UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Instituto de Geociências Departamento de Geografia
HIP HOP E O DUELO DE MCs EM BELO HORIZONTE: DAS DISPUTAS “RIMÁTICAS” AO EMBATE ENTRE REGULAÇÃO E APROPRIAÇÃO NO ESPAÇO PÚBLICO
Suellen Guimarães Alves
Belo Horizonte Julho, 2009
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Instituto de Geociências Departamento de Geografia
HIP HOP E O DUELO DE MCs EM BELO HORIZONTE: DAS DISPUTAS “RIMÁTICAS” AO EMBATE ENTRE REGULAÇÃO E APROPRIAÇÃO NO ESPAÇO PÚBLICO
Suellen Guimarães Alves
Trabalho apresentado na disciplina Geografia Aplicada A, do curso de Geografia da UFMG, sob a orientação do professor William Rosa Alves e avaliado pelo professor José Alfredo Oliveira Debortoli e pela professora Maria de Fátima Almeida Martins.
Belo Horizonte Julho, 2009
SUMÁRIO Apresentação --- 04 Introdução --- 07 Capítulo I. Hip hop a favor da rua --- 11 1.1.
“Cultura de rua”, visibilidade e ocupação dos espaços públicos --11
1.2.
Quando a rua “te chama” --- 14
1.3.
Duelo de MCs: expressão da “cultura de rua” em Belo Horizonte --- 18
Capítulo II. Regulação e apropriação: sobre possibilidades e limites --- 23 2.1. Atitude hip hop como mecanismo de regulação interna --- 23 2.2. Estado como regulação externa e interna --- 28 2.3. “Ali, todo mundo é igual"? --- 32 Considerações Finais --- 35 Referências Bibliográficas --- 37 Anexo --- 40
APRESENTAÇÃO
Este texto pode ser entendido como um desdobramento da experiência de dois anos no Programa Conexões de Saberes na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. O Programa é uma proposta do Governo Federal através do Ministério da Educação (MEC) e desenvolvido pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) em parceria com a ONG Observatório de Favelas, com sede no Rio de Janeiro. Desde 2007, ano em que ingressei no quadro de bolsistas do referido programa, o mesmo vinculou-se ao Núcleo de Psicologia Política – NPP da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas na UFMG. O “Conexões de Saberes” é um programa de extensão universitária e um dos eixos de ação, do qual fui bolsista nesses últimos dois anos, diz sobre o diálogo entre Universidade e movimentos sociais/grupos de ações coletivas. Uma das propostas é criar novas formas de relação entre o saber técnicocientífico e saberes produzidos para além da Universidade. Entendemos que historicamente essa relação – a partir de hierarquias como, por exemplo, entre conhecimento científico e outros saberes e, consequentemente, entre pesquisadores
e
predominantemente
pesquisados marcada
nas
pela
ciências
sociais
deslegitimação
dos
–
tem
sido
saberes
não
reconhecidos como científicos. Uma das consequências dessa relação foi a invisibilização e silenciamento de diversos grupos. A ciência moderna ocidental, na medida em que se fez credível desacreditando os demais saberes, promoveu o que Boaventura de Sousa Santos (2005) denomina como o “desperdício da experiência”. A partir de
critérios de eficácia e racionalidade, a ciência deslegitimou saberes e práticas disponíveis na diversidade epistemológica do mundo transformando, portanto, em não-existência as alternativas ao seu modo de produzir conhecimento. Ao desqualificar práticas e saberes tornou invisíveis os sujeitos que os produzem. Nesse sentido, Santos (2005) propõe uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. A primeira tem como objetivo “transformar objectos impossíveis em possíveis, objectos ausentes em presentes” (Santos, 2005, p.21). Consiste na valorização daquilo que foi ocultado pela racionalidade única – a “monocultura dos saberes”, segundo o autor – da ciência
moderna.
Já
a
sociologia
das
emergências
“visa
ampliar
simbolicamente as possibilidades de futuro que residem, em forma latente, nas experiências sociais concretas” (Santos, 2005, p.33). Ao mesmo tempo em que as práticas disponíveis foram desconsideradas, as possíveis – as que existem como tendência – também o foram. Tendo esses e outros pressupostos teórico-metodológicos, realizamos a pesquisa-intervenção com alguns movimentos sociais e grupos de ações coletivas de Minas Gerais. Optei por me aproximar do “Coletivo Hip Hop Chama”, uma organização político-cultural do movimento hip hop e que se mobiliza em torno da promoção de ações com a juventude de periferia da região metropolitana de Belo Horizonte. Pudemos perceber que a juventude organizada, tanto no Coletivo Hip Hop Chama como no movimento hip hop produzem formas de participação política muito diversificadas, que vão além dos espaços formais, como os partidos políticos e órgãos representativos. Através do eixo arte-política o
movimento hip hop consegue mobilizar parte da juventude e sensibilizá-la para questões sociais como, por exemplo, as de raça e classe. Através da pesquisa com o Coletivo Hip Hop Chama, um dos dados que me levou a ver o “Duelo de MCs” como um alvo possível de interpelação e elaboração de um texto foi o fato de que é na própria festa que ocorre parte da articulação política daqueles/as jovens. O Duelo de MCs era recorrentemente citado como espaço/momento em que os/as integrantes do Coletivo Hip Hop Chama encontravam-se para, além de se divertir, saber sobre as atividades de um e outro em suas respectivas comunidades de origem, para trocar informações sobre os eventos e debates públicos que estavam ocorrendo na cidade e planejar futuras ações conjuntamente. A festa no hip hop é, ao mesmo tempo, espaço de sociabilidade – no sentido de que a relação com o outro tem um fim em si mesma: é o encontro, o estar junto com a galera, estabelecer laços (Dayrell, 2005) – e momento do exercício da criação, de intervir, mobilizar-se, debater, trocar informações, protestar. É possível dizer que essas iniciativas são possíveis na medida em que o contexto em que surgem é a sociedade urbana que, mesmo contendo em si processos de segregação e dispersão, possibilita o encontro e a reunião do diverso.
INTRODUÇÃO
Ocupar as ruas e, principalmente, os centros das cidades em que emerge parece dar sentido ao movimento hip hop. E foi ocupando a Praça da Estação e, mais tarde, o anfiteatro sob o Viaduto Santa Tereza que em 2007 teve início o “Duelo de MCs” em Belo Horizonte. Trata-se de uma iniciativa que propõe reunir os elementos1 do hip hop e sobretudo as “batalhas rimáticas” 2 travadas entre os Mestres de Cerimônia – MCs. Esses utilizam rimas em um jogo de improviso no qual o objetivo é vencer o MC adversário. O evento ocorre nas noites de sextas-feiras e é organizado a partir de um coletivo de jovens intitulado “Família de Rua”3. Ao mesmo tempo em que
o Duelo
de
MCs emerge como
espaço/momento importante para parte da juventude ligada ao hip hop reunirse e pensar possíveis mobilizações na cidade, aparece também como um “contra-uso” da cidade na medida em que mostra-se como uma resposta à forma hegemônica de produção do espaço, a saber, a capitalista. O Duelo de MCs vem se configurando como uma possibilidade de apropriação da cidade e contraria uma tendência que diz sobre a vivência em uma metrópole, como é o caso de Belo Horizonte. Essa, entre outras características, é marcada pelo ritmo acelerado de pessoas, mercadorias e informações em detrimento do encontro. Vivemos sob a imposição do fluxo e 1
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Os elementos referem-se as formas de expressão do movimento hip hop como, por exemplo, através da pintura (grafite), da dança (o break) e da música (o rap e a discotecagem). Os elementos serão detalhados no item 1.2. Termo utilizado pelos organizadores do Duelo de MCs para se referirem ao jogo de improviso com as palavras rimadas sobre as bases (ou batidas eletrônicas) elaboradas pelos DJs. O Coletivo Família de Rua é hoje o grupo que concentra as ações de mobilização para acontecimento do Duelo de MCs: pensando e planejando o formato e dinâmica da festa, estando a frente na negociação com a prefeitura, promovendo divulgação, ganhando centralidade ao conduzir a festa como MC apresentador, providenciando os equipamentos necessários etc.
