Mem贸rias de um interior narrativas de ant么nio carlos marcela k谩ritas
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Mem贸rias de um interior narrativas de ant么nio carlos
Mem贸rias de um interior narrativas de ant么nio carlos marcela k谩ritas
introdução
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as histórias que o caminho conta
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a época das ferrovias
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cidade pequena também se faz de coronéis
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uma comunidade dentro do município
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espaço de educar a todo custo
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de hospital a restaurante, a chegada e a partida
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agradecimentos
Para desenvolver este trabalho, uma das principais habilidades era ouvir. As vozes eram muitas. Nem sempre concordantes, mas dispostas a falar e relembrar. Por isso, agradeço a todas essas vozes que contribuíram para que eu entendesse algumas histórias da cidade de Antônio Carlos, mesmo aqueles que não aparecem explicitamente neste livro-reportagem: seu Xavier, seu Alfredo, Tarcísio, dona Biela, dona Dalva, dona Elimar, dona Marian, dona Rosa, Edna, Cybele, Deise, João Cláudio, Eduardo Villanova, Norberto, Mariana, João, Ricardo, dona Maria Olímpia (a Dindinha), Serjão, Amauri Mendes, Cleusa Andrade, Aída, Evanilda, dona Celina Rettore, Claudinho, dona Mirian, Eduardinho, Precata e Bebeto. Aos amigos e familiares, agradeço pelas dicas e pelo apoio durante todo o processo de apuração. Ao Guilherme, Adriana, Cleide, Carol e Meire, minha família de Antônio Carlos, pela hospitalidade, interesse e ajuda durante todo o processo de apuração. À família de Belo Horizonte, agradeço pela paciência, carinho e respeito durante a produção deste livro-reportagem. À minha irmã Emília em especial, pela ajuda e pela companhia durante as madrugadas. Às amigas, Eveline, Júlia, Olívia, Bruna, Andreza, Carol, Fê Cristo e Fê Sabino pela paciência em ouvir. Às pessoas que me ajudaram a construir este livro-reportagem, Phellipy Jácome e Léo Ruas, também agradeço pela paciência, esforço e conhecimento dedicados a mim, fazendo deste caminho um grande aprendizado.
“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” — Gabriel García Márquez
introdução
Há alguns anos, Antônio Carlos significava, para mim, uma avenida de Belo Horizonte, a Presidente Antônio Carlos. Uma via importante, daquelas que estão sempre engarrafadas e passando por obras, que têm viadutos, pista especial para ônibus e que levam para tudo quanto é lugar. Ao longo da avenida, de quase oito quilômetros de extensão, dá para encontrar shopping, universidades, farmácias, hospital, delegacia de polícia, conjuntos habitacionais e lojas de tudo quanto é tipo. Essa avenida representa muito da minha vida. Com suas qualidades, facilidades e problemas, a cidade grande sempre foi onde melhor me encaixei, um lar que nunca pensei deixar para trás. Pego ônibus todos os dias desde os treze anos de idade, durmo fácil – mesmo com o barulho dos carros na rua – e caminho pelo Centro desde que aprendi a andar. Isso é algo que lembro como se fosse ontem. Já dentro do ônibus, minha mãe falava assim: — Marcela, a gente tem que andar rápido, porque o Centro é perigoso. — E aí, saía andando comigo. Ela no ritmo dela e eu tentando acompanhar. Acabava que eu, para seguir os passos rápidos da minha mãe, tinha que correr. Sem reclamar! 13
Ainda criança, aprendi a gostar de ônibus, de Centro, de multidão, de muvuca. E não é algo que a gente gosta porque não teve a oportunidade de experimentar outras possibilidades. Eu tive. Já morei por um ano em cidade pequena. Foi em São José da Lapa, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte. Um ano de terror. Fiz amigos na cidade, até me diverti por ali. Mas a verdade é que a capital era onde minha vida realmente estava. Essa vida me fez ver o interior com olhos preconceituosos, sempre achando que a cidade grande é melhor daquilo que seria seu par oposto: a “roça”. Eu cometia todos os erros de um “cosmopolita” quando fala de interior: achava que nessas cidades não tinha internet, que os homens só andavam de botina e chapéu, que as mulheres eram escravas da casa e da família, que só havia o sertanejo de ritmo musical e que não tinha nada para fazer naqueles lugares. Por conta dessa visão, achei um absurdo a decisão do meu irmão de trocar a avenida de Belo