Avaliação de riscos a cemitérios

Page 1

“É justo zelar pela incolumidade dos coveiros, cujo ofício é tão necessário, porque sepultam na terra os corpos dos mortos, junto com os erros dos médicos, devendo, pois, a arte médica compensá-los com algum benefício por sua própria dignidade ameaçada”. (Ramazzini, 2000) 1

Caros leitores, Hoje vou-vos confessar uma experiência um pouco diferente e macabra no decorrer desta semana de estágio. O local da vistoria não é

algo

muito

agradável,

mas

à

semelhança

de

outros

estabelecimentos, existem trabalhadores que estão expostos a riscos inerentes á atividade que exercem. Como refere Ramazzini1 na frase em cima descrita, já devem ter percebido que a vistoria foi realizada a um cemitério. Foi solicitada a integração da avaliação de riscos para a segurança e saúde do trabalhador no conjunto das actividades do serviço, devendo adoptar as medidas adequadas de protecção (art. 15º nº 2 alínea b) da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro) 2, nomeadamente do coveiro e supervisão. A falta de formação por parte dos trabalhadores dos cemitérios é notória e deve ter tida em consideração. O trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de actividades de risco elevado (Lei nº102/2009, de 10 de Setembro). 2 A palavra cemitério é originada do termo grego kouméterion, que designava o lugar onde se dormia, dormitório. Mas, com a influência do cristianismo, tomou o sentido de campo de descanso pós-morte, campo santo ou necrópole. Vários povos antigos tinham costumes para tratar ou enterrar os seus mortos (AQUINO; CRUZ, 2010).3


Durante muito tempo, os cemitérios foram considerados apenas como locais de sepultura de corpos humanos, não representavam qualquer perigo à saúde pública e ao ambiente. Segundo Santos (2007) 4, os cemitérios podem se assemelhar a um aterro sanitário, visto que em ambos são enterrados matérias orgânicas e inorgânicas, com um agravante para os cemitérios, pois a matéria orgânica ali enterrada tem a possibilidade de carregar consigo bactérias que foram, provavelmente, a causa da morte do indivíduo, podendo colocarem risco o meio ambiente e a saúde pública. Os corpos humanos após a morte entram em decomposição e liberam substâncias tóxicas ao meio ambiente, na destruição dos corpos existe uma sequência natural de processos: mudança de coloração, gaseificação, coliquação e esqueletização (SILVA et al., 2008).4 No período coliquativo ou também conhecido como período humoroso, é liberado o necrochorume, trata-se de uma solução aquosa, rica em sais minerais e substâncias orgânicas desagradáveis de cor castanho acinzentada, viscosa, polimerzável, de cheiro forte, e grau variado de patogenicidade (ALMEIDA; MACEDO, 2005). 5 O necrochorume é constituído de 60% de água, 30% de minerais e 10% de substâncias orgânicas, duas delas altamente tóxicas, como, a putrescina e a cadaverina (ALMEIDA; MACEDO, 2005, SÓRIA; RAMIREZ, 2004). 5 Um cadáver de 70kg em média libera 30L de necrochorume de forma intermitente durante o período de 5 a 8 meses após a sepultura (MELO et al., 2010). 6 O mesmo além de contaminar o lençol freático,

comprometendo

a

qualidade

das

águas

subterrâneas,

através do consumo das mesmas, a população corre um grande risco de contrair doenças (PIRES; GARCIA, 2008) 7, assim como o coveiro que está exposto constantemente a certos riscos biológicos, tais como:

Local

Atividade ao ar livre


Abrir e fechar sepulturas e efectuar o transporte; depósito e levantamento de Tarefa

restos mortais; Limpeza de covas e jazigos; realização de sepulturas e exumações; lavagem da ossada aquando da exumação. Classificação Nº de Espécie do Agente do Agente

Natureza

Trabalhadores (Portaria n.º 1036/98)

(Portaria n.º

Exposição

Expostos

1036/98)

Bactérias e afins

Clostridium perfringens

2

Frequente

Salmonela typhi

3

Frequente

Salmonela paratyphi

2

Frequente

Shingella

2

Frequente

-----

-----

Esporádica

Vírus Dengue tipo 1 a 4

3

Esporádica

Febre Amarela

3

Parvovírus humano (B19)

2

Vírus Hepatite B

3

Hepatite C

3

Outros vírus

2; 3 e 4

Pouco Frequente Pouco Frequente Pouco Frequente Pouco Frequente Esporádica

Exposição: Continuada/Rotina /Frequente/ Ocasional /Pouco Frequente/Esporádica

Além das doenças transmitidas pela água, existem uma grande probabilidade de proliferação do mosquito Aedes Aegypti, que transmite o vírus de dengue e febre amarela, pela conservação de água nos vasos, além de outros animais, como escorpiões e baratas (PIRES; GARCIA, 2008).7 Outro aspecto possível, que deveria fazer parte da gestão ambiental dos cemitérios, é o cuidado com os resíduos sólidos, como os restos de roupas dos cadáveres, as próteses e os marca-passos, que deveriam ser separados do lixo comum e serem destinados para a colheita seletiva como resíduos perigosos.