nas grandes cidades impera a lógica do deslocamento: em função do trabalho e do consumo. Reproduzimos um modo de vida em que as possibilidades de apropriação dos espaços da cidade são reduzidas, uma vez que há tendência em nos atermos apenas ao ponto de partida e ao ponto de chegada (movidos, em geral, pelo deslocamento casa-trabalho). Na maior parte das vezes, o que está entre esses dois pontos é encarado como estranho e com significados reduzidos para os sujeitos que se deslocam e vivenciam os espaços geométricos (Damiani, 2000). Nesse processo de alienação do espaço, não nos reconhecemos na cidade e não a encaramos como obra, como espaço socialmente produzido e usado. Por mais que os sujeitos que participam do Duelo de MCs não escapem dessas determinações da metrópole, parecem buscar outras formas de se inserir na mesma. Além de parecer contrapor esse quadro de alienações que configura a vida na metrópole, o Duelo de MCs desmonta uma visão “adultocêntrica” 4 que toma a juventude como “desmobilizada” e que responde aos contextos sociais de forma “apática”. Ao contrário disso, o Duelo aponta para uma forma bastante criativa de se organizar e reivindicar o “direito à cidade” e a ocupação de seu centro. Pode ser considerado como uma tentativa de resistência na medida em que, contrapondo as ações dos planejadores que privilegiam a circulação em detrimento do encontro, esses/as jovens tomam parte da cidade para si de forma coletiva (o que não ocorre sem conflitos e contradições). 4
Termo que faz referência à expressão “etnocentrismo”, que é a forma de pensar e agir que toma uma determinada cultura como norma inferiorizando as demais. Da mesma forma, a utilização do termo “adultocentrismo” põe em questão a naturalização das relações hierárquicas entre jovens e adultos. Uma vez tidas como normas, as representações do mundo adulto passam a balizar as ações dos jovens encarando-as, por exemplo, como “desviantes”. A juventude, a partir dessa lógica, é desconsiderada e deslegitimada quando se trata do fazer político e da tomada de decisões. Portanto, o termo “adultocentrismo” traz a tona os debates acerca dos conflitos entre gerações e democratização da sociedade.
Remontando às origens do movimento hip hop, percebe-se que o mesmo tem a ocupação da rua como uma de suas características mais marcantes e a apropriação do espaço urbano pelos/as jovens que dele participam indica um dos traços políticos definidores do movimento: daí decorre a afirmação de que o hip hop elabora uma “cultura de rua” entre aqueles que executam seus elementos e também seus simpatizantes 5. Considerando que o hip hop, mesmo com as determinações da produção capitalista do espaço, possui uma tradição que diz sobre o uso e ocupação dos espaços públicos das cidades aonde se desenvolve, é que nos propomos investigar: quais as possibilidades e limites que o Duelo de MCs acrescenta para a elaboração de uma ”cultura de rua” do movimento hip hop? Quais as possibilidades de produção de um espaço público mais democrático, ou seja, um espaço que – entre outras características – não exclua um debate sobre as formas diversas de segregação e as possibilidades de apropriação? Pretendendo contribuir com as reflexões acerca da produção do espaço, da cidade e da vida urbana, o texto tem como objetivo identificar as formas de regulação do uso do espaço e analisar suas implicações na elaboração de uma “cultura de rua”. Para isso, as observações e impressões foram registradas em diário de campo. Esse recurso metodológico possibilitou o exercício de tentar inscrever aquilo que se passava durante as observações em campo. Além de observar como as pessoas interagiam entre si e com o espaço, foi importante fazer o exercício de tentar reconstruir por meio da escrita as falas e situações ocorridas com as quais tive contato. A observação aqui não exclui o uso dos 5
O termo “simpatizante” é utilizado por parte dos integrantes do hip hop para indicar aqueles/as que não executam nenhum dos elementos que compõem o movimento e que, mesmo assim, acompanham as manifestações do mesmo.
diversos sentidos ao centrar-se na visão. Pelo contrário, busca-se a superação dessa separação ao considerar todos os sentidos da percepção não se restringindo ao visível como recurso único na apreensão e crítica da realidade. O grupo utiliza uma ferramenta da internet – o blog6 – para divulgação e para registrar os momentos importantes, as conquistas, os conflitos, etc. Foi feita uma leitura de todo o conteúdo do blog e, a partir disso, uma súmula com marcos importantes sendo possível remontar parte da história da festa desde o seu surgimento. Há a preocupação em deixar registrado no blog as participações dos grafiteiros, das grafiteiras, DJs, grupos de rap e MCs e um link (quando possível) para contato com os mesmos, o que demonstra a preocupação e atenção dada ao fortalecimento do hip hop. Além das visitas a campo e o registro em caderno de campo, a leitura do blog contribuiu para a elaboração de questões para a pesquisa: a regulação do uso do espaço, por exemplo, é marcante nos registros feitos na internet. As imagens que compõem essa monografia, bem como os vídeos em anexo, foram extraídas do blog. Tendo em vista os objetivos da presente pesquisa, a análise do blog, entendido aqui como documento de registro da festa, guiou-se por categorizações a fim de identificar os conteúdos referentes à regulação do uso do espaço, cultura de rua e espaço público.
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http://duelodemcs.blogspot.com/
CAPÍTULO 1. HIP HOP A FAVOR DA RUA
O meu compromisso Ocupar o que é meu e não sair no prejuízo Faço da minha fé meu combustível E sei que quem não bota a cara fica invisível (“Junto e misturado” - MV Bill)
1.1. “Cultura de rua”, visibilidade e ocupação dos espaços públicos
Ao argumentar contra a rua, Lefebvre (1999) diz que “ela não é mais que a transição obrigatória entre o trabalho forçado, os lazeres programados e a habitação como lugar de consumo” (p. 31). Os significados atribuídos à rua são, portanto, reduzidos. Ordenada para o consumo, seu tempo é o da mercadoria – o que se vê são pedestres e automóveis apressados. A rua promove encontros superficiais e os sujeitos a procuram em busca de algo específico: a mercadoria (Lefebvre, 1999). Diante disso, como pensar sobre práticas desenvolvidas, por exemplo, pelos sujeitos que elaboram o hip hop, no qual a rua parece assumir um papel fundamental? Como explicar os laços afetivos que perpassam determinadas práticas sócio-espaciais e que acabam produzindo algum sentimento de pertencimento à cidade? Iniciativas como o Duelo de MCs vem demonstrando que determinados usos do espaço não passam, necessariamente, pela mediação da mercadoria. Então, que outras possibilidades a rua oferece? A rua é também lugar de encontro, ela possibilita a mistura da diversidade. Para Lefebvre (1999), além de informativa ela é também lúdica:
propicia o teatro espontâneo da vida. Seu movimento não precisa, necessariamente, ser ditado pela determinação do fluxo. Na rua, e por esse espaço, um grupo (a própria cidade) se manifesta, aparece, apropria-se dos lugares, realiza um tempo-espaço apropriado. Uma tal apropriação mostra que o uso e o valor de uso podem dominar a troca e o valor de troca (Lefebvre, 1999, p.30).