Horizonte por uma outra Antônio Carlos, cidade localizada na região Central de Minas Gerais. Como assim? Deixar para trás a vida da poluição sonora e visual, das coisas abertas 24 horas, dos shoppings e cinemas, pela vida no meio do que, para mim, era o nada? E não deu para entender, principalmente, porque ele ficou muito feliz com essa mudança de rotina. Logo após a família do meu irmão se estabelecer em Antônio Carlos, fui convidada a conhecer a cidade. E eu aceitei, mais pela vontade de entender o que havia atraído meu irmão àquele lugar. Conheci Antônio Carlos, mas ainda não entendia os benefícios da troca. Por isso, quando tive a oportunidade de direcionar o olhar jornalístico a algum objeto, escolhi o que me incomodava: o interior, a roça, o “nada”... Queria conhecer esse outro tipo de vida, saber o que levava pessoas como meu irmão a escolher esse ritmo lento de viver, a calmaria. Mas o que 14
mais me convenceu a escolher Antônio Carlos como objeto dessa imersão foram as histórias que fui conhecendo antes mesmo de ter a ideia de fazer um livro-reportagem. Em cada visita à cidade, as pessoas me contavam casos. Histórias antigas, personagens importantes, prédios velhos e suas respectivas assombrações. As histórias eram tão interessantes que fiquei sem entender por que não ouvi falar antes de Antônio Carlos, a cidade. Mais tarde, entendi que os municípios e comunidades do interior, todos eles, têm muitas histórias para contar. Mas muitos não são ouvidos, apenas recebem o que chega de fora. Essas vozes do interior ecoam sem força, falam baixinho, e quase não são escutadas pelos ouvidos do pessoal da cidade grande, estes viciados pelo ruído constante. Por isso, decidi iniciar o movimento contrário, contando com a ajuda não só da História, mas principalmente de quem a vivenciou. Neste livroreportagem, conto os casos da cidade mais ou menos do jeito que as ouvi, com suas riquezas e seus esquecimentos, com o que é consenso e o que definitivamente não é. Em várias ocasiões, Fulano acaba falando uma coisa que Ciclano desmente categoricamente. Um afirma que está certo, o outro diz que aquela certeza é balela. Diante deste problema, tomei uma posição diferenciada. Ao invés de buscar o consenso, procurar uma verdade, preferi assumir que, em muitos casos, há mais que uma verdade possível e desejável, e daí vem a riqueza da experiência e dos discursos sobre as muitas realidades. Essa escolha não é melhor nem pior do que outra, é uma opção. Uma das principais intenções é mostrar que a realidade não é única. A experiência de cada morador é distinta uma da outra e, por isso, conforma um discurso diferente. Por outro lado, essa escolha acarreta alguns desafios: dificuldade de encontrar dados, de precisar informações e verificá-las. Também é necessário esclarecer que a verificação não foi deixada de lado. Durante minhas 15
visitas a Antônio Carlos, busquei as autoridades locais para encontrar documentos históricos que pudessem me ajudar a entender a variedade de discursos sobre um mesmo assunto. Entretanto, a cidade tinha pouca memória histórica e documental própria. Em um dos capítulos, conto um pouco dessa dificuldade de encontrar dados, uma das fontes de onde o jornalismo bebe. A Prefeitura local guarda muito pouco do seu passado, pouco mesmo. Em alguns casos, há certo desinteresse do poder público até em procurar essa documentação. Ao perceber que essa busca não daria resultado, decidi focar o trabalho nas entrevistas e encontrar estes diversos pontos de vista sobre o passado. Por isso, não procure infográficos, tabelas e coisas do tipo. Aqui não tem. Também foram os personagens os que mostraram como conduzir esta história. E não foi algo do tipo “você vai começar assim, depois falar isso e terminar dessa maneira”. Em um primeiro momento, os deixei livres para contar as histórias que julgavam interessantes. Todos começavam a contar os casos numa ordem cronológica, mas dava para ver o que eles consideravam mais importante, o que devia ser abordado e o que poderia ficar para outro momento. Faço o percurso por Antônio Carlos como seguindo um caminho, com seus pontos de partida, chegada e saída. Aos poucos, cada morador vai criando um mundo possível sobre os principais personagens antigos da cidade, sejam eles homens, mulheres ou espaços físicos. Em cada parada, as distintas lembranças – e esquecimentos – mostram que a história de Antônio Carlos se constrói a partir de diversas realidades distintas que, no livro, assume uma narração possível entre outras inúmeras tantas.
