HOMENS, SANTOS E DESERTORES Texto de Mário Bortolotto
HOMENS, SANTOS E DESERTORES Texto de Mário Bortolotto
Cenário : (Uma sala. Uma mesa no centro e duas cadeiras. Uma estante com muitos livros) (Garoto está sozinho sentado em uma das cadeiras. Lê um livro com excessiva atenção. Homem chega vindo do quarto. Pausa longa) HOMEM : Como é que você entrou aqui? GAROTO : A porta tava aberta. HOMEM : Não é a primeira vez que você aparece sem avisar. Eu não me sinto muito a vontade com essa situação. GAROTO : Tá legal. Eu aviso da próxima vez. HOMEM : Seu pai sabe que você tá aqui? GAROTO : Minha mãe. HOMEM : Quer um café? GAROTO : Eu preferia um whisky ou uma cerveja. HOMEM : Quer um café? GAROTO : Tudo bem. HOMEM : Há quanto tempo ele não aparece? GAROTO : Olha, eu não quero falar sobre isso. HOMEM : Dessa vez tá demorando mais, não é? GAROTO : Ei, não tem nada a ver com substituição, sabe. Eu não tô querendo transformar você em meu pai. HOMEM : A sua mãe sabe que você tá aqui?
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GAROTO : É claro. Porque não saberia? HOMEM : Ela não acha estranho? GAROTO : O que? HOMEM : Um garoto da sua idade... GAROTO : O que é que tem? HOMEM : Você não tem uma namorada? GAROTO : Olha, eu não sou nenhum pervertido não, se é o que você tá pensando. HOMEM : Nem eu. GAROTO : Eu sei. HOMEM : Rezo pra que sua mãe e seu pai também saibam. GAROTO : (levantando-se abruptamente) Mas que merda! . HOMEM : Uma namorada iria te fazer bem, ou quem sabe, alguns amigos da sua idade... GAROTO : Eu não tenho amigos. HOMEM : Sabe como é, amigos pra sair junto, falar bobagem, conversar sobre rock, sobre garotas... GAROTO : Coisas da minha idade. HOMEM : Algo assim. GAROTO : Eu entendo o que você quer dizer, mas isso não me interessa. HOMEM : E você não acha estranho? GAROTO : Eu acho estranho um bando de moleques gritando em um show de rock por um guitarrista descerebrado. Olha, eu li os livros que você me emprestou.
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HOMEM : Eu não emprestei, você pegou da minha estante. GAROTO : Você não sugeriu, mas me emprestou. HOMEM : Eu não tinha como negar. Sua mãe deve me achar um louco. Ela deve pensar: Que espécie de tarado é esse que fica empurrando pra cima do meu filho esses russos malucos? GAROTO : Tolstói não é maluco. Você preferia que eu gostasse de Marilyn Manson? HOMEM : Na sua idade eu já tinha lido Tolstoi, Beckett, Tchecov, Dostoievski, mas eu também tinha uma namoradinha e alguns amigos pra falar besteira e assuntos da minha idade. GAROTO : Você alguma vez já se sentiu deslocado? HOMEM : Eu me sinto assim o tempo todo. GAROTO : No colégio, os outros meninos me olham como se eu fosse uma aberração, um alienígena. HOMEM : O que é que você queria? Você não deve olhar com simpatia para os garotos com camisetas do "Metalica". GAROTO : Você conhece "Metalica"? HOMEM : É, eu já ouvi. E entendo porque a molecada adora. GAROTO : Mas você ouve? HOMEM : Cê tá brincando? Há coisas que o meu bom senso não me permite ter acesso. GAROTO : O meu também não, porra. HOMEM : Mas o seu também não permite entender os outros, o que deveria. GAROTO : Eu queria te mostrar uma coisa. (tira um cartão postal da bolsa e entrega pra ele)
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HOMEM : O que é isso? Um cartão? GAROTO : É. HOMEM : (examinando o cartão) México? GAROTO : Meu pai mandou. HOMEM : Muito bom. Ele tá lá! GAROTO : Parece que sim. HOMEM : Não diz quando volta? GAROTO : Não. Tá com um amigo motoqueiro dele. HOMEM : Você conhece? GAROTO : É um gordo seboso que anda com camiseta do Metálica e não gosta de ser chamado de motoqueiro. HOMEM : Não? GAROTO : Não. Ele diz que é motociclista. Eu o chamo de motoqueiro, só pra aporrinhar o filho da puta. HOMEM : E seu pai? GAROTO : O que é que tem? HOMEM : Também anda com camiseta do Metalica? GAROTO : Não. Eu não sei do que o meu pai gosta. Ele nunca falou comigo sobre nada. HOMEM : Você gostaria de saber? GAROTO : Às vezes eu penso nisso. HOMEM : Como é o relacionamento de vocês quando ele volta? GAROTO : Ele nunca fica mais que uma semana. É como se ele tivesse necessidade de ir embora. Você entende?
