O PIQUENIQUE
Peça em um ato de Celso Luiz Paulini Personagens: ADÉLIA E MATEUS A ação se passa num terreno baldio, nos fundos de uma fábrica de artigos sanitários. Adélia traz uma cesta. Adélia – Pode ser aqui. (Mateus está de costas para ela.) Adélia – Você não acha que aqui está bem? (Mateus cruza os braços.) Adélia – Hem? (Mateus nada responde.) Adélia – Diga alguma coisa, Mateus! Mateus – (Voltando-se) Aqui ou ali ... Adélia – Então vai ser aqui. Mateus – Ou ali. Adélia – Diga de uma vez o que há de extraordinário! Mateus – Você é surpreendente, Adélia, meus parabéns! Adélia – Tantas queixas por causa de um simples piquenique! (Pondo a cesta no chão.) Olhe aqui, Mateus, deixe de histórias e vamos aproveitar o sábado! Mateus – Você sabe há quanto tempo não se faz um piquenique nesse país? Adélis – Como não se faz? Há sempre piqueniques por aí. Até parece que você não lê os jornais! Mateus – 1918 ... foi o último. Uma catástrofe! Uma verdadeira tragédia no alto da Cantareira! Adélia – Choveu muito, então?
Mateus – Uma tarde esplêndida: envenenamento coletivo. Alguém pôs vitríolo na mortadela. Adélia – Por quê? Mateus – Dizem que foi por amor. Adélia – Ainda bem! Mateus – Por que ainda bem? Adélia – É um motivo razoável. Mateus – Francamente, Adélia, você e sua família nunca tiveram o menor espírito. São uns chatos. Adélia – Ora, tenha a paciência, isso foi em 1918! ... Mateus – Não. Foi em 19! Adélia – 18! Mateus –19! Adélia – 18! Foi o que você disse! Mateus – Tenho a certeza de que disse 19. Adélia – E daí? Mateus – Você nunca é clara, precisa. Sua falta de rigor lógico é enervante ... Me faz mal para os nervos. Dá espasmos, sabe? Adélia – Está bem ... está bem, mas não vamos estragar nosso piquenique só por causa de um detalhe histórico. (Olhando em torno:) Ah, que belo dia, que belo dia! Nem sol nem chuva. Esplêndido! Mateus – Horrível! Adélia – É assim que eu gosto. (Assentando-se:) E depois, para mim não há maior prazer do que estirar-me numa grama. Mateus – Grama? Onde? Por aqui não há nem vestígio ... nem uma miserável touceirinha de capim! Adélia – Deixe de ser minucioso. Assente-se, Mateus.
Mateus – E minhas calças? Adélia – Porque você é teimoso. E as calças blue jeans que eu comprei na feira? Mateus – Sou lá homem de usar calças blue jeans? Eu, um farmacêutico! Adélia – E vai ficar aí de pé o tempo todo? Mateus – Não me assento! Adélia – Já que você veio, assente-se. Mateus – Não quero sujar as calças. Adélia – É o cúmulo! (Tira da cesta uma toalha e joga-a para Mateus:) Tome, então, pegue esta toalha! Mateus – (Pegando a toalha no ar:) Eu disse que não queria calças blue jeans ... eu disse. (Assentando-se) Mas basta eu dizer uma coisa para você fazer o contrário. O que você gosta é de gastar dinheiro à toa! Adélia – Pelo menos hoje não me fale em dinheiro. Respeite o piquenique! Mateus – Você sabe que a farmácia não vai indo nada bem, mas isso não a impede de fazer extravagância, por exemplo, este estúpido piquenique! Adélia – Só gastamos o dinheiro do ônibus. Não é muito, não é? Mateus – Ainda assim! Podíamos ter posto esse dinheiro na poupança. E para falar a verdade, se há coisa que você não sabe fazer é um piquenique. Onde se viu um piquenique sem uma árvore? Adélia – Para que, se não há sol? Mateus – Não há sol, não há água, não há grama, não há nada! Só lixo! Lixo por toda a parte ... e os fundos de uma fábrica de latrinas. Que lugar você escolheu, Adélia! Adélia – Não se pode ser tão exigente hoje em dia. Mateus – E esse cheiro? ... Está sentindo? Adélia – Deve haver lugares que cheiram bem. Lugares agradáveis, com árvores, flores e até água ... mas para quem veio de ônibus isto é um oásis! Mateus – (com repulsa:) Lugar nojento! Adélia – Pelo menos é perto de casa.
