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Foto: Alexandre Belém/Concepção: Jaíne Cintra

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E xpediente SUMÁRIO

EDITORIAL

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O riso demolidor da ironia - Novo ativismo ensina a trocar armas por flores

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O ar que você respira - Algumas das mais famosas separações que marcaram a história da música pop

05 Em busca do nono chope - O clássico esquecido de Cyro dos Anjos completa setenta anos

napolitano, morango... - Pesquisadora 06 Flocos, analisa como shopping do centro do Recife comporta as mais variadas identidades

O Pernambuco circula, nesta edição, com dois temas que provocam debate e reflexão: o resultado de uma pesquisa que aponta os locais de encontros de grupos urbanos na da Boa Vista, bairro que ainda guarda o cheiro e o sabor de uma aristocracia pernambucana que sofre alterações significativas. A matéria de Carolina Leão mostra o que vem mudando naquela área, em lugares os mais diversos, antes ocupados por normalistas e funcionários públicos. Não menos interessante é a matéria de Ivana Moura sobre os noventa anos de Hermilo Borba Filho, um dos intelectuais mais respeitados de Pernambuco, múltiplo em seus romances, novelas, contos, além de uma atividade desde sempre crescente e importante no teatro. Criador do Teatro Popular do Nordeste - TPN -, que revolucionou a cena pernambucana, fez incursões inovadoras no mamulengo, manifestação popular que também levou para a sua obra de contista. Aliás, o trabalho intelectual de Hermilo também foi levado para o caderno Saber +, sob a responsabilidade da jornalista Marilene Mendes, onde escritores e artistas debatem a revolucionária atividade, ora como político, ora como encenador, sempre deixando a sua marca de vanguarda. Hermilo trouxe para o romance pernambucano os temas mais controversos, como a política e o sexo, de uma maneira despojada e verdadeira. Para homenagear os noventa anos do criador de "Um cavaleiro da segunda decadência", este jornal mobilizou a sua equipe de redatores e repórteres, escavando os seus baús e excentricidades fotográficas, sempre com a colaboração de Leda Alves, responsável pela preservação da memória deste pernambucano que reinventou o Estado, com a sua inteligência e com a sua criação cada vez mais viva e presente.

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"O riso demolidor da ironia" é a matéria assinada por Carol Almeida, na terceira página, mostrando que ativistas encontram formas cada vez mais inusitadas para se proteger contra a ordem vigente. No texto, ela assegura que "não levar uma situação a sério quando ela trivialmente demanda por isso muda radicalmente a ordem das coisas".

E o palhaço o que é? - Novas adaptações revisam a obra de Hermilo Borba Filho

09 A vanguarda vem de longe - Gonzaga Leal e sua MPB fascinada pelo passado

Play - O uso de trailers como estratégia de divulgação nas artes plásticas

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A reinvenção dos mundos -A Fenneart aponta as mudanças da arte popular no estado

Na página doze, o leitor encontrará um precioso e inédito texto de Ivana Arruda Leite, em que ela se debruça sobre aquela atividade que considera fundamental e básica na vida: a arte de escrever. De escrever sempre e com obsessão. O texto é enriquecido pela diagramação de Jaíne Cintra, aliás criadora da primeira página, que mais do que um trabalho de diagramadora e de design, é com certeza uma obra de arte. Eduardo Sol se debruça surpreendentemente sobre a obra de Cyro dos Anjos, um autor clássico da literatura brasileira, mas que não mereceu a consagração pública, apesar da sua riqueza de criador. "O Amanuense Basílio", seu romance mais importante, tem merecido constantes estudos universitários, com ampla repercussão na academia. Num texto rico de sugestões e seguro na redação, Eduardo procura examinar as conquistas literárias do mestre mineiro. E atenção para a Fennart, destacada na página onze, com matéria assinada por Marilene Mendes, sob o título "A reinvenção dos mundos", e na qual se analisa, sobretudo, o aproveitamento de material reciclado para a construção da obra de arte, e se anuncia a riqueza dos Quilombolas. Tudo isso numa edição recheada de inusitadas páginas cheias de colorido e invenção. Boa leitura. pernambuco@cepe.com.br

Inédito - Ivana Arruda Leite descreve os detalhes da sua obsessão pela escrita

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “Nova reforma ortográfica”. Você partipará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

