Histórias de Amor Liquido

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“HISTÓRIAS DE AMOR LÍQUIDO” Texto Teatral de Walter Daguerre


“HISTÓRIAS DE AMOR LÍQUIDO” Texto Teatral de Walter Daguerre 4º tratamento – Julho de 2010

BREVE NOTA DO AUTOR Este texto nasceu de uma inspiração: a leitura de “Amor Líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos”, de Zygmunt Bauman. Mas “Histórias de Amor Líquido” não é uma adaptação do livro desse respeitado – e cada vez mais admirado – pensador polonês. A área de atuação de Bauman é a sociologia, e seu livro se inscreve nesse gênero. Esta peça é uma reunião de três histórias originais, de ficção, que buscam formar um panorama contemporâneo sobre afetos humanos. O que de Zygmunt Bauman permanece neste texto teatral é, em primeiro lugar, a exploração de um conceito: a idéia de líquido, de liquefação. Para Bauman, o mundo pósmoderno, globalizado, é marcado por relações que se estabelecem com extraordinária fluidez, que se movem e escorrem sem muitos obstáculos, marcadas pela ausência de peso, em constante e frenético movimento. E essas características serão encontradas, também, nos relacionamentos amorosos. As histórias deste texto – Rua Sem Saída, A Corretora e A Casa da Ponte – possuem ao todo 13 personagens, mas foram escritas para serem encenadas por apenas cinco atores. Elas possuem outra característica importante: estão fragmentadas ao longo do texto. Essa dinâmica foi proposta com o objetivo de aproximar a forma do conteúdo, porque a liquefação das relações contemporâneas estará exposta também no fato de uma história se misturar com a outra, obrigando os atores – que dobram papéis – a passarem de um personagem para outro com extrema rapidez e desenvoltura. Rapidez e desenvoltura estas que parecem igualmente caracterizar os relacionamentos amorosos em nossos dias.

Walter Daguerre

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RUA SEM SAÍDA Personagens: Graça (ATRIZ 1) Zé Carlos

(ATOR 1 )

Marcus

(ATOR 2 )

Teresa

(ATRIZ 2)

Raquel

(ATRIZ 3)

A CORRETORA Personagens: Antonio

(ATOR 1 )

Maritza

(ATRIZ 2)

Rudson

(ATOR 2 )

Michele

(ATRIZ 3)

A CASA DA PONTE Personagens: Ricardo

(ATOR 2 )

Sofia

(ATRIZ 1)

Pai

(ATOR 1 )

Mãe

(ATRIZ 2)

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CENA 1 Madrugada. Na esquina de uma rua sem saída encontra-se uma cabine, dessas usadas como abrigo para vigias. Zé Carlos, 50 anos, caminha vagarosamente vestido de jeans, camisa branca e um colete preto em cuja parte de trás está escrito “Apoio”. Zé Carlos carrega um radinho de pilha colado à orelha. Do rádio mal sintonizado sai uma música romântica, americana, dos anos 80. O rádio falha. Zé Carlos tenta sintonizá-lo, até que desiste e o desliga. É nesse momento que ele ouve um choro de mulher, baixinho, vindo de dentro da cabine. Zé Carlos tira uma lanterna do bolso de trás da calça e a aponta para a cabine. O choro desaparece, engolido. Graça, 30 anos, vestida como se estive acabado de desembarcar dos anos 50, sai de dentro da cabine, lentamente e de cabeça baixa. Ela funga sem parar. Zé Carlos guarda a lanterna e tira do bolso um lenço. Oferece o lenço à Graça. Ela pega o lenço, enxuga as lágrimas e limpa o nariz. O lenço se mancha de sangue. Graça fica constrangida. Guarda o lenço na bolsa. Ele permanece ao seu lado, simplesmente olhando pra ela. Graça recomeça a chorar. Ela tira o lenço da bolsa e o recoloca no nariz. Zé Carlos vai até a cabine, pega sua cadeira e a coloca do lado de fora. Ele faz com que Graça se sente com a cabeça pra cima. Ele volta à cabine e pega uma garrafa térmica. Ele tira a tampa da garrafa e despeja café ali mesmo. Bebe num gole só. Olha para Graça. Sai da cabine com a garrafa térmica na mão. Oferece o café a Graça. Enquanto sua mão permanece esticada pode-se ver a fumaça que sai do líquido. Graça guarda novamente o lenço na bolsa. Olha para a tampa cheia de café e para Zé Carlos antes de aceitar a bebida. Ela bebe em pequenos goles, porque o café está bastante quente. Ele só a observa. GRAÇA

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Tão cansada... Graça termina de beber e estica a mão devolvendo a tampa da garrafa térmica. Zé Carlos vai por mais café na tampa, mas ela faz um gesto com a mão dizendo não querer mais. Ele despeja mais café na tampa e bebe. GRAÇA O lenço. ZÉ CARLOS Não importa. GRAÇA Lavo e devolvo. ZÉ CARLOS Trabalho todas noites nessa rua. GRAÇA Talvez eu só possa vir no sábado, ou no domingo. ZÉ CARLOS Todas as noites. Graça se levanta. Sorri nervosa para Zé Carlos. Caminha em direção ao lado oposto da cabine. ZÉ CARLOS Essa rua é sem saída. Graça pára. Olha para Zé Carlos. Caminha na direção contrária. Pára. GRAÇA Tem uma garrafa d’água na cabine. Gelada. Pode ficar. Zé Carlos a acompanha com o olhar até que ela saia definitivamente. Então, põe mais café na tampa e bebe.

CENA 2 Maritza, 40 anos, está em seu home office, sentada em frente ao laptop, vestindo apenas um roupão de seda. Ela abre um dos inúmeros frascos que tem sobre a mesa

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e toma um comprimido com goles de chá de ervas. Antonio, 45 anos, levanta-se no meio da madrugada. Olha o corpo da mulher que dorme em sua cama. Acende um cigarro sentado na ponta da cama. Cata seu celular e faz uma ligação. MARITZA Sim. ANTONIO Te acordei? MARITZA São quatro e meia da manhã de uma terça-feira. ANTONIO Ligo depois. MARITZA Eu estava acordada. ANTONIO Acompanhada? MARITZA Não costumo dividir minha vida pessoal com meus clientes. ANTONIO Eu só queria... MARITZA Nesse momento eu estou na companhia de pessoas do mundo todo, acompanhando o movimento das bolsas asiáticas. É o que eu chamo de long after market. ANTONIO Trabalhando às quatro e meio da manhã? MARITZA Me ligando às quatro e meia da manhã? ANTONIO Nem sei por onde começar.

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MARITZA Pelo começo. ANTONIO É a Viviane. MARITZA Como está a relação de vocês? ANTONIO Muito bem mesmo. MARITZA Então? ANTONIO Esse é o problema. MARITZA Entendo. Onde ela está agora? ANTONIO Aqui no quarto. MARITZA Quer me ligar de um outro cômodo? ANTONIO Depois que ela toma um Diazepan dorme profundamente até bem tarde. Ainda mais depois de trepar. MARITZA Vocês estão num ótimo momento da relação, tiveram uma intensa noite de amor e ela ainda consegue dormir com um simples Diazepan. Foi por isso que você me procurou? Não era melhor você ligar para sua analista? ANTONIO Ela me diria o oposto do que eu acho que você vai me dizer. MARITZA Provavelmente. ANTONIO

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A Viviane, ela... Ela está muito envolvida na nossa relação. MARITZA Esse tipo de coisa acontece. ANTONIO Essa noite ela falou que quer ser mãe. Ela quer ter um filho meu. MARITZA As pessoas dizem coisas muito estranhas entre um orgasmo e outro. ANTONIO Ela quer largar a carreira de modelo pra ser mãe – mãe do meu filho. MARITZA Parece sério. ANTONIO Eu sei que é sério. MARITZA Um instante. Deixa eu acessar sua ficha. Maritza abre um arquivo do computador. MARITZA E se eu te disser que nesse momento um filho pode representar uma alavancagem para os seus negócios? ANTONIO “Alavancagem”? MARITZA Um financial leverage. É uma operação de risco, mas se utilizada na hora certa promove altos ganhos. Para alguns empreendimentos um filho é a própria salvação dos negócios. Mesmo que Viviane desista agora da carreira, seu patrimônio líquido se manterá acima dos oito dígitos, em Euros. ANTONIO Não estou preocupado com dinheiro. MARITZA Só estou eliminando as possibilidades de perdas. Como você ainda não é pai, um filho agora é

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um ativo que renderia excelente retorno de mídia, principalmente no nascimento do menino – é melhor que seja menino, você sabe. E esse retorno é autossustentável, já que uma simples ida ao cinema pode render uma foto numa revista, ou até um destaque no caderno de cultura de um grande jornal. ANTONIO É, eu sei. MARITZA Sem contar que um filho com uma modelo internacional pode ser uma janela pra você se expandir nos mercados onde suas empresas ainda não têm penetração. ANTONIO Eu sei de tudo isso. MARITZA Então qual é o problema? Um filho é só um filho, Antonio. É o fruto de uma aquisição horizontal. Você vai poder tocar seus negócios normalmente mesmo depois que você e Viviane se separarem. As suas futuras obrigações de pai desquitado podem até gerar ganhos ainda não previstos, se você quiser eu posso fazer uma prospecção desses ganhos, só preciso que você me dê uma ou duas semanas pra analisar... ANTONIO O problema, Maritza, é que eu não penso em ser um pai separado. Maritza toma um gole de seu chá. MARITZA Se apaixonar faz parte do jogo, afinal somos apenas seres humanos. É por isso que nos meus contratos existe aquela cláusula que me exime de toda e qualquer responsabilidade se por um acaso o cliente se apaixona. Eu o felicito, você tirou a sorte grande. Assim que amanhecer, eu peço pro meu advogado lhe encaminhar uma rescisão contratual. Evidentemente que há uma multa, mas nada que se compare aos ganhos que você obteve enquanto fui sua corretora. ANTONIO Eu não quero rescindir contrato nenhum! MARITZA Então...? ANTONIO Eu não quero sair do mercado. É por isso que eu preciso da sua ajuda e não da ajuda da minha analista.

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MARITZA Não há muito o que dizer. Me parece que está bem evidente o que é preciso ser feito. Pausa. ANTONIO Viviane? MARITZA Viviane.

CENA 3 Uma velha casa de veraneio que fica às margens de um lago. Porque a casa está fechada há muitos anos, há um aspecto de abandono, muita umidade, pouca luz e móveis cobertos com lençóis brancos. É fim de tarde quando Ricardo e Sofia, ambos com 33 anos, entram na casa de mochilas. Eles tiram as mochilas das costas e olham tudo ao redor. SOFIA A Casa da Ponte! RICARDO A Casa da Ponte. Ricardo e Sofia vão até a mesa, que está coberta por um lençol branco. Eles retiram o lençol e abrem espaço afastando as coisas que estão sobre a mesa. Em seguida, tiram suas mochilas das costas e sacam seus laptops. Sentam-se um de frente para o outro, abrem seus aparelhos e começam a digitar. O celular de Ricardo toca. Ele se levanta para atender. RICARDO Fala, Galvão! Quê? O celular de Sofia também toca. Ela atende. SOFIA Alô? Quem? (t) Como você conseguiu o meu número?

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RICARDO Não vi nada ainda, acabamos de chegar. Quê? SOFIA Não me liga mais, por favor. Sofia desliga o celular. Sente uma pequena vertigem. Fecha o laptop, permanecendo sentada com a mão na testa. RICARDO A ligação está péssima, o celular aqui pega super mal... Amanhã de manhã? Ótimo! Se por um acaso você se perder é só me ligar. Quê? Ricardo desliga o celular. Olha para Sofia. RICARDO Tudo bem? SOFIA Um pouco enjoada da viagem. Muita curva. RICARDO Devo ter um Dramin na mochila, ou um Plasil... SOFIA Já vai passar. Só preciso respirar fundo e tomar um pouco d’água. Ricardo tira uma garrafa de água mineral da mochila e dá a Sofia, que bebe um pequeno gole. RICARDO Era o Galvão. Ele só chega amanhã de manhã. SOFIA Que bom. A gente fica com essa noite pra curtir a casa. Só nós dois. RICARDO Não tem muito o que curtir. A famosa casa da ponte é isso ai que você está vendo. SOFIA E cadê? RICARDO

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O quê? SOFIA A ponte! Ricardo abre uma das janelas. SOFIA É linda! RICARDO É... É bonita, sim. SOFIA Que estilo é esse? Inglês? RICARDO Estilo “meu pai”. SOFIA Ele que projetou? RICARDO Que projetou e construiu quase tudo sozinho, madeira por madeira. SOFIA Deve ter demorado muito tempo pra ficar pronta. RICARDO Demorou mesmo. SOFIA Amanhã bem cedinho, antes do Galvão chegar, a gente pode caminhar até o outro lado. Agora não, porque já vai escurecer. RICARDO Não sei se vai dar. SOFIA Por quê? RICARDO Não sei se a ponte chega no outro lado do lago.