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HOMEM : Muito. GAROTO : Ele chega tarde com uma caixa de latinhas de cerveja, liga a tv, tira o som e fica olhando as imagens, como se não estivesse nem aí. HOMEM : Você nunca tentou conversar com ele? GAROTO : Eu tentei uma vez. HOMEM : É mesmo? GAROTO : É. Eu perguntei pra ele: Ei, pai, o que cê tá pensando? HOMEM : E ele? GAROTO : Ele só sorriu de volta pra mim. E voltou a olhar a tv. Eu me sentei do lado dele e também fiquei olhando a tv tentando entender o que tava acontecendo, aí depois de um tempo que pra mim pareceu uma eternidade, ele olhou pra mim e falou: Fui expulso do colégio com 15 anos. Eu falei: Porque? Ele respondeu: Me disseram que eu era retardado. Depois de um tempo ele completou: A sociedade ao longo da história sempre confundiu indiferença com loucura. HOMEM : E nunca mais você falou com ele? GAROTO : Foi a ultima vez. Isso já faz uns dois anos. Mas eu lembro de cada palavra. Eu não sei quem é meu pai. Eu vou juntando pistas, na esperança de conhecer um pouco mais. Teve um dia que ele chegou depois de muito tempo fora. Minha mãe tava dando uma festa. Sabe como é, muita maconha, rock and roll, um monte de babacas, meu pai chegou, ela tava sentada no colo de um cara...ela pulou do colo do cara como se tivesse uma mola no traseiro. HOMEM : E seu pai?
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GAROTO : Ele deu um beijo no rosto dela. E colocou ela de volta no colo do cara. Pegou uma cerveja na geladeira e foi pro quintal. HOMEM : E aí? GAROTO : Nada. Ele ficou lá, no balanço. Eu nunca sei o que meu pai tá pensando. Tem pessoas que a gente sabe, né? É só olhar pra cara deles e você sabe o que elas estão pensando. Minha mãe é assim. Eu sempre sei o que ela vai me falar. Eu nunca sei o que você tá pensando. HOMEM : Eu tô pensando que é tarde, e sua mãe deve tá preocupada. GAROTO : Não tá não. Ela deve tá é muito louca. HOMEM : Ela também deve sentir falta do seu pai. GAROTO : Eu cheguei em casa uma noite dessas. Ela tava sozinha na cozinha. Tava chorando. Tinha um cara no quarto, pelado, roncando pra caramba. O cara parecia uma britadeira. Eu perguntei : O que foi, mãe? Eu já sabia a resposta. Perguntei por perguntar. HOMEM : Pra mostrar atenção. GAROTO : É. Simular interesse. HOMEM : Ela respondeu? GAROTO : Ela respondeu o que eu sabia que ela ia responder. HOMEM : “Eu sinto falta dele”. GAROTO : Você também conhece minha mãe. Eu tenho um tio doido que disse isso. HOMEM : Um tio? GAROTO : Não é bem um tio. É um amigo do meu pai. Um motociclista como ele. Eu fiquei com essa mania de chamar ele de Tio Trovão. Por causa do vozeirão dele. Ele fala e eu sempre acho que vai chover.