EXPEDIENTE GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos PRESIDENTE Flávio Chaves

VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto

DIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão DIRETOR INDUSTRIAL Reginaldo Bezerra Duarte

GESTOR GRÁFICO Júlio Gonçalves

EQUIPE DE PRODUÇÃO Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela

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Companhia Editora de Pernambuco -C CEPE Fone: (81) 3217.2500– Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro FAX: (81) 3222.5126 CEP 50100-140

EDITOR Raimundo Carrero

EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani

EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra

SECRETÁRIO GRÁFICO Gilberto Silva

TRATAMENTO DE IMAGEM Sebastião Corrêa

REVISÃO Gilson Oliveira


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C omportamento

Ativistas encontram formas cada vez mais inusitadas para protestar contra a ordem vigente Carol Almeida como se você pedisse foie gras para um garçom que vai anotar o pedido e voltar mais tarde com um pato de borracha. Daqueles de banheira. Ou como se na hora de propor alguém em casamento, a pessoa engula a aliança. De propósito. A humanidade se acostumou desde sempre a agir com coerência entre o pedido da mesa e a produção da cozinha, entre uma declaração de amor e a aliança na mão. E de repente, tudo começa a ficar esquisito demais quando o mundo clama para que as pessoas gritem indignação e, em lugar disso, elas ergam alguns pompons e dancem uma coreografia de cheerleader para falar mal da Guerra do Iraque. A mensagem é sempre uma só: para levar o mundo a sério, é preciso ironia e, sobretudo, uma câmera por perto. Porque para a mídia de massa, protestar com panfletos e pedras só pode mesmo legitimar a seriedade de quem está do outro lado. Não levar uma situação a sério quando ela trivialmente demanda por isso muda radicalmente a ordem das coisas. É com base nessa idéia que se molda um novo ativismo, criado a partir de dois preceitos bem simples: chamar muita atenção e, digamos, "tirar onda". Não há ciência que melhor saiba fazer isso do que a publicidade. Nos preceitos da propaganda a máxima de que toda ação leva a uma reação serve para atender ao produto ou serviço que se tenta vender. O ativismo deixa então de ser o lugar apenas da reação e passa a criar artifícios de sedução próprios, que se guiam não mais pela reação a ações políticas ou econômicas, mas sim pela ação dentro de uma sociedade alienada. Como? Fazendo cenas de cinema, servindo chás da tarde ou, como já foi dito, jogando o pompom pra cima e pra baixo. Para vender uma idéia ou, quem sabe, uma ideologia, vale tudo. Afinal de contas, quando o G8 se reuniu no começo de junho, a coisa mais divertida de assistir nos telejornais foi a espetacular perseguição que o barcão da polícia alemã fez atrás dos 11 barquinhos do Greenpeace. Tratamento para as vítimas de aids na África? Novas relações com economias emergentes? Os telespectadores bocejam, Homer Simpson dorme sobre sua lata de cerveja. A perseguição no melhor estilo James Bond rendeu boas imagens e, por isso, mereceu seu lugar de honra nas emissoras de TV. A mensagem que ficou, embora estivesse claro que a ação do Greenpeace era ligada às questões do aquecimento global, é a de que aqueles jovens souberam chamar a atenção do mundo sem precisar levantar placas na rua. Não era James Bond, era o Greenpeace. Não era Goldfinger, era o G8... levando um banho de água fria. O caso do chá da tarde é ainda mais expressivo. Surgiu no final dos anos 80 e hoje, com You Tube e MySpace, se transformou em uma entidade. Fala-se aqui das Raging Grannies, algo como "vovozinhas raivosas". Hoje, elas são grupos de mulheres mais velhas, geralmente vovós, cujo princípio é tirar proveito do protótipo alienado que todos nós fazemos dessa pessoa que supostamente vive em função de um tempo que já foi. Nos Estados Unidos e no Canadá, elas vão às ruas exageradamente vestidas de vovós e cantam como vovós. Mas as músicas, melodias que costumam ser familiares ao repertório de qualquer um, pedem o impeachment de Bush, denunciam os maus-tratos com as vítimas do furacão Katrina e, no meio de todo esse dó-re-mi, elas entoam o refrão: "Tragam nossos soldados de volta." As Raging Grannies vieram cozinhar o Lobo Mau e servi-lo com biscoitos e erva doce. O modelo protesto-perfomance é idêntico ao trabalho de outro grupo que, assim como as Raging Grannies, nasceu em um contexto norte-americano em que fica difícil ganhar 15 minutos de fama sem algum recurso cênico de sedução (novamente a publicidade). As Radical Cheerleaders, como elas fazem questão de esclarecer, fazem "ativismo de pompom". Algumas de suas performances ganharam destaque na mídia norteamericana justamente por "renderem" aos jornalistas um texto menos formal. Aliás, grupos ativistas – ou indivíduos agindo por conta própria – trabalham sempre com o pressuposto da pauta jornalística, dos níveis de interesse que aquela performance pode provocar em um editor de redação e, particularmente, no repórter de rua à procura de uma imagem interessante (entenda-se: estereotipada). É claro que a idéia não é nova. No sempre lembrado maio de 68 em Paris, estudantes e intelectuais souberam ganhar a mídia a partir dos famosos slogans pintados pela cidade. Há quem chame isso de "mídia tática", uma expressão que surgiu no começo dos anos 90 e lida basicamente com o conceito de um ativismo criado com a consciência das representações que a opinião pública faz de grupos sociais. Tática ou não, é fato que trata-se de um movimento mais espontâneo do que coordenado. Mesmo grupos gigantes – e cheio de hierarquias e problemas "capitalistas" como o Greenpeace – terminam respondendo a estímulos de uma era que trata a informação como entretenimento e a notícia, muitas vezes, como trailer de cinema. Ativismo pode ser, sim, um artigo de consumo. Melhor ilustração disso está no artista e ativista londrino Banksy, o autor da imagem que ilustra esta página. Em um dos vídeos de sua "Paranoid Pictures", vê-se o artista grafitando em um outdoor branco: "O prazer de nada estar sendo vendido". A não ser uma idéia. \\