Vemos, portanto, que a rua é, ao mesmo tempo, limitação e possibilidade de surgimento de práticas como as que o hip hop desenvolve. Assim, desde o seu surgimento esse movimento esteve ligado à rua. Alguns bairros dos Estados Unidos viram surgir no final dos anos 1960 uma forma de agir coletivo que, aglutinando pessoas nos espaços púbicos (negros e latinos, principalmente), foi capaz de promover maneiras de apropriação do espaço urbano e enfrentamentos contra a discriminação e o racismo. Um dos marcos do movimento foi a criação da organização Zulu Nation 7. Ela pretendia a superação das divisões em gangues e disputas territoriais nos bairros pobres de Nova York em um contexto em que a ação policial contra os jovens negros era extremamente violenta. Além de reunir pessoas em torno do movimento hip hop que se iniciava, havia a intenção de substituir as disputas violentas das gangues pelas disputas no âmbito da criatividade artística. Apesar das questões raciais relativas ao povo negro norte-americano ganhar centralidade no movimento havia uma identificação forte dos latinos que compartilhavam experiências de opressão (Torres, 2005). O fato de o hip hop ter simbolizado a passagem da black music das casas noturnas às ruas compõe um dos traços marcantes da identidade hip 7
Organização criada nos anos de 1970 pelo DJ Afrika Bambaataa, que na ocasião havia perdido um amigo que, como muitos outros jovens negros dos bairros pobres de Nova York, fazia parte de gangues e foi morto por policias. Bambaataa pregava a não agressão interétnica e dizia que “irmão não mata irmão” (Torres, 2005).
hop: ter a rua como “palco” privilegiado diferencia o hip hop de outras expressões artísticas. Isso porque uma de suas intenções é colocar em debate uma série de questões como, por exemplo, o racismo e a repressão violenta de policiais. Levar essas questões a público significa a possibilidade de ser visto e ouvido (Arendt, 1983). Além disso, a ocupação da rua significava a ampliação do acesso aos/às jovens pobres que não podiam frequentar as casas noturnas em Manhattam. No Brasil observa-se o mesmo movimento: a juventude saiu às ruas dando visibilidade ao hip hop e seus elementos (o break, o grafite, o rap e a discotecagem). Esse deslocamento do baile para a rua, do espaço fechado até certo ponto privado dos bailes, para o espaço público é o traço distintivo do hip hop frente a outros estilos: o hip hop defini-se necessariamente e diacriticamente como cultura de rua e orgulha-se disso (Torres, 2005, p.104).
Marco do movimento hip hop no Brasil é a ocupação da Estação de Metrô São Bento, no centro da metrópole de São Paulo. O local era rota de passagem de trabalhadores de distintas regiões, o que facilitava o encontro. Devido às reuniões periódicas para manifestação do hip hop, a estação virou ponto de referência de vários jovens. Foi da ocupação da Estação São Bento que surgiram as primeiras negociações entre poder público e movimento hip hop no Brasil (Torres, 2005). Em Belo Horizonte, nos anos de 1980 e 1990, os grupos também foram progressivamente ocupando vários espaços da cidade. Alguns desses são citados por Torres (2005): o edifício conhecido como “Palomar” (na Avenida Afonso Pena), o Terminal Turístico JK, Praça da Savassi e Praça da Liberdade – todos esses no centro da metrópole. O fato das ocupações acontecerem
nesses espaços específicos reflete duas motivações dentro do hip hop: ocupar espaços de grande visibilidade nas cidades e possibilitar/facilitar a confluência de sujeitos das diversas regiões. Sobre a origem do hip hop no Brasil, Torres (2005) chama a atenção para o fato de que em São Paulo, como em outros locais onde emergiu o hip hop a reunião de jovens de periferia – sobretudo negros e migrantes de primeira e segunda gerações – e sua apropriação de espaços públicos de grande visibilidade, sua saída dos espaços segregados, onde até então circulavam nos seus tempos de lazer, causaram bastante incômodo. O comércio local se mobilizou contra suas aglomerações e tornaram-se freqüentes as batidas e repressões policiais (p.104).
A rua guarda em sim um potencial de mobilização e transgressão tão forte que sua utilização torna-se uma ameaça às prescrições diversas e às instituições que as criam. Por isso, a rua é também repressão, seu uso é controlado. Principalmente quando os sujeitos que a ocupam são jovens – comumente associados a atitudes desviantes – principalmente negros e pobres e que elaboram formas de expressão como as do hip hop: que pretendem, em alguma medida, ser uma provocação e denúncia.
1.2. Quando a rua “te chama”
São três os elementos constituintes do movimento hip hop: a música rap8 representada pelos/as MCs (Mestres de Cerimônia) e DJs (disc jockey), a 8
O rap vem do termo em inglês rhythm and poetry, ou seja, “ritmo e poesia”. Torres (2005) identificou na versão belorizontina uma outra definição para o termo rap: “revolução através das palavras”. Quem canta a música rap é identificado como MC (Mestre de Cerimônia) ou rapper.
pintura executada pelos/as grafiteiros/as e, finalmente, o break, que é a expressão corporal dos b-boys e b-girls através da dança. Tella (2006), assim como Torres (2005), aponta que a arte no hip hop significa um engajamento político daqueles/as que executam seus elementos e este seria um dos traços marcantes do movimento: uma forma de expressão artístico-política. Torres (2005) entende que os elementos do hip hop transcendem a esfera estética na medida em que incorporam as dimensões cognitiva, normativa e política. Essas dimensões são mobilizadas em torno de comportamentos idealmente valorizados pelos/as integrantes do movimento sendo o hip hop, portanto, uma instância de formação para os/as jovens. Silva (1999) e Torres (2005) identificam que, nas suas diferentes formas de expressão, os três elementos são práticas essencialmente urbanas e constituem uma forma peculiar de apropriação deste espaço: eles ganham sentido nas ruas. Rosa (2004) define o rap como “uma manifestação da linguagem falada incorporada a uma melodia que trabalha uma base rítmica repetitiva. A batida é a grande mola propulsora do discurso – são as histórias narradas” (p. 1). Duarte (1999) aponta que o estilo rap forja uma literatura para si na medida em que não pretende enquadrar-se em padrões alheios. O rap é identificado por Torres (2005) como uma crônica social, um texto que tem um caráter de denunciar aspectos cotidianos da vida na periferia: uma “arma” político-expressiva da juventude. E é justamente na rua que o rap consegue fazer valer algumas das funções que arroga para si: dar voz aos “excluídos”, denunciar, protestar, fazer circular informação etc. Apesar de já ter sido incorporado por parte da “indústria cultural”, o rap ainda se sustenta a