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HOMEM : E o que foi que ele disse? GAROTO : Todo mundo conhece a sua mãe. Ninguém nunca vai conhecer seu pai. Eu perguntei: Mas tio, você é tão amigo dele, você não o conhece? Ele respondeu: Eu não faço a menor idéia de quem ele seja. (pausa) Acho que tá na hora de ir embora. HOMEM : É tarde. GAROTO : Eu posso levar o Dostoievski? HOMEM : Tudo bem. Mas tenta esperar até amanhã pra começar a ler. Tenta dormir um pouco hoje. GAROTO : Tudo bem. Até mais. (levanta e vai andando até a porta) Sabe... HOMEM : O que? GAROTO : Eu sinto falta dele. (e sai. Homem fica sozinho. Luz vai caindo em resistência)
CENA 2 (Luz volta devagar. Os dois estão sentados. Garoto olha avidamente para estante de livros)
GAROTO : Que livros são aqueles? HOMEM : Você tá falando de Lutero? GAROTO : É. (levanta e segura o livro) Esse. (lê a lombada de outros) Santo Agostinho. Tomás de Aquino. Calvino. Que porra é essa? HOMEM : Eu aprendi a ler em um seminário. Ou melhor seria dizer, que me habituei a ler com prazer, depois virou dependência como tudo que começa com prazer.
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GAROTO : Como é que é? Você tá dizendo que... HOMEM : Quando eu tinha 12 anos, eu fui pra um seminário. GAROTO : Cê tá me tirando. Você ia ser padre? HOMEM : Acho que não. Eu só fui pra lá. Eu precisava ir. GAROTO : Você precisava sair da sua casa, nem que fosse pra ir pro seminário. HOMEM : Algo assim. GAROTO : Eu entendo. HOMEM : Tinha um padre que ficava com proselitismo barato pra cima de mim. Eu já tinha lido todos eles. Ele não me convencia. Aí um dia ele quis pegar no meu pau. Óbvio pra caramba, né? Eu me senti aviltado, insultado, não pelo ato em si, mas pela obviedade do ato. GAROTO : Você espera demais das pessoas. HOMEM : Esperava. São características básicas de um adolescente inquieto. GAROTO : Quanto tempo você ficou lá? HOMEM : Cinco anos. Tinha um padre alcoólatra, legal pra caramba. O melhor de todos. Ele enchia a cara, ficava vermelho. Eu chamava ele de Padre Pimentão. Ele me chamava no escritório dele e eu ficava tomando vinho com ele. Aí a gente conversava sobre Tomás de Aquino e outros malucos. Ele não ficava com sofismas pra cima de mim como os outros padres. Ele era legal. Nunca tentou me convencer de porra nenhuma. Ele adorava Dante Aligueri. Aí quando ele tava bem bêbado, ele ouvia Bob Dylan. Você acredita? GAROTO : Você era um garoto conversando com um velho maluco.
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HOMEM : É. Eu sei onde você quer chegar. É por isso que eu te recrimino. Até que ponto é legal pra alguém viver como eu. Eu não tenho amigos, garoto. Eu não tenho mulher. Você tá entendendo? GAROTO : Você se sente muito mal? HOMEM : Nem um pouco. GAROTO : E então? HOMEM : Há pessoas que saltam de janelas, explodem suas cabeças. GAROTO : Eu sei onde você quer chegar. Isso não vai acontecer comigo. HOMEM : Não, não vai. Não com você. Uma noite eu cheguei em casa. Tinha passado três dias fora, uma viagem de ácido. Lucy in the sky with diamonds. GAROTO : E daí? HOMEM : Minha mãe tava sentada no chão do lado da pia com os olhos esbugalhados. Tava sentada numa poça de sangue. Ela tinha dado um tiro na boca. GAROTO : Caramba. HOMEM : Algo assim. GAROTO : E você acha que teve algo a ver com... HOMEM : Teve a ver com tudo. Ninguém tem que assumir nenhuma culpa sozinho. Eu não acordo de noite gritando. Eu não tenho nenhuma responsabilidade se minha mãe foi tão bunda mole a ponto de dar um tiro na boca. Eu não coloco a culpa na mãe dela, então eu é que não vou assumir essa culpa. Eu a abracei e fiquei assim a madrugada toda, segurando a cabeça dela contra o meu peito, cantando pra ela dormir. GAROTO : Porra. HOMEM : Eu tenho quase certeza que vi ela sorrir.