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"Bands Those funny little plans That never work quite right"1 (Mercury Rev, "Holes", do álbum Deserter's Songs, de 1998)

A volta do The Police, após histórias de ódio absoluto entre seus integrantes, nos leva à pergunta: qual o preço de um retorno? Haymone Neto iferente de uma "sensação agradável, que se experimenta por acaso", o amor é uma arte, segundo Erich Fromm. Isso significa que exige esforço e conhecimento. Se amar é uma arte, e isto já parece ser complicado o suficiente, imagine o quanto pior não deve ser conciliar à arte de amar a arte de fazer arte. A história da música pop está cheia dessas histórias de uniões e separações, amor e ódio, que ultrapassam a dimensão das relações pessoais e acabam refletindo nas próprias obras - às vezes, para a nossa sorte. O meu caso preferido é o de certa banda que, em meados dos anos 70, era composta de dois casais entre os seus integrantes. A banda inglesa Fleetwood Mac começou durante a era hippie, no final da década de 60, e passou por uma série de mudanças na sua formação. O primeiro casal, John e Christine McVie, respectivamente baixista e tecladista, já fazia parte do grupo desde 1970. Por volta de 75, quando num desses entra-e-sai de integrantes a banda quase deixava de existir, o casal norte-americano Lindsay Buckingham e Stevie Nicks, que já tocava junto - ele, vocalista e guitarrista; ela, cantora - foi incorporado. Neste ano, eles lançaram um álbum homônimo, que passou uma semana no topo da parada norte-americana e vendeu cinco milhões de cópias. Mas isto é só o começo da história. Nos anos que se seguiram, os integrantes do Fleetwood Mac tiveram que enfrentar, além da pressão da gravadora por outro álbum de sucesso, as turbulências causadas pelo divórcio do casal McVie, o fim da relação amorosa entre Buckingham e Nicks e o conseqüente abuso no consumo de álcool e drogas por parte dos músicos. Em 77, separados os casais, mantida a banda, é lançado o álbum Rumours. Aquele que tinha tudo para ser um desastre artístico é, até hoje, um dos discos mais vendidos de todos os tempos (19 milhões de cópias vendidas só nos Estados Unidos, tendo passado 31 semanas na parada da Billboard), além de ser considerado geralmente o melhor disco da banda por grande parte da crítica especializada. Rumours é crise, drama, separação, medo, incerteza, futuro, do começo ao fim. Tem desde Gold Dust Woman (algo como "mulher do pó de ouro"), referência óbvia ao consumo de cocaína, até a música mais famosa da banda, Dreams. Nela, Stevie Nicks canta: lá vem você de novo dizendo que quer sua liberdade, e quem sou eu para impedir? Mas, em Go Your Own Way, Buckingham dá a Nicks uma resposta à altura: amar-te não é a coisa certa a se fazer, você pode seguir seu próprio caminho.

