Rebú

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REBÚ de Jô Bilac


REBÚ De Jô Bilac

“Amar... demasiadamente amar. Eis a minha cruz e delícia.”

Personagens

Bianca Matias Vladine Nataniel

Prólogo (Penumbra. Vladine. Espectral.)

“Amado irmão,

Sei que não é uma boa hora para derramar meus queixumes em teus doces dias, mas devido às circunstancias, não vejo outro parente mais estimado que possa me acudir em derradeiro desfecho trágico.

Bem sei que deves gozar no momento dos primeiros prazeres de seu enlace matrimonial, que infelizmente, adoentada, não pude comparecer e conhecer tua esposa, assim como deveria ser. No entanto, acredito que os motivos dessa abordagem _ apesar de sombrios _ possam corrigir tamanho infortúnio e estreitar

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meus laços com sua adorável Branca. Nunca lhe importunaria se o caso não fosse de extrema gravidade. Sabes da fragilidade da minha saúde e das adversidades que venho passando por conta disso. Chego a pensar que tudo não passa de uma provação de Deus, pondo a minha fé e devoção em teste.

Depois da morte de Pedro Antônio, me vi sozinha e indefesa. Ana, a criada, apesar de dedicada, está velha. Ridícula, é incapaz de cuidar de si só, quem dirá de dar conta das necessidades provocadas por meu catastrófico estado. Minhas economias chegaram ao fim. Não tenho mais como pagar por minha morada e muito menos por uma criada nova e eficiente. E ainda conto com mais uma boca para alimentar. Pobre Nataniel. Criatura que não pode se defender sozinha de toda essa calamidade. Nataniel, ingênuo sorri, sem a mínima ciência do que ocorre ao seu redor. Nataniel, meu bálsamo. Nataniel, meu alento.

Por conta disso, tomada pela dor e desespero, recorro a ti. Meu amado Tito. Tão puro e amoroso. Sempre presente em minhas lembranças mais doces e minhas preces mais fervorosas.

Esta pobre diaba, desabrigada em plena tempestade, procura um teto protetor para que possa encarar com dignidade seu triste fim. Sim Tito. Estou morrendo. Escondi de ti tal fatalidade, assim como venho escondendo muitas outras. Carregaste todo o fardo da família em suas costas por toda a vida, merecias ao menos em sua boda a plenitude conjugal.

Todavia, meus apelos se fazem necessários e não posso protelar a sua expressão mais uma vez.

Estarei em sua casa ao findar da lua nova, lua escura a qual não se confia os mortos.

Avise a adorável Branca a respeito da minha chegada, finalmente conhecerei a moça que faz seu coração sorrir. Espero sinceramente que sua Branca não seja tão sovina como a primeira, Núbia. Nem tão desgostosa como Cíntia, que veio em seguida. Nem tão feia como sua antiga Lucrecia. Nem mentirosa como Patrícia, que nunca soube o que é a verdade. Nem volúvel como Suzanne, que sorria para terceiros a troco de nada. Nem escandalosa como Dolores, que se assemelhava a uma arara azul. Nem glutona como Regina, a filha do Rei Momo. Nem possessiva

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como Lidiane, que não entendia o sentido da divisão. Nem tão descrente como Remédios, que duvidava da existência do celeste. Nem desagradável como Elisa, com suas caras de reprovação. Nem preguiçosa como Esther, que deixou o gato morrer a míngua. Nem invejosa como Simone, que queria ser o que não poderia ser. Nem competitiva como Sofia, que insistia em ter sempre a razão. Nem apalermada como Aline, incapaz de perceber o óbvio. Nem briguenta como Rosana, quebrando pratos que não lhe pertenciam. Nem beata como Raquel, horrorizada com a beleza mundana. Nem interesseira como Marcela, que só queria os lucros finais. Nem deformada como Consuelo, que lembrava de longe o espectro da nossa avó paterna... Enfim, espero que sua Branca seja digna do amor que a dedica.

Deixo-te uma lista dos cuidados que necessito e que devem ser seguidos com severa precaução, a fim de tornar menos doloroso o meu terrível fim. Todavia, tranqüilize-se: o mal que me acomete não é contagioso, encerra-se em mim.

Beijo estalado no rosto da Branca.

P.S.: Levo Nataniel comigo.

Sempre sua,

Vladine.”

(Luz cai em resistência).

Capítulo 1: A chegada dos mortos (Casa de Matias e Bianca. Cortinas pesadas. Chão de tábua corrida. Austeridade. A pouca luminosidade impõe um clima lúgubre. Matias e Bianca surgindo da escuridão, numa aflição explícita).

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Matias: Bergamota encorpada.

Bianca: (riscando na carta em sua mão) Já deixei próxima a banheira para que ela mesma se sirva.

Matias: Essência de Petúnia.

Bianca: Borrifei nos travesseiros...

Matias: Quantas vezes?

Bianca: Duas... Não é assim que está na carta?

Matias: Exatamente. Sal filtrado?

Bianca: Devidamente armazenado. Matias, por que ela coloca Branca? Por um acaso não lhe disse meu nome?

Matias: Ela está delirante, deve ter confundido. Nunca foi boa com nomes. Água de calêndola?

Bianca: Fresca, assim como exigida. Mas engraçado, ela cita o nome de tantas outras mulheres, parece lembrar-se bem... Aliás, eu não fazia idéia desse seu lado Don Juan...

Matias: Tive alguns romances, mas todos sem importância, nada comparado a você. Não precisa enciumar-se.

Bianca: Não estou com ciúmes.

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Matias: Que bom. Açúcar cristal?

Bianca: Diluído no vinagre.

Matias: Em quantas gotas?

Bianca: Seis! Não. Quatro. Não, seis.

Matias: Seis ou quatro, Bianca?

Bianca: Seis.

Matias: Os lençóis...

Bianca: Esterilizados.

Matias: Os talheres...

Bianca: De vidro, assim como os pratos e os copos.

Matias: Álcool...

Bianca: Por toda a casa.

Matias: Tapetes.

Bianca: Já não há mais nenhum.

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Matias: Maçanetas?

Bianca: Cobertas com pelúcias descartáveis.

Matias: A ceia...

Bianca: Tem certeza que não lhe disse Branca? Por engano...

Matias: Tenho. A ceia...

Bianca: Acontece, meu doce, não irei ralhar se assim for. Quero que seja sincero comigo.

Matias: Branca e Bianca são próximos, ela com certeza se confundiu, pensou Bianca e escreveu Branca... A ceia...

Bianca: Você enviou o convite de casamento, estava tão explícito...

Matias: Meu Deus! Que cisma!!! (suspira fundo) A ceia...

Bianca: (levemente ofendida) Pêra caramelada ao forno com pavão salpicado com manjerona, arroz com brócolis na manteiga extra virgem, salada de pepinos fatiados em tiras estreitas temperada a base de shoyu. Batatas coradas com um suave caldo forjado em páprica acompanhado por suflê de beterraba banhado em ervas finas. Na sobremesa, torta de maçã com massa de biscoito champanhe, rodeada em canela indiana, com um gostinho de menta no final, ligeiramente morna ao ponto de corte.

Matias: O quarto dela.

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Bianca: O que tem?

Matias: Bianca!

Bianca: (levemente impaciente) Ai, Matias, o quarto dela está limpo. Arrumei como ela pediu.

Matias: Deixou as toalhas pequenas na cabeceira da cama?

Bianca: Acho que sim...

Matias: Como assim você acha? As toalhas pequenas devem estar dobradas na cabeceira, com um balde de água ao lado, que deve ser trocado a cada cinco horas.

Bianca: Que aflição! Estou tonta com tantas exigências!

Matias: Não são exigências, meu amor. São cuidados, precauções. Por favor, entenda. A minha irmã está terrivelmente doente. Precisa mais do que nunca do nosso acolhimento.

Bianca: Eu entendo sim, claro que entendo. Imagino o quanto ela deve estar sofrendo e precisando dessas medidas drásticas. Mas eu quero que você também me entenda. Que não me exija para além do que eu posso fazer.

Matias: Desculpa. Vem cá... (abraça a esposa) Desculpa...

(ficam abraçados por um tempo)

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Matias: Eu sei que você está se esforçando para me ajudar. E isso nem é um problema seu...

Bianca: Não é isso, meu amor. Imagina. Assim você me ofende. Eu só estou um pouco atordoada com tudo isso... Apenas. É a primeira vez que recebo alguém, não quero que nada saia errado. Estou ansiosa por conhecer Vladine. Lamento que seja em circunstância tão delicada. Mas eu quero que sua irmã se sinta em casa. E o tempo que passar aqui, que seja muito feliz.

Matias: (abraça a esposa com fervor) Você é um anjo.

Bianca: (sorri.) Será que ela vai achar o mesmo?

Matias: Vladine vai te adorar. Todos te adoram. Tão atenciosa, educada, amorosa. Linda.

Bianca: Depois de tantas namoradas, não sei se confio em seus elogios...