partir de uma rede paralela e marginal que se dá na rua: CDs são gravados e distribuídos pelos próprios rappers e MCs. No Brasil predomina o “rap de conscientização”: há o propósito de denúncia e questionamento. Pretende suscitar reflexões acerca das relações étnico-raciais, das experiências de exclusões múltiplas dos jovens pobres no espaço urbano, a violência policial, o processo de juvenilização da violência, entre outros temas (Silva, 1999; Torres, 2005; Tella, 2006). Silva (1999) aponta para o fato de o rap cumprir um papel que a escola, na maior parte das vezes, não dá conta: promover reflexões em torno da própria condição social e possibilitar a construção da autonomia – tendo em vista a possibilidade de fazer escolhas e responsabilizar-se pelas decisões. Vemos que em terras brasileiras o rap ganha contornos muito próprios, ele não é mera reprodução de um modelo externo norte-americano. Em certa medida, o rap brasileiro consegue reverter alguns estigmas comumente produzidos acerca dos jovens pobres e negros que vivem em favelas (Tella, 2006). Nesse sentido, Silva (1999) aponta que o conhecimento sobre a “diáspora negra” e a realidade dos negros na América tornou-se fundamental para a construção discursiva do rap. Através da afirmação da negritude e de símbolos de origem africana reelaboraram uma imagem do ser negro entre os/as jovens de periferia: a experiência de exclusão é tomada como objeto de reflexão sendo possível a crítica ao mito da democracia racial no país (Silva, 1999). A base musical para a expressão desse arsenal artístico-político que é o rap é a discotecagem feita pelos/as DJs. Estes/as artistas elaboram estruturas
rítmicas e harmônicas a partir da técnica de bricolagem sonora 9, que expressa um posicionamento de se apropriar daquilo que já existe e que, incorporado ao novo, recebe outros contornos. Há os grooves (seqüência musical) e scratchs (efeitos provocado pelo giro do disco no sentido contrário) (Azevedo; Silva, 1999). É comum a utilização de músicas de artistas negros norte-americanos e brasileiros. São recorrentes as colagens com o som de Tim Maia, Jorge Ben, Gérson King Combo e James Brown (Azevedo; Silva, 1999). Assim como o discurso rap, a dança break acompanha as batidas dos DJs. Discutindo sobre origem do break, Geremias (2006) relaciona os passos da dança a algumas imagens associadas à Guerra do Vietnã: alguns movimentos remetiam à ação dos helicópteros e à mutilação sofrida pelos soldados que, em sua maioria, eram negros e latinos. Segundo Duarte (1999), o break revela uma tentativa de imposição de uma determinada forma de viver o espaço urbano discriminador: no break “o corpo se expõe, não se retrai, não se esconde” (p.20). Ele “contrapõe-se exatamente a essa disciplinarização dos corpos imposta pela mesma sociedade que segregou todas as manifestações culturais negras” (p.20). Em meio à pulverização de anúncios publicitários o grafite se faz presente nas metrópoles compondo sua paisagem. Pennachin (2004) entende que os grafites “representam não apenas uma tentativa de fazer parte do cenário das metrópoles, como também evidenciam a necessidade de se retratar demandas e especificidades advindas da própria vivência urbana” (p.8). Para a autora, os grafiteiros e grafiteiras devolvem à cidade suas experiências de espaço-tempo proporcionadas pelo urbano. 9
Combinam-se trechos de músicas já gravadas com baterias eletrônicas: a música ganha uma nova configuração.
Os grafites subvertem a ordem imagética da cidade na medida em que “apropriam-se de espaços públicos e desrespeitam os limites impostos pelas propriedades
privadas,
unidades
básicas
da
organização
urbanística”
(Pennachin, 2004, p.13). Além de competir com outros signos na paisagem urbana e disputar o olhar do transeunte, a pintura acontece em um espaço conquistado sobre o qual os/as grafiteiros/as têm clareza de sua provisoriedade (Duarte, 1999). Para Pennachin (2004), os/as grafiteiros/as lançam um olhar diferenciado ao urbano na medida em que seus deslocamentos e o que está entre o ponto de partida e chegada não são vazios de significados, são alvos possíveis de intervenção. Pennachin (2004) acrescenta que, mesmo com a aceitação crescente do grafite como arte e sua conseqüente transposição das ruas para as galerias, os/as grafiteiros/as ainda tem a rua como “palco” privilegiado. Talvez as galerias esvaziem o sentido da “intervenção urbana”, cara ao movimento hip hop. Estar em uma galeria de arte pode significar a perda de espaços conquistados, substituídos por espaços concedidos. Vemos, portanto, que todos os elementos pretendem tecer algum tipo de diálogo com as/a partir das ruas: seja através da dança, da música ou dos traços da pintura. Apesar de o hip hop promover uma afirmação atribuindo significados positivos às comunidades de origem de seus/suas participantes – geralmente as áreas periféricas das grandes cidades – não exclui a possibilidade de ocupação dos centros e espaços de grande visibilidade. Pelo contrário, parece reivindicar o direito à cidade pela ocupação de seu centro.
1.3. Duelo de MCs: expressão da “cultura de rua” em Belo Horizonte
É a tradição do hip hop na qual a rua é o espaço privilegiado que possibilita manifestações como o Duelo de MCs em Belo Horizonte. Sua primeira edição ocorreu em agosto de dois mil e sete. A festa começou a ser pensada por um grupo de jovens que se mobilizou em torno da “Liga de MCs” (um evento nacional de disputas entre MCs e que teve uma etapa eliminatória em Belo Horizonte.)10. Pouco tempo depois se formou o Coletivo Família de Rua que, entre outros projetos, começou a concentrar as ações em torno do Duelo de MCs. Esse coletivo faz a divulgação, dialoga com a prefeitura, faz registros áudio-visual e escrito, viabiliza equipamentos, apresenta as batalhas e promove eventos para arrecadação de verba para a realização do Duelo de MCs. Segundo as postagens do Coletivo Família de Rua no blog, o Duelo de MCs, apesar de não deixar de lado a afirmação do lúdico, pretende ser mais que um ponto de encontro ou uma festa: há uma intenção de dar visibilidade e fortalecer o movimento hip hop em Belo Horizonte. Como aponta Dayrell (2005), a fragilidade da cena cultural da cidade expõe a própria fragilidade das redes sociais com as quais os jovens podem contar no processo de construção como sujeitos. “Estão sozinhos: sem as instituições do mundo adulto, a escola ou o mundo do trabalho, sem políticas públicas, principalmente culturais” (p.66). Tendo esta situação como pano de fundo, o Duelo de MCs é fruto de
10
Na etapa de Belo Horizonte da Liga de MCs o MC Simpson saiu vencedor e foi disputar a final em São Paulo, em dezembro de dois mil e sete. Simpson acabou vencendo a etapa nacional, o que deu maior visibilidade ao hip hop mineiro e ao Duelo de MCs em Belo Horizonte.
uma organização formada por jovens da cidade e que pretende fomentar as produções culturais no movimento hip hop. Nas palavras do grupo: Mais do que um espaço destinado à promoção de batalhas, travadas através do improviso, o “Duelo de MC’s” é uma iniciativa que visa o fortalecimento da cultura hip hop de Belo Horizonte e região. Por aqui, a falta de organização e investimento são alguns dos fatores que impedem a evolução da cultura e dos artistas locais. Diante desse quadro, nada mais oportuno que a criação de um projeto, sem fins lucrativos, no qual Mestres de Cerimônia (MC’s) protagonizem saudáveis disputas, mostrando habilidades de raciocínio e intimidade com as palavras. Além disso, o Duelo é uma realização que permite a b.boys, b.girls, deejays, grafiteiros, grafiteiras, skatistas ou a qualquer pessoa se divertir, conhecer gente nova, trocar informação, conhecimento e muito mais (Postado no blog em 14/04/2009).