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as histórias que o caminho conta
A primeira vez que visitei Antônio Carlos foi em 2010. Meu irmão acabava de mudar completamente de vida, escolheu trocar a cidade grande por um dos interiores de Minas Gerais, e eu estava ansiosa para conhecer a “roça” que ele tinha escolhido para viver sem arrependimentos. A decisão do Guilherme de se mudar para Antônio Carlos não foi nada precipitada, mas sim muito planejada. Há muito tempo, eu o ouvia dizer que, um dia, deixaria Belo Horizonte para viver em um lugar mais tranquilo com a família. Da capital mineira, acho que só gostava mesmo do Shopping Oiapoque, por causa dos produtos em conta. Por isso, ele e a esposa, Adriana, decidiram tentar um concurso para trabalhar no interior. Antes, tiveram que convencer a enteada dele, Gaby, a embarcar na ideia. Não sei muito bem quais foram os argumentos para que ela, urbana de nascença e vivência, topasse a mudança, mas o fato é que ela aceitou. Mas a Gaby não chegou a viver plenamente na cidade. Nessa mesma época, ela havia passado no vestibular da Universidade Federal de Viçosa e foi morar nesse outro interior. Já a Adriana veio junto com o Guilherme. Mirando Antônio Carlos, eles fizeram um concurso para trabalhar em Barbacena 17
e passaram. Quando foram chamados, deram adeus a Belo Horizonte. A Dri deixou toda a extensa e unida família, além de empregos em duas escolas. O Gui também deixou parte da família na capital e seu emprego no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Pouco tempo depois dessa mudança de vida, eu tive a oportunidade de visitar Antônio Carlos. Ia de carona com a Dri, que teve de viajar a Belo Horizonte para resolver algum assunto ou participar de alguma festa de família. A Gaby vinha junto, porque estava de férias da faculdade e tinha que dar mais uma passadinha na casa da mãe. A viagem até o novo lar do meu irmão foi mais ou menos assim: um Uno branco velho, três mulheres, um toca-fitas e a estrada. A Dri tem uma tatuagem de borboleta na perna que ela se esforça em esconder, cabelos encaracolados e pouca, bem pouca, estatura. Ela foi minha professora de Biologia. E das boas. Foi mãe adolescente, das boas também. Gosta de comer bobeira e não gosta de arroz desde criança. Discute os absurdos da vida na mesa e defende suas opiniões ainda que ninguém esteja do seu lado. Já a Gaby gosta mesmo é de uma festa. Na época com 19 anos, ela não queria saber de ficar quieta. Estudante de Bioquímica, ela já tinha se adaptado completamente à rotina universitária, e sempre tinha um caso para contar. Estudei com a Gaby até formar no Ensino Médio, na mesma escola em que a mãe dela e meu irmão eram professores. Aquele foi um dos poucos encontros que tivemos depois que tomamos cada uma seu caminho. Por isso, as duas horas e meia de viagem até Antônio Carlos foram passando com a gente colocando o papo em dia ao som de Marisa Monte na fita cassete. Ao mesmo tempo em que relembrávamos as histórias do tempo de escola, íamos seguindo pela BR-040, sentido Rio de Janeiro. A estrada para o destino final parecia uma transição entre dois tipos de vida. A que vivi desde sempre é aquela que tem um alto teor de concreto, carros, engarrafamento, 18