Matias: Flertes bobos. Vladine implicava com todas.

Bianca: Então acredito que há de implicar comigo também...

Matias: Nunca.

Bianca: Será...? Ela me pareceu tão incisava na carta...

Matias: Está em um momento crítico. Mas logo você vai perceber que Vladine é uma das criaturas mais adoráveis e meigas que já conheceu. Tenho certeza de que vocês vão se dar muito bem. Amigas de infância!

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Bianca: Anseio verdadeiramente por isso.

Matias: (sorri paternal) Amigas de infância.

Bianca: Ela mencionou um nome na carta... Um nome masculino... Como é mesmo...?

Matias: Nataniel.

Bianca: Isso. Nataniel. Quem é? O filho dela?

Matias: Pois então, também achei curioso, pelo o que eu sei ela não pode ter filhos.

Bianca: De qualquer forma, o quarto do Nataniel está arrumado, ela não mencionou nenhuma requisição quanto a isso, mas eu os coloquei próximos, pois não sei a idade dele... Será um bebê ainda?

(Um feixe de luz atravessa a sala, num risco sinuoso).

(Matias o percebe).

Matias: Luz!

Bianca: O que foi? O que aconteceu?

Matias: Luz! De onde vem essa luz? Eu mesmo me certifiquei que nada iria atravessar a parede de nossa casa...

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Bianca: Está tudo coberto, meu amor, não há luz alguma...

Matias: (violento) E o que é esse feixe de luz, Bianca? Alucinação? Delírios de uma febre terçã?

Bianca: Mas pra que tanto drama, é só cobrirmos a fresta que a deixou escapar...

Matias: Você não entende, Bianca? Vladine é alérgica a luz solar! Um filete desses em sua pele poderia levá-la a morte em segundos...

Bianca: Toda casa está na escuridão, Matias. Não há mais nada que possa ser feito!

Matias: Falhamos, Bianca. Toda a casa deve ser revista! Vamos recomeçar do zero. Agora.

Bianca: Nem que a vaca tussa, estou exausta!

Matias: Se não posso contar contigo, farei eu mesmo sozinho...

Bianca: Não faz assim, meu doce! Já revisamos tudo por dias. Esse feixe de luz foi um descuido isolado, somente.

Matias: A vida da minha irmã não pode estar a mercê de descuidos isolados!

Bianca: A vida da sua irmã é uma hipótese absurda e cada vez mais fora de sentido, meu amor...

Matias: Você não tem o direito de julgar a condição de uma pessoa doente.

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Bianca: Eu não estou julgando ninguém, só não quero ficar revisitando tudo a cada segundo, trancafiada como uma vampira! Desse jeito acabo mais doente do que ela.

Matias: Olha: não precisa fazer nada que não queira.

Bianca: Eu não estou falando isso. Eu disse isso?

Matias: Acho até melhor você passar uns dias na casa dos seus pais, pronto. Isso: vai para a casa dos seus pais.

Bianca: Matias...

Matias: Sim! Lá você pode deleitar-se plenamente de sua saúde solar. Longe das enfermidades da minha irmã.

Bianca: Você está sendo grosseiro comigo.

Matias: Grosseiro? Foi você que acabou de dizer que não quer ficar aqui trancada. Eu não posso deixar de receber a minha irmã por conta disso. Fica um tempo na casa de seus pais, Vladine logo morrerá e você se verá livre desse fardo.

Bianca: Eu estou tentando ajudar, eu quero ajudar, mas me entenda é tudo muito exaustivo! A sua irmã pediu para que dispensássemos nossos empregados, por não se sentir a vontade com estranhos, todo o trabalho recaiu em meus ombros...

Matias: O que acabo de lhe dizer é justamente isso, não precisa se não quiser.

Bianca: Eu quero estar ao seu lado.

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Matias: Não precisa...

Bianca: Eu quero. Não abro mão disso. Mas revisar a casa agora, depois de tanto trabalho, me parece loucura!

Matias: Eu não posso expor a minha irmã.

Bianca: Eu não posso ir além dos meus limites.

Matias: A alergia dela é fatal! Se há uma luz, ela deve ser banida agora!!!!!

Bianca: Mas que diabos! Existe alguma coisa nesse mundo que a sua irmã não seja alérgica?

( A porta se abre com violência.)

(Matias vidrado como se estivesse diante de uma aparição fantasmagórica).

(Vladine, muito trágica, com vestido pesado negro, um véu cobrindo seu rosto, luvas negras de renda. Uma visão sombria.).

Vladine: (voz rouca) Tito... Meu Tito... Aos seus beijos não sou alérgica (estende os dedos delicados em direção ao irmão) Venha beijar-me.

(Matias vai até ela. Beija-a).

(Vladine desmaia em seus braços).

(Bianca em silêncio de espanto).

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Capítulo 2: Nataniel (Conversaram amenidades, numa troca de carinho incansável. Relembraram tempos distantes, nos quais a própria memória vez e outra os traíam em detalhes. Ele lhe dissera sobre a prosperidade de seus negócios, e suas ambições mais adiante, enquanto ela delicadamente desconversava sobre o funesto caso que a impelia até ali. E demoraram-se assim por mais algum tempo, esparramando-se pelos ponteiros. Como se a própria leveza dos afagos dessa conta de toda a existência ao redor).

Vladine: (com o rosto do irmão nas mãos) Deixa-me dar uma boa olhada em ti...

(Matias sorri).

Vladine: Que magro! Ossudo, amarelo...! Por acaso não tem te alimentado bem?

Matias: Bianca está muito constrangida com o que houve, está lá dentro envergonhada. Ela não é de mau temperamento, a ansiedade em te conhecer a deixou explosiva.

Vladine: Os olhos continuam redondinhos como duas uvas salientes no cacho, negrinhas, negrinhas... Que saudade desses olhos.

Matias: Bianca é uma boa moça, não guarde uma má impressão a respeito dela. Ela se esforçou tanto para deixar a casa do jeito que pediste.

Vladine: Que falta senti dessas mãos pequenas, desses dedinhos curtos como tocos de massa pão, que só de olhar dá vontade de morder... Em pensar que um dia os vi gigantes, a se debaterem na borda do meu berço. Que falta, Tito!

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Matias: Bianca preparou, ela mesma, o jantar, arrumou os talheres e a mesa. Mas se quiser eu trago até aqui para evitar sua fadiga. Ela fez um banquete digno de uma rainha.

Vladine: Por que nunca mais me escreveu, Tito? Por que parou de responder as minhas cartas...? Por que não foi me ver quando eu pedi. Eu pedi tanto, Tito. Eu te esperei tanto.

Matias: Bianca também cuidou de todo o seu quarto, ela é muito caprichosa e quer te agradar profundamente. Abranda o coração em teu julgamento. Eu te peço.

Vladine: Por que foste embora...? Por que não me levou contigo...? Eu teria ido se tivesses pedido... Sinto tanta saudade dos nossos pais, sinto tanta saudade de ti.

Matias: Bianca é uma das criaturas mais adoráveis e meigas que já conheceu.

Vladine: Sete anos se passaram desde então e, mesmo sorrindo, o vejo ainda com os olhos nebulosos e tristes. Herdamos a infelicidade no olhar, Tito.

Matias: Bianca disse tudo aquilo da boca pra fora, Vladine.

Vladine: Duas luas negras na face, tal qual uma predestinação macabra.

Matias: Bianca só quer ser aceita por ti.

Vladine: Estou muito feliz em rever-te.

Matias: Bianca te ama.

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Vladine: (natural) Quem é Bianca?

Bianca: (surge atraindo os olhares presentes).

(Matias vai até ela).

Matias: Vladine, esta é Bianca, a minha esposa.

(As duas se olham demoradamente).

Bianca: (muito constrangida) Desculpe a aspereza em sua chegada. Eu não quis ofendê-la. Fui infeliz em meu destempero. De forma alguma eu pretendi provocar um mal estar entre nós, muito pelo contrário, eu havia imaginado o nosso encontro de forma bem diferente do que foi. Quero pedir-lhe sinceras desculpas e dizer-lhe que se por um acaso...

Vladine: (corta, exultante) É tão linda! Magra. Bem vestida. Gestos graciosos. Postura elegante. Voz agradável. Entre tantas, não poderia ter escolhido melhor, Tito. Esplêndida. Radiante. Venha cá, preciosa, quero abraçá-la.

Bianca: (emocionada vai até Vladine. As duas se abraçam.). Obrigada. Fiquei tão envergonhada com tudo isso... Desculpe-me mais uma vez.

Vladine: (ainda abraçadas, ao pé do ouvido da cunhada, quase num sussurro) Sossega, rouxinol. Daqui, começamos do zero. Não se mortifique mais. (Sorri). Matias: Como eu sonhei com esse dia, meu Deus. Como eu sonhei com esse dia! É como o nosso pai dizia, Vladine! Lembras? “A família é um alicerce sagrado, onde os grilhões dos infortúnios são rompidos e sublimados, onde a desventura é superada e revista como um aprendizado ardo, porque sim...