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(Luz cai em resistência)
CENA 3 (Luz volta. Homem está bebendo de um copo de whisky com gelo. Pausa longa. Garoto olha) GAROTO : O que é que você tá bebendo? (Homem não responde) Li o livro que você me emprestou. O Salinger. Gostei. HOMEM : Eu já quis ser Caufield. Depois Sal Paradiso, Henry Chinaski, Arturo Bandini... GAROTO : E hoje é só um velho mal humorado. HOMEM : Estóico seria uma definição mais adequada. GAROTO : Será que um dia eu vou ficar igual você? HOMEM : Reze pra que não aconteça. Reze com fervor. Segure o rosário com força e peça com fé. (pausa) É um presente. É seu. GAROTO : O que ? HOMEM : “O apanhador no campo de centeio”. Mantenha-o perto de você. Recorra a ele sempre que necessário. GAROTO : Como um manual de primeiros socorros. HOMEM : Algo assim. GAROTO : E você? HOMEM : Eu tenho o “Apocalipse de São João”. GAROTO : Me diz uma coisa. Você já foi casado? HOMEM : Não. Nada tão radical. Mas cheguei perto. GAROTO : Como assim?
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HOMEM : Eu morei com uma mulher. Uma das experiências mais traumáticas da minha vida. Ela era marxista. Conseqüentemente não acreditava em Deus. E implicava com minhas obsessões religiosas. GAROTO : Você não é exatamente um religioso obcecado. HOMEM : Quando eu estava com ela, eu fazia questão de ser. Que graça tem você conviver com uma marxista se não coloca em xeque diariamente a sua ideologia? GAROTO : Você é um pé no saco. HOMEM : É? GAROTO : Mas é também o que de melhor aconteceu na minha vida. HOMEM : (tímido) Ok. (vai saindo) GAROTO : (correndo e se postando na frente dele) Ei, é verdade. HOMEM : Eu sei que é. E isso não me deixa exatamente tranqüilo. (Garoto abraça Homem) Eu já não tive filho por causa disso. GAROTO : O que? HOMEM : Eu odeio a idéia de um marmanjo pendurado no meu pescoço. GAROTO : Desculpa aí. Foi mal. HOMEM : Não foi tão ruim assim. (os dois riem, a principio semi constrangidos, depois mais a vontade) Quer um café? GAROTO : Eu preferia... HOMEM : Quer um café? GAROTO : Tá certo. Um café. (Homem sai. Garoto fica sozinho. Sorri. Luz cai em resistência)
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CENA 4 (Garoto anda de um lado para outro, impaciente. Tromba na mesa. Pega um livro. Dá uma olhada. Joga ele de volta na mesa) HOMEM : Você parece meio tenso. GAROTO : Você achou, é? HOMEM : Tudo bem, eu te dou uma autorização por escrito lhe dando o direito de quebrar a minha casa. GAROTO : Desculpa, eu não tô legal. HOMEM : Sobre o que falávamos? GAROTO : Tem um cara no colégio... HOMEM : Sei. GAROTO : É um completo imbecil. Uma nulidade. Repugnante sobre qualquer aspecto. HOMEM : Eu posso imaginar. GAROTO : Algumas mulheres acham ele o máximo. HOMEM : Eu imagino. GAROTO : Um descerebrado bombado. Pusilânime. HOMEM : Você disse isso a ele? GAROTO : O que? HOMEM : Você sabe...pusilânime. GAROTO : Cê tá brincando. HOMEM : Eu tô.
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GAROTO : O panaca é vidrado em Miami Vice...cê sabe, aquela série de tv idiota que o Don Johnson é um tira que anda com uns puta carro invocado... HOMEM : Belos ternos. GAROTO : É isso aí. HOMEM : Tô gostando de ver. GAROTO : O que? HOMEM : Cê tá com ciúme. GAROTO : Como ? HOMEM : O rapaz a que você se refere com tanta admiração tem conseguido algo com uma garota...você sabe, alguém por quem você anda...interessado? GAROTO : Eu cheguei ontem do colégio e entrei em casa. O Miami Vice tava lá enrabando a minha mãe na pia da cozinha. (pausa) HOMEM : Eu sinto dizer isso, mas você já devia ter se acostumado. Sua mãe não é nenhuma rainha da virtude. GAROTO : Se o pai fosse um cara normal... Um pai presente. Alguém que tivesse qualquer interesse na família... HOMEM : Você já parou pra pensar que se o seu pai fosse tudo isso, talvez você não passasse de um menininho bombado vidrado em Baywatch? O que é que você fez? GAROTO : Do que cê tá falando? HOMEM : A sua mãe. GAROTO : Ela tentou falar comigo. Eu saí fora. Ela não tinha nada pra me dizer.