pessoas e também facilidades. No caminho para Antônio Carlos, entretanto, esses elementos que ajudam a criar minha imagem da capital mineira vão ficando para trás aos poucos. Deixamos as multidões no Centro, a vida social na Savassi e o povo rico no Belvedere e em Nova Lima. Quando a cidade grande fica para trás, encontro o minério. As mineradoras parecem tentar, mas não tem jeito de esconder seu rastro. Ele está ali, no marrom-minério que tampa as indicações das placas, nos montes cortados em degraus e na ponte da mineradora Vale. É também nessa estrada que vemos a marca da mineradora com mais verdade. A criação publicitária é bonita, feita nas cores do Brasil, verde e amarelo. Em uma parte do trajeto, a marca é estampada em tudo quanto é lugar. Mas é também neste caminho que o verde e o amarelo tornam-se apenas criação, invenção. A realidade e seu vestígio, o marrom-minério, são o que permanece. O marrom-minério é bem parecido àquele marrom-terra usado para plantar. A única diferença que consigo perceber entre os dois marrons é a perenidade. Um sai fácil, é só jogar uma água e ele foi embora. Já o outro, o do minério, permanece. Ele colore de leve o chão asfaltado, suja os carros, invade as placas. Até as folhas das árvores parecem adquirir levemente esse tom, que não vai embora nem com a chuva. Só deve ir mesmo embora quando o minério acabar. Apenas percebo que o trecho do minério está acabando quando a BR040 colorida de marrom vai ficando para trás e o verde das folhas vai se intensificando. O verde só é interrompido quando passamos pelas várias cidades que se alongam até a beira da estrada. Em um desses povoados, no município de Ressaquinha, a proximidade entre a BR e as casas é tão grande que me faz pensar no perigo que deve ser morar numa casa onde a porta de entrada dá para uma rodovia. Mas parece que o espanto é só meu mesmo. As crianças brincavam com suas bicicletas, uma menina saía correndo da porta 19
de casa para ficar na rua. Neste trajeto, passamos por dois tipos de cidades: as pequenas e as que são um verdadeiro projeto de grande urbe. Nas últimas, há muita gente, mas não o suficiente para caracterizar uma multidão. Há vários bairros, mas nem a metade do que vemos em grandes cidades, e muitos menos aquela confusão de região metropolitana. Há também o centro, mas sem todas as coisas que podemos encontrar na região central de uma grande zona urbana. Um desses projetos de metrópole é Barbacena, por onde é necessário passar para chegar a Antônio Carlos. Dentro da cidade, vejo muitos prédios de poucos andares se equilibrando entre morros, casas velhas se perdendo em meio ao concreto, pequeníssimas multidões se formando em torno dos pontos de ônibus. As pessoas caminham pelo centro num ritmo que não é apressado, mas também não é despreocupado. Em Barbacena, consigo notar a existência de algumas palavras do vocabulário urbano: congestionamento, infraestrutura, logística, balada, shopping, aberto 24 horas, apartamento, elevador... Lá para as seis da tarde, horário de pico, o fluxo de pessoas não aumenta tanto nas calçadas, mas os carros começam a congestionar as ruas. Se o transporte vai mal, o chão por onde passam os automóveis vai ainda pior. Passar pelas ruas principais de carro é quase como percorrer um campo minado, tem que dirigir desviando o problema. Observando a cidade pela janela do carro, não consegui encontrar nenhum aspecto da cidade que me atraísse. Só vi as características de uma metrópole que não gosto. A “Cidade dos Loucos” também não fez jus a essa fama, adquirida há muito tempo. Barbacena passou a ser chamada dessa forma após a instalação de sete hospitais psiquiátricos no município, a partir do início do século XX. O motivo? Na época, acreditava-se que o clima de montanha da localidade, mais frio, ajudava no tratamento dos doentes mentais. Segundo o Ministério da Saúde, a maior destas instituições, o Hospital Colônia de Barbacena, 20
