Você tem Meia Hora

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Camila Nascimento Silva


Uma mulher pode ter namorado, marido, filhos ou amantes, mas jamais sobrevive sem uma melhor amiga.

Para todas as minhas amigas



PRÓLOGO Quando o avião aterrissou, o cansaço me vencia e a ansiedade jorrava litros de adrenalina na minha corrente sanguínea. Fim de ano era sempre a mesma coisa: mais voos, aeroportos lotados, promoção das companhias aéreas, passageiros surtando e, consequentemente, muito mais trabalho. Eu vinha no ritmo frenético de uma rota de voos internacionais, nos quais pernoitara em Caracas, Bogotá e La Paz. Como de praxe, dormia uma média de três horas por noite e nessas raríssimas oportunidades acordava sobressaltada com pesadelos que envolviam uma forte turbulência e um trolley desgovernado pelo corredor, espalhando o pânico entre os passageiros. Embora exausta e sob pressão, eu estava consciente o suficiente para saber que estava surtando. Começava a considerar com simpatia a hipótese de virar anoréxica a encarar mais um pãozinho com manteiga. Tudo o que eu queria era chegar em casa e ver Arthur e, convenhamos, depois de um ritmo de trabalho intenso, uma noite de réveillon fabulosa era o mínimo que eu merecia, não? Veja bem, eu não estava reclamando por estar trabalhando em pleno 31 de dezembro. Muito menos da minha profissão que, aliás, eu adorava. Desde os treze anos eu queria ser comissária de voo – ou aeromoça, como se dizia à época –, mas naquele tempo eu achava que comissárias de voo eram apenas mulheres lindíssimas e podres de chique, que falavam várias línguas e conheciam o mundo inteiro. Eu não sabia que, na verdade, conhecia-se apenas aeroportos do mundo inteiro, e que no pacote ia de brinde uma insônia crônica e uma grande, enorme, imensa, gigantesca dificuldade de se relacionar com homens que não fossem também comissários ou pilotos. Porém, devo confessar que minha gana pela aviação estava muito relacionada à independência com que a carreira me acenava. É que eu passei a adolescência toda desejando ser adulta e 5


aos dezessete anos, quando finalmente terminei o segundo grau, tudo o que eu mais queria era ser dona do meu nariz. Tinha tanta vontade de ser dona do meu próprio nariz que recusava veementemente a hipótese de passar cinco anos enterrada numa faculdade para só então arranjar um emprego e só então virar adulta e só então… Deus me livre! Até o dia que descobri que nem toda moça podia ser aeromoça. Foi Mariana quem me alertou. Para mim não foi surpresa alguma. — É claro que não! — respondi do alto da sabedoria adolescente. — Tem que falar inglês fluentemente também! A língua inglesa jamais seria uma pedra no meu caminho. Inclusive, eu já tinha pensado nesse detalhe e as contas fechavam perfeitamente. Daria tempo suficiente para terminar o cursinho de inglês antes de começar a voar. — Não, Bia, não basta falar inglês não — Mariana explicoume. — Para ser aeromoça tem que ser alta. Foi um balde de água fria nos meus 1,53m de altura. Aos treze anos nada é cem por cento garantido em relação ao corpo que teremos aos vinte, mas o fato é que eu era a mais baixinha da classe. Ninguém poderia afirmar se eu seria gordinha, magrinha, peituda ou bunduda, mas uma coisa era certa: eu não ia crescer muito mais que aquilo. Não ia mesmo. Fiquei paranoica. Aos treze anos já era completamente escrava dos padrões de aparência. Comecei a fazer sessões de alongamento, usar ombreiras, saltos e listras verticais. Iniciei um ritual diário: todas as manhãs ia até a porta do quarto me medir, fazendo um risquinho na madeira. Havia todo um sistema de acompanhamento mensal, com estimativas anuais que visavam calcular minha altura aos dezoito, aos dezenove e aos vinte anos, quando então imaginava começar a voar. Com muita emoção me vi chegar aos 1,56, 1,57, 1,58 e então estacionar nos 1,59 aos dezoito. Crescer, fisicamente falando, era a meta da minha vida. Mas eu precisava pelo menos atingir os 1,63m para poder arredondar e preencher 1,65m nos f­ ormulários. Porém, depois dos dezoito as coisas ficaram mais lentas e nem mesmo as seções de alongamento funcionavam. 6


