Avenida Yervant: Fé, vaidade e outras histórias

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Avenida Yervant: Fé, vaidade e outras histórias Por Eliane Scardovelli Pereira Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo Orientador: Prof. José Coelho Sobrinho São Paulo, 27 de novembro de 2009 Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP)


Agradecimentos

A José Coelho Sobrinho, orientador deste trabalho; A Cláudio Tognolli e Xico Sá, membros da banca; Ao subprefeito da Cidade Ademar, Carlos Roberto Fortner, por ter cedido fotos aéreas da região; A Stella Dauer, diagramadora desta reportagem; E, principalmente, a todos os moradores e trabalhadores da Yervant, solidários em dividir comigo belíssimas histórias.


Resumo E

ste trabalho é uma grande reportagem sobre a avenida Yervant Kissajikian, localizada na periferia da zona sul de São Paulo. Além de reconstruir o passado da via e traçar um panorama da região, traz histórias de fé, vaidade, pobreza, sobrevivência, alegria e dor. A avenida reflete os problemas não só do seu entorno, mas também de uma cidade que não para de crescer. O progresso, como se vê, chega, mas não para todos. Palavras-chave: Yervant Kissajikian, zona sul, São Paulo, periferia, reportagem, favela, pobreza, igreja, fé, cabeleireiro, vaidade.

Abstract T

his work is a big report about Yervant Kissajikian avenue, located on the poor outskirts of southern Sao Paulo. It reconstructs the past of the avenue and traces a panorama of the region, with stories of faith, vanity, poverty, survival, joy and pain. The street reflects the problems not only of its surroundings, but also of a city that never stops growing. Progress, as we see, comes, but not for everyone. Keywords: Yervant Kissajikian, Sao Paulo, southern region, outskirts, report, slum, poverty, church, faith, beauty parlour, barbershop, vanity. 6


Índice Introdução

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10 - Altas Horas

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1 - Panorama do entorno

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11 - JS Cabelereiros

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2 - O começo de tudo

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12 - Igreja Universal do Reino de Deus

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3 - A transformação da Vila Joaniza

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13 - Igreja Evangélica A Família de Jesus Cristo

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4 - O fim à margemdo progresso

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14 - Mesquita de Santo Amaro

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5 - O início promissor e caótico

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15 - Aula de árabe e leitura do Alcorão

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6 - Por que Yervant Kissajikian?

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16 - Vida de provação

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7 - Do lado do muro

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17 - Vida reciclável

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8 - O galã do churrasco

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Considerações finais

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9 - Flash Hair

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1 - Panorama do entorno A

Yervant Kissajikian é uma das três principais vias do distrito da Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo. Fica espremida entre as outras duas: a avenida Cupecê, ao norte, e a Estrada do Alvarenga, ao sul. A Cupecê, por ser uma ligação direta com a Rodovia dos Imigrantes, tem faixas largas e é bem desenvolvida. A Estrada do Alvarenga, mais periférica, não conseguiu crescer tanto, apesar de hoje já apresentar bastante movimento. A Yervant, como uma irmã do meio problemática, ficou esmagada e transformou-se no centro de um gigantesco adensamento populacional. “É uma artéria importantíssima, localizada no coração da Cidade Ademar, mas está estrangulada. Não tem condições de dar vazão ao trânsito como deveria”, lamenta o subprefeito da Cidade Ademar, Carlos Roberto Fortner, no cargo desde agosto deste ano. Segundo ele, a Yervant sofre de uma espécie de arteriosclerose, entupimento de veia por conta do excesso de gordura.

Mapa de São Paulo. Em destaque, o distrito da Cidade Ademar

Para piorar, grande parte dos habitantes da região vive em situação precária. Os números a seguir dão a dimensão dessa realidade. Os dados utilizados são do IBGE (Censo 2000), do Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade 2004) e da Secretaria Municipal de Saúde (SMS 2005/ 2006). 9


Cidade Júlia, a maior favela da região (Crédito: Carlos Fortner)