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HOMEM : Acho que ela espera que você a perdoe. GAROTO : (com desprezo) Perdão. Eu voltei duas horas depois. Ela tava caída no banheiro. Mandou um vidro de comprimidos pra dentro com uma garrafa de vinho doce. Uma merda. Tive que enfiar o dedo na garganta dela. Fazer ela vomitar. E ela só chorando e pedindo perdão. “Cala a boca, mãe”. Eu gritava: “Cala a porra da boca”. Ela chorava. Eu não conseguia. Eu só ficava gritando: “Que merda a senhora tava tentando fazer?” HOMEM : E ela vomitou? GAROTO : Claro, porra. Ainda não vai ser dessa vez que você vai me ver de luto. Eu nunca te falei. Minha mãe tem uma porrada de doenças venéreas. HOMEM : É? GAROTO : É. Ela não se cuida. Vai com qualquer um, não usa camisinha. Eu não entendo como ela ainda tá por aí. HOMEM : Eu tive algumas. GAROTO : Doenças? HOMEM : Venéreas. GAROTO : Eu nunca tive nada. HOMEM : É necessário transar pra ter alguma. GAROTO : Eu disse pra ela: “Mãe, todos esses motoqueiros fedidos deitando com você”. Eu queria dar um banho de desinfetante nela, sabe? HOMEM : Desinfetante? GAROTO : É. Nem todo o desinfetante do mundo ia dar jeito. Ela fede mais que um gambá. Mais que um carpet cagado. Minha mãe tá fudida. Ela tá muito fudida. Meu pai tá no México. O filho da puta tá no México tomando porre de tequila com alguma mexicana vagabunda, e ele deve conversar com
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ela. Ela em duas horas vai ouvir ele falar mais do que eu ouvi em toda a minha puta da vida. HOMEM : Você fala palavrão demais. GAROTO : É mesmo? Só porque você é um católico de merda que freqüentou um seminário quando era um adolescente cheio de espinha, acha que pode se dar o direito de repreender o meu jeito de falar. HOMEM : Não. É porque você tá na minha casa. GAROTO : Eu posso ir embora. HOMEM : E porque não vai? GAROTO : É o que você queria, né? Que eu fosse e não voltasse nunca mais. HOMEM : Eu não disse isso. GAROTO : Você não me suporta. Minha mãe é uma puta louca. Meu pai é um esquisito que caga pra minha existência e você reza toda noite antes de dormir pro Todo Poderoso livrar você de minha ignóbil presença. HOMEM : Quanta pretensão. Eu ainda não o inclui em minhas orações. GAROTO
:
Você
faz
HOMEM : O que? GAROTO : Você sabe. Rezar. HOMEM : Toda santa noite. GAROTO : Caralho. HOMEM : É o que eu tô dizendo. GAROTO : Deixa eu ficar, vai. HOMEM : O que? GAROTO : Você sabe. HOMEM : Você sabe, quer dizer, ficar aqui?
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isso
mesmo?