Além do termo duelo, são recorrentes as expressões batalha, disputa e adversário. Remetem a proposta inicial do hip hop, que propunha a substituição da rivalidade violenta entre gangues e dos conflitos inter-étnicos nos bairros de Nova York pelas disputas que incentivassem a criatividade nas rodas de dança e improvisação de rimas (Torres, 2005). Inicialmente essas batalhas ocorriam na calçada do “Projeto Miguilim” na Praça da Estação (Projeto da Prefeitura de Belo Horizonte extinto em 2008) e depois migraram para debaixo do Viaduto Santa Tereza, em frente à Serraria Souza Pinto. Um dos motivos para a mudança é que no anfiteatro debaixo do viaduto o Duelo fica protegido da chuva. O Duelo de MCs possibilita novos usos para estes espaços que, no dia-a-dia, são utilizados como local de passagem de trabalhadores e “abrigo” de pessoas em situação de rua. Os primeiros encontros contavam com um número reduzido de pessoas, que eram em sua maioria MCs. Algum tempo depois, mais precisamente na 6ª edição do Duelo, as batalhas começaram a ser “embaladas” por DJs e os MCs puderam contar com o uso de microfones. O incremento técnico deve-se mais
a algumas parcerias com sujeitos e grupos envolvidos com o movimento hip hop do que o fomento por parte da prefeitura ou retorno financeiro da iniciativa (o evento é gratuito, conta apenas com contribuição voluntária). O Duelo de MCs possui regras próprias: em caso de agressão física, rimas machistas, homofóbicas e/ou racistas há desclassificação. No ato da inscrição o MC paga o valor de dois reais e é advertido sobre as regras, o que nem sempre inibe a ocorrência de discriminações nas batalhas. Segundo registros no próprio blog do Duelo de MCs, situações desse tipo já causaram desconforto e constrangimento durante as batalhas. Os MCs têm 45 segundos para mostrarem habilidade com as palavras e raciocínio rápido. As rimas devem ser bem elaboradas e o MC deve mostrar um vasto vocabulário e criatividade. Os MCs improvisam as rimas em cima dos beats dos DJs, mas a ausência de equipamentos eletrônicos não impede a realização das batalhas. O ganhador recebe como troféu uma lata de spray (decorada e disponibilizada por grafiteiros que contribuem com o evento – Figura 2 em anexo) e levam ainda toda a quantia arrecadada no ato da inscrição. Com o passar dos meses, o Duelo de MCs foi agregando mais pessoas envolvidas com o hip hop e também simpatizantes ao movimento. Hoje ele consegue reunir jovens de diferentes regiões da grande Belo Horizonte como, por exemplo, Ibirité, Santa Luzia, Sabará. Há uma forte identificação no hip hop com a “quebrada”, ou seja, o local de moradia ou de atuação. A zona leste da cidade tem uma cena hip hop bem forte e marca presença constante no Duelo de MCs, como no caso do bairro Alto Vera Cruz. Outras “quebradas” também deixam sua marca, como a comunidade Morro das Pedras, Vila São José e o
bairro Serra. O Duelo já contou com a participação de MCs e apresentação de grupos de rap de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Curitiba. Não somente os DJs e MCs têm espaço no Duelo, há espaço para expressão dos outros elementos do hip hop: os/as grafiteiros/as e os b-boys e b-girls são figuras sempre presentes. Além de acontecer todas as sextas-feiras debaixo do Viaduto Santa Tereza, o Duelo de MCs é também itinerante. Já integrou outros eventos e ocupou outros espaços públicos como, por exemplo, o Teatro Francisco Nunes em outubro de dois mil e sete ao participar do “Hip Hop in Concert”. No mesmo ano participou do 4º festival de Arte Negra – FAN – e em 2008 da 1ª Bienal Internacional de Grafite – BIG. Neste último ocorreu uma situação interessante para pensarmos o significado da rua para o hip hop. As batalhas entre os MCs deveriam ocorrer dentro da Serraria Souza Pinto – onde a Bienal Internacional de Grafite estava sediada –, mas devido à repentina proibição da entrada de pessoas para dentro do galpão, os organizadores do Duelo decidiram desmontar a aparelhagem e continuar a festa do lado de fora do evento: na rua. Voltaram para debaixo do Viaduto Santa Tereza aonde então deram continuidade às batalhas entre os MCs. No blog também é possível encontrar trechos que remetem e reafirmam esse caráter “de rua” do hip hop: [O Duelo de MCs] Trata-se de um projeto que tem como um de seus maiores objetivos celebrar a cultura hip hop belohorizontina, proporcionando-lhe um espaço democrático de convivência. Esse espaço é a rua (Postado no blog em 30/07/2008).
O Duelo continua firme em seu propósito inicial – celebrar as manifestações artísticas de rua em seu habitat natural (Postado no blog em 25/22/2008).
O próprio nome do grupo que organiza o Duelo de MCs faz referência à rua – Coletivo Família de Rua. Além disso, o fato de se afirmarem como coletivo revela uma tentativa de estabelecer relações mais horizontais dentro do grupo.
CAPÍTULO II. REGULAÇÃO E APROPRIAÇÃO: SOBRE POSSIBILIDADES E LIMITES
2.1. Atitude hip hop como mecanismo de regulação interna
Em abril de dois mil e oito o Coletivo Família de Rua conseguiu um alvará permitindo a realização do Duelo de MCs. Desta forma, o evento passou a contar com banheiros químicos, iluminação e energia para o funcionamento dos toca-discos e microfones. Até então os equipamentos funcionavam a partir de um gerador conseguido pela organização do Duelo. Além dessas mudanças mais visíveis, o alvará aproximou Coletivo Família de Rua e prefeitura, o que acarretou no aumento da regulação do uso do espaço. [...] diante desse novo cenário [aquisição do alvará], as responsabilidades aumentam. Portanto, vale lembrar mais uma vez, que é preciso haver uma sintonia entre organização, artistas e público, para que o projeto evolua cada vez mais e não se desvirtue. A cooperação deve ser mútua, porque as conquistas não são de duas, três ou quatro pessoas, mas são de todos, são da cidade. O espaço é público e deve ser ocupado e utilizado com responsabilidade (postado no blog em 24/04/2008).
As visitas a campo e também a análise do blog mostram que esse aumento das responsabilidades se traduz no cerceamento das ações na ocupação do anfiteatro do Viaduto Santa Tereza. Quais os significados dessa regulação e no que ela implica na elaboração de uma “cultura de rua”? A ocupação da rua via Duelo de MCs está acontecendo a partir de quais parâmetros de regulação? Que lugar ganha a rebeldia e os contra-usos da metrópole caros ao movimento hip hop?
Desde a concessão da prefeitura, o Coletivo Família de Rua desenvolve uma espécie de “campanha educativa” sobre o uso do espaço público. O MC responsável por conduzir o Duelo de MCs, entre uma batalha e outra, chama atenção das pessoas presentes sobre o uso de drogas no local, sobre a limpeza do mesmo e sobre o comportamento das pessoas, principalmente, tendo em vista ações que o grupo julga como “individualistas”. No blog é recorrente menções acerca do uso do espaço: Nesta semana surgiu outra questão na pauta de assuntos a serem discutidos sobre o Duelo. Na última sexta (dia 05/10), após o término da sétima edição, notou-se um grande número de garrafas, latas e papéis espalhados pelo chão da Praça da Estação, principalmente no local onde ocorrem as batalhas (Postado no blog em 10/10/2007). [...] vale alertar: ao sair de casa, não olhe somente para o seu umbigo, não pense somente no seu prazer individual. Lembre que você vive em comunidade, e que o seu comportamento influencia o comportamento do seu próximo. Consciência! Principalmente em relação às drogas e bebidas (Postado no blog em 03/07/2008).