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2 - O começo de tudo N

o início do século 20, a área que hoje corresponde à Cidade Ademar era tomada por fazendas, sítios e chácaras. A bucolismo do ambiente rural pouco tem a ver com a cena que se desenha hoje: trânsito caótico, lojas de todos os tipos, camelôs espalhados pelas calçadas e um mar de favelas. A grande transformação teve início nas décadas de 1950 e 1960, quando São Paulo passava por um acelerado processo de desenvolvimento industrial. Neste pedaço da zona sul, instalaram-se, sobretudo, imigrantes nordestinos e mineiros para trabalhar nas fábricas do bairro de Santo Amaro. De olho na demanda por moradia, e aproveitando o preço baixo da terra, grandes, médios e pequenos empresários compraram terrenos onde antes havia apenas capim e gado para transformá-los em lotes residenciais e revendê-los em seguida. Em pouco tempo, a região se converteu num mosaico de bairrosdormitório. Além de casas, centenas de barracos foram tomando conta da paisagem, especialmente nas áreas de mananciais, onde nascem os rios que desembocam na represa Billings. Até 1996, o distrito da Cidade Ademar pertencia à região Administrativa de Santo Amaro. Durante esse tempo todo, o poder público praticamente deu as costas para os problemas dos moradores. A região cresceu ao Deus Dará e o resultado é esse que vemos hoje. A vida dos operários não era fácil. Até meados da década de 1960, os ônibus que partiam de Santo Amaro chegavam só até o comecinho da avenida. A única opção para os que moravam nos bairros mais distantes era caminhar três, quatro, às vezes mais de cinco quilômetros para chegar em casa. Roberto Gentil,

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4 - O fim à margem do progresso

A

Vila Joaniza termina no posto da Polícia Militar no número 2215. Dali para frente, a Yervant muda de figura. Os principais bairros ali são Americanópolis, Jardim Itapurá, Jardim Selma, Vila Missionária e Cidade Júlia. Grandes montes de lixo e de entulho nas calçadas e nos córregos se tornam frequentes. As favelas que antes dividiam espaço com as casas agora praticamente dominam a paisagem. O preço do metro quadrado despenca. Um terreno de mesmo tamanho nesta parte da avenida custa menos da metade do que na Vila Joaniza. Os imóveis são simples, com exceção dos templos da Universal. Há pouquíssimos postos de saúde e escolas.

À margem dos córregos,

ocupações irregulares e muito lixo 16

O horizonte é cinza: madeira só nos barracos, nada de árvores. A única área verde nas proximidades é o Clube da Caixa Econômica Federal, ao lado da mesquita islâmica, pouco antes da Vila Joaniza. O subprefeito da Cidade Ademar, Carlos Roberto Fortner, diz que os proprietários daquele terreno têm débitos com a


5 - O início promissor e caótico A

Yervant começa no cruzamento com a avenida Interlagos, via que dá acesso ao autódromo e ao shopping de mesmo nome. Antes de 1990 não havia nesse cruzamento a Universidade Ibirapuera nem o supermercado Extra, os dois maiores empreendimentos da região. A construção dos prédios nos primeiros 700 metros da avenida foi em grande parte puxada por esse crescimento. Antes, era limpo o horizonte do alto das lajes do Jardim Consórcio. Em cinco anos, esse horizonte foi interrompido por condomínios de classe média - e vem mais por aí. Hoje existem quatro, e outros três devem ser inaugurados nos próximos dois anos.

Os prédios altos contrastam com a pobreza do fim da avenida

Assim como o trecho da Vila Joaniza, este também valorizou 100% em dois anos. A lógica das imobiliárias para convencer as empreiteiras foi a seguinte: do outro lado da Interlagos está a avenida Sargento Geraldo Santana, com seus grandes condomínos de luxo, clubes, restaurantes e colégios particulares. É caríssimo morar lá, mas a poucos metros está a Yervant, onde é possível comprar um apartamento por um preço muito mais baixo, praticamente no mesmo lugar. Deu certo, tão certo, que a quantidade de moradores no começo da avenida mais que triplicou em pouquíssimo tempo. Os prédios e casas de classe média contrastam com os barracos do fundo da avenida. A Yervant é símbolo das desigual-

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feitura legalizar nossa situação”. Cláudia, a amiga que amamenta o filho dentro da quitanda improvisada, fica indignada: “Como assim, Maria? Quer pagar por uma coisa que a gente pode ter de graça?” A conversa é interrompida novamente quando chega uma moradora do condomínio Califórnia à procura de laranjas. Maria José se mostra toda atenciosa: “É preciso conquistar fregueses. Nós aqui da comunidade temos uma ótima relação com as pessoas dos prédios”.