Vladine: (corta) Cadê Nataniel?

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(Tempo)

Bianca: Pois é, eu também me fiz a mesma pergunta quando você caiu desacordada. Estranhamos a ausência dele.

Vladine: Mas ele estava logo atrás de mim.

Bianca: (doce) Não... Não tinha ninguém atrás de ti.

Vladine: (mais doce) Meu carmim, é como lhe estou dizendo. Eu entrei e Nataniel veio logo em seguida.

Bianca: Eu posso lhe assegurar que não havia ninguém atrás de ti.

Vladine: (maternal) Meu cálice de vinho, como podes assegurar-se do que não viu?

Bianca: Mas eu vi...

Vladine: Não, não viste.

Bianca: Eu vi...

Vladine: Não viu.

Bianca: Vi sim.

Vladine: Não, não viste.

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Bianca: Eu vi...

Vladine: Não viu.

Bianca: Vi sim.

Vladine: Não, não viste.

Bianca: Eu vi...

Vladine: Não viu.

Bianca: Vi sim.

Vladine: (doce) Não. (Indicativa, reconstituindo os fatos). Eu entrei por ali, de frente para o Tito, que tentava conter-te inutilmente. Não poderias ter me visto entrar, pois de costas, exatamente aqui, com mãos agitadas, bradava insanamente: “Mas que diabos! Existe alguma coisa nesse mundo que a sua irmã não seja alérgica?” Daí, eu dei a réplica, Tito veio beijar-me, não é isso, Tito? Então. Branca virou-se, mas não totalmente a ponto de ver-me e desfaleci logo em seguida, bem aqui. (Volta ao prumo). Como vê, não viste.

Matias: Vladine, mas eu também não vi o Nataniel, e eu estava em sua mira.

Vladine: É óbvio que ele estava aqui! Ele não poderia ter ido a lugar algum no estado dele.

Matias: Ele também está doente?

Vladine: (para cunhada) O que você fez com o meu Nataniel, Branca?

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Bianca: Eu não fiz nada...

Vladine: (corta ofendida) Então ele sumiu assim: num passe de mágicas?!

Matias: Calma, Vladine, não se altere, olha a palpitação!

Vladine: Ela levou o meu Nataniel, Tito...

Bianca: Eu juro que não...

Matias: Bianca, tem certeza que não o viu entre as coisas da Vladine?

Vladine: (chorosa) Não tinha necessidade, Branca! Não tinha...

Bianca: Eu não fiz nada...

Matias: Você não viu ninguém?

Bianca: Não vi! Não tinha ninguém lá.

Matias: Faça um esforço, meu doce.

Bianca: Estou fazendo...

Vladine: (chorando) O que fizeste com ele, ai...

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Matias: Você olhou tudo?

Bianca: Olhei. Tudo o que tinha eram as malas dela...

Vladine: Meu alento, meu bálsamo!

Matias: E não havia mais nada?

Bianca: Havia um bode cego que amarrei lá no pasto e...

Vladine: (trágica) Nataniel!

(Todos paralisam)

Vladine: (incrédula) Você- amarrou -o -meu -pobre -Nataniel -num -pasto – descampado- desprovido- de- qualquer- cuidado...?

Bianca: Não. Eu amarrei um bode cego que estava retido ali fora e...

Vladine: Ai, meu coração! Ai, ai... Tito! Sinto mil alfinetes pressionando a minha fronte, numa tortura inumana! Ai...

Matias: Você não poderia ter feito isso, Bianca...

Bianca: (numa ingenuidade infantil) Mas o que foi que eu fiz?

Matias: (socorrendo a irmã, que se debate sem ar) Não percebes? Nataniel é o nome do bode da Vladine.

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Bianca: (numa careta de espanto) Como eu poderia imaginar?

Vladine: (sem ar, escorada no irmão, delirante) Nataniel... Nataniel...

Matias: Traga-o imediatamente até aqui...

Bianca: Um bode? Dentro de casa... Matias...

Matias: Depressa, Bianca! Não vê o estado dela? Rápido, traga de uma vez! (Abanando a irmã).

(Bianca sai correndo).

Matias: Calma, minha irmã. Vai ficar tudo bem, ouviu? A Bianca cometeu um engano, natural, mas seu Nataniel está bem... Ele já está chegando... (Grita pra fora de casa). Bianca! Vamos logo com isso!!!

Vladine: (com dificuldade no falar, acaricia o rosto do irmão) Meu Tito... Extinguirme em seus braços é como derreter-me em neve. Vejo-me líquida, transparente, diante de sua realeza solar, vaporizada enfim, confundida nos odores do seu corpo... (Fecha os olhos).

Matias: Vladine? Vladine! Vladine!!! (Sacode a jovem).

( Batidas fortes de cascos no chão)

Vladine: (alerta) Nataniel...

(entra Bianca com o bode cego, que carrega um guizo pendurado no pescoço)

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Vladine: Nataniel!!! ( Levanta-se num solavanco e vai abraçá-lo) Meu Nataniel! Eu fiquei tão preocupada! Eu achei que jamais voltaria ver-te!!! Não me desgrudo mais de ti por nada, ouviste?

Bianca: Espantosa a recuperação de sua irmã...

Vladine: (sorrindo, feliz) Não há com que espantar-se, Branca. Nataniel é meu maior tesouro, vê-lo faz com que meu espírito se erga e meus ânimos se acalmem...

Matias: Deixe-me ver o elixir da felicidade da minha irmã!

(Matias se a próxima do bode).

Matias: Nataniel... Que galalau. (Sorri).

Vladine: Ele gostou de ti, Tito.

Matias: Veio ao mundo cego?

Vladine: Tristemente, nunca contemplou o azul do céu.

(Bianca distante).

Matias: Que excentricidade, Vladine. De onde veio?

Vladine: Pedro Antonio. Foi o único bem valoroso que me deixou. Apeguei-me de tal maneira, que sou incapaz de cogitar a idéia de abandoná-lo. Por favor, Tito, não o deixe ao relento.

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Matias: De modo algum... Tem uma manjedoura ao fundo da propriedade que...

Vladine: Não, Tito! Manjedoura não... Não suportaria passar uma noite longe dele. Deixe-o comigo, por favor.

Bianca: Mas um bode dentro de casa... A manjedoura é muito confortável e eu tenho certeza que...

Vladine: (corta) Tito, Nataniel não dá trabalho algum, eu mesma cuidarei de suas necessidades. Eu não dormiria em paz, sabendo que o pobrezinho está sozinho, longe de meus cuidados...

Bianca: Mas a manjedoura é aqui atrás e...

Vladine: (corta) Tito, se desaprova tanto a idéia de tê-lo em sua casa, não se torture, meu amado. De maneira alguma quero me opor às ordens da sua casa.

Bianca: Não é isso, é que realmente não estamos preparados...

Vladine: Tito, não quero que Nataniel seja visto como um estorvo, um inconveniente. Onde estão as minhas malas, vou para a manjedoura com ele.

Matias: Vladine, perdeste a cabeça?

Vladine: Meu irmão, irei precisar somente de umas cobertas, mas se também isso lhe causar algum transtorno, não se incomode, eu trouxe alguns vestidos pesados e...

Matias: Tem cabimento?

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Vladine: Tito, não quero causar confusão... Por favor, eu detestaria criar climas.

Matias: Não. Imagina. Vladine! Há climas por aqui? Que clima? Eu não vejo clima algum. Há, Bianca?

Bianca: Não, Matias. Não há clima algum.

Matias: Pois então, Nataniel será o nosso hóspede e isso não será, de maneira alguma, sacrificante para nós. Bianca inclusive havia arrumado um quarto para ele bem ao lado do seu! Está tudo certo. Deixe de melindres e fique tranqüila. Seu Nataniel será tratado como rei!

Vladine: Não quero desagradar a ti, Branca.

Matias: Que idéia! Bianca não tem nada contra o Nataniel aqui.

Vladine: (para Bianca, doce) É que o Nataniel é como se fosse da família, Branca. Assim como tu.

Matias: Bianca não se opõe. Ela adora animais. Tem verdadeira loucura! Noutro dia mesmo salvava um passarinho da garra de um felino. Bianca ama a fauna.

Vladine: Fico tão feliz que tenha se casado com meu irmão, Branca. Agora, com Nataniel aqui, somos uma família completa.

Matias: Bianca e Nataniel hão de virar amigos de infância!

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(Os irmãos saem festejavam ao redor do bode, como dois pagãos entusiasmados com aquela nova realidade. Bianca, sozinha , parada em silêncio profundo, como quem pressente uma tempestade prestes a desabar).

Capítulo 3: A incongruência dos desejos (Matias , em meia voz, numa conversa inaudível com Nataniel, como numa troca de segredos. Bianca entra sem que o marido perceba, por suas costas observa a cena).