GAROTO : Você sabe. É isso aí. HOMEM : Esquece. GAROTO : Porra, cara, deixa de ser egoísta. HOMEM : Manera na linguagem, garoto. GAROTO : Merda. Que é que custa? (pausa-os dois não falam nada) Filho da puta. Grandessíssimo filho da puta. É o que você é. (vai saindo) HOMEM : Ei, garoto. (ele para) Não é sempre que estamos dispostos a ouvir os problemas dos outros. Há bons profissionais que ganham muito bem pra isso. É que eu ouvi algo sobre egoísmo. Eu sempre fui um homem solipso. Por um momento eu me estranhei. Boa noite. (Garoto sai. Luz cai em resistência)
CENA 5 (Os dois estão em cena. Longa pausa. Ninguém fala nada. Garoto evita olhar o homem) HOMEM : Você não vai dizer nada? GAROTO : Queria pedir desculpas pela outra noite. HOMEM : Ok. GAROTO : Lembra daquele negócio que você falou? HOMEM : Eu falo demais. GAROTO : Sobre...garotas... HOMEM : Acho que eu falei alguma coisa a respeito. Parece que você se ofendeu ou algo assim. GAROTO : Pois é. HOMEM : Que que tem?
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GAROTO : Tem uma garota no colégio... HOMEM : E aí? GAROTO : Eu acho ela legal. HOMEM : Humm.
GAROTO : É. Ela não fica falando sem parar como as outras. É inteligente. Razoavelmente inteligente. É discreta e...bom...não fica agarrada no saco dos caras metidos a fodões. Cê sabe, os clones dos back street alguma coisa. HOMEM : Você quer dizer que elegeu uma garota. GAROTO : Eu não elegi ninguém. Ela apareceu. HOMEM : Não parece. O que parece é que você fez um esforço enorme para escolher alguém que pudesse corresponder as suas expectativas. GAROTO : Você sabe tudo, né? HOMEM : Eu tô me cansando de ouvir você reclamar. Há muito eu renunciei ao sofrimento. Você deveria fazer o mesmo. GAROTO : Eu não tô reclamando. Eu só tava te falando sobre uma garota...achei que você ia ficar contente comigo. HOMEM : Eu tenho que ficar contente com você. Eu tenho que sofrer com você. Os outros garotos são um bando de imbecis. As garotas são fúteis. E você é o molequinho predestinado a ser o rei dos pés no saco. GAROTO : Por que isso agora? HOMEM : Eu me correspondia com uma mulher. Uma de verdade, não uma dessas que a gente cria pra sublimar carência, falta de afeto, nada dessas merdas. Uma mulher de verdade.
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GAROTO : Como era ela? HOMEM : Cê tá me ouvindo? GAROTO : É. Eu tô. HOMEM : Ela me escrevia. Coisa mais anacrônica, né? Escrever cartas. Algumas pessoas ainda praticam este tipo de excentricidade. Ela escrevia coisas que não faziam muito sentido, ou se faziam, eu não prestava muita atenção. Gostava da caligrafia dela, do jeito que ela esparramava as letras sobre o papel. Uma caligrafia caprichada com arroubos de anarquia. Não sei se você me entende. GAROTO : Como se ela quisesse se comunicar com você pela caligrafia, não pelo significado das palavras. HOMEM : Às vezes eu gosto de conversar com você. É isso, garoto. É isso. Eu me apaixonei pela caligrafia de uma mulher. Eu me tornei dependente daquelas cartas. Eu esperava o carteiro com avidez. Quando ele dobrava a esquina, eu corria ao encontro dele. Quando ele não tinha nada pra mim, uma nuvem negra de apreensão e pavor cobria o seu rosto. Eu assustava o carteiro com minha ansiedade. Ela ficou um mês sem me escrever. Nenhuma linha. Fiquei cold turkey total. Foi um mês desgraçado. Um mês de insônia e vodka vagabunda. Aí uma noite o telefone tocou. GAROTO : Era ela? HOMEM : Era. Eu tinha mandado o meu número pra ela em uma das cartas. Ela resolveu usar. GAROTO : E aí? HOMEM : Você tá me ouvindo, né? GAROTO : É. Eu tô.
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HOMEM : É. Você tá me ouvindo mesmo. GAROTO : E o que foi que ela falou? HOMEM : Muito. Ela falou muito. Eu nunca tinha ouvido alguém falar tanto. Ela falou sobre sofrimento, as pessoas adoram falar sobre sofrimento, escancarar suas vidas sofridas para que nos apiedemos delas, falou sobre tábuas, algo sobre tábuas de salvação, garrafas de náufragos, ela fazia uso de metáforas ridículas. Não havia nenhuma lucidez naquele desastre telefônico, você tá me entendendo? Ela me queria como tábua de salvação, como um desses salva vidas bronzeado, ela me confundiu com um sargento do corpo de bombeiros. Uma merda. Ela falou sobre suas decepções como se fossem grandes acontecimentos. Como a queda do Muro de Berlim, ou a Guerra do Golfo. Uma merda de uma lastimosa decepção amorosa. E ela lá, enaltecendo
sua
vidinha
de
merda,
suas
metáforas
risíveis.