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SOFIA Como assim? RICARDO Você está vendo o outro lado? SOFIA Não, por causa da neblina, mas amanhã, com o sol... RICARDO Essa neblina é permanente. Nunca some. SOFIA Mas é verão. RICARDO Ela fica lá, cobrindo a metade da ponte o ano inteiro. É por causa de algum fenômeno climático causado pelo choque da umidade dessa região com a superfície do lago – ou coisa assim – nunca entendi direito. Só sei que ela está sempre ali, encobrindo a ponte. SOFIA Tudo bem, a neblina impede a gente de ver o outro lado, mas não impede a gente de chegar ao outro lado. RICARDO Sabe o que acontece... É que eu realmente não sei se a ponte ficou totalmente pronta. SOFIA Você nunca atravessou ela? RICARDO Meu pai começou a construção quando a gente ainda era bem pequeno. O Francisco foi o primeiro a chamar esse lugar de “A casa da ponte”. Eu gostava de ver meu pai trabalhando nela, parecia uma coisa grandiosa, faraônica, sabe? Mas depois eu e meus irmãos crescemos e a casa da ponte começou a ficar um lugar bem chato. SOFIA Mas seus pais devem ter falado se ela foi finalizada ou não. RICARDO Como a gente nunca mais quis vir pra cá, meus pais decidiram não revelar se a ponte tinha chegado até o final. Era uma maneira de nos forçar a voltar a freqüentar o lugar, entende?

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Sabe como é, criança adora um mistério. SOFIA E nem você e nem seus irmãos nunca mais vieram? RICARDO Não. Sofia repara num dos porta-retratos que estão sobre a mesa. SOFIA Você fica lindo vestido de Homem-aranha. RICARDO Como é que você sabe que sou eu? SOFIA Pelo sorriso. RICARDO Eu estou de máscara. SOFIA Mas dá pra ver que você está sorrindo. E seus irmãos também. Vocês todos parecem muito felizes. RICARDO Meus pais vinham pra descansar, mas quem é que quer descansar com 13, 14, 15 anos? SOFIA Vocês não traziam uma bola, um vídeo-game... RICARDO Vídeo-game? Nem pensar, meu pai era contra. Os aparelhos eletrônicos eram proibidos. Não tem nem televisão na casa. Nem telefone! SOFIA Como é que vocês faziam em caso de emergência? RICARDO Uma vez o Francisco quebrou o braço – caiu de bicicleta. Meu pai imobilizou o braço dele com galhos e uma camisa; depois levou ele de carro até o hospital mais próximo. O médico disse que ele tinha feito um ótimo trabalho. Daí sabe o que ele resolveu fazer? Matricular a família toda num curso de primeiros socorros.

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Sofia ri. Ela vê um desenho emoldurado num dos porta-retratos. SOFIA E esse desenho aqui de quem é? RICARDO Deixa ver. Meu. SOFIA Isso aqui é um chapéu ou uma cobra que comeu um elefante? RICARDO Quê?! SOFIA Nada. Comentário de gente que escreve. RICARDO “Gente que escreve”... Gente que escreve publica. SOFIA Nossa, como você é gentil. Ricardo puxa Sofia e lhe dá um beijo. RICARDO Quer que eu faça um desenho seu? SOFIA Desenho de verdade, ou essas colagens que você faz no computador? RICARDO É... gentileza gera gentileza. SOFIA Não é? RICARDO Quem desenhava “de verdade” era o meu pai, principalmente cavalos. Bem que ele tentou me ensinar, comprou uns blocos, lápis, tinta – cavalete! SOFIA

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Pelo jeito você não pegou gosto pela coisa. RICARDO Chega uma idade que você quer sair, encontrar a galera, ir numa festa, beber... E não tem nada disso por aqui. SOFIA A gente passou por uma mercearia antes de pegar a estrada de terra. RICARDO E só. Mesmo assim é muito longe pra se ir a pé. O celular de Ricardo toca. Sofia fica admirando as fotografias. RICARDO Oi, Fernanda. Quê? É claro que eu vou vender. Já está decidido. Se a casa vale alguma coisa ou não quem vai me dizer é o Galvão, amanhã cedo ele chega aqui pra fazer a – quê? Quanto?! Quem mandou fazer essa avaliação? Ah, é? E quando foi isso? De qualquer forma esse problema agora diz respeito só a mim. Quê? Eu vou ter que desligar, o sinal aqui é péssimo e a bateria já está arriando. Quê? Ricardo desliga o celular. RICARDO Impressionante! A casa estava fechada há um tempão – depois que minha mãe morreu, nem meu pai vinha mais pra cá –, esse foi o único imóvel que eu ganhei de herança e agora minha irmã vem me dizer que eu não posso vender. “Não vende a casa, não”; “não vende a casa não...” SOFIA Não vende a casa, não. Pausa. RICARDO Gatinha, você está muito estranha. SOFIA Pensa um pouco... RICARDO Vou dizer pro Galvão vir pra cá hoje mesmo, pra gente acabar logo com isso.

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Ricardo pega o celular. RICARDO Fernanda acabou com a minha bateria. Ricardo vai até sua mala. Abre e mexe nas coisas. RICARDO A sacola com os recarregadores ficou na sua mala? SOFIA Não sei. Sofia vai até sua mala. Abre e vasculha. Ricardo olha em sua mochila. SOFIA Na minha mala não ficou. RICARDO Na minha mochila também não está. Vê na sua. Sofia vasculha sua mochila. SOFIA Também não. RICARDO Será que ficou no carro? Vou lá ver. Ricardo sai. Sofia volta a se sentir enjoada. Rapidamente ela pega um saco plástico de dentro da mochila, esvazia seu conteúdo e vomita dentro.

CENA 4 Zé Carlos está sentado dentro da cabine, comendo e ouvindo seu rádio. Graça aparece. Fica parada olhando para Zé Carlos. Ele desliga o rádio. Sai da cabine segurando um prato e uma colher. Come olhando para ela.

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Graça tira da bolsa o lenço que Zé Carlos lhe emprestou, limpo. Ela o ergue mostrando que quer devolve-lo. Zé Carlos pára de comer e fica alguns segundos olhando para o lenço. Em seguida, ele entra na cabine, deixa lá o prato e volta com duas tangerinas. Ele pega o lenço e põe uma tangerina na mão de Graça. Zé Carlos guarda o lenço no bolso e começa a descascar a tangerina. Ela observa Zé Carlos por alguns instantes, então começa a fazer o mesmo: ambos descascam e comem, gomo a gomo, suas tangerinas. Eles terminam de comer. Zé Carlos pega as cascas das mãos de Graça e as leva até a cabine. Ele volta limpando as mãos na própria calça e então percebe que ela não sabe o que fazer com suas mãos sujas. Zé Carlos tira o lenço do bolso e oferece a Graça. Ela olha para o lenço e para ele. Riem. Ela pega o lenço e limpa as mãos. Em seguida, coloca o lenço na bolsa. Zé Carlos a acompanha com os olhos até que ela saia.

CENA 5 ANTONIO Um encontro pessoal, uma conversa ao vivo, uma reunião normal – qual o problema? MARITZA Eu nunca me encontro pessoalmente com meus clientes, você sabe; a tecnologia da comunicação tornou essa uma prática obsoleta. ANTONIO O assunto é muito importante pra ser tratado assim, à distância. MARITZA Não existe mais distância, Antonio, acabou. Você está me vendo e eu estou te vendo em tempo real. Nova York, Londres, Berlim – me reúno com clientes em qualquer cidade a qualquer hora do dia ou da noite. ANTONIO Não me parece seguro – tem alguém ai com você? Você vai gravar nossa conversa?

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MARITZA Qual o problema? Alguma coisa a ver com sua ex-noiva? ANTONIO Viviane preferiu cortar relações totalmente. Pra mim foi até melhor, tornou as coisas um pouco menos difíceis. MARITZA Você ainda está apaixonado. ANTONIO O problema não é a Viviane. MARITZA Alguma questão com seu novo affair então? ANTONIO Sabrina? Ela não é inteligente nem pra causar problema. Aliás, eu quero que você me tire dessa o mais rápido possível, Maritza, não há relação custo-benefício que justifique ficar dois meses dormindo e acordando ao lado daquela ostra. Mas isso é assunto pra depois, o que eu preciso tratar com você é muito mais urgente. MARITZA Adiante.

ANTONIO É sobre o Rudson. MARITZA Que Rudson? Aquele jogador de futebol? ANTONIO Ele mesmo. Nesse momento, aparece ao lado de Antonio, Rudson, 20 anos, com um colar cervical no pescoço, uma bota imobilizadora e apoiado em muletas. Senta-se, permanecendo a maior parte do tempo de cabeça baixa. MARITZA Coitado. Tão jovem, tão promissor, e já metido em confusão. ANTONIO

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Também acho, mas eu juro que eu estaria cagando pra confusão que ele está metido se não fosse por um pequeno detalhe: eu sou o dono do passe dele. MARITZA Você nunca me contou isso! Antonio, você deve me botar a par de todos os seus investimentos... ANTONIO Eu sei, Maritza, eu sei; acontece que isso era segredo de estado, guardado a sete chaves. E eu estava prestes a fazer uma transação milionária e esse filho da puta enche a cara e enfia o carro num poste. Bem no dia em que foi convocado pra jogar na Seleção – pela primeira vez! E quem você acha que conseguiu essa convocação? MARITZA Você, é claro. ANTONIO O garoto é ótimo, mas se não fosse pela minha intervenção ele ia ter que gramar muito até ser convocado. Porque esse negócio de convocação não depende só de talento, não. Depende de conchavo. Você sabe o que acontece com o passe de um jogador que vai parar na Seleção? MARITZA Posso imaginar. ANTONIO Triplica. Quadruplica! Ainda mais um jogador como o Rudson. MARITZA Você se machucou muito, querido? Rudson levanta e larga as muletas. RUDSON Nem tanto, foi o professor Antonio que me disse pra usar as muletas e... ANTONIO Cala a boca, Rudson! Cata essas muletas. Rudson cata as muletas e se senta. ANTONIO Quantas vezes eu te disse que as pessoas têm que achar que você se machucou feio nessa porra de acidente?

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RUDSON Mas eu achei que ela... ANTONIO Você não tem que achar nada. Você só tem que fazer o que eu mando, imbecil. MARITZA Você ia vender o passe dele pra que time? ANTONIO Depois dessa merda que fez, ele vai jogar é no time dos presidiários. MARITZA Pra piorar a menina que morreu no acidente era menor de idade. ANTONIO Puta de boate. Tava lá caçando sua oportunidade e é claro que o Rudson caiu como um otário. Esses idiotas desses jogadores não podem ver uma loura que já fazem merda! MARITZA Vai ser difícil ele sair dessa. ANTONIO Pois é, mas eu preciso que você me diga exatamente o contrário. MARITZA Eu? Sinceramente, acho que o que esse menino precisa é de um ótimo advogado, não dos meus serviços de corretora de relacionamentos... ANTONIO Eu penso exatamente o contrário. Antonio tira um papel do bolso. ANTONIO Sabe o que é isso? MARITZA Não faço idéia. ANTONIO Uma impressão da nossa primeira troca de e-mails.

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MARITZA Você está realmente transtornado. ANTONIO Olha o que você fala sobra a finalidade da sua empresa: “Nossa missão é procurar soluções biográficas para problemas socialmente produzidos”. MARITZA Sair de uma boate alcoolizado, bater com um Honda Civic a 200 Km/h e provocar a morte de uma menina de dezesseis anos não é exatamente um problema socialmente produzido. ANTONIO Depende do ponto de vista. RUDSON Você disse que o carro era blindado. ANTONIO Blindado pra você significa o que, animal? A prova de poste? RUDSON Sei lá, eu... ANTONIO Cala a boca! Ainda por cima destruiu meu carro. MARITZA O carro era seu? ANTONIO Pra sorte desse aí não estava no meu nome. MARITZA Qual é exatamente a sua idéia? ANTONIO O Rudson fez uma merda, a imprensa está caindo de pau em cima dele, mas a gente pode reverter essa situação. MARITZA Coloca ele pra se envolver com projetos sociais, doação pra alguma entidade filantrópica, alguma campanha contra o câncer...

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ANTONIO Isso é bom, mas é pouco. O Rudson tem que casar. RUDSON Eu tenho namorada.

ANTONIO Já te disse pra você esquecer aquela favelada! Maritza, você tem que arranjar urgentemente um casamento pro Rudson, depois a gente inventa que era um romance secreto, por isso ninguém sabia. O mais importante é que ele tem que ser pai. RUDSON Eu?! ANTONIO Um filho pode ser a salvação de um negócio – você mesma disse. O Rudson precisa fazer um filho logo com uma mulher que a opinião púbica goste, carismática, bem vista, pra tirar o foco do acidente. Se a imprensa começar a noticiar que o Rudson casou e vai ser pai, eu consigo fazer com que ele seja absolvido da acusação de homicídio culposo. Ele não perde a vaga na Seleção e eu não perco a minha transação. O que você acha? MARITZA Isso vai custar bem caro. ANTONIO Eu pago. MARITZA E então, Rudson, pronto pra se casar? RUDSON Eu faço o que professor Antonio mandar. MARITZA Bom menino. Só não sei se eu consigo arrumar uma loura pra você. As louras não vendem confiança, nem bom caráter. Uma queridinha tem que ter cabelos pretos ou castanhos, no máximo ruivos – se forem verdadeiros.