Mateus – (Afugentando os mosquitos:) Viu os mosquitos? Eles não estão te picando? Adélia – Não. Mateus – (Afugentando:) A gente pode até pegar uma doença! Adélia – Então por que você não comprou o carro? Não estava lá uma maravilha, mas bem que servia ... Eu insisti, insisti! Fiquei um mês falando! Mateus – E a gasolina? Adélia – Não fique, então, reclamando do lugar ... Chega! (Puxando a cesta:) E em vez de discutir, vamos começar nosso piquenique. Mateus – Com esse cheiro? Com esse lixo? ... O melhor é voltar para casa. Adélia – E quem é que vai carregar de novo a cesta cheia no ônibus? Quem? Porque você se recusa. É um farmacêutico! Mateus – (Para si mesmo:) Eu não devia ... Eu não devia ter vindo. Adélia – (Mexendo na cesta:) Mas veio, não é? ... Ih, esqueci as sodinhas em cima da geladeira! Que azar! Ainda bem que tive a idéia de trazer a limonada. (Tira da cesta uma garrafa térmica e dois copos.) Mateus – Limonada me dá azia. Adélia – Pois é ... se você não me tivesse atormentado tanto, eu não teria esquecido as sodinhas. Mas suas reclamações! ... A manhã inteira dizendo que não queria o piquenique ... Foi isso o que deu! (Estendendo um dos copos para Mateus:) Você quer? Mateus – (Apanhando o copo:) Que remédio! Adélia – (Servindo-o:) É impressão. Não vai te fazer mal. Mateus – Se fizer, você vai ver! Adélia – Então não beba! Mateus – E vou beber o que, se aqui nem água tem? (Começam a beber.) Mateus – (Espantando os mosquitos e bebendo:) E para comer, o que você trouxe? Adélia – Depois. Primeiro vamos abrir o apetite. (Oferecendo limonada:) Mais?
Mateus – (Estendendo o copo:) Só metade. (Bebem em silêncio.) Adélia – Mateus! Mateus – Hum! Adélia – Eu queria lhe fazer uma pergunta ... mas é para responder direito, hem, Porque é importante para mim. Mateus – O que é? Adélia – Você é capaz de adivinhar porque eu quis fazer esse piquenique? Mateus – Tenho a impressão que é para estragar o meu sábado. Adélia – E além disso? Mateus – Como vou saber? Adélia – Faça um esforço, Mateus! Mateus – Não tenho interesse. Adélia – Se quiser você descobre. Mateus – Só para parar de me encher: é o dia da árvore? Adélia – Não. Mateus – Então é o seu aniversário? Adélia – Também não. Mateus – O meu? Adélia – Ora, Mateus! Mateus – Porra, Adélia. Então, o que há de ser? Deixe de conversa e tire aí da cesta o que você trouxe! Se temos de comer aqui que seja logo! Não agüento mais esse lugar com tanto lixo, mosquitos e esse fedor ... Será que você não sente? Adélia – Não se irrite, tenha um pouco de paciência! Mateus – Para ficar aqui é preciso muita.