Só me restou apelar para Deus. Então, antes de dormir eu rezava: “Meu querido Deus, conceda-me milagrosamente mais quatro centímetros! Tenha misericórdia da minha altura e faça com que até o dia da prova da ANAC eu esteja medindo 1,63m de altura. Amém!” A verdade nua e crua, entretanto, veio numa tarde de domingo assistindo o programa do Gugu. Um ortopedista convidado para falar sobre a nova linha dos tênis Kichute, afirmou que a fase de crescimento – lamentavelmente – encerrava-se aos dezoito. Foi a maior decepção da minha adolescência. Muito mais traumatizante do que ter perdido o show do Guns N’ Roses no Rock in Rio II, em 91. Chorei copiosamente por uma semana até que, enfim, aceitei os fatos. Não havia mais nada a fazer a não ser recorrer à cartada final: o salto alto. Quando digo “salto alto” não estou aqui me referindo ao salto tradicional. Já estava tão na cara que eu era baixinha, que usar sapatos de salto só ajudariam a reforçar a ideia de que eu tentava parecer alta. Eu não queria assumir meu tamanho. Eu queria realmente ser alta. Ou pelo menos enganar bem. Portanto, pelo termo “salto alto” refiro-me na verdade a um sistema muito sofisticado, totalmente desenvolvido por mim, o qual me fazia parecer quatro centímetros maior, mesmo usando um All Star branco cano curto. Eu explico: Basicamente, o sistema consistia em amassar uma pequena pilha de guardanapos até formar uma maçaroca de uns três ou quatro dedos e então acoplá-la dentro do tênis, debaixo do calcanhar. Bem, não há como negar que esse método era extremamente dolorido. Eu desconfiava, inclusive, que no futuro teria sérias complicações na coluna, mas a sensação de ter 1,63m de altura compensava o sacrifício. De longe, qualquer um podia jurar que aquela era realmente a minha altura e eu ainda parecia – apenas parecia! – super confortável. Assim, resolvido o impasse com as minhas medidas, fui atrás do sonho de ser comissária de voo. Enquanto os meus amigos entraram para o cursinho, eu enfiava a cara nas apostilas de aviação. Enquanto todos prestavam vestibular, eu fazia a prova da ANAC. 7


E quando todos finalmente passaram para alguma faculdade, eu recebia o meu primeiro salário que, mesmo não sendo lá grandes coisas, pagava o aluguel do meu conjugado no Flamengo e as noitadas de porre no Arco do Teles. Exatamente a vida adulta que tanto sonhei! Sim, porque por mais incrível que pareça, as aeromoças também tomam porres. Aliás, elas realmente existem fora dos aviões! Muito embora essa minha história comece dentro de um.

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Capítulo

1

Entre por esta porta agora E diga que me adora, Você tem meia hora Para mudar a minha vida… Todos os passageiros já haviam desembarcado e eu cantarolava na galley, preparando-me para deixar a aeronave. Adorava véspera de ano novo! Me identificava muito com o clima de renovação que antecedia a virada. Além disso, eu tinha uma razão especial para estar empolgada: as férias! Há dois anos eu sequer pronunciava esta palavra e agora finalmente teria vinte dias para não fazer nada. Vinte dias sem despertador, aviões, turbulências, malas, hotéis e uniformes. Só para mim e Arthur. Desde que começamos o namoro, três anos antes, tentávamos tirar férias na mesma época, mas na véspera sempre entrava um caso milionário no escritório dele ou rolava uma mudança na minha rota, de modo que nunca conseguíamos um tempo só para gente. Dessa vez, então, marcamos as férias com um ano de antecedência e juramos não mudar os planos nem se ganhássemos na loteria. Havíamos resolvido ficar em casa mesmo — a última coisa que aeromoças querem fazer nas férias é viajar. De avião então, nem morta! — sem a loucura da rotina. Só nós dois. — Eu gosto dessa música — Mariana interrompeu meus pensamentos, enquanto eu terminava de preencher o relatório de checagem da aeronave. Não me lembro se sorri ou se só balancei a cabeça, mas fiz um gesto assim bem automático. Estava louca para dar o fora dali e me jogar na noite de réveillon com Arthur. A última vez que falara com ele fora dois dias antes, no aeroporto de Bogotá. Ele não quis me contar o que havia planejado para nossa noite de ano novo e eu desconfiei que estivesse preparando uma surpresa ou algo assim. — Escreve para mim? — lançou Mariana com uma calma, totalmente fora de contexto para um final de expediente em pleno trinta e um de dezembro. 9