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O mais bonito do disco, contudo, é o manifesto pela união da banda, The Chain, escrita por todos os integrantes em conjunto - um manifesto pela não-separação do grupo, mesmo com os problemas entre eles. Amores findos, a formação clássica do Fleetwood Mac ainda duraria alguns bons anos, com álbuns à altura (e, data venia, melhores) que Rumours. Essa é a história bonita, mas nem todas são assim. Tem a do tenebroso grupo sueco Abba, que era formado por dois casais, Agnetha Fältskog com Björn Ulvaeus e Benny Andersson com Anni-Frid Lyngstad. O primeiro se divorciou em 79 - foi o começo do fim. O segundo não resistiu até 81. A banda finalmente acabou em 82. Outro caso, o do The Mamas and The Papas, mais parece uma novela mexicana. O grupo vocal era formado por dois rapazes, John Phillips e Denny Doherty, e duas moças, Cass Elliot e Michelle Phillips. John era casado com Michelle, que tinha um caso com Denny, que contou para Cass, que era apaixonada por Denny, que foi pego in the act com Michelle, que foi colocada para fora da banda e deixada por John. O casal original ainda chegou a se juntar de novo, mas a banda acabou em 68. Tem também a história de Patty Boyd, que por alguns anos se chamou Patty Harrison, e depois casou com o melhor amigo do ex-beatle George e virou Patty Clapton, para, no fim das contas, virar Patty Boyd de novo. Mas se a arte de amar parece incompatível com a arte de fazer arte, a arte de odiar parece ser mais viável ao menos financeiramente. Que diga o trio inglês The Police, que anunciou uma reunião em 2007 após um hiato de quase 25 anos. As histórias sobre o ódio entre o baixista e vocalista da banda, Sting, e o baterista, Stewart Copeland, estão entre as mais folclóricas do rock. Dizem que Copeland tinha ciúme porque Sting aparecia demais; que Sting não dava espaço para os outros integrantes; que, durante os anos finais da banda, os dois mal se dirigiam a palavra nas gravações e shows. As apresentações da volta do The Police no Canadá foram elogiadas pelos críticos locais. O trio inglês está se preparando para participar de um mega evento programado para o próximo mês, o Live Earth, um show beneficente destinado a arrecadar fundos em prol de ações contra o aquecimento global. Oportunismo? Caça-níquel? Não sei. Desde que não inventem de reunir o Abba, por mim está tudo bem. \\


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O modernismo de segunda hora de "O Amanuense Belmiro", de Cyro dos Anjos, chega aos setenta anos