Durante o processo de sepultura o coveiro costuma usar cal virgem (óxido de cálcio anidro), que é uma substância oxidante que maximiza a decomposição devido à sua acidez e minimiza o vazamento de necrochorume para o solo, pois absorve o líquido cadavérico evitando a contaminação da terra e diminuindo a humidade excessiva do solo. Após a priorização dos problemas que fui registando, cheguei ao foco da diagnose, incide nos problemas posturais, envolvendo os constrangimentos ergonómicos no ato de cavar as covas e descer o caixão. Por se tratar de um trabalho em ambiente aberto, num clima de temperatura e humidade elevadas, com alta incidência solar, a proteção individual a esses agentes agressores constitui outro aspecto importante a ter em atenção na avaliação dos riscos. Quanto ao uso de ferramentas, nomeadamente pás, estudos apresentados no artigo “The Lumbar Spine Load During Digging nad Shovelling with a Magnun Twingirp Handle Respectively na Ordinary Handle” (OBERG)8, demonstram que com uma adaptação em certas ferramentas de trabalho é possível reduzir cargas e implicações ao sistemas músculo-esquelético. A figura em baixo, demonstra uma simulação do uso de uma pá com uma manivela para aliviar a carga sobre a coluna vertebral.


A - Constrangimentos posturais na espinha B - Alívio para execução da tarefa, através do uso de uma manivela no centro do cabo da ferramenta O estudo concluiu que devido à possibilidade de um trabalho com postura ereta com a nova ferramenta (ou implementação da mesma) há uma redução das forças dos músculos e uma diminuição da compressão dos discos intervertebrais em 50% em comparação ao quadro que se apresentava no uso da ferramenta sem a adaptação. Isto demonstra que, com o desenvolvimento de novas ferramentas, ou mesmo adaptações nas existentes, é possível reduzir danos ao operário, aumentando sua eficiência e produtividade. Assim sendo, concluo que: para a tarefa desenvolvida pelo coveiro

é

extremamente

necessário

redesenhar

ferramentas,

capacitar as pessoas, sistematizar a tarefa, direcionar o uso dos EPI ´s (uso de máscara para a colocação de cal virgem no momento da supultura e lavagem da ossada com lixívia; uso de calçado e vestuário adequado). Possivelmente possibilitará uma melhoria na execução da atividade, causando menos danos a saúde física e


mental do trabalhador, contribuindo assim para a melhoria de qualidade de vida. Acredito que para evitar os impactos causados pelos cemitérios as legislações deveriam ser mais rígidas e o governo deveriam investir mais em fiscalização. Uma das possíveis soluções discutidas por estudiosos poderia ser a cremação (PIRES; GARCIA, 2008)7. Segundo Julio Mariath (1995), “a cremação apresenta uma grande vantagem na destruição de microorganismos patogénicos e os seus esporos,

agentes

das

moléstias

infecciosas,

concorrendo

poderosamente para o desaparecimento das epidemias.” 9

Referências Bibliográficas: 1 - Ramazzini, Bernardino. As Doenças dos Trabalhadores. Tradução de Raimundo Estrela. 3.ed. São Paulo: Fundacentro, 2000. 2-

Lei

n.º

102/2009,

de

10

de

Setembro

http://dre.pt/pdf1s/2009/09/17600/0616706192.pdf 3- AQUINO, J. R. F; CRUZ, M. J. M. Os Riscos ambientais do Cemitério do Campo Santo, Salvador, Bahia, Brasil. Cadernos de Geociências, 2010. 4 – SANTOS, R. M. Cemitérios: Uma ameaça a saúde humana? 24º Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental. 2007. 5 - SILVA, F. C; SUGUIO, K; PACHECO, A. Avaliação Ambiental Preliminar do Cemitério de Itaquera, segundo a Resolução do CONAMA 335/2003, Município de São Paulo. Revista UnG – Geociências. 6 - MELO, D. B. G; TUDOR. F; BERNARDINO, V.N. Relatório do Projeto Cemitérios Sustentáveis. Campinas, 2010. 7 - PIRES, A. S; GARCIA, C. M. São os Cemitérios a melhor solução para a Destinação dos Mortos?. IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 - Brasília - DF – Brasil. 8 - OBERG, Kurt E. T. The lumbar spine load during digging and shoveling with a magnum twingrip handle respectively an


ordinary handle. Article. Swedish University of Agricultural Sciences. 9 – Implantação de um crematório em Maceió: um estudo do potencial de mercado. COSTA, António; BARROS, Carlos; PINTO, Péricles http://www.abepro.org.br/biblioteca/ENEGEP2007_TR670485_0383.p df


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.