Adélia – Então você não se lembra? Mateus – Não se lembra do que? Adélia – Do outro piquenique, Mateus! Mateus – Não. Nunca fui. É o primeiro e último. E pronto! Adélia – Não se lembra, então, onde a gente se conheceu? Mateus – Lógico! Como podia esquecer? Mas aquele era o seu piquenique! Não o meu. Adélia – Por que não disse logo? Mateus – E acha que vale uma comemoração? Adélia – Talvez. Mateus – Então divirta-se! Adélia – Estou me divertindo! Mateus – Ótimo! (Silêncio) Adélia – Mateus! Mateus – Está na hora de comer? Adélia – Não é isso. Sabe? Nunca mais voltei ao Horto Florestal. Mateus – Pois não é que você teve juízo. Pelo menos nisso. Adélia - Foi num dia de verão, lembra? Estava quente e tudo muito verde ... Mateus – Como aqui ... Adélia – A professora queria que a gente ficasse ali por perto. Mas sem ninguém perceber eu e Cordélia demos um jeito de nos afastar ... Sabe o que ela queria me mostrar? Mateus – A renda da calcinha. Adélia – Grosseirão! Era um bilhete de amor. O primeiro que ela tinha recebido. Mateus – Safadeza.
Adélia – Não era, não. Eram palavras ingênuas e apaixonadas. Mateus – Olha essa mosquitada! É que eles estão sentindo o cheiro da comida ... ou a gente come ou vai embora! O que não dá é ficar por aqui. Resolve, Adélia! Adélia – Aquele bilhete tinha despertado o desejo de confidências ... e começamos a falar de nossos sonhos ... o que queríamos que a vida nos desse, e haveria de dar! ... tínhamos certeza! Mateus – Que saco, Adélia! Adélia – Estávamos empolgadas ... aqueles sonhos seriam a nossa vida! Mas de repente caímos em nós, e percebemos que já se tinha passado muito tempo, e a gente nem sabia onde estava. Começamos a correr para procurar o nosso grupo e foi quando ... (Mateus interrompe Adélia violentamente.) Mateus – Espere um pouco! Já que a comida é para os mosquitos, é bom que você diga aonde quer chegar com esse papo idiota! Adélia – (Ajoelhando-se:) Quero chegar, Mateus, que de repente demos com um rapaz deitado debaixo de uma árvore ... Ele era belo, tinha dezenove anos ... e dormia com um livro aberto ao seu lado. É aí que eu queria chegar! Mateus – Eu era um idiota! Adélia – Não, não era não! Você era gentil e delicado. Mateus – Você tem certeza? Adélia – Absoluta. Mateus – Sabe o que me pergunto, Adélia? Adélia – (Com alguma esperança:) O que? Mateus – Por que diabos eu tive a infeliz idéia de ir ao Horto Florestal? Pode-se muito bem viver sem ir ao Horto, ao Pico do Jaraguá, ao Museu de Cera, ao Butantã. Por que diabos eu cismei de ir ao Horto Florestal? Adélia – Então está mesmo arrependido? Mateus – Poderia ter sido pior! Imagine se tivesse ido ao Butantã? Com todas aquelas cobras! Adélia – É só isso que você tem para me dizer: “Poderia ter sido pior?” Mateus – E poderia. Pode ter certeza.
Adélia – Mas quando nos casamos você estava apaixonado.!? Mateus – Excitado! Não confunda. Adélia – Só excitado? Mateus – Só! E já passou. Adélia – (Consternada:) Mateus! Mateus – Você não podia querer que eu ficasse vinte e oito anos excitado vendo sua cara todos os dias. Adélia – E eu não vejo a sua? Mateus – E é por isso que eu venho te dizendo que certas coisas não são mais para nós. Você é que insiste! Adélia – Basta! Eu não preciso saber mais nada. Mateus – Como você já sabe agora o que queria, tire a comida da cesta e vamos começar este piquenique, porque apesar da fábrica de latrinas eu estou sentindo um vazio aqui no estômago! Adélia – Vamos começar! É uma das poucas coisas que ainda podemos fazer juntos. Mateus – Enfim uma coisa sensata. E o que você preparou para a gente comer? Adélia – Muitas coisas ... o que eu não sei é por onde começar ... Mateus – Isso não é problema. Adélia – Já que é assim, vamos dar início ao nosso piquenique com uns croquetes a Lord Byron. (Tirando um prato da cesta:) Você gosta, não? Mateus – Demais! De uma coisa você não pode se queixar. Nunca neguei seus dotes culinários. Adélia – É pouco, Mateus! (Estendendo o prato em direção a Mateus:) Que tal? Mateus – Estão com ótima aparência! (Tira um croquete e começa a comer:) Hum! Está uma delícia. Dessa vez parece que você pôs louro ... Adélia – E também sálvia ... dá para sentir? Mateus – Um toque ... como convém.