Crianças fora da piscina O acesso às casas da Cidade Alta se dá por meio de três vielas. Um passeio pelas estreitíssimas vias tem trilha sonora diversa, que vai de “Gatinho Do alto da laje, Alisson e Daniel observam Bonitinho”, do grupo de forró eletrônico Dejavú a a quadra do condomínio “Welcome to the jungle”, da banda de rock Guns ‘N Roses. Quem me conduz às entranhas daquele micro-universo são as crianças que vivem lá. “Você quer ver a piscina?”, pergunta Alisson, de oito anos. Ele me leva até o final da primeira viela. Para chegar à laje de sua casa, precisamos subir por uma escada sem corrimão e passar por fios elétricos: segurança zero. De lá, ele e o amigo Daniel, também de oito anos, observam com brilho nos olhos e água na boca a quadra, a churrasqueira e a piscina do condomínio vizinho. “A gente consegue entrar de vez em quando, porque uma menina daqui tem um amigo de lá, mas é bem de vez em quando”. Em pouco tempo, já estou rodeada de crianças. Todos nós ficamos ali, no alto da laje, observando as casas e prédios ao redor. “Esse prédio tá ficando da hora”, comenta Mauricio, de 10 anos, sobre o edifício de 26 andares que está sendo construído atrás de sua casa. 27


sexta-feira. “Será que tem a ver com o motel?”, pergunto, e ouço mais risadas. Marco aproveita para provocar um amigo que também é cliente assíduo: “Vai um ovinho de codorna pra ficar elétrico?” Os amigos, aliás, tiveram papel importante na conquista da clientela, pela propaganda boca-a-boca. Já os moradores dos condomínios ao lado não costumam se sentar para apreciar um espetinho ao ar livre, tomar cerveja e ouvir música sertaneja. “A gente tem a impressão de que eles não gostam de se misturar. Às vezes, encomendam uns espetinhos, mas levam para comer em casa”. Uma cena inusitada faz Marco interDe patinho feio a bonitão do pedaço: o romper a fala. Da janela do cubículo churrasqueiro não mede esforços pela vaidade onde fica a churrasqueira, surge um homem aparentando ter 30 e poucos anos, maltrapilho. “Ô colega, posso pegar um aqui?” Ele não se refere ao espeto de carne, ou ao de ovo, mas ao guardanapo. Marco faz que sim com a cabeça, depois se volta para mim: “Aparecem uns dez por dia. Esse ainda pediu, mas a maioria simplesmente passa a mão sem falar nada”. O fino pedaço de papel é usado como seda, na nona e última definição que o dicionário Houaiss atribui ao termo, “papel com que se enrola cigarro de maconha”. Apesar da falta de polidez de alguns que se apoderam do guardanapo alheio, o moreno não se abala e, de novo, mostra bom humor: “A gente se diverte muito mais do que trabalha. As metas a gente estabelece

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moicano riscado, surfista ondulado, e por aí vai. O preço aumenta conforme a complexidade, que vai do simples e tradicional corte na máquina, chamado social, por seis reais, até o moicano com luzes, por cinquenta. Leonardo Nascimento, ajudante de jardinagem, tem 23 anos, ostenta o penteado mais caro há sete anos. Vaidoso, ele vai ao salão pelo menos uma vez por mês, “ou quando tem uma balada muito boa”, para retocar o dourado ou aparar as pontas. Também faz cavanhaque e pede para deixar as costeletas finas, milimetricamente proporcionais. Admite gastar cerca de 20% do salário com cabelo, roupas e cremes, mesmo tendo dois filhos para sustentar.

Rodrigo faz lu

zes em cliente

E não é só com barba e cabelo que os clientes se preocupam, garante Wellington Soares, 17 anos, cabeleireiro do Altas Horas. ”Muitos vão direto daqui pra salão de mulher, fazer sobrancelha, passar base na unha, tirar cutícula, depilar o peito, as costas, a orelha, tudo! Aqui não tem isso não”. Enquanto Wellington fala, a fila reclama: “Menos conversa e mais trabalho”, protesta Leonardo Silva, que bate cartão toda semana para deixar o quadrado riscado impecável. Ele chegou às 11 e meia da manhã, mas só será atendido agora, às 3 e meia da tarde. “Isso não é nada! Já fiquei 12 horas esperando”. “Mas não dá pra marcar hora?”, pergunto para Wellington. ”Dá sim, mas como um monte de gente marca, fica 37