(Matias pára o “assunto”, como se Nataniel indicasse a presença de Bianca. Matias vira-se lentamente para a esposa).

(silêncio)

(Matias e Bianca se encarando)

Bianca: Espero não ter interrompido nada.

Matias: Está sem sono?

Bianca: Inquieta.

Matias: Quer que eu te faça um chá?

Bianca; Quero que tire essa besta daqui.

Matias: Nataniel.

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Bianca: Besta.

Matias: (precipita-se a sair) Vamos para o nosso aposento, sim? Conversamos lá... Bianca: (incisava) Não quero esse bicho na minha casa.

Matias: Fala baixo, assim ele se magoa.

Bianca: Que moda é essa, Matias? Bode magoado?

Matias: Os animais são muito temperamentais. Magoam-se facilmente, depois que pegam implicância fica difícil reconquistar a confiança...

Bianca: Ora essa, pouco me importa! E quanto a mim?

Matias: O que tem?

Bianca: Eu não estou magoada?

Matias: Não sei... Está magoada?

Bianca: Estou muito magoada.

Matias: A troco de que?

Bianca: Ainda pergunta? A sua irmã foi extremamente mal educada desde que colocou os pés nessa casa. Não fez a mínima questão de agradecer os nossos cuidados. Muito pelo contrário. Portou-se desde então como uma menina mimada e autoritária. Pela manhã, a madame quer isto, pela tarde, a madame quer aquilo!

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Nem que eu fosse a sua criada, mereceria tamanha indiferença. Além de fazer questão de não pronunciar meu nome corretamente, comparando-me a esse bicho, dizendo que ocupamos a mesma posição como parte da família... Estou muito magoada, Matias! Magoadíssima!

Matias: (ri maroto).

Bianca: Não ria!

Matias: Não vamos discutir isso na frente dele, sim?

Bianca: Que isso, Matias? Agora devo satisfações à susceptibilidade de um animal? Era o que me faltava!

Matias: (ao animal) Ela não quis dizer isso...

Bianca: Está se justificando pra um bode?!

Matias: (ao animal) Ela está nervosa, compreenda...

Bianca: O que? Eu não estou nervosa...

Matias: (ao animal) Um pouquinho, mas está.

Bianca: Se continuar dirigindo sua palavra a esse animal, eu vou ficar muito mais que nervosa!!!

(Clima).

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Matias: Meu amor, deixa a poeira baixar e o Nataniel já já estará devidamente alojado...

Bianca: Esse bode não fica aqui nem mais um segundo!

Matias: Pirraça!

Bianca: Ninguém em seu juízo perfeito colocaria um bode dentro de casa.

Matias: E por acaso nunca lhe surgiu o desejo de ter um mascote?

Bianca: Um bichano, um cão, até uma arara! Mas um Bode? Dormindo sob o mesmo teto. Isso eu não concebo.

Matias: E qual é a diferença?

Bianca: A minha casa não é curral.

Matias: Um bode é menos digno que um cão, que um bichano, que uma arara? Por quê? Olha pra ele. Olha... Não é possível que não se compadeça... Olha... Ele é tão sereno... A cegueira o faz ainda mais inofensivo, puro, desprotegido... Essa carcaça sofrida, calejada no alejume, imbuído de compaixão alheia e...

Bianca: (corta) Não gosto dele.

Matias: O que?

Bianca: Isso mesmo que ouviu. Não gosto e pronto.

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Matias: Mas o pobrezinho não lhe fez nada.

Bianca: A sua simples presença é uma afronta.

Matias: Está descontando nele sua reprovação com a Vladine.

Bianca: Que seja. Se alguém aqui deve pagar o pato, antes ele do que eu. Não me agrada a presença sinistra desse bicho...

Matias: E o que há de sinistro nessa fuça boba?

Bianca: Os olhos.

Matias: Ele é cego.

Bianca: Eu sei, por isso mesmo me dá calafrios. Me encara de forma tão profunda... E com esses chifres... (Vidrada em Nataniel). Tem algo de funesto nele... Algo obscuro, sombrio... Uma figura nefasta... O retrato do mal... Não me obrigue a conviver com isso, Matias. Por favor...

Matias: Está certo.

(Breve alívio de Bianca.)

Matias: (tom grave) Amanhã cedo eu, Vladine e Nataniel pegamos o primeiro trem e partimos para Santa Amália...

Bianca: Santa Amália?

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Matias: Ficamos por lá algum tempo, sem importuná-la...

Bianca: Fazer o que em Santa Amália, a sua casa é aqui.

Matias: Vejo que a minha família tem causado muito transtorno, não quero mais desavenças entre nós.

Bianca: Sua família? Matias...

Matias: Santa Amália é relativamente perto, venho visitá-la de dias em dias.

Bianca: Visitar-me de dias em dias...? Por um acaso me toma como sua concubina? Respeite-me!

Matias: Entramos num desgaste que não estou disposto a levar em frente. Vai ser melhor estar em Santa Amália.

Bianca: Isso não faz o mínimo sentido. Ouve!

Matias: Chega de discussões. Eu não quero discussões. Estou farto de discussões! Não fazemos outra coisa senão discordar, impor, reclamar, uma batalha para convencer o outro. Estou cheio. Não quero. É evidente a sua infelicidade com tudo isso, não há o que alegar. Assunto acabado. Amanhã cedo partimos.

Bianca: Injusto... Ouve!

Matias: Não, Bianca! Não quero ouvir! Para a saúde da nossa relação, o melhor a se fazer agora é nos afastarmos...

Bianca: Seria capaz de abandonar-me, assim, de uma hora pra outra?

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Matias: Se assim for preciso para sarar essas feridas, assim o será.

Bianca: Me deixará sozinha por conta de um capricho absurdo?! Não é possível que caia por terra tudo o que construímos por conta de uma birra estúpida.

Matias: Reconheço aqui apenas uma fonte de tal temperamento aludido. Com licença, arrumarei as minhas malas...

Bianca: Pois se sair por esta porta...

Matias: (incisivo) O que?

(Clima).

Matias: Diz.

(Tempo).

Matias: Se eu sair por esta porta... O que vai fazer?

(Encaram-se).

(Clímax).

Bianca: (fragiliza-se) Sofrer terrivelmente... (Agarra-se ao marido). Não se vá. Eu te peço, fica.

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Matias: Não é meu objetivo fazer-lhe mal...

Bianca: Mal maior fará partindo... Fica.

Matias: Essa convivência será insustentável, declaraste desde o inicio a incongruência dos desejos aqui impostos.

Bianca: ( tomada pela violência da paixão) Nada é mais incongruente e insuportável que a distancia cogitada entre nós... Fica. Te amo com a força das ventanias mais abissais e com a delicadeza sincera da brisa mais suave. Fica. Bem sabe que faria qualquer coisa para permanecer ao seu lado como sua legítima companheira juramentada diante de Deus. Fica. Perdoe a minha intransigência, falta de tato, tola incompreensão... Farei dos seus dias doces, e suas noites brandas, cumprindo satisfeita a minha obrigação de esposa. Fica.

Matias: Não quero obrigá-la a nada.

Bianca: Meu amor é uma sentença a qual me resigno sem queixar-me. Não há obrigações. Desfruto da delícia de amar. Fica! Nataniel: Aprenderei a controlar meu gênio e a tolerar o alheio. Fica! Vladine: Tão sua,quanto minha. Não haverá mais discussões por aqui. A paz estará presente entre nós. Fica!

Matias: Sua sinceridade me comove, mas...

Bianca: Eis-me aqui, pequenina e direta, declarando toda a verdade do que sinto. Enterneça-se! Por favor...

(Bianca percebe Matias hesitante)

Bianca: (num sussurro rouco) Não vá embora...

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Bianca (Descontrola-se num choro, jogando-se aos pés do marido): Não vá embora... Por favor... Por favor... Não me deixe... Não me deixe! Não vá embora!!!!!

Matias: (doce, erguendo a esposa num abraço afetuoso) Calma... Calma... Está tudo bem. Acalma. Está tudo bem... Farei um chá para ti... (beija a testa da esposa com ternura)

(Matias sai).

(Bianca sozinha com Nataniel).

(Bianca desfaz suas feições fragilizadas e encara o bode com desprezo).

(Certifica-se de que está só. Ela e o bode). (Seca as lágrimas e avança lenta em direção dele, altiva, tomada por repulsa).

(Faz sinais na frente da fuça do bicho, num teste de cegueira).

(Se aproxima mais).

(O rosto dela colado com a fuça do bode).

(Permanece assim em silêncio, bem próxima. Tete a tete).

Bianca: (seca) Não gosto de ti. (Sai).

(Nataniel sozinho, pouco a pouco coberto pela escuridão).

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Capítulo 4: A dança macabra (Matias brinca de forma amável com Nataniel. Vladine observa em silêncio, sem que ele a perceba. Vladine com idéias cinza permeando sua cabeça.).