Seu
comprometimento e fidelidade com o que ela chamava de vida. E olha que eu só tive paciência de ouvi-la por cinco minutos. Nada mais que isso. Eu sei porque conferi no relógio o momento em que o telefone tocou. Eu tenho essa mania. Também conferi o momento em que deixei de prestar atenção, o momento em que eu me desapaixonei pela mulher que elegi pela sua caligrafia tão inteligível, tão correta, e com arroubos de anarquia. Você me ouviu! GAROTO : É. Eu ouvi. HOMEM : Então não venha me falar dessa pobre garota que você elegeu por ser insuportavelmente discreta. Essa pobre garota que você elegeu por ela não correr atrás dos garotões bombados que você tanto despreza e inveja. Não vem com essa pra cima de mim, garoto. Você é do tipo que vai se apaixonar pela garota inatingível. Pela princesinha mais cobiçada do colégio.
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Ainda vai se pegar chorando escondido no vestiário do ginásio quando souber que ela anda transando com o mesmo Miami Vice que você pegou enrabando sua mãezinha. GAROTO : Porra, não precisa ser cruel. HOMEM : E você não precisa ser tão babaca. Tão dissimulado. Vê se cresce, garotinho. Você não tem pra onde ir. Você não tem o germe da deserção como o seu pai. O privilégio de se manter indiferente. Você tem que fazer alguma coisa. Você não tá satisfeito. Você vai dar a cara pra bater que eu sei. Você é de uma geração de conformados. Uma geração de cordeirinhos preparados pro abate. Uma geração de cursinho pré vestibular. Mas você foi excluído dessa geração. Algum representante legal dessa geração anódina lhe deu um belo chute no traseiro e o colocou pra fora do clube. E agora você vai ter que fazer alguma coisa. Você tinha idéias demais. Você era dissonante. Você armou o conflito. GAROTO : Péra aí. Você tá falando de mim? HOMEM : Você tinha plena consciência de sua infelicidade e isso Irritava os incautos que se aproximassem de você. O veneno da revolta já corria loucão nas suas veias. Tava com a cara na janela gargalhando alto e fazendo algazarra. E você já não tinha vontade nenhuma de correr atrás de um antídoto numa farmácia de manipulação. GAROTO : Você tá falando de mim ou de você? HOMEM : E qual é a diferença? Eu vou ter que chacoalhar você até quando pra você entender o que é que tá acontecendo? Pra você sacar que cê tá sozinho, moleque? Eles não vão aceitar você. Eu tentei te dar a letra. Algo do tipo “vai, foge enquanto é tempo”. Mas você ficou aqui, falando, falando.
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Agora é tarde demais. O cerco se fechou. Eles querem a sua alma. Mas é só pra pisar em cima. Pra chutar a desgraçada do alto de uma escada rolante de uma merda de um shopping center. GAROTO : (quase chorando) Eu tô fudido, é isso? HOMEM : Pobre garoto. Pobre garoto. (luz cai em resistência)
CENA 6 (Quando a luz volta os dois estão na mesma posição da cena anterior, só que o Garoto está com usando uma jaqueta jeans e tem uma mochila a seus pés) HOMEM : A sua mãe me ligou. GAROTO : Eu esperava que ela fizesse isso. HOMEM : Você deve imaginar o que ela me pediu. GAROTO : Não vou precisar espremer o meu cérebro. O que eu não faço idéia é do que você disse a ela. HOMEM : Eu disse que intercederia por ela. Que tentaria te dissuadir da idéia de ir embora. GAROTO : Você acha que tem alguma chance? HOMEM : Nenhuma. É que eu não sou adepto da prática de chutar cachorro morto. Por isso eu prometi a ela. Ela já estava arrasada o suficiente. Acho que a minha promessa pode ter servido de alento. GAROTO : Você iludiu a pobre coitada. HOMEM : Ou não. Você pensa o que você quiser. GAROTO : E aí? HOMEM : O que?