m um mundo de bytes, não é em vão que os blogs (os diários virtuais) sejam tão populares. Complexas releituras de seus similares de papel, diferem-se, no entanto, em seu caráter público e exibicionista. Enquanto os antigos eram escondidos dos curiosos. O modelo, porém, permanece o mesmo, ou seja, escrever e existir enquanto vida e letra. Por isso, diários sempre foram fontes literárias. Um dos mais competentes textos a utilizar essa forma em português comemora seu 70º aniversário: “O Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos. Livro festejado. E, paradoxalmente, esquecido. Modernista de segunda hora, que cria de um futurismo já amaciado em Minas Gerais pós-Carlos Drummond de Andrade, o livro de Cyro dos Anjos é pouco lido hoje e pouco citado, apesar de ser um dos romances mais fortemente bem construídos do Modernismo brasileiro. Obra atual, por sua certeza de a observação inteligente da vida ser a chave para a compreensão da própria existência. Ou para o aniquilamento dessa certeza. Belmiro Borba (heterônimo de Cyro em artigos publicados em jornais) começa a escrever seu diário após celebrar a vida com amigos, num parque de Belo Horizonte, cidade na qual a ação (ou a falta dela) acontece. "Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, um nono chope, argumentando que outro copo talvez encerrasse uma solução geral". A busca dessa solução geral já no primeiro e belo parágrafo, e a sensação de estar "grávido" de uma idéia, como diz capítulos depois, são as forças que levam o entediado funcionário público a se perder em uma explicação literária da realidade, que nunca alcança. A vida que não vive tenta vivê-la em anotações. Ao longo de um ano e meio, sua vida, as de suas irmãs e de seus amigos (os existentes e os que vão aparecendo e desaparecendo páginas adentro) vão sendo relatadas/analisadas sob a ótica da polícia, cultura e filosofia da época. Belmiro é um personagem que só poderia ser possível na então infantil Belo Horizonte. Cidade planejada, representava em suas primeiras décadas um confronto profundo entre a necessidade cosmopolita (o traçado da capital mineira foi influenciado por Paris e Washington) e as raízes interioranas. No caso de Belmiro, a Vila Caraíbas, onde era simplesmente um Borba, com toda a força do "sangue", como observou o crítico Silviano Santiago. Não era exclusividade de Belmiro. Cyro dos Anjos viveu isso. Drummond também. Os intelectuais da capital não eram da capital. Seus corações e mentes, muitas vezes, olhavam passados interioranos, reforçado pelo fato de a própria Belo Horizonte ser provinciana em relação à capital brasileira de então, o Rio de Janeiro, ou mesmo São Paulo, já com o modernismo e a industrialização acelerados em sua gente. O curioso é que para viver na capital, substituindo Vila Caraíbas (onde quase casou, quase seguiu os sonhos do pai e se tornou um Borba), Belmiro escolheu a provinciana Rua Erê, do provinciano bairro Prado. Provincianismo metalingüístico; e a mente em busca do mundo, de filosofias, de literaturas (Belmiro gasta boa parte do romance mergulhado em Homero, enquanto vai trilhando sua própria odisséia ao nada). Provincianismo quebrado pelas idéias do amigo Silviano, o contraponto intelectual de Belmiro e de sua escrita. Conservador e hedonista, meio louco, quase amigo, quase confiável, Silviano é mais uma das não-realizações de Belmiro, que o analisa, às vezes o inveja, mas nunca o compreende. Em seu diário, Belmiro, espécie de representação em prosa do gauchismo drummondiano (não é por acaso que Drummond é constantemente citado), não consegue escapar de suas relações sangüíneas. Da lua caraibana, de seu amor de infância não-concretizado (e sublimado em novo amor não concretizado por uma jovem de classe alta). Da burocracia do serviço público, foge apenas na memória. O futuro tenta se projetar em delírios. Belmiro exercita o que aprendera com Silviano, ou seja, a imaginação de como um fato pode acabar, quando ele mal aconteceu, num ficcionalismo em que não mais importa o fato, mas a intenção. Mais triste: pensa sempre em publicar o que escreve, mas sabe que não o fará, o que talvez precipita a chegada de uma página final. Com os olhos na página final do romance/diário, o leitor se pergunta: qual o motivo de Belmiro ter parado de escrever, argumentado que não havia mais assunto, se em muitos capítulos/dias anteriores já não havia?. Talvez a gravidez tenha sido interrompida, teria respondido o melancólico amanuense, nesse hipotético diálogo. "A vida se torna vazia", escreveu de fato. Aos 38 anos (mas ou menos a idade de Dante quando se encontrou no meio do caminho de sua vida, antes de descer ao Inferno em busca de Beatriz), Belmiro já estava "morto", embora certamente fosse cumprir a sentença dos Borba e partir só de velhice. Coloca um fim na existência em palavras, mas se esquece de avisar ao amigo que tinha ido buscar mais papéis, que ficariam em branco, deixando ao leitor a busca do nono chope. \\