CENA 6

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Ricardo entra na casa, que está vazia. RICARDO Sofia! Sofia aparece. Está com uma das mãos atrás das costas. RICARDO Não estava no carro. SOFIA O quê? RICARDO A sacola com os recarregadores. Sofia guarda na mochila o que estava escondendo. SOFIA E agora? RICARDO Fiquei sem celular. E eu queria pedir pro Galvão vir logo hoje. SOFIA Usa o meu. RICARDO Você tem o telefone dele na agenda? SOFIA Não. RICARDO Será que ele está online? Ricardo vai para o computador. SOFIA Onde é que a gente vai dormir? RICARDO Qualquer um dos quartos. Escolhe lá.

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Sofia pega sua mala e sai. Ricardo vira o laptop para vários lados. Pega o aparelho, o ergue e caminha com ele pela sala. Sofia volta com um cavalete. SOFIA O que você está fazendo? RICARDO Tentando pegar alguma rede sem fio. Bobagem, nesse fim de mundo... Ricardo coloca o laptop de volta sobre a mesa. SOFIA Olha só o que eu achei. RICARDO Me passa o mini moldem. Sofia arma o cavalete. SOFIA O Galvão já não vem pra cá amanhã cedo? Então, que diferença vai fazer você falar com ele agora? Já escureceu, ele só vai poder avaliar a casa pela manhã. RICARDO Você tem razão. Mas me passa o mini moldem mesmo assim, eu quero dar uma checada nos meus e-mails. SOFIA Ficou na sacola dos recarregadores. Ricardo ameaça dizer alguma coisa, mas desiste. SOFIA Você tem alguma idéia de onde podem estar as tintas e os pinceis? Ricardo vasculha a mochila e pega um maço de cigarros e um isqueiro do tipo Zippo. Sofia tira o cigarro da boca de Ricardo. RICARDO Que isso, Sofia?

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SOFIA Eu estava pensando em parar de fumar. Dizem que é mais fácil quando o parceiro para junto. RICARDO E o que é que eu faço com a minha coleção de Zippo? Ricardo pega o cigarro de volta e o acende. O celular de Sofia toca. Ela atende. SOFIA Oi, Fernanda. É, o celular dele está sem bateria. Beijo. Sofia estica o celular para Ricardo. SOFIA Está quase sem bateria também. Ricardo pega o celular. RICARDO Quê? Fico feliz que Gilberto e Francisco concordem com você. Vai ver eu penso diferente porque sou o caçula. Vamos fazer o seguinte, vamos trocar: eu fico com a cobertura duplex e você fica com essa casa velha, que tal? Quê? Ricardo devolve o celular para Sofia. RICARDO A bateria arriou de vez. SOFIA Você... RICARDO Agora estamos os dois incomunicáveis. Sofia caminha até a janela. RICARDO Você ia dizer alguma coisa? SOFIA A primeira estrela da noite. Tinha um nome...

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Ricardo põe seu laptop para tocar música eletrônica. Ele fuma e “marcha” no mesmo lugar. SOFIA A gente podia estender um lençol lá fora pra deitar e ficar olhando as estrelas. Você sabe o nome das constelações? RICARDO Ainda por cima a gente não trouxe nenhuma bebida. Meu pai tomava uísque. Será que tem alguma garrafa por ai? Seria a salvação. Beber e dançar até amanhecer. Ou pelo menos até pegar no sono. SOFIA Vai ser difícil dormir sem televisão. O som para de repente. Ricardo vai até o laptop. RICARDO Esse lugar é o quê? Uma espécie de Triângulo das Bermudas das baterias? Ricardo fecha o laptop. Sofia se aproxima timidamente de Ricardo. Ele tira da mochila um Ipod. Coloca os fones, escolhe uma música e começa a “marchar” no mesmo lugar. SOFIA Quero conversar. RICARDO Quer o quê? SOFIA Conversar. Ricardo tira os fones dos ouvidos. RICARDO Sobre o quê? SOFIA Qualquer coisa. Ricardo enrola o fio dos fones no Ipod e fica olhando para Sofia.

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RICARDO Tudo bem eu começo. Que tal falarmos de filmes? Ou então música... SOFIA Me fala de você. RICARDO Como assim de mim? Meu amor, você sabe tudo de mim. SOFIA Sei? RICARDO Tá legal, tem uma coisa que você não sabe. Naquele show de quarta-feira que você não foi, eu conheci uma mulher, Badia. Nome engraçado, né? Badia... Artista plástica. (t) Agora me bateu uma dúvida: o homem é artista plástico e a mulher é artista plástica – é isso mesmo...? SOFIA Vou ver se tem alguma coisa na dispensa pra gente comer. RICARDO Sabe o Luís, o redator lá da agência? Então, ele estava de olho na tal da Badia, desde que a gente chegou no bistrô. Eu estava na minha, curtindo a música, tranqüilo. E o Luís me cutucando: “Olha lá, Ricardo, que mulher linda!”, “Eu vou chegar junto dela”, “Que boquinha, que olhos...” SOFIA Enquanto eu preparo alguma coisa você procura a louça pra pôr a mesa? Sofia sai em direção à cozinha. RICARDO O Luís ficou secando a mulher a noite inteira, até que teve uma hora que ela tirou um maço de cigarros da bolsa e ficou procurando fogo. Daí ele falou assim: “É agora, Ricardinho!” E correu pra mesa da Badia. Só que quando ele chegou lá, apalpou os bolsos e só então percebeu que ele não tinha isqueiro, nem fósforo. A mulher com o cigarro na boca esperando fogo e o Luís parado, com cara de panaca! Sofia volta da cozinha. SOFIA A dispensa está vazia.

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RICARDO E o que foi que eu fiz? Levantei com muita calma, saquei meu Zippo e acendi o cigarro da Badia, que deu uma olhada pro Luís, assim meio de ironia, meio de desprezo, sabe? SOFIA Eu disse que era pra gente ter feito umas compras antes. RICARDO Ainda não acabei de contar minha história. SOFIA Eu já sei como ela termina. Pausa. RICARDO Bom, nesse caso eu posso voltar a escutar minha música... Ricardo coloca os fones, liga o Ipod e começa a “marchar” no mesmo lugar. Sofia se senta. Levanta e abaixa a tampa do laptop algumas vezes, até que percebe que a mesa possui uma gaveta. Ela abre a gaveta e vasculha seu interior, até encontrar um baralho. SOFIA Quer jogar? RICARDO Só sei jogar paciência. Sofia deixa o baralho de lado e deita a cabeça sobre a mesa. Ricardo tira os fones e desliga o Ipod. RICARDO Quer tentar fazer um jogo em dupla? Ricardo arrasta uma cadeira e se senta ao lado de Sofia. Ele pega o baralho, embaralha as cartas e começa a organizar o jogo. SOFIA Aconteceu. RICARDO

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O quê? SOFIA Saí com um cara. RICARDO Que bom. (t) Posso começar? SOFIA A gente trepou. RICARDO Sei. Ricardo começa a jogar. SOFIA Foi meio estranho no início, há muito tempo que eu não trepava com ninguém além de você. Era como se meu corpo não se encaixasse no dele, sabe? RICARDO Sei. SOFIA Depois eu fui me soltando, me acostumando com o peso dele em cima do meu, as mãos dele apertando meus peitos, o pau dele entrando e saindo de mim... RICARDO Joga também. Pausa. SOFIA Isso é tranqüilo pra você? RICARDO Nunca joguei paciência em dupla. SOFIA Isso que eu estou te contando. RICARDO Mais cedo ou mais tarde tinha que acontecer.

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SOFIA Tinha? RICARDO É assim que funciona, eu posso sair com outras mulheres e você pode sair com outros homens. (t) Vai ficar só olhando? Sofia atira o jogo no chão e se levanta. Ricardo pega seu chaveiro de dentro da mochila. RICARDO Vou tomar um cerveja na mercearia. Trago alguma coisa pra gente comer. Ricardo sai. Sofia começa a catar as cartas do chão. Som de ignição, marcha sendo engatada, carro arrancando, batida.

CENA 7 Zé Carlos está em frente à cabine, com a lanterna iluminando um livro que ele lê com certa displicência, pois está constantemente verificando as horas no seu relógio de pulso. Graça aparece. Zé Carlos aponta a lanterna para ela. Desliga a lanterna. Graça tira um embrulho de presente da bolsa e lhe estende. Zé Carlos guarda a lanterna e, com certa cerimônia, pega o embrulho das mãos de Graça. Ele tenta abrir o embrulho sem danificá-lo. GRAÇA Pode rasgar. Zé Carlos abre o embrulho e vê que se trata de uma caixa de lenços. GRAÇA Abre. Zé Carlos abre a caixa e tira os lenços dela.

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ZÉ CARLOS Era só devolver meu lenço. Zé Carlos guarda a caixa de lenços na gaveta da cabine. GRAÇA O que você está lendo? Zé Carlos pega o livro de cima do pequeno balcão da cabine e o entrega a Graça. GRAÇA “A Arte da Guerra”. ZÉ CARLOS Um morador que me deu. As tangerinas de ontem, uma outra senhora. Duas ou três pessoas me dão bom dia quando passam. Um desconhecido às vezes me pergunta a hora ou o prédio de algum morador... Graça sente que vai sangrar. Com uma mão ela tapa o nariz e com começa a vasculhar a bolsa. Zé Carlos vai até a cabine e traz de lá a cadeira. Graça se senta. Zé Carlos tira um dos lenços da caixa e o dá a Graça. GRAÇA Os vasos sanguíneos do meu nariz são muito frágeis. Sangram por qualquer coisa. (t) Eu não consigo nem te devolver um lenço. Deve ser o sono. Ando com tanto sono. Dizem que faz mal trocar o dia pela noite. Você se sente mal? ZÉ CARLOS Minha boca anda seca. Se você usa muito um motor, ele pode estragar pelo desgaste das peças; mas se usa pouco, a ferrugem toma conta de tudo. Nesse trabalho o que a gente faz melhor é ouvir. Pausa. GRAÇA Faz um ano que eu não durmo. Não é maneira de falar. Quando estou muito cansada, fecho os olhos e um vento morno me toma o corpo. Um mundo diferente se abre pra mim: é o portão de uma casa mal assombrada, dessas de filme ruim. Tem dias que eu consigo atravessar o jardim da casa e chegar bem pertinho da porta de entrada. Mas o medo é mais forte e eu acabo despertando.

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ZÉ CARLOS Medo é bom. Faz você ficar viva. GRAÇA Na dose certa. Na errada, mata, de uma vez ou aos pouquinhos. Prefiro cultivar o meu cansaço. Quando o corpo cansa muito, nada precisa fazer muito sentido. Se você fatiga o corpo, ele se fragiliza; daí os desejos desaparecem. ZÉ CARLOS Andar não é mau. Mas andar à noite numa cidade como essa é bem perigoso. Seus desejos devem ser um problema muito grande pra você. Graça tira uma foto da bolsa e entrega a Zé Carlos. Ele a examina e a devolve para Graça. ZÉ CARLOS Um homem e uma mulher. GRAÇA Igual a foto que você tem na cabine.! ZÉ CARLOS Igual ao início dos tempos. GRAÇA Parece que nada mudou desde que Deus resolveu povoar a Terra. A gente carrega essa herança até hoje. Como eu carrego essa foto na bolsa. ZÉ CARLOS Quer um café? Zé Carlos vai até a cabine. Nesse momento surge Marcus, 28 anos, vestido com gravata, mas sem terno. Tem nas mãos duas xícaras de café. MARCUS Fiz o café. Fraquinho do jeito que você gosta. GRAÇA Acordou tão cedo.

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MARCUS Tem torrada em cima da mesa. GRAÇA Não gosto de fraquinho, gosto de café normal. O seu é que é muito forte. MARCUS Quero estar bem preparado pra entrevista. GRAÇA Você podia ter me acordado. MARCUS Na Europa o meu é o fraco. Os europeus só tomam café expresso. GRAÇA Você fala como se já tivesse ido à Europa. MARCUS Não fui ainda! Hoje eu vou dar o primeiro passo em direção ao mundo, meu amor. E tudo graças a você. Beijam-se calorosamente. MARCUS Meu terno? GRAÇA Pendurado na área, passadinho. Deu o maior trabalho! Marcus sai com as xícaras. Graça se aproxima da cabine. Zé Carlos lhe dá o café. GRAÇA As cenas se repetem na minha cabeça. Principalmente à noite. ZÉ CARLOS As pessoas tomam remédio. GRAÇA

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Não tenho mais nada, só essas imagens. Abro mão? Minhas pernas doem tanto. E eu não paro de andar. Os saltos me matam. É bom. Chego em casa e tenho o prazer de esticar os dedos. Ponho os pés de molho numa bacia com água quente. Sento na poltrona e mergulho os pés. Vejo a luz mudar, do azul escuro pro azul claro, até ficar tudo banhado de luz branca. Faço café. Ela devolve a tampa da garrafa térmica para Zé Carlos. GRAÇA Às vezes compro pão na padaria antes de chegar em casa. Às vezes tomo café na padaria. Café e pão com manteiga. A vida ficou simples. (T) Como se antes já não fosse. Marcus aparece novamente em cena, agora com uma pasta do tipo 007. GRAÇA Como foi? MARCUS Ótimo, meu amor, ótimo! GRAÇA Ele vai te contratar? MARCUS Acho que sim. Não deu a resposta definitiva, disse que vai me ligar, mas ele foi com a minha cara, tenho certeza. GRAÇA Amor! Beijam-se rapidamente. MARCUS Ele pediu pra você entrar, está precisando que você ligue pra algum cliente. A gente se vê em casa. GRAÇA Te amo. MARCUS Também. Marcus sai.