Apesar de concentrarem as atividades no que tange a organização do Duelo de MCs, o Coletivo Família de Rua preocupa-se em reafirmar que a ocupação do anfiteatro acontece de forma coletiva e a continuidade do evento não depende apenas de quem o organiza, mas também daqueles que dele participam de outras formas, assistindo ou fazendo batalhas de rimas. O grupo tenta sensibilizar através da idéia de conjunto: “Entenda conjunto como a relação: organização/artista/público/colaboradores, que se empenham para ver o sucesso da empreitada” (postado no blog em 01/05/2008). No caso específico do uso de drogas, a postura do MC que está à frente do palco conduzindo a apresentação das batalhas parece não ser a de
recriminar o uso em si, mas chamar atenção para o fato de que naquele local o uso de drogas ilícitas pode prejudicar a continuidade do Duelo de MCs. O MC que conduz o Duelo, antes de começar as disputas, falou sobre a possibilidade de perderem a licença concedida pela Prefeitura para o uso daquele espaço. A principal justificativa era o uso de drogas durante o Duelo. O mestre de cerimônias pediu a colaboração de todos para que não fizessem uso de “maconha, loló, pó e qualquer outro tipo de drogas ilícitas”. Ele disse que se lamentava pelo fato de não poderem “fumar um beck na boa”, mas que para continuarem realizando o evento essa restrição seria imprescindível (caderno de campo, 19/09/2008).
A campanha de conscientização acerca do uso do espaço – o anfiteatro sob o Viaduto Santa Tereza – não apresentou resultado satisfatório para o Coletivo Família de Rua, que no dia dezessete de abril de dois mil e nove não realizou o Duelo de MCs. Os organizadores colocaram uma faixa com os dizeres: “Devido ao grande descaso em relação ao uso de drogas, limpeza, integridade do espaço e a falta de respeito com o movimento hip hop, a Família de Rua se põe de luto”. O apelo aos freqüentadores do Duelo de MCs, segundo o Coletivo Família de Rua, teve o intuito de sensibilizar e “despertar algum tipo de sentimento naqueles que curtem, gostam, admiram, participam e freqüentam os encontros das noites de sexta” (Postado no blog em 15/04/2009). Sobre a decisão de não realizar o Duelo de MCs durante três semanas consecutivas eles registraram no blog que é importante ficar claro que a FDR [Família De Rua] não tem e nunca teve a menor intenção de agir de forma arbitrária ou antidemocrática no que tange a realização do Duelo. Muito pelo contrário. A posição do Coletivo [Família de Rua] é de quem se preocupa com a integridade do projeto, justamente porque entende que o espaço é de todos e para todos, portanto, ele deve ser respeitado e preservado por todos (Postado no blog em 24/04/2009).
Os termos utilizados nessa espécie de “campanha educativa” como, por exemplo, consciência, integridade, responsabilidade e a preocupação de que o movimento debaixo do viaduto não se desvirtue são desdobramentos da idéia compartilhada dentro do hip hop que se refere à atitude (Torres, 2005): esperase determinado comportamento ligado a “atitude hip hop”. Os grupos que se formam tendo em vista a elaboração do hip hop têm uma preocupação em relação à formação de cada um dos sujeitos envolvidos e a “tomada de consciência” parece ser um diferencial central na construção identitária do grupo. O interessante é as pessoas entenderem e tomarem consciência de que o Duelo de MCs está ocupando e, mais do que isso, conquistando aquele espaço. Por isso, é preciso que haja o mínimo de respeito para com ele. Existem dezenas de lixeiras em volta da praça, portanto, pedir que as pessoas joguem uma latinha, uma garrafa ou um pedaço de papel no lixo após o consumo ou a leitura – no caso dos panfletos, não é pedir demais. Vamos ficar ligados, para que amanhã ou depois o hip hop não perca as oportunidades que tem, por conta de seus próprios integrantes, e seja novamente taxado de movimento de marginais e baderneiros (Postado no blog em 10/10/2007).
Apesar da preocupação de não serem vistos publicamente como “marginais” e “baderneiros”, há um outro componente incorporado à construção identitária no hip hop que é a diferenciação do outro identificado como “playboy”: O “playboy” pode ser aquele visto como “rico”, e aí egoísta e mesquinho, um “filhinho de papai” que valoriza apenas a aparência. Mas também é um estado da mente, sendo aquele “folgado”, ou seja, orgulhoso, que não respeita as regras de convivência, que quer ser melhor do que os outros. Com a categoria “playboy”, demarcam posições (Dayrell, 2005, p.117).
A concepção do “playboy” passa pela negação, por exemplo, do espectador-consumidor: aquele que não se propõe a refletir sobre as
mensagens que os MCs tem a dizer, mas está ali apenas consumindo mais um “produto cultural”. O Coletivo Família de Rua parece querer deslocar os participantes
desse
lugar,
já
que
ele
remete
a
uma
isenção
de
responsabilidades, na medida em que o consumidor parece não ter relação ética – no caso a “atitude hip hop” – e afetiva nem com o espaço público nem com o movimento hip hop. Ocupar os espaços
públicos da
cidade
está
no
limiar entre
baderneiro/marginal e “playboy”/consumidor. Observa-se, portanto, que é gerida dentro do próprio movimento um tipo de regulação das ações que tem como mote a idéia de atitude: a “cultura de rua” do hip hop, apesar de ter como uma de suas características o apreço à espontaneidade já que lida com a criação, é também perpassada por alguns tipos de prescrição da conduta. Esse “comportamento esperado” incide até mesmo no desempenho do MCs que duelam com seus adversários: [...] a organização do Duelo de MCs julgou necessária a criação e a veiculação de algumas regras, que não têm a intenção de controlar, mas de orientar os MCs inscritos nas batalhas. A medida surgiu devido ao rumo que os embates estavam tomando no que diz respeito ao comportamento e a linguagem utilizada pelos mestres de cerimônia. [...] (Postado no blog em 10/10/2007). Não se trata de ser chato, taxativo ou repressor, mas o Duelo de MCs é conduzido por algumas regras, que precisam ser cumpridas, para que o projeto caminhe sem maiores dificuldades. [...] As regras não têm a intenção de reprimir a liberdade do MC, mas sim de evitar a confusão, a ofensa e a repulsa. O propósito é que os mestres de cerimônias consigam mostrar seu talento e habilidade com as palavras e, ao mesmo tempo, respeitar as diferenças e o próximo (Postado no blog em 18/03/2008).
Há uma tensão entre não serem “repressores”, “controladores”, “chatos”, “restritivos” e, ao mesmo tempo, não deixarem que algumas propostas do hip
hop sejam esquecidas. Apesar de, em vários momentos, afirmarem que a ocupação do anfiteatro é coletiva, em alguma medida o Coletivo Família de Rua incorporou a responsabilidade de tudo o que acontece no Duelo de MCs. Assim, o MC que está a frente conduzindo as apresentações acaba ocupando o lugar do outro para a juventude, ou seja, aparece como a figura do pai, da mãe, do professor, da professora, do patrão e de tudo o que, de alguma forma, representa impedimento à existência/realização como jovem. As questões referentes à raça, diversidade sexual e machismo – incorporadas ao discurso hip hop, mas não necessariamente traduzidas em novas práticas – são exemplos de algumas dessas propostas das quais o movimento hip hop, segundo o Coletivo Família de Rua, não pode desvirtua-se. Parece haver, ainda que no discurso, uma preocupação por parte dos organizadores em incentivar o uso do espaço público de forma que não constranja determinados grupos sociais ampliando, assim, as possibilidades de apropriação. Ao mesmo tempo em que percebemos a elaboração de regulações internas, gestadas entre os/as jovens do movimento hip hop, é preciso pensar em que medida alguns mecanismos dessa regulação interna são determinados ou têm como parâmetros a regulação externa – entre Prefeitura e Coletivo Família de Rua. Como as prescrições e a regulação do Estado incidem sobre a ocupação do anfiteatro sob o Viaduto Santa Tereza? As práticas do Coletivo Família de Rua podem reproduzir as formas dominantes de conceber o que é ou deve ser a ocupação do espaço público?