chegou a abrigar cinco mil moradores de todas as partes do Brasil, que chegavam pelo trem que ficou conhecido como “Trem de Doido”. Depois de chegar, a maioria dos pacientes já não voltava para casa. Tinha gente que entrava para o hospital ainda criança e lá ficava a vida toda, em condições precárias de higiene. Era comer sem talher e dormir no chão coberto de feno, bem do lado dos ratos. Lá, todo mundo tinha quase o mesmo tratamento, ainda que muitos tivessem sido levados para lá não por conta da loucura mental, mas sim pela da loucura da sociedade... Havia um padrão de comportamento e, se alguém não o seguisse, tinha que sofrer as consequências. Às vezes, a consequência era ser internado em hospitais psiquiátricos, não sei se para tentar “consertar” a pessoa ou para tirá-la do convívio social e acabar com a vergonha da família. Por isso, o Hospital Colônia também chegou a abrigar presos políticos, mulheres que perderam a virgindade fora do casamento e pessoas que não viviam segundo o “padrão”. Esse passado recente – de loucos, não-loucos, falta de humanidade e tristeza – eu não encontrei em Barbacena. As almas dos cerca de 60 mil mortos no Hospital Colônia de Barbacena não pairavam pelas ruas puxando o pé de ninguém. Loucos fechados em hospitais? Não vi. A Reforma Psiquiátrica Brasileira, que defendia o tratamento da pessoa com distúrbios mentais em seu meio familiar e social, parece ter surtido ótimos efeitos na cidade.
Em outra visita ao local, pouco tempo depois da primeira, tive a oportunidade de conhecer o antigo Hospital Colônia de Barbacena, que abriga, além de doentes mentais em tratamento, o Museu da Loucura, criado em 1996 para relembrar o passado recente dos loucos e contar algumas de suas histórias. Quase nenhum dos relatos é feliz ou positivo, e muitos são contados a partir do ponto de vista do outro, quase nunca do paciente. No museu, o que se vê é o sofrimento difícil de esconder, estampando nas fotografias de quem por ali passou, nos encartes de jornais antigos sobre o hospital, nos equipamentos utilizados no passado para tentar “consertar” aquele que tinha o defeito de ser diferente. Tinha equipamento para lobotomia, cadeira que dava cho-
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ques, crânios dos pacientes que morriam ali e eram desencarnados – uma técnica que retirava a carne do paciente e mantinha o esqueleto, que passava a ser objeto de estudo. Essa lembrança dos loucos do passado convive com os do presente, que ainda se tratam no hospital. Eles não são muitos e, certamente, não sofrem os mesmos problemas que os antigos pacientes. Não usam uniforme ou bata, não andam pelados. Têm roupa no corpo, sapato no pé, corte de cabelo, barba feita. Naquela manhã ensolarada, perambulavam pela entrada do hospital. Logo ao entrar, são eles os que nos dão as boas vindas: — Moça, me dá um real? — o dinheirinho é pedido com vontade. Os que pedem quase entram pela janela do carro para implorar pelas moedinhas. O trocado ganho será gasto num carrinho que fica bem do outro lado do portão de acesso ao hospital. Lá, os internos compram um cigarro ou um doce, dependendo da necessidade do momento. Mas eles não podem ir para muito mais longe.