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GRAÇA Ainda tem café? Zé Carlos balança a garrafa térmica. Depois despeja o resto do café na tampa da garrafa e a serve. Graça bebe. ZÉ CARLOS Você bebe muito café. GRAÇA Você também. ZÉ CARLOS Eu preciso ficar acordado. Você precisa dormir.

GRAÇA Antes nada me fazia perder o sono. Podia beber um litro de café e dormir feito um anjinho cinco minutos depois. Graça olha pra foto da cabine. GRAÇA Sua mulher é muito bonita. Essa aqui é sua filha? ZÉ CARLOS Foi aniversário dela semana passada. Fez dezoito anos. GRAÇA Então essa foto é bem antiga. ZÉ CARLOS Você tem filho? Marcus entra em cena, vestido de jogging e com uma mochila nas costas. MARCUS Uns cinco anos. GRAÇA Cinco anos? MARCUS

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No máximo. GRAÇA Eu já vou ter 34. MARCUS É mais ou menos o tempo pra eu me estabelecer no emprego, de repente abrir meu próprio escritório. GRAÇA Você queria tanto ser pai. MARCUS E ainda quero. Não faz drama, Graça, é pro nosso próprio bem. Quando o bebê vier, eu vou estar tão estabilizado no mercado que você vai poder parar de trabalhar só pra cuidar dele. GRAÇA Promete? MARCUS Deixa eu ir que eu não quero atrasar. GRAÇA Hoje é domingo. MARCUS Victor me chamou pra escalar. GRAÇA Achei que a gente fosse ter o dia pra gente, até comprei um vinho... MARCUS O Victor é braço direito do Levinsky. É uma grande oportunidade de ficar amigo dele. Depois o Victor me convida pra uma festa e logo, logo eu vou estar jogando golfe com nosso chefe. GRAÇA O senhor Levinsky não joga golfe. MARCUS Tenho que ir. GRAÇA A gente almoça junto?

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MARCUS Só volto à noite. A gente pega um cinema. Marcus sai. GRAÇA É preciso muito planejamento pra se ter um filho. ZÉ CARLOS Antes eu acreditava que filho se pagava. GRAÇA E agora? ZÉ CARLOS Não penso mais nisso. De qualquer forma, tem que ter muita coragem pra botar um filho no mundo de hoje. GRAÇA Do lado da pessoa certa a gente tem coragem pra tudo nessa vida. ZÉ CARLOS Você não parece alguém com a pessoa certa do lado. Graça folheia o livro. Lê. GRAÇA “Qualquer operação militar tem na dissimulação sua qualidade básica. Um chefe que é capaz deve fingir ser incapaz; se está pronto, deve fingir-se despreparado; se estiver perto do inimigo deve parecer estar longe”. Marcus entra escovando os dentes. GRAÇA Eu não entendo o que esse livro tem a ver com o seu trabalho. MARCUS A Arte da Guerra é o livro de cabeceira do Levinsky, o Victor que me contou. Ele já leu também. Todo empreendedor lê esse livro. GRAÇA “Se o inimigo for orgulhoso, provoque-o; se for humilde, encoraje sua arrogância; se estiver

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descansado, desgaste-o; se estiver unido, estimule a discórdia entre suas tropas”. Acho tudo isso tão... feio. MARCUS Você não entende dessas coisas. GRAÇA Nem quero. MARCUS Assim você não vai chegar a lugar nenhum. GRAÇA Eu já cheguei onde eu queria. Graça abraça Marcus apaixonadamente. MARCUS Agora não, tenho que terminar de ler o livro essa noite. Amanhã quando eu esbarrar com o Levinsky no escritório, vou perguntar se ele conhece. Entendeu? Marcus sai escovando os dentes.

CENA 8 Maritza está fumando e ouvindo uma música quando recebe a visita de Michele, 19 anos, que entra no escritório surpresa com a canção que está sendo tocada. MARITZA Nossa, Michele, ficou ótimo! Sua voz é realmente muito bonita e a música é um verdadeiro hit. MICHELE Como você conseguiu essa gravação? Nem eu tenho ainda, não está nem masterizada. MARITZA Desculpe, é que eu estava ansiosa pra saber como estava ficando o seu primeiro CD. Não que eu tivesse dúvidas da qualidade do seu trabalho, mas é que – você sabe – uma coisa é colocar uma música na internet e se tornar uma campeã de acessos, e outra coisa bem diferente é se lançar no mercado profissional. Isso aqui é uma selva, é preciso mais do que uma letra esperta e uma melodia bem arranjada. Você precisa se cercar de bons profissionais, Michele, dos melhores. MICHELE

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Os músicos e os técnicos que estão me acompanhando são ótimos profissionais. MARITZA É, mas pra fazer sucesso na indústria fonográfica não basta ter bons músicos e bons técnicos. Você precisa de gente te assessorando fora do estúdio, entende? MICHELE Um empresário, você quer dizer? MARITZA Por exemplo. MICHELE Eu já tenho um, foi ele que agendou esse encontro. MARITZA E onde ele está agora? MICHELE Não está aqui, porque disse que você exigiu um encontro a sós comigo e que topou porque a sua proposta parece ser bem importante. MARITZA Nisso ele está certo. MICHELE Nenhuma das pessoas que eu conheço sabem quem é você, ao que parece sua empresa não tem nada a ver com música. MICHELE Eu invisto em pessoas. E você, Michele, é alguém em quem eu quero fazer um investimento pesado. MICHELE E por quê? Só porque eu sou uma campeã de acessos na internet? Maritza abre a cigarreira e oferece um cigarro a Michele. MICHELE Não, obrigada. MARITZA É verdade, você precisa cuidar muito bem do seu instrumento.

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Maritza acende um cigarro.

MICHELE Eu preferia que você também não fumasse. MARITZA Okay. Maritza apaga o cigarro no cinzeiro. MARITZA Você conhece o Rudson? MICHELE Rudson...? O jogador de futebol? MARITZA Jogador de futebol é pouco pra definir aquele rapaz. O Rudson é um verdadeiro artista com a bola nos pés. Francamente, você não acha que Deus expressa toda a Sua magnitude nos gols que ele faz? MICHELE Não vejo futebol. MARITZA Mas lê jornal, não é? Infelizmente o Rudson foi envolvido em um terrível acidente. MICHELE Que provocou a morte de uma menina de dezesseis anos. MARITZA Isso é o que os jornais andam espalhando. MICHELE Ela não tinha dezesseis anos? MARITZA Ia fazer dezessete. De qualquer forma, ela não era nenhuma inocente. Eu tenho acompanhado o caso do Rudson de perto, ele é meu cliente, e eu posso garantir que a verdade dos fatos é bem diferente: naquela noite, Rudson estava muito feliz, porque tinha sido convocado pela primeira vez para jogar na Seleção. E o que o é que um rapaz alegre e cheio de vida como ele faz quando

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recebe uma boa notícia? Comemora. Era o que ele estava fazendo naquela casa noturna, quando foi seduzido pela tal menina – que de menina não tinha nada. Tudo o que ela queria era uma oportunidade de se dar bem pra cima de um peixe graúdo. A “jovem de apenas dezesseis anos” embriagou o Rudson – que não bebe, porque é um atleta – e o convenceu a ir embora com ela. O Rudson foi só uma vítima. MICHELE Eu vi as fotos dela no jornal e li o depoimento dos seus pais. Não me pareceu que ela fosse desse tipo. MARITZA Depoimento dos pais? Ora, Michele! O Rudson virou um prato cheio pra imprensa, é claro que eles vão fazer de tudo pra santificar aquela oportunista. Você sabia que ela fazia programa? Claro que não. Nem os pais sabiam. Também, o que é que os pais sabem dos filhos hoje em dia? Moças como você são jóias raras: inteligente, talentosa, religiosa, casta... MICHELE Eu odeio quando as pessoas falam isso de mim! Parece até que eu sou um alienígena só porque eu sou virgem. MARITZA Virgem eu até entendo, mas católica...! MICHELE Você está interessada no meu trabalho ou na minha vida pessoal? MARITZA As duas coisas estão tão misturadas hoje em dia. MICHELE O que você quer comigo? MARITZA Eu quero te oferecer a oportunidade da sua vida. Em troca eu peço a sua ajuda para impedir que uma injustiça acabe com a carreira de um profissional promissor – como você. MICHELE Mas o que é que eu posso fazer pelo Rudson? MARITZA Eu quero que você se case com ele. MICHELE

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O quê?! Você está louca! MARITZA Calma, Michele... MICHELE Eu nem conheço ele... MARITZA Isso a gente resolve em dois tempos... MICHELE Eu tenho noivo, sabia? Eu vou me casar! MARITZA O seu noivo não é empecilho. MICHELE Como não?! MARITZA Eu sei que você vai falar sobre amor, honra, religião, família, mas escuta o que eu tenho pra te dizer: você é uma jovem revelação, tem uma linda voz, é bonita, católica, virgem – não adianta ficar zangada, Michele, são essas coisas que fazem de você uma atração, uma novidade. Mas quanto tempo você acha que o seu status de “Queridinha do Brasil” vai durar? Eu te garanto que não passa do primeiro CD. Não se ofenda, isso não tem nada a ver com o seu talento, muito pelo contrário. É que hoje em dia nada pode durar; tudo tem que ser renovado, substituído e consumido muito rápido. Senão o mundo entra em colapso. Mas se você fechar acordo comigo, a coisa muda totalmente de figura. Eu consigo pra você um contrato com uma gravadora internacional; garanto distribuição dentro e fora do país; garanto divulgação maciça em rádio, tevê, jornal, internet, revistas... Em troca, eu só preciso que você se case com Rudson e tenha um filho com ele. MICHELE Por que será que eu estou tão enjoada? MARITZA O Rudson só precisa de um casamento e de um filho. Você não vai precisar romper com seu noivo, eu te ajudo a fazer ele entender que tudo isso é só um negócio, imperdível pra ele também. Depois que você tiver o menino – é melhor que seja menino, você sabe – o casamento com o Rudson pode ser desfeito e você e o seu noivo vão poder casar, ter outros filhos e uma vida confortável e segura pro resto da vida.

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MICHELE Ele nunca se rebaixaria a uma proposta suja dessas. MARITZA Ele é ator, não é? Eu posso conseguir um papel pra ele numa novela; posso conseguir que ele participe de filmes, fora do Brasil até. Ele fala inglês? MICHELE Eu não quero ouvir mais nada. MARITZA Michele, presta atenção. MICHELE Eu não acredito que estou passando por isso. MARITZA Pense nisso como uma porta que Deus está abrindo pra você. MICHELE Como pode existir gente como você no mundo? MARITZA Escuta. MICHELE O que te fizeram pra você ser assim? Maritza saca um cigarro, acende e fuma. MARITZA Se eu te dissesse que minha infância foi miserável, ou que eu tive que me prostituir pra pagar a faculdade de economia, você ficaria sensibilizada? MICHELE Eu quero ir embora. MARITZA Eu demorei muito tempo pra entender que questões de trabalho e questões emocionais não se misturam. Foi o meu pulo do gato. Entende?

CENA 9

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Ricardo está sentado, tentando montar um castelo de cartas com apenas uma das mãos – o braço direito está inerte ao lado do corpo. Sofia entra com um pedaço de pano e dois pequenos galhos. SOFIA Rasguei um pedaço do lençol, acho que vai servir. Encontrei esses galhos lá nos fundos. Sofia coloca tudo em cima da mesa. RICARDO Pra que isso? SOFIA Pra imobilizar seu braço. RICARDO Acende um cigarro pra mim. Sofia acende um cigarro e o põe na boca de Ricardo. Em seguida se senta e começa a tentar imobilizar o braço de Ricardo com dois gravetos e o pedaço de pano, mas sem sucesso. SOFIA Ajuda. RICARDO Eu sei lá como se faz esse negócio. SOFIA Seu pai não te colocou pra fazer curso de primeiros socorros? RICARDO Eu tinha 10 anos de idade. (t) O braço não quebrou, não, só está doendo da porrada mesmo. SOFIA Pelo menos a sobremesa está garantida, a cozinha está cheia de goiaba. Muito interessante esse método de derrubar fruta do pé que você inventou. O problema é que a traseira do carro fica toda amassada. RICARDO Fernanda tem razão, essa casa não vale nada. Quem é que vai querer comprar esse lugar? Tudo velho, mofado... Não tem nada perto... Isso aqui não tem valor de mercado.