14 - Mesquita de Santo Amaro

A mesquita islâmica quebra o cinza da avenida

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“Os fiéis que migrarem e sacrificarem seus bens e suas pessoas pela causa de Deus, obterão maior dignidade ante Deus e serão os ganhadores”

‫ي ّذَلا‬ ِ ‫يبَس يِف ا ُودَه َاجَو ا ُورَج َاهَو ا ُونَمآ َن‬ ِ ‫نأَو ْ ِمهِل َا ْو َمأِب ِ ّهَللا ِل‬ َ ‫ظعَأ ْ ِم ِهسُف‬ ْ ‫جرَد ُ َم‬ َ ‫َن ُوزِئ َافْلا ُمُه َكِئ َا ْل ُوأَو ِ ّهَللا َ ْدنِع ً َة‬ “O seu Senhor lhes anuncia a Sua misericórdia, a Sua complacência, e lhes proporcionará jardins, onde gozarão de eterno prazer”

‫ميِقُم ٌ ميِعَن اَهيِف ْمُهَل ٍ تاَّنَجَو ناَوْضِرَو ُهْنِم ٍ ةَمْحَرِب ْمُهُّبَر ْمُهُرِّشَب‬ Alcorão, surata 9: At taubah (O Arrependimento) - versículos 20 e 21

Um pouco antes de chegar à praça da Vila Joaniza, ao lado do Clube da Caixa Econômica Federal, uma grande construção destoa de tudo o que existe na avenida. As duas torres altas e a fachada de ladrilhos coloridos do número 1.106 se impõem ao monocórdio tom de cinza dos imóveis vizinhos. A mesquita de Santo Amaro, a segunda maior de São Paulo, traz pluralidade de cores à Yervant e a sensação de haver, na periferia da zona sul, uma parte do Oriente Médio: homens de turbante, barba longa e chinelos e mulheres de véu caminham sem pressa pelo pátio e pelo estacionamento da mesquita. Minha primeira tentativa de contato com a Sociedade Beneficente Muçulmana de Santo Amaro (Sobem) foi desastrosa. Encontrei no site da instituição o telefone do sheik Jamel Ali Bacha, figura responsável por coordenar as atividades da mesquita e orientar os fiéis. Liguei, mas não consegui me comunicar. “Speak arabic!” era o imperativo que eu era incapaz de seguir. Ainda ensaiei uma abordagem em inglês, sem sucesso. A única e derradeira opção foi dizer “sorry” e desligar o telefone. Resolvi então ir pessoalmente à mesquita, mas a encontrei mais vazia que o deserto da Arábia ou do Saara. Como não havia ninguém na secretaria, achei por bem ir até a entrada principal do templo. Através de uma porta de madeira trançada, pude ver a suntuosidade da arquitetura, o chão de veludo verde, escritos em árabe nas paredes. Fiquei maravilhada, tomada por uma atração irresistível. Estava prestes a entrar, quando o eco forte de uma voz masculina me 53


as mulheres só podem ficar onde estou, em cima. Ele abre um gaveteiro cheio de panos, todos muito rústicos, parecem servir para moças ocasionais, como eu. Escolho um e ele fica esperando para me ver vestida. Percebo que a saia fica meio esquisita: “Este é para a cabeça”, avisa com risinho discreto. Hussein é comedido nos gestos, mas transparente nos olhos. Consegue se comunicar muito bem. Quando acabo de me cobrir com véu e saia, da cabeça aos pés, me olha com ar de admiração e bondade. Em seguida sai e me deixa sozinha. Fico ali admirando a imensidão do salão e do teto em forma de abóbada, imaginando o momento da comunicação com Deus. O muçulmano deve rezar cinco vezes por dia voltado à Meca, cidade natal do profeta Maomé. Hussein me entrega um calendário com os horários das orações, que devem ser realizadas na alvorada, ao meio-dia, no meio da tarde, ao crepúsculo e à noite. Cada uma dura aproximadamente dez minutos. “É um canal aberto para Deus e nos livra das tentações da carne. Nosso caminho é em linha reta. O muçulmano não muda de religião”. Os seguidores de Alá também devem ir à Meca pelo menos uma vez na vida, desde que tenham condições físicas e financeiras para isso. Hussein aguarda o momento certo para viajar: “Depois não poderei mais pecar, senão os efeitos da visita são anulados”. O secretário da mesquita acredita que o maior pecado de todos é cobiçar a mulher do próximo: “Se o homem deseja a mulher errada faz um grande mal à sociedade”. É também extremamente condenável falar mal dos outros: “Damos grande valor às palavras, por isso elas devem ser usadas com muito cuidado. Abominamos a prática da injúria”. Ele também critica o Novo Testamento, a Bíblia escrita após o nascimento de Jesus: “O que está lá é mentira, foi escrito pelos homens”. E o Antigo Testamento? Foi escrito por quem?”, pergunto. “Foi Deus, por intermédio dos profetas”. Um telefonema interrompe a nossa conversa. Hussein atende o celular e se transforma em conselheiro sentimental. Uma garota que havia se “revertido” ao Islã depois de conhecer o namorado muçulmano não sabe mais o que fazer para ser aceita pela família do amado, que é contra o casamento dos dois. “Se o namoro é sério como você está me dizendo, sem coisas ilícitas, não vejo motivo para impedimento”. Em seguida, encaminha o caso para o sheik da mesquita, que tratará de ouvir a família do rapaz. Ele desliga o telefone e me avisa que a aula de árabe na escola anexa à mesquita está para começar. 56