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C apa Pesquisadora analisa como o shopping negocia e reúne as várias identidades que transitam pelo centro do Recife, entre a modernidade e a tradição Carolina Leão

ilberto Freyre definiu o Recife como uma cidade de habitantes silenciosos. Ao contrário da sua opulenta vizinha, Olinda, Recife era, para o Mestre, uma cidade para ser descoberta em seus mistérios. Freyre construía sua psicologia urbana, analisando, por exemplo, os sobrados burgueses: de moças recatadas a espiar pelas frestas das janelas os homens desfilando sua importância pelo passeio urbano. Sobrados silenciosos como os do bairro da Boa Vista que guardavam crimes e fantasmas. Sobrados substituídos por apartamentos histéricos que gritam com a modernização da cidade a desordem da vida coletiva. Ruas que esperavam o cair da noite para transformar os gatos em bichos pardos, sorrateiros, à espera da caça. O aburguesamento do Recife trouxe consigo a "domesticação dos sentidos". Casas que resguardavam jovens grávidas, escândalos e tabus. Enquanto, do lado de fora, a vigilância punia com seu olhar invisível o desejo, a vontade. Bem, Gilberto, o Recife mudou e sua melancolia tentou até ser arrastada para debaixo do tapete da história. Mas é também da memória e dos sentimentos dos homens que a cidade é construída. Portanto, ainda não podemos dizer: aqui jaz o velho Recife. Pois o velho Recife se reproduz nas avenidas com sua impaciência e ansiedade. O velho Recife nos "tapeia", com luva de pelica. As diferentes posições sociais que nos são mostradas, hoje, ainda apontam para a segmentação entre o normativo e o transgressivo. Há uma saída para cada caminho chegado, entretanto, mesmo que este seja voltar-se para o próprio sobrado de onde o normal é desafiado com novas regras e códigos. Uma saída que nos revela as facetas curiosas da cidade em seus trajetos sinuosos onde ora se escondem, ora se mostram as diferentes identidades urbanas cuja composição caracteriza o seu cotidiano. Essa saída pode ser um Shopping Center. Conceituados como "não-lugar" pelos críticos do contemporâneo, os shoppings são visto como locais de uma população flutuante, cuja única identificação é o fato de haver a possibilidade farta de comunhão e exercício do consumo. O não-lugar é a lacuna entre a memória e a história cultural. Não há índices que nos remetam a uma experiência coletiva, como os monumentos urbanos, os casarios, as praças, os parques, os teatros e os museus. O Recife, com tantas marcas urbanísticas que traduzem a contemplação de pertencer a um território específico, guarda espaço também para esse não-território. A artificialidade da arquitetura, decoração e iluminação desses verdadeiros templos do capitalismo indicam também um sujeito/consumidor sem rosto: marionetes da publicidade que os trapaceiam com sonhos e felicidades fast-food. As lembranças nos shoppings centers são apenas passaporte para o lucro capitalista. Eis que no coração da cidade, no maior corredor de circulação do centro urbano, o shopping surge como prática de uma cidadania negociada, com cartão de identidade carimbado com uma marca própria. A passagem do não-lugar para a fronteira. Inaugurado em 1998, o Shopping Boa Vista chegou com a missão de implementar na avenida mais movimentada da histórica da Boa Vista, um centro de compras que contribuísse para a revitalização do comércio nessa área.