Vladine: Precisas de um filho.

(Matias sem desviar de Nataniel).

Vladine: Sua esposa já deveria ter lhe dado ao menos um.

(Matias ainda com Nataniel).

Vladine: Haveria de herdar nossos olhos...

(Matias Com Nataniel).

Vladine: (intrigada) Matias.

(Matias pára).

Vladine: Por que não há crianças nesta casa?

(Silêncio).

Vladine: Sua esposa não pode ter filhos...

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Matias: (sorri intrigado) De onde tiraste tais conclusões?

(Silêncio).

Matias: Estamos no segundo ano de casamento. Não temos pressa. A minha esposa ama crianças, há de me dar muitos filhos na hora certa.

Vladine: É evidente a sua ânsia por um rebento. Afeiçoou-se ao Nataniel instantaneamente por sua carência paternal.

Matias: Afeiçoei-me por pura empatia, trata-se de uma criatura amável. Vladine: (maliciosa) Enganas a qualquer um, menos a mim... Por que a sua esposa não lhe deu filhos até agora? Não mintas pra mim...

Matias: (firme) Sabe bem que abomino mentiras. A verdade deve estar à cima de qualquer coisa. Se me toma como mentiroso, conhece-me muito mal.

(Clima).

Vladine: Perdão... Não quis julgar seu caráter. Sua integridade é indiscutível... Perdão. Perdão... Perdão... (Fragilizada num transtorno). Pedro Antônio deixou-me assim: dura, envelhecida, amarga, ao ponto de duvidar de tudo o tempo todo... Perdão...

Matias: Por que nunca me falou sobre o que acontecia entre vocês?Por que não me pediu ajuda? Não fazia idéia dos seus dissabores...

Vladine: Não compreendo... Escrever-te era meu único prazer, a razão de manterme viva. Enviei tantas cartas...

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Matias: Extraviaram-se de certo. Por sorte, a última chegou a tempo. No entanto, não mencionaste ao certo a fonte de suas desventuras. Não poderia imaginar...

Vladine: Pedro Antônio se encarregou por si só de cavar sua própria ruína. Não quero mais invocar esses fantasmas... ( Muda o assunto ao perceber a chegada de Bianca) Tito, que bom que estamos juntos novamente! (abraça-o)

Bianca: (sorri) Como foi o piquenique noturno?

Matias: Bom. Deveria ter vindo conosco.

Bianca: Estive atarefada. Da próxima vez. De certo. Irei. Quanto ao seu aposento, cunhada, amanhã bem cedo deixarei tudo brilhando...

Vladine: Absolutamente. Durmo ao nascer do sol. O silêncio é uma exigência médica para garantir que a minha doença não avance precocemente. A limpeza deve ser feita durante a madrugada.

Matias: Mana, Bianca já trabalhou o dia inteiro... Está cansada, não vê? Já comeste , minha pombinha?

Bianca: Belisquei um miolo de pão...

Vladine: Maravilha! Não coma nada! Será um bom exercício físico para ti, Branca! O trabalho dignifica o homem e emagrece a mulher!

Bianca: (sorri sincera) Estou diante da mulher mais magra e digna que já vi em toda a minha vida.

Vladine: Trabalhe, Branca, trabalhe e em breve quem sabe poderei dizer o mesmo sobre você.

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Matias: Minha rosa, precisa se alimentar adequadamente, seria um inconveniente ter duas mulheres doentes na mesma casa.

Bianca: Pode deixar! Preparei um jantar fortalecido, e uma merenda especial para ti Nataniel.

(Ele reage num ataque agressivo).

(Susto geral)

Matias: (aturdido) Nataniel! Que modos são esses? Que massada!

Bianca: Tudo bem, Matias... Não ralhe com ele. Eu não deveria ter me aproximado com tanta urgência... Assustou-se.

Matias: Vá comer alguma coisa. Descanse... Está evidente a sua exaustão.

Vladine: Branca reclama de barriga cheia, não sabe da missa um terço.

Matias: Vladine, por favor...

Vladine: Cansaço. Desconheces o verdadeiro sentido desta palavra. Escuta. Viemos de uma família simples. Infelizmente, não tivemos a mesma sorte que a sua. Aprendemos a lidar com as adversidades desde cedo! E por mais que a vida tenha sido dura conosco, percebemos que tudo só serviu para que nos uníssemos cada vez mais. Como o pai dizia: "O suor do Homem..." Completa Tito.

(Breve tempo).

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Vladine: (esperando) Tito...

Matias: "O Suor do Homem santifica a sua carne”.

Vladine: (emocionada) Parece que estou ouvindo o papai aqui agora... A mesma voz... O mesmo pesar... A tristeza imbuída de respeitabilidade... Não existiu na face da terra tristeza mais respeitável que a de papai... Quanto mais triste era, mas respeitável ficava. Repete mano...

Matias: "O suor do Homem santifica a sua carne".

Vladine: (emocionadíssima) Mais uma vez...

Matias: "O suor do Homem santifica a sua carne".

Vladine: (emocionada ao extremo) Todo mundo.

Todos: “O suor do Homem santifica a sua carne.”

Vladine: Só o finalzinho...

Matias: "... Santifica... Sua carne...".

Vladine: Papai... Ai que tristeza! Ai que respeito! Me abraça...

(Se abraçam).

Bianca: Com licença. Farei a limpeza do seu aposento para que pela manhã repouse na mais profunda paz. (Saindo).

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Matias: Bianca...

(Bianca sai. Matias volta-se para Vladine).

Matias: Por que está fazendo isso...?

(Tempo).

Matias: Repele a minha esposa como se ela não passasse de um inseto pegajoso.

Vladine: Sua esposa me causa náuseas. Seu sorriso forçado, sua elegância sebosa, seu refinamento de araque. Seria mais louvável da parte dela se assumisse o que realmente pensa a meu respeito e parasse de uma vez por todas com esse fingimento irritante...

Matias: Não seja injusta. Ela não está fingindo. Realmente se esforça para te agradar, abrindo mão do conforto dela e se colocando a disposição de suas vontades.

Vladine: Gostava de acreditar!

Matias: Fixação!

Vladine: Sou sua irmã! Seu clã! Sangue do seu sangue! Jamais estremeceria seus anseios se não percebesse o que se passa por aqui. Acredite em mim: sua mulher mente! É falsa, cínica, dissimulada.

Matias: Aceita a minha esposa como sua irmã.

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Vladine: Não faço pacto com víboras!

(tempo)

Vladine: (atroz) A sua esposa é uma armadilha cruel, engatilhada em nossa direção com o propósito de afastarmos um do outro. Não percebes?

Matias: Não fala assim...

Vladine: Sua cabeleira escarlate o envolve como um coágulo pavoroso!

Matias: (saindo) Com licença...

Vladine: (ordena com violência) Não me vire as costas quando eu estiver falando contigo!

(Matias estanca).

(Clima).

Vladine: (densa) A sua esposa dançará descalça sobre seu sangue derramado em poça, tal qual uma deusa pagã.

Matias: (volta-se para a irmã. Implosivo.) Escuta bem. A minha esposa é a mulher que escolhi para ficar ao meu lado. Minha companheira. Cúmplice. Amante. E querendo ou não, a existência dela em minha vida é tão fundamental quanto a sua. Portanto: adoce seu ânimo, respeite-a como tal e perceba, finalmente, que não há inimigos por aqui.

(Silêncio).

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Matias: Com licença.

(Matias sai).

( Vladine na escuridão).

Capítulo 5: Um acerto entre damas (Bianca com a luz celestial em seus olhos)

Bianca: (Conclusiva) Paz. Um oceano infinito extinto de ondas revoltas. Sim. Águas plácidas fluem a partir de agora nos córregos desta casa.

(Vladine entra. Observa com ódio).

Vladine: Foste tu!

(Silêncio).

Vladine: Interceptaste as cartas que enviei ao meu irmão... Não lhe deixou saber o que se passava comigo durante todo esse tempo! Como pôde fazer isso conosco?

(Bianca em silêncio).

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Vladine: Temias que meu irmão te abandonasse por minha causa... Não suporta a idéia de não ser tu o centro das atenções! Por isso nunca deixou saber notícias minhas! Responda sua demônia!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Bianca: (severa) Eis o cúmulo do azedume... Jamais aceita o menor incômodo para me dar um único prazer!

Vladine: Sórdida! Na frente do meu irmão esmera-se em paparicos, inspira-me ternura. Pelas costas descansa a máscara e revela tua verdadeira face! Hedionda!

Bianca: Não aturo uma patada sua. Não mais!

Vladine: Quero o meu irmão aqui testemunhando a sua queda! Porque tu vais cair! Contarei amiúde tudo sobre as cartas desviadas e ele vai repudiá-la por isto!

Bianca: ( possessa) Não me ameace, não quererá ver-me fora de mim...

Vladine: (aos gritos) Vais cair! E quando cair não terá mão alguma estendida ao teu alcance!