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GAROTO : Não vai tentar me dissuadir? HOMEM : Não vou me cansar à toa. GAROTO : Não vai nem tentar? HOMEM : A minha vida inteira eu lutei por causas perdidas, e olha onde é que eu fui parar. GAROTO : Mas o que é que você acha? HOMEM : Eu não entendi. GAROTO : Esquece a minha mãe, porra. Eu quero saber o que é que você acha. O que eu tô fazendo é uma puta cagada? Eu vou quebrar a minha cara? O que é que você acha? HOMEM : Você vai fazer o que tem que fazer. GAROTO : Nesse ultimo mês... HOMEM : Você perdeu a inocência. Você relaxou e aí perdeu a inocência. Você não é mais o mesmo garoto que entrou por essa porta ávido pra falar de seus problemas, lambendo as páginas de todos os russos malucos. GAROTO : Eu me tornei um homem, é isso? HOMEM : Você parece um sujeito cansado, fatigado. Garotos nunca estão cansados. Eu não diria que você se tornou um homem, mas não há mais inocência. O seu próximo estágio é a Santidade. GAROTO : Espera aí. Você acha que eu tô indo embora pra encontrar com Deus? HOMEM : Eu não seria tão pretensioso a ponto de definir o que você vai encontrar, ou o que você espera encontrar. Você cansou da merda toda, sua alma tá em chamas, tá desesperada, tá em estado de graça, tá próxima do
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que podemos chamar de Deus. Não existem vários caminhos pra se chegar a Santidade. GAROTO : Eu só quero me libertar dessa agonia. Eu tenho inveja de todo mundo. Eu queria ser como os caras na torcida, na platéia do show de rock. Eu só queria fazer parte da turma, será que você me entende? Eu me mordo de inveja dos caras que vêem tudo de um jeito simples. Você tá falando de Santidade? Esses caras já alcançaram esse estágio há muito tempo. Me conta sobre o inferno. Eu te procurei porque eu esperava que você me falasse sobre ele. Saca luz nas trevas? Eu tava crente que você tinha essa luz. E eu ia sair daqui de cabeça erguida segurando essa merda dessa lâmpada de Aladin ou de Diógenes, o caralho. Sei lá, eu esperava algo assim. E aí você me empurra pro abismo e me fala em Santidade? Eu tinha uma granada na garganta e você puxou o pino. Você é pior do que eu podia imaginar. Você não vai se dar nem ao trabalho de constatar o estrago. HOMEM : Você já deve ter pensando em suicídio. Eu te condeno a Santidade. É como eu disse, você não tem muitas opções. GAROTO : E se você fosse junto comigo? HOMEM : Você ia gostar, né? GAROTO : É. Porque não? HOMEM : Porque eu desisti. Ah, esse furor. Selvageria. Eu sou só um homem que descobriu tarde demais sua condição terrivelmente humana. Não há nada que eu possa fazer por você, que você não vá descobrir sozinho. Toda aquela turbulência que enfrentei durante anos...é como se Netuno ou um desses deuses gregos pentelhos colocasse sua mão sobre o mar revolto dentro de mim.
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GAROTO : Você roubou a minha inocência. HOMEM : Conversa. Você é o legitimo herdeiro da desesperança, da insensatez. Você se voltou ostensivamente contra o que lhe parecia predestinado. Você sabia o tempo todo que alguém tava tirando uma na sua cara. Não vem com essa pra cima de mim, Garoto. Faz o que você tem que fazer. E não responsabilize ninguém por sua infelicidade. Ela é inevitável. Eu só tava te testando esse tempo todo. Você foi aprovado com louvor. De agora em diante... é o horror. (Garoto coloca a mochila nas costas e vai saindo. Para na porta. Se volta para Homem. Homem senta em uma cadeira. Garoto repentinamente decidido sai bruscamente. Homem coloca uma música muito alta. Luz vai caindo.
Ouve-se
o
estampido
de
um
tiro
abafado
excessivamente alta)
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pela
música