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Atualmente, ele consta como uma das dicas dos sites brasileiros destinados ao público GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e travestis). Grupos de adolescentes como o EMO e turmas de deficientes auditivos também se aglomeram em suas lanchonetes com códigos de comportamento cultural que fogem ao estigma do consumo. No entanto, são marcados com o estigma da diferença. Cerca de 50 mil pessoas vão ao Shopping Boa Vista diariamente. Mais de 100 lojas, duas praças de alimentação e seis salas de cinemas estão à disposição dos seus possíveis consumidores. Grupos de rapazes e moças escolhem o lugar para paquerar, namorar, bate-papo e consumir muito pouco. Ao contrário de outros shoppings da região metropolitana, o Boa Vista fez valer um certo sentimento de apego do recifense às suas origens. Entrecortado por bares freqüentados pelo público GLBT, o espaço conservou o que para muitos relembra o ar de decadência da zona boêmia na qual o centro mergulhou a partir dos anos 50. Traz também os novos tons dos fardamentos escolares; a união óbvia de quem encontra no centro o local de encontro por ser de fácil acesso e deslocamento. Não mais as normalistas de outrora, Boa Vista. O shopping ouve rock and roll; embora ainda masque chicletes. Em sua arquitetura kitsch, reserva, a atmosfera conservadora que perpassa a aura do recifense. Um sobrado high-tech, com lojas de departamento uniformizadas, redes de atendimento fast-food; afetos e tabus. O centro de compras mais uma vez contrariando a lógica dos grandes mercados de consumo, situa-se dentro de um paradigma de identificação através das micropolíticas de grupos. Para o crítico literário Fredric Jameson, elas surgem do "vazio" deixado pelo fracasso da luta de classes. Jameson reflete essa micropolítica como baseada em conceitos que são legitimados pela tríade "democracia, mídia e mercado". Essa democracia ascende como fragmento de cidadania, ou melhor, de uma cidadania utópica que remete à universalidade dos direitos humanos, datada da Revolução Francesa, e do espírito burguês do século XVIII. Para a mídia, as diversas vertentes de grupos culturais são modelos de consumo, cujo mercado publicitário se inspira à medida que fomenta a prática da diferença consumível, digerível. Não obstante, a diferença causa sim desconforto. Porque é a partir de determinados padrões de aceitação e normalidade que a diferença é aceita. Se ela se arrisca a sair do "permitido", o vigilante invisível que a acompanha não hesitará em demarcá-la em sua não-normatividade. Para além do moderno; do resgate da cidadania institucional, do olhar que pune o outro (que instiga a curiosidade alheia); para além da oportunidade banal de apenas ser um passageiro, antes do consumidor; para além do shopping. Contraditória, como Gilberto Freyre, a capital pernambucana fez de um lugar improvável a possibilidade de exposição das tantas e tantas formas de sentir, participar e estar na cidade. Uma "invasão" que nos leva a refletir sobre a ocupação dos diferentes grupos urbanos como resistência cultural, cujo objetivo não é ser domínio de poder social. Apenas diversão. Pois, como diria uma velha canção da cultura pop: "the girls just wanna have fun". \\


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O Palhaço Jurema e os Peixinhos Dourados tem estréia em agosto e retoma a discussão da obra teatral de Hermilo Borba Filho, que completaria 90 anos em 2007

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lória internacional no passado, mesmo na decadência física e profissional, o palhaço Jurema brilhava no picadeiro do mambembe Estrela do Norte, na Zona da Mata pernambucana. Ele garantia a risada de orelha a orelha. É certo que já sentia o incômodo daquele processo repetitivo. "E vai que esse uso da alegria cansou, mas e daí? Só aquilo sabia fazer na vida". Numa das sessões, em meio a salamaleques ele avistou a menina "naquela fase entre o cheiro de leite e o de flor". O instinto sexual despertou o velho palhaço. No crepúsculo da vida, esse desejo fertilizava um território seco de emoções. Temática espinhosa e difícil, de desdobramentos eticamente reprováveis. Mas o autor não escorrega na armadilha fácil. Num ritmo acelerado revela o mundo subjetivo do protagonista, habitado por frustrações, angústias, mesquinharias, solidão e erotismo impetuoso. O Palhaço Jurema e os Peixinhos Dourados é a versão teatral do conto O Palhaço, de Hermilo Borba Filho, que deve estrear em agosto. O texto articula várias temáticas: sedução quase canibal, velhice, solidão, sexo e violência, impulsos instintivos e a morte como saída. Gilberto Brito e Andrezza Alves estão no elenco do espetáculo, que tem direção de arte de Marcondes Lima. Na verdade, desde 1999 o encenador Carlos Carvalho investe nas adaptações das ficções de Borba Filho para o palco. Uma prosa que é extremamente teatral. Antes de O Palhaço Jurema, Carvalho montou A Gloriosa Vida e o Triste Fim de ZumbaSem-Dente, versão do conto O Traidor. O espetáculo persegue o ideário hermiliano, do teatro nordestino, universal, e a encenação utilizou elementos do cavalo-marinho e do maracatu na trilha sonora. Zumba-Sem-Dente, o protagonista interpretado por Jones Melo, é um sapateiro analfabeto e comunista, que durante a ditadura, na cidade de Palmares, sonha em implantar a democracia no país. O linguajar popular remete às utopias do período e retrata os estragos provocados pelo regime militar. Os procedimentos épicos foram aprofundados na peça Mucurana, o Peixe, adaptada por Carvalho do conto O Peixe. Com trechos narrados e outros dramatizados, a encenação utiliza projeção de imagens e canções críticas integram a encenação dessa fábula que versa sobre um homem alienado, um morador de rua, que é humilhado por um temido senhor de engenho e passa várias semanas carregando um peixe pendurado no pescoço. Um dos temas recorrentes na obra de Hermilo, a denúncia da opressão, de situações cotidianas ao massacre da dignidade do indivíduo. Dos 23 textos especificamente dramatúrgicos que escreveu, o de repercussão recente foi encenado em 1998, pela Cia. Teatro de Seraphim: Sobrados e Mocambos, uma peça segundo sugestões de Gilberto Freyre nem sempre seguidas pelo autor, de 1972, que estreou no Teatro do Parque, na abertura do 2º Festival Recife do Teatro Nacional. A peça é uma releitura de Sobrados e Mucambos, o livro de Gilberto Freyre publicado em 1936, e traça uma linha de ascensão, crise e decadência do sistema patriarcal. A peça apresenta os impactos da modernização sobre a antiga ordem colonial. O conflito de classe é elevado a primeiro plano, expondo a sexualidade sem pudor impregnada muitas vezes de uma conotação impiedosa e cruel, das relações entre dominados e dominadores. A peça revela a vida privada da casa-grande e da senzala, as várias formas de relacionamento entre representantes da elite e do povo. Descortina também as violências e erotizações dos sobrados e mocambos e os sentimentos que contribuíram na formação do povo brasileiro. Com a montagem, dirigida por Antonio Cadengue, a trupe discutiu a identidade nacional a partir da conexão entre passado e presente e suas reverberações.