Bianca: (bate boca) Não engulo mais trovoadas suas! Vladine: Meu irmão saberá com quem está casado!!!

Bianca: Aqui tu não cacarejas mais!

Vladine: Que afronta! Modere seu palavreado comigo!

Bianca: Eu falo como eu quiser, eu estou na minha casa e não lhe devo satisfações!!!!

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Vladine: Não permito que grite comigo!!!

Bianca: Eu grito se quiser!!!

Vladine: Não grite comigo!!!!!

Bianca: Estou na minha casa!

Vladine: Meu irmão te escorraça daqui!

Bianca: Eu grito!!!!

Vladine: Meu irmão vai saber que...

Bianca: Seu irmão vai saber que: foste tu a assassina do teu marido!!!

(Vladine estanca apavorada).

(silêncio longo)

Vladine: (sem mover um músculo) O que...

Bianca: (com a revolta entre os dentes, saboreando cada palavra) Teu irmão vai saber que foste tu a assassina do teu marido.

Vladine: (numa vertigem) Não permitirei insinuações maliciosas ao meu respeito.

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Bianca: (firme) Não te faças de sonsa com tua fanfarronada tola! Eu sei de tudo, filhinha. E conto ao seu irmão assim que ele cruzar esta porta!

(Clima).

Vladine: Estais a blefar...

Bianca: Estais branca como cal. Como se a própria alma tivesse escapulido pelas narinas. Imprimi efeito. És a prova viva do que acabei de dizer.

Vladine: (tensa) Não tens o que provar. Sou uma mulher reta. Sem desvios.

Bianca: (triunfante, numa febre satânica) Ás vezes se esquece alguma coisa na roupa que vai lavar...!!!!! Um papelzinho escrito... Um bom segredo... Guardado em um porta jóias ou numa maletinha ordinária...!!!! É preciso finura. Paciência de gato... Alguns criados fazem a vida por conta de um bom segredo... Se lhe cai às mãos um dos grandes: estão feitos. Hão de chantagear seus patrões até... Arrancar-lhe as ceroulas!!!!!

(Matias entra).

(As duas em suspensão encarando-se).

Matias: (sem perceber o que se passa) Perdoem-me o atraso. Nataniel empacou na porteira! Acreditas tu, meu colibri, que o pobrezinho atacou suas margaridas? Por sorte, interferi antes que destruísse todo o seu canteiro! Já lhe dei o corretivo e garanto que não repetirá a farra... As margaridas estão salvas, mas ainda assim vou construir um cercadinho pra evitar que... (Percebendo algo). Está tudo bem?

(Silêncio).

(As duas se encarando).

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Matias: O que se passa por aqui?

Bianca: Contava a sua irmã a respeito de um romance que acabei de ler... Ela ficou aturdida com o enredo.

Matias: (desconfiado) Sei... Boa trama?

Bianca: Sim, no entanto, tu por certo haveria de cabecear de sono ao ler.

Matias: Ficaste chateada com as margaridass? Sei que as estima, mas ele não o fez por mal...

Bianca: (amorosa) Vá tomar seu banho, das margaridas cuido eu, pode deixar.

Matias: Tens uma alma nobre. (despede-se com um beijinho)

( Bianca e Vladine em silêncio.)

(tempo) (tempo)

Vladine: (sem ar) Onde apanhou isso...?

Bianca: (Digna) Achei faz um dia.

Vladine: Não sabes de nada, não tens idéia...

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Bianca: Sei ler perfeitamente! É uma intimação policial. Estais fugindo! Essa doença não passa de um estratagema barato para esconder-se do seu passado!

Vladine: (cuidado para não ser ouvida) Devolva-me.

Bianca: Por um acaso passou mesmo por essa sua cabecinha magra que eu iria aceitar-lhe calada? Comendo da minha comida. Fazendo-me de sua empregada. Engolindo seus desmandos na minha casa sem ao menos questionar a sua origem? Eu sabia que escondias algo, era questão de tempo encontrar!

Vladine: (traída por uma lágrima) Devolva o meu documento.

Bianca: Coloquei-me a engomar, varrer, cozinhar, lavar... Esfalfei-me aos seus pés... Fui recompensada por este achado! Me pertence! Justiça seja feita! Se quiser de volta terás que pagar o preço!

Vladine: (horrorizada, controlando o silêncio) Escuta, não foi a minha intenção enganá-los... Por isso trazia comigo esse documento... Eu mesma iria mostrar...

Bianca: Quando? Quando eu estivesse daqui bem longe? Abandonada pelo Matias, à beira da loucura?

Vladine: Na hora certa eu lhes revelaria, sabes melhor do que ninguém da natureza cruel do meu marido, escrevi nas cartas!...Eu precisava me defender!

Bianca: Não estou convencida. Terás que pagar!

Vladine: Não tenho dinheiro, sabes bem disso!

Bianca: Não é o seu dinheiro que me interessa.

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Vladine: Queres me desmoralizar perante meu irmão! Me colocar na cadeia!

Bianca: Não te faças ilusões. Verdade seja dita: meu marido te ama. Sofreria terrivelmente vendo-te condenada atrás das grades. Por mais que mereças, não é a minha intenção causar esta dor ao meu Matias. Não sou puritana ao ponto de não aceitar sua convivência. Tendo-te de baixo dos meus olhos, sob o meu controle, me sinto até mais confortável.

Vladine: Então devolva o meu documento.

Bianca: Não me de ordens. Nesta casa mando eu, que fique bem claro.

Vladine: Diga de uma vez o que quer de mim.

Bianca: O bode.

Vladine: (num fiapo)... Nataniel...

Bianca: (ojeriza em tudo o que diz) Quero essa besta fora da minha casa, fora do alcance dos meus olhos. Não quero ouvir falar desse animal. Não quero sentir o seu cheiro, nem suspeitar de onde possa estar. E principalmente: Eu não quero que o meu marido tenha a mínima ciência da sua existência.

Vladine: (impactada).

Bianca: (traída por uma lágrima furtiva) Os dois andam unha e carne! Matias trata esse estafermo como um filho... Não suporto isso.......................

(Tempo).

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Bianca: Escuta. Não a quero mal... És a irmã do homem que amo, e isso nunca poderei mudar. Seu documento será devolvido e esse assunto encerrado, assim que esse bicho estiver bem longe daqui...

Vladine: (num fiapo) Ele é cego, não sobreviveria um dia sem cuidados... Bianca: (limpando a lágrima.) Pois que morra. Talvez seja esse o seu desfecho acertado.

Vladine: (num soluço) Não me peça isso... Por favor... (Cai aos pés de Bianca). Por favor, eu lhe imploro, Nataniel é tudo o que eu tenho além do meu irmão. Por favor...

(Bianca recuando, preocupada com o escândalo, constrangida com a cunhada aos seus pés).

Vladine: Não me peça isso! Eu imploro! Eu engraxo suas botas, preparo uma mesa de primeira, faço a sua cama, quer? Eu faço! Te faço tudo! (Aos prantos surdos). Mas não o tire de mim... Meu único amigo... Meu filho... Não me peça tal atrocidade! Eu te imploro! Por favor!

Bianca: (tentando ser forte, segurando a emoção, firme) Também tenho eu chorado muitas lágrimas. Sofrido com tudo o que me fizeste passar antes mesmo que pusesse os pés aqui. A hostilidade em seu olhar. Os mimos do meu marido para contigo. Suportei calada! Agora... (transportada)... Esse bode... Eu o odeio. Não quero vê-lo aqui. (respira fundo, dispara violenta) E Se por um acaso a minha ordem não for cumprida, será com extremo pesar e com meu coração na mão, que alertarei às autoridades sobre a sua presença nesta casa. E mesmo sabendo que o meu amado cairá em profunda desilusão com tudo isso, eu não hesitarei em fazê-lo se assim o for. (Faz que vai sair, volta-se mais uma vez). Ah, sim. Se ousar fazer comigo o mesmo que fez ao seu marido, saiba que no cartório deixei uma cópia de tal documento, que deve ser lida por Matias, antes do meu enterro. (Vira-se, elegante) Com licença.

(Vladine desmorona).

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Capítulo 6: O abismo das almas ( Bianca em meio a luz soturna, híbrida)

Bianca: (trágica) Meu amado. Mantenha teso o arco do seu juízo, pois o que direi esmagará teu ânimo, tornando-o turvo. Inconsolável. Uma desgraça retumbante prenuncia-se tal qual uma tempestade avassaladora... À beira do rio, esparramadas numa trilha rasteira, floresce em botões miúdos, umas flores negras de aspecto funesto alcunhadas ordinariamente de pata de tarântula. Contudo. A alcunha ordinária não se deve tão somente a similitude aracnídea, seu nocivo consumo inapropriado_ apesar de não ser fatal_ embaralha as faculdades mentais, criando ilusões pavorosas, tomando o sim pelo não. O perfume. É atraente e se não fosse por seu aspecto repulsivo, seria facilmente, ao engano, ingeridas por nossas crianças. Lá, Nataniel. Privado. Sobre o jugo da cegueira. Inebriou-se, como que pelo ilusório canto das filhas de Calíope e provando da flor tardou a perceber o engano cometido. Arrebatado pelos primeiros sintomas do mal tombou sobre o rio caudaloso, debatendo-se inutilmente, sendo enfim levado pela correnteza, sem mais resistir............ Afogado. (conclusiva) Nataniel morreu afogado.