Já o passado mais antigo da cidade só fui conhecer mesmo em Antônio Carlos, conversando com os moradores. Como apenas doze quilômetros separam um município do outro, e também pelo fato de Antônio Carlos ter sido, durante muito tempo, distrito de Barbacena, algumas histórias da cidade maior acabaram tendo eco na menor. Quanto mais chamativo o acontecimento da primeira, mais o povo da segunda comenta. O poder político das famílias Andrada e Bias em Barbacena é um exemplo. Rivais políticos em teoria, as duas famílias alternam, a cada quatro anos, quem manda na cidade. Hoje, o prefeito de Barbacena é um Andrada (Antônio Carlos Doorgal de Andrada, ou Toninho Andrada), que recebeu o poder de uma Bias (Danuza Bias Fortes Carneiro). Como isso dá certo eu não sei, mas é uma fórmula pronta, secreta e eficaz, colocada em prática nos anos eleitorais. A influência de uma dessas famílias, os Andrada, atravessa os limites de Barbacena até chegar a Antônio Carlos. E é assim desde muito tempo, como evidencia o próprio nome do município. Antes, o povoado se chamava 22
Sítio, um nome que não foi uma clara homenagem a ninguém. Precisavam de um nome para a estação ferroviária que ali se instalaria. Puseram Sítio, que é a abreviação do primeiro nome dado à região, Sítio da Borda do Campo (usado até hoje, abreviado em Borda do Campo, para denominar uma região específica, da qual falarei mais para frente). Em volta dessa estação, foi se formando o povoado, que pertencia ao distrito barbacenense de Bias Fortes – e não é difícil imaginar o porquê deste nome. Com o crescimento do povoado ao redor da ferrovia, decidiram trocar o nome do distrito. De Bias Fortes passou a chamar Sítio, uma mudança de seis por meia dúzia, já que todo mundo se referia ao local como Sítio mesmo, nada de Bias Fortes. Já a mudança de Sítio para Antônio Carlos foi um agrado à família do ex-presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. A homenagem foi feita na época da emancipação, em 1948, quando o local finalmente deixou de ser distrito de Barbacena. Quando chegamos à cidade-homenagem a Antônio Carlos, recebemos as boas vindas mais ou menos do jeito como o mineiro dá: com boa vontade, mas desconfiado, escondendo alguma coisa da pessoa que não conhece. Isso porque, se de um lado há vários anúncios mostrando os serviços prestados pela cidade – leia-se 01 hotel, alguns restaurantes e vendas e 01 hospital que se autodenomina pequeno –, de outro há o casarão, que recebe o visitante de costas, mostrando seu traseiro. Imagina se prédio fosse pessoa! O casarão é uma daquelas construções de estilo colonial, com grandes janelas de madeira, pé direito alto, sem muitas firulas para agradar o olhar. O telhado é de telha de barro, o chão de madeira que range quando caminhamos. O estilo é simples, mas imponente. Há a pequena escadaria que leva para a porta de madeira, pintada de azul para combinar com a moldura das janelas. Prédio bonito, com muita história para contar – algumas contarei – e que, hoje, abriga diversos pequenos negócios. 23
A grandeza do casarão quase esconde a continuação da rua principal. Uma curvinha para a direita e já há a primeira praça. Essa pracinha é a das crianças, não porque só haja crianças ali, mas sim por ser uma das únicas que possui brinquedos infantis. Escorregador, balanço, gangorra. Ali tem. E claro, a decoração é formada pela grande moda da cidade: uns troncos de madeira que, por conta de uma combinação entre as pinturas cinza e amarela, parecem artificiais, de mentira. Desse tem em todo lugar. Esse e as grades dos portões com arabescos de metal pintados de dourado. A praça das crianças dá de cara com a Prefeitura. Seguindo pelo sentido contrário ao do Centro da cidade, chego ao campo do América Futebol Clube, o antônio-carlense. No passado, o campo já foi palco de diversos jogos profissionais e amadores. Hoje ele só serve de referência mesmo. — Sabe o campo do América? É só seguir a rua que você chega... — Ah, esse negócio fica lá perto do campo do América. Chega lá e pergunta. No outro sentido, nessa mesma rua, há mais uma praça, a mais extensa da cidade. Ela fica bem no meio da rua, dividindo a