Adélia – Arrisquei a pôr mostarda. Ficou bom? Mateus – Excelente! (Tira outro.) Você não come? Adélia – Croquetes, não. Estão muitos temperados para o meu gosto. Mateus – Sou capaz de jurar que você pôs cominho. Adélia – Não exagerei ... uma pitada só. Mateus – Tem manjericão? Adélia – Onde se viu croquete sem manjericão? Mateus – Mas há um gostinho meio estranho ... O que será? Adélia – Não é orégano? Mateus – Não. (Pára de comer.) Adélia – Então é a noz moscada! Mateus – Não, não é gosto de noz moscada. É uma coisa meio ardente, um pouco ácida. Adélia – Alecrim? Mateus – Também não. Adélia – O que seria? Mateus – Ai, está me pegando no estômago ... me queimando! ... como arde! O que você pôs nesses croquetes? Adélia – Ácido. Mateus – Ácido? ... Que ácido, Adélia? (Começa a contorcer-se) Adélia – Aquele que está na última prateleira ... naquele vidro azul com uma caveirinha no rótulo ... Lembra-se? Quando eu perguntei você disse que duas ou três gotinhas eram fatais. Mateus – (Gemendo:) Ai, ai, mas por que, Adélia? Adélia – Seria preciso responder? Mateus – Cadela. (Contorcendo-se.) Ai, ai! ... Miserável! ... ai, ai! ... Como dói, meu Deus! ...
Adélia – Não vai doer muito ... só uns minutinhos. Mateus – (Contorcendo-se:) É como fogo! ... Está comendo os meus intestinos ... minha garganta. Por que, Adélia? Adélia – Se você não se mexer vai doer menos ... É rápido, Mateus. Mateus – Você não devia ter feito isso sua ... sua puta! Adélia – (Segurando-o:) Calma, Mateus, calma. Não se mexa! Mateus – (Agarrando-se em Adélia:) Ai, ai ... Você não devia ter feito isso ... não devia ... Eu não vivi o suficiente, Adélia ... Não vivi! ... Adélia – (Debruçando-se amorosamente sobre ele:) Ninguém viveu. É assim mesmo. Não se preocupe. Mateus – Mas eu não trepei! ... não trepei quanto queria ... e nem odiei ... Adélia – Ninguém, Mateus, trepou e nem odiou quanto queria ... Fique calmo. Mateus – Ai, ai, ai ... mas eu não ... por mais que eu pense, pense ... eu não sei quem eu sou ... Quem sou eu, Adélia? Quem sou eu? Adélia – Ninguém sabe. A gente morre sem se conhecer. Mateus – Diga uma coisa, Adélia! ... Você me ama? Adélia – Muito. Fique calmo, agora. Mateus – (Erguendo-se um pouco:) Quero gritar ... Quero ... Chame alguém! Acudam-me! Adélia – Hoje é sábado. Não há ninguém por aqui. A fábrica está fechada. Mateus – Ai, ai ... Adélia – Não se mexa ... falta pouco.
(Mateus tem um último sobressalto e morre. Adélia coloca delicadamente sua cabeça no chão e, depois de guardar todos os apetrechos na cesta, retira-se lentamente.)
Aqui fenece a cena.