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SOFIA Não vende. RICARDO E eu faço o quê? Viro hippie e venho morar aqui? SOFIA Fica pra gente descansar nos feriados, fim de semana... Criança gosta. RICARDO Que criança? Sofia começa a tentar montar um castelo de cartas. RICARDO Eu não entendo por que meu pai me deixou essa casa de herança. SOFIA A partilha tinha que ser feita, ele deve ter tentado deixar um imóvel pra cada um. RICARDO Dirige pra mim até a mercearia. SOFIA Tudo escuro, não conheço o caminho e a gente não sabe as condições do carro. Fora que a essa hora a mercearia já deve estar fechada. RICARDO Eu vou enlouquecer aqui dentro. SOFIA É só por uma noite. RICARDO Essa casa está me fazendo mal. Pausa. SOFIA Me dá aqui sua mão. Ricardo não se move.

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Sofia pega a mão esquerda de Ricardo e começa a “lê-la”. SOFIA Vejo aqui que você teve uma infância alegre e saudável. Seus pais eram amorosos e você se dava muito bem com seus irmãos. Nessa casa vocês passaram ótimos momentos em família – posso afirmar que vocês foram realmente felizes. Até que de repente... de repente você ficou adulto. Ricardo recolhe as mãos nos bolsos. Começa a caminhar de um lado pra outro. SOFIA Lembra quando a gente se perdeu na serra, subindo aquela trilha em direção ao pico? RICARDO O que é que tem? SOFIA Você ficou horas andando pra lá e pra cá com as mãos enfiadas nos bolsos, até que resgatassem a gente. RICARDO Claro, estava um frio do cão. SOFIA Agora está calor. RICARDO Do que é que você está falando? SOFIA Eu queria... eu queria te abraçar – eu queria que você me abraçasse! Eu queria que você ficasse enorme, com... com os ombros... o peito assim... as mãos como... as mãos como duas... duas asas de anjo, duas... me cobrindo o corpo todo, me aquecendo do frio, do medo... mas você estava com as mãos nos bolsos, entende? Eu queria que você me cobrisse como se fosse um edredom, desses bem grandes, bem grossos, e me falasse baixinho no pé do ouvido palavras reconfortantes, com o hálito quente esquentando minha orelha, eu queria que você me acalmasse, mas você andava de um lado pro outro com as mãos enfiadas nos bolsos, eu queria... RICARDO Por que simplesmente você não me pediu um abraço?

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SOFIA Porque as coisas não são tão simples assim. RICARDO As coisas podem ser simples, é só a gente querer. SOFIA Eu estou grávida. Sofia vai até sua mochila e tira dela um pequeno bastão de plástico. Ela coloca o bastão sobre a mesa. SOFIA Deu positivo. É só um teste de farmácia. Mas os sintomas... Ricardo pega seu Ipod e coloca os fones nos ouvidos. Sofia se senta e mergulha o rosto entre as mãos. RICARDO Lembra dessa música? Ricardo compartilha um dos fones com Sofia. SOFIA É claro que eu lembro. RICARDO A sala estava lotada. Você dançava, conversava, ria. SOFIA Você tentava parecer natural, mas não tirava os olhos de mim. Eu fingia que não via. RICARDO Eu sabia que você via. SOFIA Eu sabia que você sabia. RICARDO Fui chegando perto. SOFIA Me ofereceu uma bebida.

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RICARDO Você disse que preferia dançar. Eu falei alguma coisa engraçada no seu ouvido. SOFIA Uma piada sem graça. RICARDO Você riu. SOFIA Achei graça da situação. RICARDO Fomos lá pra casa. SOFIA Trepamos a noite toda. Meu corpo se encaixou no seu no primeiro segundo, como se a gente fosse – olha que imagem louca que me veio agora: como se a gente fosse o próprio planeta Terra, na época da Pangeia, antes dos continentes se separarem... RICARDO Um encontro casual numa festa tem tanta... liberdade. É tão leve, divertido... Sofia tira os fones dos ouvidos. SOFIA A gente sempre espera uma outra reação nesse hora! A gente espera que o homem reaja como se não pudesse haver notícia mais arrebatadora na vida! RICARDO Isso soa tão clichê, Sofia... SOFIA A sua cara de pavor também foi absolutamente clichê. Ricardo se senta e volta a tentar montar um castelo de cartas. RICARDO Antes da gente se conhecer, meus namoros duravam em média três semanas. (t) Teve um jantar na casa da Fernanda, um jantar de família, e eu levei uma namorada nova. Quando eu entrei de mão dada com a menina o Gilberto disse alto – na frente dela: “Ricardo e seus relacionamentos de bolso”. Na hora eu não falei nada, mas assim que eu fiquei sozinho com ele,

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falei: “Irmãozinho, prefiro meus relacionamentos de bolso do que levar uma vida careta como a sua, vendo minha mulher tendo um filho atrás do outro e engordando feito uma leitoa”. Sofia começa a ajudar Ricardo a montar o castelo de cartas. SOFIA Você tem medo que eu engorde? RICARDO Eu tenho medo de levar uma vida falsa e infeliz. Quem olha de fora acha que a família do Gilberto é perfeita: bom marido, bom pai, filhos lindos, esposa dedicada. Mas a vida deles é como uma madeira nobre infestada de cupins. Desde que os gêmeos nasceram que ele não consegue mais transar com a mulher. Daí sabe o que ele fez? Arranjou uma amante. SOFIA Essa é a história que o seu irmão decidiu escrever pra ele. RICARDO Essa é a história de 99% dos casamentos. SOFIA Seus pais ficaram juntos a vida toda. RICARDO Meus pais eram de outra geração! Eles devem ter se casado por interesse das famílias, ou por necessidade. SOFIA Eles viviam dizendo que se amavam. RICARDO Pode até ser, Sofia, mas – eles são anteriores ao aparelho de fax! Devem ter demorado uma semana só pra pegar na mão um do outro; a gente trepou já na primeira noite em que se conheceu. Hoje em dia só fica sozinho quem quer, o que mais tem por ai são sites de relacionamento, redes sociais... As coisas mudaram; o mundo é outro. Ricardo acende um cigarro. SOFIA Você tem razão. Mas é que... eu sinto uma coisa tão forte por você, desde a primeira vez, desde lá naquela festa. Uma coisa tão quente, aqui dentro, sabe?, no peito, na barriga, uma coisa... E agora, essa situação, tudo tão assim... Eu estou... explodindo por dentro, sabe?, como se... nem sei explicar...

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RICARDO Eu entendo, meu amor, é claro que eu entendo. O que eu sinto por você também é forte, também é bonito. E é exatamente por isso que a gente tem que... que as coisas têm que ser assim, a gente tem... Sabe por que meus namoros duravam tão pouco? Porque sempre que eu chegava acompanhado num lugar, numa festa por exemplo, eu olhava em volta e ficava imaginando as dezenas de outras oportunidades que eu estava perdendo pra ficar só com a mulher que estava do meu lado. E ai olhava pra ela e me perguntava: Por quê? Sofia se levanta. SOFIA Acho que eu nunca mais vou numa festa com você. RICARDO Com a gente é diferente. Ricardo abraça e começa uma dança lenta com Sofia. RICARDO Quando a gente dança, assim, e eu olho por cima do seu ombro, eu também vejo todas as outras oportunidades; mas não penso que eu estou perdendo nada. Porque a gente é livre pra ficar com quem quiser e ainda assim continuar juntos... Sofia fica um pouco tonta e se senta. RICARDO Tudo bem? SOFIA Enjoada. Ricardo pega a garrafa d’água e oferece a Sofia, que bebe um pequeno gole. RICARDO A gente vai resolver isso assim que voltar, eu prometo. SOFIA Resolver como? Ricardo bebe um gole d’água. RICARDO

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Como é que isso foi acontecer? SOFIA Um dia. Esqueci de tomar a pílula um dia. RICARDO E por que você não me contou? SOFIA Eu achei que... eu... RICARDO Foi de propósito? Silêncio. RICARDO Tudo bem, aconteceu, não dá pra voltar no tempo. Mas ainda dá pra resolver. Eu conheço um lugar. SOFIA Que lugar? RICARDO Não é a primeira vez que isso me acontece, provavelmente não é a sua também. SOFIA E se a gente tentasse? RICARDO Tentasse o quê? SOFIA Se em algum momento eu precisar parar de trabalhar e a grana ficar curta, meus pais podem ajudar a gente, aliás eles vão ficar malucos quando souberem que... Ricardo segura Sofia pelos braços. RICARDO A gente não pode ter esse filho! Sofia escorre para o chão.

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SOFIA A gente sempre espera outra reação... RICARDO Vai ser o fim de tudo o que a gente vem construindo juntos. SOFIA Eu não estou entendendo, quer dizer... Tudo pode acontecer, eu sei, você pode se apaixonar por outra pessoa, eu posso escorregar e bater com a cabeça no meio fio, um meteoro pode cair na Terra e acabar com tudo como se a gente fosse um bando de dinossauros... RICARDO Eu gosto da minha vida exatamente do jeito que ela é, eu acredito nela. Eu gosto de sair a hora que eu quero, gosto de beber todos os dias, de conhecer gente nova, de transar com gente diferente. Gosto do meu trabalho, gosto de internet, de celular, de filme blockbuster, de comida fast food... SOFIA Você pensa como uma criança... RICARDO Sofia... SOFIA Tem 33 anos, mas ainda é uma criança. Sofia se levanta. SOFIA A vida pra você é como um imenso shopping center. Todo dia você precisa comprar um brinquedo novo. E você nem compra por desejo; é só por impulso. RICARDO Você também é assim. Sofia começa a chorar. Ricardo a abraça. RICARDO Essa casa está te fazendo mal também. Amanhã cedo a gente vai embora daqui e tudo vai voltar a ser como antes. Eu prometo.

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CENA 10 GRAÇA É bom poder vir aqui sem precisar de motivo.

ZÉ CARLOS A cancela é só pros carros. Mesmo assim eu não posso impedir ninguém de passar, a rua é pública. GRAÇA De que serve você aqui então? ZÉ CARLOS Quando eu comecei a trabalhar nessa rua, as casas tinham muros mais baixos, todas elas – a única que continua com muro baixo é a da velhinha que me dá tangerina, mas dizem que ela não bate bem da cabeça. E quase nenhum prédio era gradeado. Pra que tudo isso se a cara de susto das pessoas só aumenta? GRAÇA Seja como for, os moradores devem dormir melhor sabendo que tem alguém em vigília por eles. ZÉ CARLOS Há 12 anos que eu trabalho aqui e nunca aconteceu nada. Teve uma mulher que matou o marido a facadas. Mas aí é outra coisa, a violência não veio de fora da cancela. GRAÇA Doze anos? ZÉ CARLOS Doze. GRAÇA Todas as noites? ZÉ CARLOS Todas. GRAÇA Você dorme de dia? ZÉ CARLOS

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Às vezes eu cochilo um pouco. GRAÇA Esse seu emprego... ZÉ CARLOS Isso não é um emprego. Emprego leva a gente pra algum lugar. Isso aqui é pra quem está parado no tempo. Silêncio. GRAÇA Trouxe uma coisinha especial pra gente essa noite. Graça tira uma garrafa de vinho da bolsa. GRAÇA Não entendo muito de vinho, mas sei que esse é dos bons. Há anos que está guardado lá em casa. Era pra alguma ocasião especial. Não espero mais por ocasiões especiais. ZÉ CARLOS Obrigado, mas não. Não posso. GRAÇA Por causa do serviço? Um copinho só não vai fazer mal. Se você cochilar, eu vigio a rua pra você. Vamos lá, só um gole. ZÉ CARLOS Eu não posso tomar o primeiro gole. Só por hoje. GRAÇA Parece que o destino de algumas garrafas é nunca serem abertas. ZÉ CARLOS Mas você pode beber se quiser. Zé Carlos tira um canivete do bolso e puxa o saca-rolhas. GRAÇA Não, tudo bem. Graça guarda o vinho na bolsa. Zé Carlos guarda o canivete.

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GRAÇA Há quanto tempo você não vê sua filha? ZÉ CARLOS Ela tinha seis anos. Vestido florido, cabelo amarrado com uma fita amarela e picada de mosquito na bochecha. Eu não sabia que era a última vez. GRAÇA E onde ela está agora? ZÉ CARLOS Com a mãe. Em algum lugar. Deve ter até outro pai. A gente tenta se esconder o tempo todo de algumas coisas, mas elas sempre encontram a gente. GRAÇA Das coisas que não vêm de fora da cancela a gente não consegue se esconder. Nesse momento, aparece Teresa, 45 anos, com uma mala. Ela fica parada no canto. Zé Carlos se desorienta. TERESA Quero voltar. Pausa. ZÉ CARLOS E Juliana? TERESA Na minha mãe. ZÉ CARLOS Saiu como se fosse uma fugitiva. Voltou por quê? TERESA Me abandonaram. Não tenho pra onde ir. ZÉ CARLOS Um ano sem dar notícia. Não sei o que eu te fiz de mal – fugiu. TERESA Às vezes não precisa que ninguém faça nada.