via principal em dois sentidos. Do lado direito seguem os automóveis que estão chegando, do lado esquerdo os que estão indo. No meio, há duas construções: um prédio caindo aos pedaços e uma quadra poliesportiva novinha, que mais parece outro casarão pela grandeza e pela escadaria que leva o morador para dentro do local. A praça principal tem início nos arredores dessa quadra. Ali começam os banquinhos, feitos com aquele mesmo tronco de madeira que não parece madeira. Nas vezes que passei por ali, encontrei pessoas com quase o mesmo estilo de se vestir, fazendo quase a mesma coisa. Os homens usam uma blusa de frio estilizada com o capuz na cabeça ou ficam sem camisa mesmo. As jovens usam o cabelo longo e roupas justas. Nos dias de semana, o movimento de adolescentes na praça diminui bastante. A maioria está ocupada estudan24
do na antiga FEBEM. Nesses dias, são os velhinhos que ganham seu espaço. A atividade dos dois públicos pode variar entre conversar, jogar truco, tomar o sorvete do padre ou ouvir música, o batidão do funk ou os requebres do Calypso. O padre e seu sorvete estão por ali há anos. O funk e o Calypso parecem ser elementos trazidos pelos moradores mais jovens. Eu, que fui para Antônio Carlos esperando uma boa “roça” – com direito a cavalo, chapéu, roda de viola e muito barro –, fui surpreendida ao encontrar elementos da metrópole no local, principalmente no modo de vestir, nas canções ouvidas e nas gírias usadas. Em uma de minhas visitas à praça, de passagem, vi um açougueiro sentado no banco e conversando com outros moradores. O açougue estava aberto, mas sem movimento, e ele aproveitava para colocar o papo em dia. O homem já tinha cabeça branca e barriguinha de cerveja. Ele vestia aquela camisa branca, uniforme de açougueiro versão branco natural, sem encardido de sangue. Uma pessoa como qualquer outra, gente como a gente. E que já foi vice-prefeito da cidade. Acostumada com médicos, advogados, economistas e até mesmo operários militantes no poder, foi estranho saber que os açougueiros, uma profissão tão próxima da rotina diária de todos nós, também têm a sua vez. Do mesmo lado da rua do açougue, há outras vendas, todas de pequeníssimo porte. Para aliviar o raro calor, já que se trata de uma cidade fria de temperatura, com média anual de 18 graus, há a sorveteria do padre e a concorrente, que ficam uma quase do lado da outra. Para afogar as mágoas, há alguns bares. Para aliviar a dor física, há a farmácia. Para matar a fome, há os mercados e o sacolão. Para fazer uma fé e colocar as contas em dia, há a loteria. Nessa mesma rua, do outro lado, o que ganha espaço são os vestígios das duas linhas de trem da cidade, uma ativa e outra desativada. Das duas 25
linhas, resta a estação, que empresta hoje um cômodo para o funcionamento da Biblioteca local. Da ativa, o que permanece são os trilhos e vagões da MRS Logística, concessionária que opera a Malha Regional Sudeste da Rede Ferroviária Federal e é especializada no transporte de cargas. Mas esse trem, que atravessa constantemente a cidade, passa vazio na maioria das vezes. Depois você entenderá por quê. Já da linha antiga resta apenas a Maria Fumaça, toda garbosa, presa em uma construção bonita até. A máquina foi colocada ali após a desativação dessa estrada de ferro, um “prêmio de consolação” para o povo ver e admirar. Os mais novos podem não entender os motivos que transformaram a máquina em monumento. Mas os mais velhos sabem. E, quando olham para a Maria Fumaça parada, lembram da própria juventude, do tempo em que aquela máquina era barulhenta e anunciava sua chegada lá de longe. Bi, Biiiiii! Além de marcar as horas, porque chegava e saía todos os dias no horário certo, o trem anunciava a chegada do namorado que foi estudar, do pai que foi trabalhar, da gente que por Antônio Carlos tinha que passar. Essa maquininha, hoje quietinha, representa o movimento, uma época em que a cidade era importante, mas que ficou para trás há muito tempo. Para muita gente, basta olhar a Maria Fumaça para se lembrar de um tempo em que Antônio Carlos, o município e não o homem, foi rei.
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