(Silêncio profundo)

(Entra Matias )

Matias: (natural) Minha rosa. Darei um pulo na cidade, quer que eu traga uma...

(Bianca abraça forte Matias)

Bianca: (olhos cheios d água) Meu amado. Mantenha teso o arco do seu juízo, pois o que direi esmagará teu ânimo, tornando-o turvo e...

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(Entram Vladine e Nataniel)

(Bianca estanca, retorce as feições vendo-os)

Matias: (preocupado) O que se passa...?

(Bianca encara Vladine)

Matias: Bianca...

Bianca: (num raciocínio fragmentado, sem encarar o marido ) Gastei o reservado do campeio saldando uma dívida. Esquecida. De uma encomenda que fiz a modista... Mas já enviei uma carta ao meu pai... Ele me retornará a quantia... E eu reponho a reserva...

Matias: Pois escreva uma outra cancelando o pedido, agradeça dizendo que não precisa mais. Tem cabimento? A reserva é justamente para esse tipo de imprevisto e não há com que se atordoar, o que restava nela era a raspa do tacho.

Bianca: Assim fico um tanto mais tranqüila.

Matias: (buscando o olhar da esposa) Isso era tudo o que tinhas a me dizer?

(silêncio)

Bianca: Era sim.

Matias: (sorri faceiro) Bom, vou a cidade queres que eu traga um metro de fazenda...? Um doce...?

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Bianca: Um perfume... Traga-me um perfume. (sorri)

Matias: Sim senhora! (beija-a) Nataniel! (num comando para sair)

Bianca: Não.

Matias: (volta-se)

Bianca: Deixe-o conosco. Não o tome para ti. Eu e minha cunhada queremos desfrutar também da presença dele.

Matias: (surpreso) Mesmo?

Bianca: Mesmíssimo. Deixe-o. (sorri)

Matias: É que na verdade eu queria levar o Nataniel para conhecer...

Bianca: Matias. (sorri) Desgruda. Assim ficamos enciumadas. Não é mesmo, cunhada?

( Vladine em silêncio aflito)

Matias: (sorri ao bode) Hum... está vendo, rapaz? Estais a causar aneurismas por aqui! Ei de emprestá-lo! Mas não vá cair nos mimos dessas duas e esquecer-te de mim! Até mais tarde!

(Nataniel acuado, como que se pressentisse o mal, gruda em Matias, impedindo sua partida)

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Matias: Rapaz! Preciso partir. Ficarás bem aos cuidados de sua dona. Vá com ela.

(Nataniel resiste)

Matias: Veja só... Parece que perdeste um filho, mana!

Bianca: (dissimulada) Não seja ingrato. Sua dona está ali. Daquele lado. Vá já com ela!

(Nataniel grudado em Matias)

Matias: É a primeira vez que nos afastamos. É preciso paciência.

Bianca: (controlando a sua ira) De certo. Mas assim, meu amor, acaba por se atrasar. Não se causa boa impressão com atrasos.

Matias: (ao bode, com carinho) Escuta. Tenho urgência. Não posso ficar aqui contigo. A mana precisa de um carinho seu. Não negue isso a ela. Ela te ama. Ficarás bem até a minha volta. (sorri)

Bianca: (impaciente, sorrindo em nervoso) Vamos! Seja um bode bom, sim! Vai lá! Vá com a sua dona!

Matias: Vá Nataniel!

Bianca: Cunhada, ordene.

(Tensão, Vladine hesitante)

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Matias: (ao bode) Quando voltar trarei uma prenda para ti!

Bianca: Ordene, cunhada.

Matias: (ao bode) Que tal um perfume?

Bianca: (insiste) Ordene de uma vez...

Matias: (ao bode) Isso! Trarei para ti o mesmo perfume da Bianca!

Bianca: (violenta) Ordene!!!

Vladine: Nataniel.

(Nataniel solta Matias)

Matias: Obediente! (sorri) Vou num pé e volto no outro! ( sai)

(as duas em suspensão num breve silêncio)

Bianca: O que ele ainda faz aqui? Pensei ter sido explícita contigo!

Vladine: (angustiada) Não tive tempo, tenha calma.

Bianca: Não abuse da minha paciência. Eu te coloco atrás das grades!

Vladine: Teu marido não o deixa um segundo. Não tive como!

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Bianca: Pois bem, ele agora o deixou. Faça.

Vladine: O que?

Bianca: Leve-o daqui, ora essa!

Vladine: Agora?

Bianca: Vai esperar o meu marido chegar? Não seja sonsa!

Vladine: Mas levá-lo pra onde? Não faço idéia...

Bianca: Ao inferno se necessário for, quero que saia agora.

Vladine: Meu documento, cadê?

Bianca: Não vá com tanta sede ao pote! Já disse: devolvo assim que ele estiver fora daqui.

Vladine: Deixe-me um segundo a sós com ele, por favor.

Bianca: Não. Ele sai agora.

Vladine: Não me prive desse direito, eu te imploro! Deixe que eu me despeça dele...

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Bianca: Não!

Vladine: Olha pra mim! Olha! Eu estou em tuas mãos. Farei o que me exige. Por favor...

Bianca: (dura) Está certo. Seja breve. (sai)

(Vladine e Nataniel)

(Nataniel avança num abraço)

Vladine: (corta.) Não. (voz baixa, numa aflição muda) Por favor, não. (num autocontrole, arfando) Precisa ir. Não é bem vindo nessa casa... Se ficar, acaba sendo morto por esta mulher. Tenho medo dela. Sei do que é capaz. Precisa ir agora...

(Silêncio)

Vladine: (urgente, ofegante) Seguindo o trilho do trem, dará em Santa Amália, se não chover, chegará em um dia e um quarto. Encontro-te na estação na madrugada seguinte, de lá, seguimos para Nova Alvorada. Confie em mim, estarei atrás de ti, não tema. É o prazo para me aprumar e despedir-me do meu Tito, à surdina. Nataniel, esteja atendo mesmo quando estiver dormindo, modere os impulsos e aconteça o que acontecer não retorne em hipótese alguma. Siga uma reta e me espere por lá. Agora vá... Vai embora! Vai... (silencio)

(Som da respiração arfante dela)

(os dois paralisados frente a frente)

(Entra Bianca)

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Bianca: Acabou o tempo. Mande-o embora.

Vladine: (fixa no bode) Eu já o mandei.

Bianca: Precisas ser firme!

Vladine: Ele não quer...

Bianca: Ora veja! E bicho tem querer? (agressiva ao bode) Vai embora! Sai da minha casa!!! Vamos!!! Rua!!!

Vladine: (aflita) Não fale assim com ele!

Bianca: Não me diga como eu devo falar com um bicho!

(Vladine assombrada)

Bianca: Rua estafermo!!!! Saia daqui!!!!(batendo no animal) Eu mandei sair!!! Saia! (bate mais forte)

(Nataniel avança em Bianca)

(Vladine se apavora)

(Nataniel derruba Bianca e pressiona seus chifres em sua jugular, deixando-a sufocando).

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Vladine: (desesperada) Não Nataniel! Larga! Nataniel! Pelo amor de Deus!!!! Larga!

(Nataniel furioso em cima de Bianca)

(Bianca numa tentativa inútil de defender-se)

Vladine: (gritando) Pára! Pára!!!

(entra Matias)

Matias: Nataniel!!! (Matias separa o bode da esposa a tempo)

Matias: (Acudindo a esposa) Está bem, minha rosa? Respire, vamos, respire...

Bianca: (Recuperando-se, muito assustada) Essa besta fera! Atacou-me!!!

Vladine: (protegendo o bode) Não é da natureza dele, Tito, eu juro! Foi um descontrole inesperado.

Matias: Tudo bem. Por sorte do destino dei-me conta do esquecimento de umas promissórias e...

Bianca: Tudo bem? Se não foste tu, estaria eu agora morta!!! (chorando) Tire-o daqui, Matias, pelo amor de Deus, tire-o daqui!

Matias: Calma, minha rosa, calma...

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Bianca: Calma? Esse bicho quase me mata e me pedes que eu fique calma? Exijo o exílio dele imediatamente desta casa! Exijo mais! Exijo o seu sacrifício! Acaba de ficar claro o quão perigoso ele é!

Matias: (assombrado) Sacrifício...

Bianca: Esse animal deve ser sacrificado, é assim que deve ser feito com animais que atacam seu dono.

Vladine: Não és a dona dele, além do mais provocaste isso!