— Tá bom — respondi apressada, assinando o relatório e pegando minha Balenciaga, sabiamente adquirida numa liquidação na Recoleta, durante a última rota em Buenos Aires. — Eu te mando por e-mail, ok? — Não, não… escreve agora! — insistiu empolgada, bloqueando a minha passagem. Mariana tinha cada uma. Embora fôssemos melhores amigas, as vezes sua falta de noção me intrigava. — Fica sendo o meu presente de ano novo! — ela tentou me convencer. — Ninguém dá presente no ano novo, Mariana. — Tirei o braço dela do meio do caminho e segui pelo corredor. — E mesmo que dessem, sua cota de presentes estourou no Natal. Ou você acha que foi fácil conseguir um perfume que a Chanel só vai lançar ano que vem? — Eu te dei outras opções — ela defendeu-se, vindo na minha cola. — O que eu posso fazer se você foi no mais difícil? Todos os Natais eu e Mariana tínhamos um ritual que, com o passar do tempo, carinhosamente apelidamos de AAA. Traduzindo: Agrado de Amiga à Amiga. Basicamente, consistia numa listinha de sugestões de presentes que uma amiga fazia chegar ao conhecimento da outra para que esta então escolhesse um item e presenteasse. Vinte anos antes, quando a AAA foi implantada entre nós, as opções de agrado eram apenas lembrancinhas simples, tão simples quanto o valor de nossas mesadas: pacotinho de figurinhas dos Menudos, saquinho de Dip’nlik sabor uva, papéis de carta, fita cassete gravada com as músicas preferidas — muito mal gravadas, por sinal. Com o tempo, naturalmente, as listas evoluíram e se sofisticaram: carteira Prada de couro marrom com fecho dourado fosco; loção hidratante Lancôme com filtro solar fator 30 para área dos olhos; pó facial MAC n.4 (tem no free shop de São Paulo!!!) — muitas vezes, a sugestão vinha acompanhada de indicações para facilitar. O mais interessante, entretanto, era a forma como as listinhas eram trocadas entre nós: enfiadas na mala da outra, pregadas no armário, colocadas no talão de cheque… A única regra é que jamais fossem entregues em mãos, porque isto sim seria uma tremenda falta de educação. — Vai, Bia, escreve logo essa música para mim! Por favor! 10


Mariana não me deixaria em paz assim tão fácil, pressenti. — Não dá, não tenho caneta — respondi, já com a bolsa no ombro e um pé fora do avião. Então, rápida como uma flecha, ela puxou uma caneta do bolso. Antes que eu pensasse em protestar a falta do papel, ela olhou para o lado, passou a mão no primeiro guardanapo amassado que viu e me entregou, com um sorriso vitorioso. Era o desfecho mais previsível, porque eu sempre acabava fazendo as vontades ­dela. — Só rindo, Mariana. — Achei graça, porém um pouco contrariada. — Só rindo mesmo! Pouquíssimos momentos da minha vida não estavam direta ou indiretamente ligados à Mariana. Eu diria que nossas vidas eram vinculadas como se fôssemos realmente irmãs. Crescemos juntas na Tijuca, estudamos no Colégio Marista e fizemos absolutamente tudo que toda menina da época fez. Nos vestimos como a Madonna, tivemos mochilas – e agendas – emborrachadas da Company, sonhamos nos casar com um dos New Kids on The Block (eu com o Joe, ela com o Jordan), achávamos o máximo frequentar boates com banho de espuma aos quinze anos e, como toda classe média que se preze, fomos enviadas à Disney numa excursão da Stella Barros com mais quarenta adolescentes feias e cheias de espinha (essa foi a primeira vez que eu pisei num avião). Durante nossa adolescência, se alguém quisesse convidar Mariana para uma festa, era subentendido que eu ia a reboque e vice-versa. Nossas vidas eram tão misturadas que perdemos a virgindade na mesma noite. Obviamente, que com meninos ­diferentes. Enfim, não tivemos a opção de não sermos melhores amigas. Ou seríamos, ou seríamos. E fomos. Numa época em que a barra pesou lá em casa, passei um bom tempo na casa de Mariana. Posso dizer até que tia Clarissa, a mãe de Mariana, foi também um pouco minha mãe. Então aconteceu que aos vinte e um anos, quando eu me preparava para fazer meu primeiro voo, Mariana tentava, pela segunda vez, o vestibular para medicina da UFRJ, o de jornalismo da UERJ e o de arquitetura da UFF. Acabou passando para moda na Veiga de Almeida. Mas cursou apenas dois períodos. Muita 11


gente esquisita, foi o que alegou na época. Rolou ainda uma ideia sobre um concurso público para o Tribunal de Contas, mas o plano acabou não vingando quando ela descobriu que teria de estudar contabilidade no cursinho preparatório. Assim, numa bela noite de bebedeira na Mariozin, entre margueritas e bloody maries, Mariana muito bêbada virou para mim e disparou: — Eu zá tô cum vintizinco e num tenho nada nezza vida. Purexempro, nem profissaum eu tenho! Minha mãe é maisi orgulhosa di vozê duquigimim, zabia? Comequié ezza porra di zer zaeromoza mesmo, hein? E a partir daquele dia Mariana empenhou-se com tanto afinco que tornou-se uma de nós. Fez o curso, passou nas provas e um ano e meio depois já estava contratada. Coincidentemente, na mesma empresa que eu — foi coincidência mesmo, juro! — Tá vendo só? Nem doeu! — disse Mariana, lendo a letra da música que eu acabara de escrever. — Fui! — falei, desvencilhando-me dela. — Feliz ano novo, amiga! — Mariana me puxou pela mão. — Feliz ano novo! — Nos abraçamos. — Amo você, viu? — Eu também.

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