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ZÉ CARLOS Não entendo... Eu sempre fui bom pra você e pra nossa filha. TERESA Você é um homem bom. Mas só isso. Cheguei em casa e te vi cochilando no sofá da sala, a cara branca, parecia sem sangue. Corri pro quarto e coloquei meu vestido mais bonito. Passei batom vermelho. Belisquei as maçãs do rosto. Peguei Juliana e sumi. Foi o dia mais feliz da minha vida. Pausa. ZÉ CARLOS O que é que eu faço? TERESA Me aceita. Pausa. TERESA Boto a mala no quarto e saio pra pegar Juliana. GRAÇA Ela voltou? ZÉ CARLOS Voltou. Eu não voltei. Um ano sem notícia da minha mulher e da minha filha. Um homem nessas condições corre pro primeiro abrigo que encontra. TERESA Você disse que não ia acontecer de novo. ZÉ CARLOS Não consegui. Hoje eu não consegui. TERESA Eu não devia ter voltado. ZÉ CARLOS Eu não te perguntei pra onde você foi, nem com quem você fugiu, nem coisa alguma... TERESA

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Mas não esqueceu. ZÉ CARLOS Não sou menos homem que ninguém, nem menos marido, nem menos pai... você quer ver se eu tenho sangue nas veias? Zé Carlos puxa o canivete e faz um corte num dos braços. TERESA Doente. ZÉ CARLOS Vou procurar ajuda, Teresa... Teresa sai. Graça olha a cicatriz no braço de Zé Carlos. ZÉ CARLOS A gente demora muito tempo pra construir alguma coisa. Pra destruir não precisa de tempo nenhum. Pra reconstruir pode demorar uma vida inteira. Marcus entra enrolando a manga da blusa. GRAÇA Por que eu não posso ir com você? MARCUS É um jantar de negócios. GRAÇA É um jantar em que os advogados vão levar suas mulheres, eu sei exatamente do que se trata, porque fui eu quem mandou imprimir os convites e que ligou pras pessoas confirmando. MARCUS Esse é o problema, Graça, você é a secretária do escritório. GRAÇA E também sua mulher. MARCUS Nós somos namorados, mas... GRAÇA

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A gente vive junto embaixo do mesmo teto há mais de três anos. Será que eu vou ter que lembrar ao advogado que o nosso relacionamento é uma união estável? MARCUS Essa não é a questão. GRAÇA E qual é a questão então? MARCUS Entende o que eu vou te dizer: você é minha mulher, claro. Mas você é funcionária do escritório e é assim que as pessoas te conhecem. Imagina o constrangimento dos advogados, dos clientes, dos sócios e do próprio senhor Levinsky quando se sentarem na mesma mesa que você pra jantar. Graça abaixa a cabeça. MARCUS É muito difícil pra mim ter que te dizer isso, meu amor. Mas você precisa entender, é a primeira vez que eu estou sendo convidado pra jantar na casa do chefe; vai ter muita gente importante, vou fazer muitos contatos. Não é diversão, é trabalho. Eu te levo pra jantar quando você quiser, no lugar que você escolher. Tudo bem? Hein? GRAÇA Tudo bem. Ele a beija. MARCUS Que bom que você entendeu. Essa blusa está manchada. Aquela minha outra branca está limpa? GRAÇA Passada no armário. O celular de Marcus toca. Ele se afasta para atender. GRAÇA Foi nesse dia que eles ficaram pela primeira vez. Nesse momento aparece Raquel, 21 anos, também falando ao celular. Ela vai até Marcus.

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GRAÇA Eu não estava lá, não vi, ele não me contou. Mas eu sei. A gente sempre sabe. É claro que ninguém ficaria constrangido se a filha do chefe estivesse à mesa num encontro reservado a advogados e esposas. Marcus e Raquel se beijam. Teresa entra com a mala numa mão e o passaporte na outra. ZÉ CARLOS Vai fugir de novo? TERESA Dessa vez você sabe o motivo. ZÉ CARLOS Recaída faz parte do processo de reabilitação. TERESA Minha filha não pode crescer ao lado de um alcoólatra. ZÉ CARLOS É na Juliana que você está pensando? Pelo menos fala a verdade. O que é que isso ai na sua mão, um passaporte? É por isso, então! Já está tudo arranjado, não é! Bem debaixo do meu nariz... E você nem disfarça, nem tenta fingir de verdade... Diz que é por causa da Juliana, mas nem tenta não ser falsa de verdade... (t) Não vai. TERESA Me faz não ir. Zé Carlos balbucia palavras desconexas, olha para o chão. Teresa sai. ZÉ CARLOS Você vai voltar! Marcus e Raquel se aproximam de Graça. GRAÇA O que ela está fazendo aqui? RAQUEL Eu pedi pra vir.

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GRAÇA Não é muito constrangedor pra filha do patrão vir à casa da secretária? RAQUEL O Marcus disse que tentou te explicar o que aconteceu entre a gente, mas que você não entendeu. Por isso eu pedi pra falar pessoalmente com você. GRAÇA Eu entendi tudo sobre o Marcus. Você que não entendeu. RAQUEL Eu só queria ter uma conversa franca com você, cara a cara, entre duas mulheres adultas.

GRAÇA Você já é maior de idade? RAQUEL Eu achava que as secretárias tinham acesso a esse tipo de informação. MARCUS Para com isso, Raquel. RAQUEL Ela começou. GRAÇA Quando é que você vai tirar suas coisas daqui? MARCUS Eu só preciso das minhas roupas. RAQUEL Pode deixar as roupas também, a gente vai comprar tudo novo mesmo. MARCUS Um dia você vai entender, Graça. RAQUEL Vamos embora logo. MARCUS

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Fica bem. Marcus e Raquel saem. Graça começa a sangrar. Ela tira o lenço da bolsa e coloca no nariz. Zé Carlos faz com que ela sente na cadeira com a cabeça pra cima. GRAÇA No dia seguinte, eu estava demitida.

CENA 11 O celular de Maritza toca insistentemente sobre sua mesa de trabalho. Ela entra em seu escritório enrolada num lençol branco. ANTONIO Como foi? MARITZA Fracassamos lindamente. ANTONIO Ela não aceitou?! Você disse tudo o que a gente pode fazer pela carreira dela? Falou que a música dela vai tocar nas rádios, falou da televisão... MARITZA É claro que eu expliquei tudo a ela. Acontece que a menina tem personalidade. ANTONIO Vaca! Eu vou foder com a vida dela. MARITZA Calma. Para tudo há solução. Muitas vezes o ataque pelos flancos é a opção mais inteligente. ANTONIO Qual é a sua idéia? MARITZA O noivo. Maritza pega uma pasta e lê alguns papéis. MARITZA

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Um ator. De teatro. ANTONIO E você acha que se ele topar ela topa? MARITZA A menina é virgem, você sabe. E advinha de quem é o bilhete premiado? Embora o rapaz seja do tipo que cata moedas pra pagar a passagem do ônibus. Vai entender. ANTONIO Quando você vai falar com ele? MARITZA Amanhã pela manhã. ANTONIO Me liga assim que a reunião acabar, eu quero ser informado de tudo imediatamente. MARITZA Pode deixar, “chefe”. Ela desliga o telefone. Rudson aparece, vestido só de calção e folheando uma revista. RUDSON Tem cerveja? Maritza arranca a revista das mãos de Rudson. MARITZA Tem o que você quiser, mas antes vem aqui, vem... RUDSON Quê? De novo? MARITZA Eu não te trouxe pra cá pra gente dormir de conchinha. RUDSON Você não cansa, não? MARITZA Quando eu entro em campo, é pra jogar o primeiro tempo, o segundo tempo, a prorrogação e a

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disputa de pênaltis. Vai, abre o armário do banheiro. Tem um monte de pílula azul. Toma uma. Tem cerveja no frigobar. Daqui a meia hora a gente volta a se falar. Rudson sai. Maritza folheia a revista e algo lhe chama atenção. Ela cata seu celular e faz uma ligação sem tirar os olhos da revista.

CENA 12 Madrugada. Ricardo está dormindo sentado, com a cabeça na mesa. Seu Pai e Sua Mãe – ambos em torno dos 40 anos – dançam o tango “Volver”, na voz de Carlos Gardel. Ricardo acorda e olha a cena, atônito. PAI e MÃE Volver Con la frente marchita las nieves del tiempo Platearon mi sien. Sentir Que es un soplo la vida Que veinte años no es nada Que febril la mirada Errante en las sombras Te busca y te nombra. Vivir Con el alma aferrada A un dulce recuerdo Que lloro otra vez. Pai e Mãe riem e fazem comentários sobre os passes de tango. RICARDO Mãe? Pai? PAI Olha só quem acordou.

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MÃE Filho! Mãe abraça Ricardo, mas ele não reage. MÃE Que foi, meu filho? Parece que viu um fantasma. RICARDO São vocês mesmos? PAI Veja só, meu amor, ele não reconhece mais os próprios pais. E olha que eu bati as botas não tem nem três meses. RICARDO É que vocês estão tão diferentes, tão... MÃE Jovens? PAI Dá pra acreditar que um dia nós fomos assim? MÃE Quando você e seus irmãos vinham pra casa da ponte com a gente. Não se lembra? RICARDO Não lembro quase nada dessa época. MÃE Como pode? Foi uma época tão feliz. PAI A mais feliz de todas. RICARDO Feliz pra vocês. Pra gente era um saco. Pai pega um porta-retrato. PAI Você e seus irmãos parecem estar se divertindo bastante.

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RICARDO Ah, pai, a gente era criança; criança se diverte com qualquer coisa. Eu nunca entendi porque vocês gostavam tanto de passar os finais de semana nesse fim de mundo.

MÃE A gente vinha fazer o que mais gostava na vida: ficar juntinhos, só os dois. Pai e Mãe se beijam. RICARDO Ah, não, gente, sem exibição pública, pelo amor de Deus! MÃE Você é nosso filho e nós estamos na nossa casa. RICARDO É, mas... não precisa, vai. Pai vai até o cavalete. PAI Já aprendeu a desenhar cavalos? RICARDO Esquece, pai. Hoje em dia a gente usa isso aqui pra desenhar. Se eu quero um cavalo, eu busco uma foto, recorto, pinto da cor que eu quiser, junto outras imagens... É assim que funciona. Quer ver só? Ricardo abre o laptop. RICARDO Esqueci que a bateria arriou. PAI Mas a bateria de um cavalete nunca acaba. RICARDO Nem fica sem conexão. Ricardo fecha o laptop.

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PAI Você conseguiu se conectar conosco. Não está feliz? RICARDO É outro tipo de conexão, pai, coisa que você nunca entendeu – aliás, nunca fez questão de entender. PAI Sempre me orgulhei de nunca ter precisado chegar nem perto de uma máquina dessas. RICARDO É por isso que a empresa nunca cresceu, que os negócios não se expandiram, que eu ganhei essa casa velha de herança. (t) Desculpa, eu não queria dizer...

PAI Você disse exatamente o que queria dizer. RICARDO Eu não disse isso pra magoar vocês... PAI Você não nos magoou, Ricardo, porque você não tem como nos magoar. Eu e sua mãe estamos em outra agora, você não tem que se preocupar conosco. Tem é que se cuidar da sua vida, isso sim. MÃE Beba leite todos os dias, meu filho, não importa o que digam. Integral. PAI Tem um cigarrinho aí? Ricardo dá um cigarro para pai, que dá uma longa e prazerosa tragada. PAI Como nos bons e velhos tempos. MÃE Me dá um também, vai. Pai e Ricardo olham espantados para Mãe. MÃE

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Acho que agora eu não preciso mais fumar escondida, não é? Ricardo dá um cigarro pra mãe. Em seguida, põe um na boca. Mãe tira o cigarro da boca de Ricardo. RICARDO Que isso, mãe? MÃE Melhor não. PAI Só se for o último, filho. Eu sou a prova viva de que esse negócio mata. MÃE A prova morta. Mãe e Pai riem. RICARDO De onde vocês tiraram todo esse senso de humor? Que eu lembre vocês não eram assim.

MÃE Você nunca leu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”? “Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”. Pai e Mãe riem e se beijam. RICARDO Sem beijo, pessoal. PAI De onde você tirou toda essa chatice? Que eu lembre você não era assim. RICARDO Uma vez – um ano antes de você morrer, mãe – eu passei pela sala e vi vocês sentados no sofá, assistindo televisão de mãos dadas... Me deu um embrulho tão grande no estômago... Pai e Mãe ficam em silêncio olhando para Ricardo. RICARDO E ai? Vocês não vão falar nada? Não vão me criticar, dizer que eu sou maluco, ou

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desnaturado...? MÃE Quando você era bem pequeno, adorava esperar seu pai chegar em casa só pra tomar banho junto com ele. Às vezes você já estava deitado na cama, pronto pra dormir, mas era só escutar os passos dele na sala pra tirar o pijama e correr pro banheiro. Ricardo enfia as mãos nos bolsos e vai até a janela. RICARDO Não vai amanhecer nunca mais? Eu preciso ir embora dessa casa. PAI Tira a camisa, Ricardo. RICARDO Quê? PAI Eu disse pra você tirar a camisa. RICARDO Qual é, pai! A gente vai relembrar os meus tempos de criança agora? PAI Está com medo de quê? RICARDO Medo de nada, eu só acho que...