2.2 Estado como regulação externa e interna
O
espaço
é
uma
realidade
relacional:
é, ao
mesmo
tempo,
coisas/objetos e relações juntas, estas se realizando sobre aquelas. Ele é o resultado das ações dos sujeitos sobre ele mesmo. Dessa forma o espaço é, além de produto, meio e condição para reprodução da sociedade (Santos, M., 1996). Ele é totalidade, mas para fins de análise há possibilidade de fragmentálo. Sua divisão em partes pode se dar de variadas formas, mas Milton Santos (1985) propõe a partir dos “elementos do espaço”. “Os elementos do espaço seriam os seguintes: os homens, as firmas, as instituições, o chamado meio ecológico e as infra-estruturas” (Santos, M. 1985, p.6). Esses elementos estão em constante interação e seus “papéis” mudam de acordo com cada momento histórico. O Estado, como instituição, produz ordens, normas e legitimações (Santos, 1985), ele é um dos agentes produtores do espaço. Segundo Corrêa (2002), o Estado capitalista é, entre outras coisas: grande industrial, consumidor de espaço e de localizações específicas, proprietário fundiário e promotor imobiliário, sem deixar de ser também um agente de regulação [...] e alvo dos chamados movimentos sociais urbanos (p.24).
A produção do espaço
urbano
passa, necessariamente, pelas
determinações que o Estado – na relação com os outros elementos do espaço – nos coloca. Essa produção do espaço urbano deve ser entendida como a produção da vida cotidiana das pessoas, refere-se às atividades diversas (como o trabalho e o lazer) e a materialização espacial das mesmas. Como instituição, o Estado tende a reproduzir a sociedade que o criou e o legitima. Sendo assim, cria normas e prescrições que garantam essa reprodução.
A atuação do Estado se faz, fundamentalmente e em última análise, visando criar condições de realização e reprodução da sociedade capitalista, isto é, condições que viabilizam o processo de acumulação e a reprodução das classes sociais e suas frações (Corrêa, 2002, p.26).
Nesse sentido o uso dos espaços públicos é controlado e os sujeitos subordinados à regras institucionais: o Estado impõe limites que incidem sobre as possibilidades de apropriação desses espaços. Isso não quer dizer, contudo, que não haja usos imprevisíveis e que tentem transgredir as normas institucionais: A cidade é também lugar dos conflitos que surgem como reivindicação, ou em torno da luta pelo direito à cidade, obrigando-nos a considerar, em sua radicalidade, a transformação da sociedade porque este é o conteúdo do direito à cidade. Nessa condição, “direito à cidade”, introduz o negativo – a revolta da sociedade contra aquilo que segrega, afasta, impede a realização da vida na cidade, e com isso a interrogação sobre a realidade como condição para a construção de um projeto futuro (Carlos, 2005, p. 227-228).
No Brasil, as primeiras aproximações entre movimento hip hop e Estado se deram a partir das ocupações da Estação de Metrô São Bento em São Paulo (Torres, 2005). Essa “aproximação” aconteceu de forma violenta, através de severa repressão policial. Mais tarde, diante da resistência dos sujeitos em ocupar aquele espaço, a prefeitura se propôs a “negociar” com o movimento. Sabemos que as relações que visam esse tipo de negociação são marcadas por profundas assimetrias de poder. A reivindicação desses espaços, em geral, deixa o campo do direito – direito à cidade e a ocupação de seu centro – e passa pelo campo da concessão. Assim, como lembra Lefebvre (1999), trata-se de uma aparência caricata de apropriação e de reapropriação do espaço que o poder autoriza quando permite a realização de eventos nas ruas [...] Quanto à verdadeira apropriação, a da “manifestação” efetiva, é combatida pelas forças policiais repressivas, que comandam o silêncio e o esquecimento (p. 31).
O caráter de concessão modifica os usos e os significados atribuídos aos usos na medida em que o sentido da intervenção, da apropriação espontânea
e
da
transgressão
são,
como
indica
Lefebvre
(1999),
“caricaturizados”. É excluída a possibilidade da ação, entendida como atividade política, já que ao invés da ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a “normalizar os seus membros, a fazê-los “comportarem-se”, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada (Arendt,1983, p.50).
Não é somente a presença do Estado através do alvará e da Polícia Militar11 que promovem a coerção daqueles que usam o anfiteatro debaixo do Viaduto Santa Tereza: ao reproduzir certos discursos o Coletivo Família de Rua torna o Estado sempre presente. Por mais que o Duelo de MCs apareça como uma forma de a juventude se mobilizar em torno do direito à cidade e produzir formas de utilização do espaço público muito próprias, ao incorporar os discursos dominantes acaba reafirmando a hegemonia do Estado no controle sob o uso dos espaços. Os termos “baderna” e “marginalidade”, utilizados pejorativamente pelo Coletivo Família de Rua, revelam como alguns parâmetros do que é ocupar um espaço público são reproduzidos mesmo quando há um discurso pela subversão e tentativa de contrariar a lógica dominante de reprodução do espaço urbano. Esses termos compõem um discurso que tem como parâmetro 11
A Polícia Militar de Minas Gerais têm um “posto” localizado em frente ao palco no qual acontecem as batalhas entre os MCs. “Os policiais observam de longe, as vezes circulam entre algumas pessoas que estão na rua – não chegam a adentrar o anfiteatro. Nunca os vi fazendo “batida” ou abordando alguém. A presença da polícia não inibe o uso de drogas. Hoje, bem próximo de mim, um grupo composto apenas por homens fazia uso de maconha e não pareciam se importar com a presença dos policiais” (Caderno de campo – 06/02/2009).
pressupostos muito restritos do que é, por exemplo, participação política, ações coletivas, ocupação do espaço público, juventude etc. Utilizá-los pode significar, contraditoriamente, uma incorporação de um discurso que tem como meta coibir manifestações que não sejam previstas – e nesse sentido, passíveis de controle – pelo Estado. Vemos que essa aproximação com o poder público – visto como conquista por alguns movimentos sociais e grupos de ações coletivas – não significa, necessariamente, a ampliação das possibilidades de produção de um espaço urbano mais democrático e participativo. Ao contrário, pode significar, em alguma medida, limites na produção de “usos mais efetivos” e “verdadeira apropriação” (Lefebvre, 1999).
2.3. “Ali todo mundo é igual”?
Afinal de contas, como já foi dito: “Ali, todo mundo é igual”. (Postado no blog em 30/07/2008)
Além das regulações internas ao hip hop e das regulações institucionais, consideramos também uma forma de coerção e impedimento à realização dos sujeitos nos espaços públicos as ações que invisibilizam e deslegitimam a participação das mulheres no Duelo de MCs. Historicamente as mulheres estiveram excluídas da participação política “porque seus deveres domésticos e de cuidados com as crianças eram vistos como impedimento” (Scott, 2005). Dessa forma, aos homens caberia a esfera pública e à mulher a esfera privada.
A diferença biológica entre os corpos femininos e masculinos é a justificação indiscutível para a diferença socialmente construída entre os sexos, ou o sexismo que, [...] pretende mostrar as diferenças sociais historicamente instituídas pela natureza biológica, deduzindo daí as relações de dominação. Essa justificação natural faz com que as mulheres tragam, impressos em seus corpos, os produtos da relação de dominação [...] (Lima, 2005, p.49).
