sempre feitas em grupo. (Enrique Dias, programa do espetáculo Melodrama, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 1995)

A noção de autoralidade nasce em função do processo criativo, quando já não se necessita lutar pela autonomia do teatro em relação à literatura, quando o encenador foi liberado de delimitar o seu território em uma autoria individual. As três concepções de autoralidade – como unidade, como pluralidade e como coletivização – divergem estética e eticamente. Teoricamente o teatro de grupo seria a modalidade organizativa mais propícia ao exercício de um modo coletivo de criação, mas apenas se admitirmos que o conceito “grupo” tem uma motivação político-existencial que antecede a obra e se instaura na fundação do coletivo-autor, passando inevitavelmente pelo modo como o diretor exerce sua função.

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