PAI Então faz o que eu estou te mandando, garoto. Lentamente, Ricardo tira a camisa. E enfia as mãos nos bolsos. Pai coloca o ouvido no coração de Ricardo, que está visivelmente desconfortável. PAI Diga trinta e três. RICARDO Quê?! Depois de morto virou médico?

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PAI Vamos lá, rapaz, não é difícil: trinta e três. RICARDO Okay... Trinta e três. PAI Mais alto. RICARDO Trinta e três. PAI Ouve isso, meu amor. Mãe ausculta Ricardo. PAI De novo, com firmeza. RICARDO Trina e três. PAI O que você acha? MÃE Descompassado. PAI Exatamente. Pai tira a própria camisa. RICARDO O que o você vai fazer? Pai abraça um desconsertado Ricardo. PAI Quer tentar me abraçar também? Ricardo hesita, mas tira as mãos dos bolsos e abraça Pai.

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PAI Agora – se você quiser – pode respirar. Ricardo ri um pouco. Respira fundo. Relaxa. MÃE Bem, meus queridos, agora chega porque eu já estou ficando com o estômago embrulhado... Pai e Ricardo riem e começam a vestir suas camisas. PAI Foi muito bom ter visto você aqui na casa da ponte, filho. RICARDO Quê?! Vocês já estão indo embora? Pra onde?! PAI Estamos só de passagem, na verdade foi uma grande coincidência termos nos esbarrado. MÃE Uma feliz coincidência. RICARDO Tem um monte de coisa que eu quero perguntar pra vocês. MÃE Nós não sabemos muita coisa. PAI Para dizer a verdade nós não sabemos nada. Não sabemos dizer de onde viemos, nem para onde vamos, nem o sentido da vida – nenhuma dessas questões que assolam a humanidade desde sempre. MÃE Só sabemos que estamos. PAI Muito bom, meu amor, é isso mesmo: nós estamos. E se você quer saber, Ricardo, aqui ou aí é a mesma coisa. Portanto, esteja. RICARDO Por que vocês me deixaram essa casa de herança? A Fernanda ficou com a cobertura, o

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Francisco e o Gilberto ficaram com a empresa. Por que justo eu fiquei com essa casa velha? PAI A idéia foi da sua mãe. MÃE A idéia foi sua. PAI Tudo bem, a idéia foi nossa. RICARDO Por quê? PAI E se a gente tentasse explicar de onde viemos e para onde vamos? MÃE Ou o sentido da vida? RICARDO Isso é sério! Eu preciso entender. PAI Bom, é que... MÃE Foi uma intuição. RICARDO Intuição?! MÃE Nós intuímos que a casa da ponte deveria ser sua. RICARDO Minha?! Dos quatro filhos eu sou o que mais detesta isso aqui. Que intuição foi essa? MÃE Intuição é intuição, meu filho, não é uma coisa que se explique racionalmente. É algo que a gente sente e às vezes dá crédito. Mãe beija Ricardo na testa.

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PAI Dê tempo ao tempo, Ricardo. Passe uns dias na casa, dê umas voltas por aí, revire um pouco as coisas... MÃE O baú, por exemplo. RICARDO Que baú? A mãe aponta para um baú. Pai lhe dá tapinhas nas costas. PAI Coragem, rapaz.

CENA 13 Graça tira a garrafa de vinho da bolsa. GRAÇA Você vai me desculpar, mas eu estou precisando muito. Ela abre a garrafa. GRAÇA Prefere que eu não beba? ZÉ CARLOS Deixa eu te mostrar uma coisa. Zé Carlos pega a garrafa da mão de Graça e cheira seu bico. Depois devolve a garrafa a Graça e mostra as mãos. ZÉ CARLOS Firmes como uma rocha. GRAÇA Curado. ZÉ CARLOS

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Acho até que poderia tomar um copo. Mas não. GRAÇA Prefere não arriscar? ZÉ CARLOS Decidi não esquecer. Graça toma um gole do vinho no gargalo. GRAÇA Você acha que um dia ela volta? De novo? ZÉ CARLOS Durante anos eu tive essa certeza. Agora já não sei. GRAÇA O que você faria se ela aparecesse na sua frente?

ZÉ CARLOS Já sonhei centenas vezes com essa situação. Já ensaiei essa cena muitas vezes com a minha sombra. Teve um tempo que eu sabia de cor cada palavra e a maneira como cada palavra ia sair da minha boca. A respiração entre cada frase – o gesto. Graça deixa a garrafa no chão e se levanta. GRAÇA Se ela passasse agora por aquela cancela? ZÉ CARLOS Só de pensar meu coração acelera. Sente. Ele coloca a mão de Graça em seu peito. Ela caminha. Fica parada por um tempo olhando para Zé Carlos. GRAÇA Você pode me ver? ZÉ CARLOS Meus olhos às vezes me traem de tão embaçados. A cabeça inventa coisa que não existe quando eu viro mais de três noites seguidas.

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GRAÇA Sou eu ou não sou eu? Pausa. ZÉ CARLOS É você... Teresa. GRAÇA Tem alguma coisa pra me dizer, Zé Carlos? Zé Carlos se aproxima. Passa a mão na testa. Limpa a boca. ZÉ CARLOS Por onde você andou todo esse tempo? GRAÇA Por ai. ZÉ CARLOS Onde você está vivendo agora? GRAÇA Bem longe de você. ZÉ CARLOS E Juliana?

GRAÇA Está com o pai. Zé Carlos agarra Graça pelo pescoço. ZÉ CARLOS Você não pode falar assim comigo – não tem esse direito. GRAÇA Você está me machucando. ZÉ CARLOS Isso não é nada perto do que eu já te fiz aqui dentro. Eu te empurrei da janela, enfiei uma faca na sua barriga, enchi sua cara de soco, chutei sua cabeça...

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Zé Carlos empurra Graça no chão. GRAÇA Era pra isso que você queria que eu voltasse? O que você espera de mim agindo assim? Zé Carlos caminha de um lado para outro, limpa o suor da testa, esfrega as mãos. GRAÇA Eu vim porque eu pensei que você tivesse alguma coisa pra me dizer. ZÉ CARLOS Eu sabia que iam te enxotar de novo e que você ia voltar. GRAÇA Ouve o que eu vou te falar: eu não vim pra ficar. Eu só vim pra te dar a chance de você botar pra fora tudo o que está guardado aí dentro do seu peito. Você só tem uma chance, que é essa. Depois eu vou embora pra sempre e você nunca mais vai me ver. Está me entendendo? Zé Carlos se senta de cabeça baixa. Respira fundo. Começa a falar olhando para as mãos que estão unidas em seu colo. ZÉ CARLOS Eu estou curado. Há anos que eu não boto nem uma gota de álcool na boca. Você sabe porque eu fiquei doente. Mesmo assim foi embora. Eu podia ter ido atrás de você – podia ter feito de outra maneira. Mas eu queria me curar primeiro, voltar a ser um homem. Tenho esperado por você esse tempo todo aqui, na nossa rua. Demoliram a casa da gente, sabia? Virou prédio de luxo, só tem gente rica. Pensei que se você quisesse me procurar ia começar passando por aqui. Então eu comecei a vir pra cá todos os dias. Estou morando aqui mesmo, nessa cabine. Não preciso de nada, porque eu não faço outra coisa a não ser esperar. Mas isso agora acabou. Diz que acabou, Teresa. Graça começa a sangrar pelo nariz. Cata seu lenço da bola. Zé Carlos mais uma vez a ajuda a sentar com a cabeça levantada. Zé Carlos entra na cabine e permanece lá, desorientado. GRAÇA Foi mais forte que eu. ZÉ CARLOS Posso dizer o que eu te diria?

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GRAÇA A Teresa foi embora – pra sempre. ZÉ CARLOS Não, eu queria te dizer o que eu te diria se fosse o Marcus. GRAÇA Não era eu que tinha que falar? ZÉ CARLOS É verdade. Diz então. GRAÇA Não sei. Não precisa. Zé Carlos se afasta. Abre os braços. ZÉ CARLOS Sou eu? GRAÇA Não. ZÉ CARLOS Fecha os olhos. Fica mais fácil. Graça fecha os olhos. Respira fundo. GRAÇA Marcus... Eu sei que você mora no melhor prédio dessa rua. Desde que se casou com a Raquel. Graça abre os olhos. GRAÇA Sei qual o cargo você ocupa no escritório do Levinsky, e que você costuma passar os domingos na casa do seu sogro, bebendo uísque e vendo jogo numa enorme tevê de plasma. A mesma tevê que você vai comprar na semana que vem, porque o mais insignificante objeto do seu apartamento tem que causar a impressão certa nas visitas certas. As pessoas que agora você chama de amigas sabem que você é só uma casca procurando sempre o melhor verniz. Mas isso faz parte do jogo, e elas até respeitam você por isso. Está tudo sob controle, não é? Apesar de rica, a Raquel é fútil e vulgar, e você não vê a hora de se livrar dela. Mas isso ainda vai demorar, você não é bobo. Vai levar tempo até você se firmar na empresa, até cooptar um a um os clientes do Levinsky e abrir seu próprio escritório. Quando isso acontecer, a primeira coisa

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que você vai providenciar vai ser o divórcio. Até lá, você vai compensando sua falta de tesão se relacionando com putas ou com a mulher de algum amigo. (T) Que engraçado, eu imaginei esse encontro da seguinte maneira: você ia me procurar pra dizer que só depois de me ter perdido é que tinha descoberto que me amava; que sua vida era vazia, apesar de confortável e que só comigo é que você poderia ser realmente feliz. Eu ia imediatamente começar a sangrar e ia te dizer que ainda te amo, mas que só te aceito de volta se você renunciar a tudo o que conquistou com o seu oportunismo e não com o fruto do seu trabalho. Ela passa a mão no nariz. GRAÇA Mas olha só, Marcus, eu não estou sangrando. Eu não estou sangrando! ZÉ CARLOS Você não está sangrando. Mas sangrou. Comigo. GRAÇA Quê? ZÉ CARLOS Falando comigo, como se fosse a Teresa, você sangrou. GRAÇA Está quase amanhecendo. É melhor eu ir embora. ZÉ CARLOS Deixa eu te mostrar uma coisa. Zé Carlos vai até a cabine e volta de lá com um revólver. ZÉ CARLOS É velho, mas funciona. Ele pega a mão de Graça e coloca o revólver nela.

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GRAÇA Uma vez tinha um revólver na minha mão. Marcus estava no canto da parede e era do tamanho de um rato. Eu queria atirar, mas o revólver pesava uma tonelada. Quando olhei de novo, tinha um cachorro no lugar do Marcus. Só com muito esforço e usando as duas mãos é que eu consegui erguer a arma. Na hora de atirar, o gatilho era duro demais. Um dragão estava na minha frente, rosnando pra mim. Só deu tempo de me jogar no chão quando ele saiu voando pela janela.

ZÉ CARLOS Sei que horas ele sai e que horas ele volta; conheço a rotina da casa. Podem me acusar, mas eu tenho um álibi: aquele livro foi ele que me deu, ele confia em mim – gosta de mim. De você ninguém ia pensar nada, ninguém nunca te viu por aqui. Não ia ser difícil. Tenho um dinheiro guardado. Eu te dou o dinheiro, você começa vida nova longe daqui. Se a Teresa voltasse eu podia fazer alguma coisa. Mas ela não vai voltar, já tem mais de 12 anos! Pra você é diferente, Marcus está aqui, você pode mudar tudo. Depois que o tempo passar e as coisas se acalmarem, você volta pra me encontrar. Eu vou estar por aqui como sempre. Mas agora esperando por você... Graça.

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GRAÇA Por mim... (t) Ainda tem café?

Zé Carlos vai até a cabine se servir de café. Graça encosta o revólver na cabeça. Zé Carlos sai da cabine, com o café, e congela ao ver Graça. Eles permanecem alguns segundos, assim, olhando um para o outro, imóveis e em silêncio. Lentamente, Graça abaixa a arma. GRAÇA Gosto de pensar que a vida é repleta de possibilidades. Ela devolve o revólver para Zé Carlos, que lhe entrega a tampa da garrafa térmica. Graça bebe o café. Ele olha a arma, que pesa em sua mão.

CENA 14 Michele está em casa arrumando sua mala, quando recebe uma ligação. MARITZA Não é porque você não aceitou a minha oferta que precisa abandonar sua carreira e voltar pro interior. MICHELE Não estou abandonando nada, só estou dando um tempo. Vai ser bom voltar pra casa dos meus pais, comer pãozinho de queijo e tomar café com leite nos fins de tarde. O CD está quase todo mixado. Quando estiver pronto, eu volto e começo a divulgação; devagar; do meu jeito; com a minha cara. MARITZA E o seu noivo? MICHELE Você deve saber mais dele do que eu. MARITZA Como você não aceitou o negócio, mesmo com o apoio dele, nós não fechamos nenhum acordo. Mas ele me pediu um favor, que eu insistisse que você ao menos ouvisse seus argumentos.

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MICHELE Você não desiste.