As diferenças convertidas em desigualdades produziram exclusões, hierarquias econômicas e sociais e favorecimento dos homens em detrimento das mulheres. A representação da rua, por exemplo, foi associada à presença masculina. A presença das mulheres no hip hop, desde o início de sua elaboração, tenha sido diminuta: além de aparecerem em menor número, as que conseguem romper com algumas determinações sociais são invisibilizadas e deslegitimadas. Lima (2005) identifica que nas músicas rap, de uma maneira geral, há associação das mulheres à imagem depreciativa da “vadia”, de um lado, e a imagem idealizada da mãe, a “guerreira”, de outro. A primeira marcada pela “vida fácil” e a segunda pela “vida difícil”. Há ainda, mas em poucos casos, a imagem da companheira, que assim como a mãe recebe significação positiva, mas a ela cabe o papel de coadjuvante da vida dos rappers e seu espaço de atuação é o lar, o espaço privado, cuidando dos filhos – tendo como padrão normativo do ser mulher a mãe “guerreira e sofrida”. Apesar de se apresentar como uma cultura que se diz antisistema e de resistência, o hip hop ainda conserva o ranço machista de uma sociedade em que os rappers dizem não acreditar. A maior parte das letras autoriza a discriminação e o preconceito contra as mulheres (Lima, 2005, p.61).
A presença das mulheres no Duelo de MCs, ainda que em grande número, limita-se à platéia: o palco ainda parece representar uma barreira para as mesmas. O mestre de cerimônia costuma fazer algumas provocações
perguntando onde estão as mulheres e convidando-as a participar das batalhas e da roda de break. Apesar de parecer querer incluir, algumas dessas provocações acabam implicando no aumento do “fosso” existente entre a platéia e o palco. Isso porque ao limitar-se no ato de chamar as mulheres, o MC acaba deslocando a questão para os indivíduos, no caso as mulheres. O discurso é que as rodas de break e o palco “estão aí para todos” e que “elas não participam porque não querem”. Desconsideram-se as relações historicamente produzidas entre homens e mulheres e que há, portanto, diferenciação entre o acesso à rua e aos espaços públicos de acordo com os grupos sociais. Além disso, há uma diferença entre um desempenho ruim no palco e na elaboração das rimas entre um homem e uma mulher: enquanto o homem será considerado um MC ruim, o desempenho da mulher é associado ao fato de “ser mulher”. Por exemplo, na ocasião em que uma garota participava da disputa e foi agredida com frases que reforçavam que o palco não era o lugar de mulheres, mas sim a cozinha de casa e os respectivos afazeres domésticos: É verdade que rolaram alguns contratempos, como a reação descontente do público quando o MC Destro disse que a MC Negra Lud era melhor lavando talheres do que fazendo rimas (Postado no blog em 25/06/2008).
O “contratempo” ocorrido, ao reafirmar o lugar social destinado às mulheres e reiterar a incapacidade das mesmas na elaboração do hip hop, atua como uma espécie de regulação do uso do espaço na medida em que inibe a participação das mulheres, autoriza a dominância masculina sobre o espaço público e invisibiliza e desacredita outros usos possíveis.
Considerações finais
Tendo em vista a “sociologia das emergências” proposta por Boaventura de Sousa Santos (2005) – na qual as possibilidades de futuro são ampliadas, a partir do reconhecimento de experiências sociais concretas, ou seja, a possibilidade de transformar em possível o que aparece como impossível – podemos ver o quão significativas são as práticas sócio-espaciais engendradas por sujeitos como os que elaboram o movimento hip hop. Iniciativas como o Duelo de MCs apontam para o possível, para o que “ainda não é, mas pode ser”, por mais que a produção capitalista do espaço, através de suas determinações diversas, limite as ações transformadoras. Esses/essas jovens questionam o monopólio do uso da rua e tentam subverter aquilo que está posto como normativo. Elaboram práticas que anunciam apropriações. Ao se afirmar como “cultura de rua” e “cultura urbana”, o movimento hip hop e, mais especificamente, o Duelo de MCs apontam para outros usos da rua e do que pode ser a sociedade urbana, já que esta não se fechou, não é um dado acabado, pelo contrário, “existe como tendência” (Lefebvre, 1999). Apesar de o espaço ser ordenado segundo as exigências do modo de produção capitalista – possibilitando a reprodução continuada de mercadorias e o consumo, há lutas e tensões nesse processo. Nesse quadro de possibilidades e limites o Estado aparece mais como limitador do que como facilitador de novas práticas sócio-espaciais. Apesar da relação entre hip hop e Estado sair do âmbito da violência explícita – como se verificava nos tempos da ocupação da Estação de Metrô São Bento em São Paulo – o que se vê é a permanência de relações em que predomina
assimetrias de poder. Além do formato da relação já ser determinado a priori segundo os parâmetros nada flexíveis da instituição sobre o que é participação política e ocupação do espaço público, parece haver também uma resistência maior já que os sujeitos envolvidos são jovens e elaboram uma arte marginal – que se pretende contestadora e que tem, principalmente, a participação de negros e moradores de periferia. Essa atuação do Estado como regulador é de tal forma efetiva que mesmo ausente se faz presente: há o medo de perder o alvará e de ser taxado como “baderneiro” e “marginal”. Uma vez não interpretada como direito, mas sim como concessão, a possibilidade do uso do espaço tem um grau de efemeridade muito grande e a estigmatização por parte da sociedade é tão ameaçadora que faz com que incorporemos os discursos dominantes e contrariemos pressupostos e ideais caros à nossa realização como sujeitos de nossa própria história. Vemos, portanto, que o Duelo de MCs acrescenta uma questão importante para se pensar a elaboração de uma “cultura de rua”: em que medida a regulação destrói a potência rebelde do hip hop e o uso espontâneo e criativo dos espaços públicos? Além disso, cabe pensar ainda sobre a possibilidade de se criar formas mais inclusivas no que tange à participação das mulheres. A produção de um espaço público mais democrático, como pretende o Coletivo Família de Rua, passa, necessariamente, pela discussão das segregações e possibilidades de apropriação.
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Anexo As imagens a seguir foram retiradas do blog oficial do Duelo de MCs: http://duelodemcs.blogspot.com/
Figura 1. Logomarca Duelo de MCs
Figura 2. Lata de spray – “troféu”
Figura 3. Leo do Coletivo Família de Rua e o repórter Maurício Kubrusly para a gravação do quadro “Me leva Brasil” do programa “Fantástico” da Rede Globo
Figura 4. Empolga[ação]
Figura 5. “Junto e misturado” (ao fundo a Serraria Souza Pinto)
Figura 6. A força da rapper Zaika no pocket-show do grupo “Ideologia Feminina”
Figura 7. MC Monge (integrante do Coletivo Família de Rua) apresentando o Duelo de MCs
Figura 8. MC Douglas Dim
Figura 10. Foto tirada de cima do “palco�
Figura 11. MCs
Figura 12. “Duelo de Titãs”: Douglas Dim x Destro
Figura 13. Votação
Figura 14. Reportagem no jornal “Estado de Minas”
Figura 15. MC na improvis[ação]
Figura 16. DJ na agit[ação]
Figura 17. Grafiteiro de imagin[ação]
Figura 18. B-boy em rot[ação]
Figura 21. Rompendo barreiras
Figura 22. B-boy executando o “Giro de cabeça”
Figura 20. Duelo de MCs visto do Viaduto Santa Tereza