tado por muçulmanos e nãomuçulmanos. A diferença é que os primeiros têm uma hora de estudos por dia destinada ao árabe e à educação islâmica. Yasmin é a moça da turma de Najah. Não estuda no 25 de Março, mas frequenta as aulas de sábado com a irmã para aprender árabe, língua dos avós libaneses. A família toda é muçulmana, e ela não seria diferente: “Nasci assim e não tem porque mudar”. Neste dia, ela chegou atrasada, vestindo calça justa, com esmalte vermelho nas mãos e nos pés. Na hora do intervalo, ela me conta que não pode entrar na mesquita com as unhas escuras, sinal de impureza. Mesmo assim não deixa Escritos do Alcorão na parte interna da mesquita de pintá-las de vez em quando. Yasmim tem 14 anos, cabelos escuros, lisos e compridos, olhos castanhos destacados com lápis preto e rímel. Adora maquiagem, vai ao salão todo fim de semana para fazer manicure, pedicure e escova. É muito bonita e assediada pelos meninos, mas nunca namorou, nunca nem beijou. “O homem que eu beijar será meu marido”, fala com convicção. Ao contrário das amigas da mesma idade, ela não costuma sair, não mostra os joelhos nem os ombros. Mas abre exceções quando vai à praia de biquíni: “Poder, não pode, mas eu vou”, fala 59


Um dos ferros-velhos da Yervant

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Considerações finais S

aldo: Um par de All Star a menos, dois bloquinhos cheios de rabiscos e garranchos, 12 garrafinhas d’água, uma fita de gravador, 340 fotos, dois livros muçulmanos, vários folhetos de igreja, um envelope para o dízimo, o lenço de consolo das lágrimas, folhetos da Marabráz, duas calças jeans baratinhas, um bronzeado bizarro nas costas, um calendário com os 1.102 horários das orações que os muçulmanos devem fazer no segundo semestre do ano, um exemplar do informativo islâmico mensal, um cartão de advogado, dois jornais de anúncios de apartamentos, um espetinho de filé mignon, dois copos de cerveja, um aumento considerável no vocabulário, uma coleção de olhares, sorrisos e choros, algumas cantadas, vibrar com a vitória do Flamengo em cima do Santos com um bando de moleques desconhecidos, números de telefone – do delegado ao bandido –, portas se abrindo – do condomínio ao barraco -, garoa em cima da cabeça, testemunho de quase dois atropelamentos, acenos por toda Yervant. Fiz um trabalho escrito, mas é muito visual nas palavras. Não poderia deixar de ser, trabalhando o ano todo com imagens. Desculpem-me se coloquei aspas demais. Tentei interferir o mínimo possível nas mensagens recebidas. No fim das contas, optei pela reportagem porque a minha paixão é o literário, o imprevisível, a novidade. É aí que está a minha alma jornalística. Mais do que o conteúdo, quero ressaltar a forma. Como conseguir boas histórias? Tem que olhar no olho, se colocar no lugar do outro, ouvir com atenção e coração aberto. Sobretudo, ter respeito. A reportagem é o exercício da tabula rasa todos os dias. Você tem que esvaziar e encher, despir-se de suas próprias vaidades, preconceitos e fé, para tentar entender as pessoas. Sábio Gabriel Garcia Márquez. O jornalismo é mesmo a melhor profissão do mundo.

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