MARITZA Estou fazendo um favor a ele, só isso. Meu problema eu já resolvi de outra forma. O rapaz só estava pensando no futuro de vocês dois quando aceitou minha proposta. MICHELE Que belo futuro esse de ver a noiva casando e tendo um filho com outro homem. MARITZA Talvez por ser mais velho que você, por já ter vivido um pouco mais, ele pensou que esse era um preço pequeno a ser pago diante de tamanha oportunidade. MICHELE Ou talvez ele simplesmente estivesse interessado em participar do próximo Big Brother. Eu preciso desligar. MARITZA Por mais estranho que isso possa parecer, foi um prazer te conhecer. MICHELE De verdade: por que você me ligou? MARITZA De verdade? Não sei. Essa madrugada eu estava zapeando e acabei parando num programa sobre índios canibais. Você sabia que os canibais acreditavam que se comessem o coração dos seus inimigos mais valentes poderiam adquirir a coragem e a força deles? MICHELE Caráter não é valentia. E você não é minha inimiga. Pelos inimigos a gente tem sentimentos fortes. E algum respeito. Michele desliga o telefone, pega sua mala e sai. Maritza pega um dos seus frascos e toma dois comprimidos. No monitor de Maritza aparecem Antonio e Rudson.

MARITZA Eu convoquei essa reunião pra dizer que consegui uma futura esposa e mãe do filho de Rudson.

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ANTONIO Michele voltou atrás? MARITZA Isso não tem nada a ver com aquela caipira. ANTONIO Quem é ela? MARITZA Viviane Zampier. RUDSON Ué?! Essa aí não era a tua mulher? ANTONIO Vai tomar um café, Rudson. RUDSON Eu não quero tomar café, eu já tomei... ANTONIO Faz o que eu tô mandando! Rudson se levanta e sai. RUDSON Não agüento mais essa merda! Daqui a pouco vou preferir jogar no time dos presidiários. ANTONIO Que porra é essa, Maritza? Você está querendo me sacanear, é isso? Você sabe que eu ainda sou apaixonado pela Viviane. MARITZA Pode até ser apaixonado, mas não tem mais nada com ela, está inclusive noivo de outra mulher. ANTONIO A Sabrina é só um investimento. MARITZA A Viviane também era.

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ANTONIO Olha aqui, foi você que me disse que...

MARITZA Vai transferir o seu sentimento de culpa pra minha fatura agora? Quem foi que disse que não queria sair do jogo? Era só rescindir nosso contrato. Você pediu pra continuar. ANTONIO Por que logo a Viviane? MARITZA Porque ela é a melhor opção disponível nesse momento. ANTONIO Deve ter outras, tem que ter. MARITZA Nenhuma tem o poder de salvar o seu rabo como a Viviane. ANTONIO Ela nunca vai topar entrar num negócio desses. MARITZA Ela já topou. ANTONIO Espera aí, você não... MARITZA Ela aceitou se casar e ter um filho com o Rudson. Pausa. ANTONIO Não faz sentido... A Viviane não precisa disso... Ela não está em início de carreira, não está passando por problemas financeiros, não tem que provar mais nada pra ninguém... Por quê? MARITZA Isso é o que menos interessa agora. ANTONIO Foi você que procurou por ela?

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MARITZA Não importa. ANTONIO Responde! MARITZA A primeira coisa que um bom acionista faz de manhã, entre um gole de café e uma mordida numa torrada, é abrir os jornais nas páginas sobre mercado de capitais pra saber se é hora de manter suas ações ou se desfazer delas. Eu faço o mesmo, só que eu abro os jornais nas páginas das colunas sociais. Foi assim, folheando uma revista, que eu vi a foto da Viviane, visivelmente abatida por trás dos grandes óculos escuros. Liguei, marquei um encontro e expliquei o que eu queria. Só fiquei surpresa com a rapidez com que ela aceitou minha oferta. ANTONIO Ela quer me atingir, me machucar... Eu não posso fazer isso. MARITZA Você não pode fazer o quê, Antonio? ANTONIO Não posso aceitar que Viviane seja envolvida nessa merda toda. MARITZA A Viviane era pra você a ação que tinha que ser vendida, o prejuízo que tinha que ser eliminado. Você a tirou do seu jogo e agora ela está querendo fazer o jogo dela, só isso. ANTONIO Ela vai se sujar só pra se vingar de mim, será que você não entende? Maritza digita em seu laptop. MARITZA Acabei de te enviar um documento pra você imprimir e assinar. Daqui a meia hora um motoboy vai passar aí pra pegar. ANTONIO Que documento? MARITZA A rescisão do nosso contrato. Além de perder sua transação milionária, você vai ter que desembolsar uma boa quantia pra arcar com a multa contratual.

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ANTONIO Eu preciso de um tempo pra pensar. MARITZA Você tem meia hora, é pegar ou largar. Maritza desliga seu monitor. Saca um cigarro e acende. Levanta-se. Caminha pelo escritório enquanto fuma. Pega o celular e faz uma ligação. MARITZA E ai, garanhão? (t) Vai acabar tudo bem, daqui a 20 minutos Antonio vai me ligar pra dizer que aceita que você se case com Viviane. Mas não é de trabalho que eu quero falar agora. Comprei uns brinquedinhos novos pra gente se divertir hoje à noite... (t) Por quê não? (t) E amanhã? (t) Sei... claro, pode me passar o telefone dela que eu ligo e explico a coisa toda. Não precisa se preocupar. (t) Imagina, Rudson, eu é que peço desculpas por ter esquecido que nós somos de universos completamente diferentes. Então é isso. Boa sorte com a sua favelada. Ela desliga o celular. Seu computador faz um barulho de recebimento de nova mensagem de Antônio. Maritza lê: “Manda o motoboy. Assinei a rescição”. Ela abre um de seus frascos de comprimidos e engole dois. Dá uma longa tragada em seu cigarro. Mexe no computador. Tira um microfone da gaveta. Liga e testa o microfone. Tecla um botão de seu laptop. Introdução da música “Amar ou sofrer”. No monitor, a letra da música em meio a imagens de paisagens, iguais as de um karaokê de botequim. Maritza canta. MARITZA amar ou sofrer eu vou te dizer, mas vou duvidar querendo ou não o meu coração já quer se entregar não falta lembrança, aviso cobrança, você vai por mim. mais feito criança, lá vou na esperança, eu sou mesmo assim quem sabe até, meu destino, amor sem espinhos sou réu da sua boca, calor dos abraços e tantos beijinhos se o sonho acabou, não sei meu amor nem quero saber só sei que ontem sorrindo acordada sonhei com você às vezes até na vida é melhor, ficar bem sozinho pra gente sentir qual é o valor de um simples carinho

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te sinto no ar, na brisa do mar, eu quero te ver pois ontem a noite sonhando acordada, dormi com você.

CENA 15 Manhã. Ricardo está de pé, parado, olhando fixamente para o baú. Sofia entra. SOFIA Eu sai mais cedo da aula, matei o último tempo pra poder ir a praia com umas amigas. Depois a gente foi lanchar num posto de gasolina e então eu vi meu pai comprando cachorro-quente e coca-cola. Meu coração quase saiu pela boca, era a primeira vez que eu matava aula e eu sabia o quanto meus pais tinham que trabalhar pra pagar a mensalidade do colégio em dia. Inventei uma desculpa qualquer, mas eu tinha certeza que meu pai sabia que era tudo mentira, porque as minhas bochechas eram duas bolas de fogo, e eu gaguejava tanto! Só que ao invés de brigar comigo, ele perguntou se eu tinha dinheiro pra pagar o lanche, me deu uma nota de 50 e saiu apressado da loja. Eu o acompanhei com olhos e vi quando ele entrou no carro. No banco do carona estava uma mulher que eu não conhecia. Ela deu um beijo no rosto dele e pegou o lanche. Meu pai deu a partida e saiu de lá o mais rápido que pôde. (t) Depois de alguns dias sem consegui dormir, eu resolvi contar o que tinha acontecido pra minha mãe. Ela colocou as mãos no meu rosto e disse que já sabia de tudo. “Mãe! A senhora não vai fazer nada?!” Então ela respondeu, com um olhar muito sereno, que era um grande alivio ter certeza de alguma coisa na vida. RICARDO Deixa eu te mostrar uma coisa. Ele se abaixa e abre o baú. Sofia se abaixa também. Eles remexem o conteúdo do baú. SOFIA Os pinceis e as tintas estão aqui. Tem papel também – e telas. Ricardo desenrola um tubo de papel fino. RICARDO A planta da ponte, feita pelo meu pai. SOFIA Fotos da construção.

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Ricardo e Sofia olham as fotos. RICARDO Eu lembro desse dia! Quando ficaram prontos os primeiros cinco metros da ponte. Mamãe fez pizza de sardinha. Meu pai botou discos do Gardel no volume máximo. SOFIA Você não disse que ele não permitia aparelhos eletrônicos na casa? RICARDO Meu pai não considerava toca-discos um eletrônico, ele dizia que vitrola tinha alma. SOFIA E essa outra foto aqui? RICARDO Eu e meus irmãos fazendo competição de “saltos ornamentais”. SOFIA E aqui um autêntico piquenique em família. Ricardo apanha um caderno de dentro do baú. Folheia. SOFIA O que é isso? RICARDO Um diário que a minha mãe escreveu. É sobre construção. SOFIA Tem vários destes cadernos. RICARDO Ela registrava tudo. Sofia folheia os cadernos. Lê. SOFIA “Tivemos uma conversa séria hoje. As coisas são mais complicadas do que imaginávamos. Gino chegou a afirmar que iria contratar uma empresa de engenharia para concluir o projeto, mas por fim encorajei-o a continuar a construção exatamente como começamos: devagar e sempre. ‘Afinal de

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contas’, eu disse, ‘nossa ponte já nos faz felizes antes mesmo de finalizada’”. RICARDO Deve ter alguma coisa nesses diários que fale da conclusão da ponte. Deixa eu ver. Ricardo pega os cadernos da mão de Sofia, que volta a revirar o baú, até que encontra um grande bloco de desenho. SOFIA E isso aqui, Ricardo! Parece uma história infantil: príncipe, princesa, cavalos... (t) A ponte! RICARDO A nossa ponte? SOFIA Com neblina e tudo... Uma história infantil sobre a ponte. RICARDO Olha só essas aquarelas do meu pai... SOFIA O texto deve ser da sua mãe. RICARDO Sim, a letra é a mesma dos diários. SOFIA Se é uma história sobre a ponte... RICARDO Você acha? SOFIA É possível. RICARDO Então põe logo no final. SOFIA Você não prefere ler a história toda? RICARDO Eu não vou agüentar.

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Sofia abre o bloco na última página. RICARDO Mas... Termina assim, de repente? SOFIA Não tem final. RICARDO Eles não terminaram a história? SOFIA Pode não ter dado tempo... RICARDO Tempo era o que eles mais tinham. SOFIA Tem uma anotação aqui no pé da página... “Ver desenho Ricardo”. Um desenho seu? Que desenho? RICARDO Não sei. SOFIA Você deve ter feito um desenho pra última parte da história. RICARDO Eu nem sabia que eles estavam escrevendo essa história! E por que eles iriam querer um desenho meu? Olha só essas aquarelas do meu pai! Não faz sentido... SOFIA Sem desenho, sem texto... Sem final. Sofia fecha o bloco, levanta-se e vai até a janela. Ricardo vai ao baú e pega uma grande folha de papel e a prende no cavalete. Depois pega os pincéis e a as tintas. Olha fixamente para a folha em branco. RICARDO Eu nem saberia por onde começar... SOFIA

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Se eles foram felizes para sempre? Quem é que pode afirmar além daqueles que tiveram a coragem de enfrentar o terrível nevoeiro que cobre a ponte misteriosa? Porque mesmo que um dia, uma súbita rajada de vento viesse a afastar a neblina, ninguém sabe ao certo que tipo de margem iria se revelar, nem se da névoa emergiria uma terra encantada ou um pântano... Ricardo vai até a janela. RICARDO Quer ir até o final da ponte comigo?

SOFIA Olhando daqui parece um longo caminho até o final. RICARDO É a primeira vez que eu olho pra essa ponte de longe. Quando eu era criança estava sempre lá – nela. Ricardo olha para sua mão esquerda. RICARDO Você sabe ler o futuro também? Sofia pega a mão de Ricardo e a “lê”. SOFIA Sabia que as linhas das mãos de algumas pessoas mudam ao longo da vida? É sempre mais fácil ler o que já aconteceu do que o que ainda vai acontecer. Essa é a linha do destino. A sua se apaga aqui nesse ponto; e depois recomeça, está vendo? RICARDO Deve ser a neblina. Se a minha mão fosse um mapa a gente teria certeza de que existe o outro lado. SOFIA Certeza... Alguma certeza... Voltam a olhar pela janela. RICARDO E se a gente passasse na mercearia e comprasse umas coisinhas pra comer e beber? Minha mãe tinha uma cesta linda, dessas de palha, e uma toalha quadriculada...

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SOFIA Ricardo... RICARDO Se por um acaso a gente parar no meio do caminho, é só estender a toalha e fazer um piquenique. Sofia e Ricardo ficam – ainda – um longo tempo olhando a ponte pela janela.

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