Bianca: Exijo seu extermínio agora!!!

Vladine: Não pode matá-lo! Tito, por tudo o que há de mais sagrado, não o mate!

Bianca: Matias, por que hesitas em defender-me? Honre o seu papel de esposo! Eu fui atacada!

Matias: Mas matá-lo... Eu... Eu não sei se...

Bianca: (num choro revolta) Vistes com os seus próprios olhos! Meu deus!!!! Não me faça acreditar que o ama mais que a mim!

Matias: Não é isso...

Bianca: Então o mate!

Vladine: Não!

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Bianca: Não se intrometa!

Matias: Bianca, eu sei que ele...

Bianca: Tu me amas, Matias?

(tempo)

Bianca: (firme) Amas ou não amas?

Matias: Amo com toda a certeza e...

Bianca: (impedindo seu abraço. Firme.) Pois então fará o que deve ser feito pela mulher que diz amar.

(Longo silêncio)

(Matias atordoado.)

(Matias Vira-se para Nataniel).

(Matias caminha até a porta)

(Matias suspende a barra da calça e de lá tira uma faca grosseira. Sustenta a faca).

Vladine: (rouca de pavor) Não... Tito, não... Não...

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Matias: (com pesar) Nataniel. Venha comigo rapaz.

Vladine: (se coloca na frente) Não!

Bianca: (rápida) Cunhada, quer que eu devolva agora seu documento? Eu devolvo. Meu marido poderá lê-lo junto a ti.

Matias: Que documento?

Bianca: Um documento que sua irmã tanto estima. Achei no meio da roupa suja. Quer vê-lo? Vou buscar. (saindo)

Vladine: Não! (trêmula)

Matias: O que é isso agora?

Bianca: O que vai ser, cunhada? Queres ou não, que eu devolva o seu documento agora?

Matias: Mas que diabos estão a falar? Que documento é esse? Vamos. Eu fiz uma pergunta!

Vladine: Não faça isso comigo.

Matias: Isso o que?

Bianca: Deixe o bode ir...

Vladine: (num fiapo) Não posso...

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Matias: Bianca, eu quero saber agora o que está acontecendo em minha casa!

Bianca: Sua irmã não tem sido sincera contigo, Matias.

Vladine: Não faça isso... Bianca: Uma intimação.

(Vladine atônita)

Matias: O que?

Bianca: Encontrei uma intimação policial endereçada a sua irmã.

Matias: (sem compreender) Não compreendo... Vladine... É verdade isso...?

Vladine: (um nó na garganta) Me escuta. Precisas acreditar em mim... Enviei cartas, que foram extraviadas por ela, mencionando o inferno que meu finado marido concebia em minha vida. E... Reagindo a mais um dos seus ataques... Um dia... Fatídico... Eu... Eu... Não foi a minha culpa...

Matias: (gelado, branco) Então... O que dizias na carta... Essa doença... A sua saúde...

Bianca: É uma farsa, Matias. Assim como tudo o que ela diz! Sua irmã não passa de uma farsante!

Matias: Sabias de tudo e não me contou?

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Bianca: Te amo mais que tudo, temias a sua desilusão profunda, tentei evitar, queria que ela mesma te revelasse, mas depois do que acabou de acontecer eu...

Vladine: Sua esposa me chantageava de forma sórdida com a intimação, Tito!

Bianca: Tens a imaginação fértil e cruel!

Vladine: Sua esposa obrigou-me a tirar Nataniel da sua mira. Extraviou cartas minhas!

Bianca: Matias, ela mente! Enganou a ti que és irmão!

Vladine: Sou humana, temia a sua reação!

Bianca: Sua irmã quer nos separar a todo custo! Tenho a intimação policial, sou sincera!

Vladine: Sei que já não há motivos para crer no que digo, mas só por esta vez, ouça-me! A sua esposa não te ama, o mantém refém dessa paixão insana, isolandoo dos laços afetivos que não sejam os dela!

(Matias esbofeteia Vladine que vai ao chão)

(silêncio profundo)

Matias: (devastado) Saia já da minha casa antes que eu chame as autoridades. Não te reconheço como minha irmã.

Vladine: (numa dor profunda) Matias...

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Matias: Te coloquei em minha casa sem perceber o punhal que atravessava as minhas costas! Saia. (Vladine dilacerada)

(Ergue-se digna.)

Bianca: (tirando a faca das mãos do marido) E leve a besta contigo.

Matias: Ele fica.

Bianca: (horrorizada) Esse demônio tentou matar-me....

Matias: (alterado) Nataniel! O nome dele é Nataniel

Bianca: (caindo dos céus) Olha, não sejamos desumanos a esse ponto! O bode é tudo o que ela tem... Deixe-o com ela.

Vladine: (incisiva) Não o quero.

Bianca: Implorava por sua vida e agora o despreza sem mais nem menos? Fazes isso para me provocar!

Vladine: (feroz) Tome-o como um presente meu irmão.

Matias: Não me chame de irmão! Se fico com Nataniel é tão somente por acreditar que o pobrezinho não mereça a companhia de uma mulher como tu!

Bianca: Não seja radical, meu amado.

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Vladine: Nataniel é seu!

Bianca: O bode pertence a ela Matias, esqueça-o!

Matias: Eu quero ficar com ele.

Bianca: Que obsessão por esse animal!

Matias: Nataniel!

Bianca: Animal! Besta! Fera! Bicho! Ele tentou me matar! Será que não entende isso? Estou louca ou o que? Eu não o quero! Entenda isso de uma vez por todas! Isso é um bicho não um filho teu! Nunca será! Coloca isso na sua cabeça!

Vladine: ( tomada por cólera) Sua esposa não é capaz de gerar um filho, fique com Nataniel!

Matias: Cale a boca, Vladine!

Bianca: (alucinada) Não sou capaz? Toma-me como tu, sua bruxa? Uma árvore seca, apodrecida?

Matias: Não ceda às provocações dela! (Empurrando a irmã pelos braços) Vá embora de uma vez Vladine!

Vladine: Vais cair! Nataniel permanecerá e esta será a sua ruína!

Matias: Já chega!

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Bianca: Esse bicho parte para o inferno junto contigo!

Vladine: Nataniel será como o filho que não foste capaz de dar ao meu irmão!

Matias: Vai embora!

Vladine: Sua esposa esconde isso de tu, meu irmão, mas eu sei! Ela não pode de dar filhos! Sua esposa é infértil!Ela não pode...

Matias: (sacode a irmã) Já chega!!!!!! Ouviste! (histérico) Chega! Cala a boca! Cala essa boca!!!! A culpa é minha, sua infeliz! Ouviste bem? Minha! Sou eu quem não pode ter filhos! Herdei esse sangue estéril, assim como tu! Um castigo! Uma maldição! Uma sentença divina proibindo a proliferação da nossa laia! Sangue daninho! Somos os últimos da nossa raça. A extinção do nosso nome. Não há com que nos preocuparmos mais. O mal acaba por aqui.

(silêncio sepulcral)

(Vladine horrorizada)

Bianca: (num sopro) Por que nunca me disseste isso...? Me dizias que teríamos muitos filhos e que envelheceríamos juntos paparicados por netos...

Matias: Me perdoa...

Bianca: Escondeu isso de mim, sem dar-me ao menos a escolha... A resignação, que fosse! Escondeu de mim que eu nunca seria mãe! Matias, como pôde fazer isso comigo...? Acreditou que impondo esse bicho em nossas vidas poderia suprir a minha falta em gerar um filho?

Matias: Perdão...

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Bianca: Não serei eu mãe de um bode!!! (assombrada) Não serei eu mãe nunca...

Matias: Eu te amo...

Bianca: (dilacerada) Desconheces os parâmetros de tal nobreza sentimental.

Matias: Não. Amo demasiadamente. A ti, ao Nataniel...

Bianca: (fraca dos sentidos) Insiste nessa comparação absurda...

Matias: Não há comparações... É amor em sua plenitude e pureza...

(Nataniel se aproxima do amigo, afetuoso).

(Matias acaricia o animal)

Bianca: (prendendo o choro) Não havia promissórias esquecidas... Voltaste aqui pois não consegues estar longe desse animal... O ama... (Explodindo num por ódio) Amas esta Besta... (odiosa com a cena que vê) Esse Bicho... (potencializando o dínamo) Eu... Eu o odeio... (numa espiral insana) Odeio... Odeio... Odeio... Odeio... Odeio... Odeio... Odeio... Odeio... (Tomada por uma dor alucinante) Eu te odeio Nataniel!!!!!!!!!!!!!!!! ( Avança com a faca , e por um golpe de azar, numa tentativa inútil de defender Nataniel, Matias recebe o golpe fatal no peito).

(Pavor das mulheres).

(Matias com a faca cravada no peito).

( Nataniel acuado, sem entender nada, como um bicho. Puro, simplesmente).

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(Escuridão silenciosa)

Fim Jô Bilac | 29 de setembro de 2009.

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