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A paródia de Hermilo sobre o ensaio histórico gilbertiano traz uma outra visão do mundo muito além da distinção do "o" da peça de Borba Filho e o "u" do trabalho de Gilberto Freyre. Se o sociólogo de Apipucos buscava no seu texto o amaciamento do choque de contrários, o dramaturgo de Palmares expõe os conflitos, as tensões, as fraturas do tecido social brasileiro. Escrita durante a ditadura militar (apoiada por Freyre), a peça de Hermilo critica a situação política da época, faz uma gostosa e irreverente crônica de costumes, de estilo direto, com deboche e um erotismo vital, que marca sua obra. Em Sobrados e Mocambos, o escritor se posiciona ao lado dos oprimidos. Esse pensamento de engrandecer os humildes norteou a criação de A Donzela Joana (1966), que transfere para o Nordeste as façanhas da virgem de Orléans, na peça com a missão de comandar a expulsão dos holandeses de Pernambuco, libertar Olinda e coroar João Fernandes Vieira. Hermilo ambicionava juntar no palco atores contracenando com bonecos de mamulengo, personagens do bumba-meu-boi e figuras do pastoril. A Donzela Joana está nos planos de montagem de Carlos Carvalho, projeto que está em fase de captação de recursos. O diretor pretende fazer um diálogo entre o teatro Nô e o mamulengo. Hermilo Borba Filho tem uma obra dramatúrgica que merece maior projeção. Seu compromisso em combater injustiças sociais estão presentes desde as primeiras peças como Electra no Circo de 1944, que faz a retomada do clássico de Sófocles. Em João sem terra (1947) mostra o homem dominado por impulsos sexuais e antecipa em décadas o debate sobre a questão da posse de terra no teatro. O conflito de pescadores às voltas com a aparição de uma mulher irresistível, que desperta o sentido erótico desses homens é o leitmotiv de A barca de ouro, de 1949. No Auto da mula-de-padre, o autor propõe a utilização do elemento sobre-humano, inspirado nas crendices populares. Em Um paroquiano inevitável ele apresenta forças estranhas com poder de decidir o destino dos homens. Hermilo Borba Filho sempre foi um homem de teatro. Começou como ponto (figura fora da cena que "soprava" a fala dos atores), depois foi ator, dramaturgo, encenador, teórico, fundador do Teatro do Estudante de Pernambuco - TEP, do Teatro Popular do Nordeste, do Movimento de Cultura Popular - MCP (que depois rompeu). Seu trabalho está fincado na criação de espetáculos nordestinos de estética épica. O escritor Ariano Suassuna, companheiro na fundação do TEP e no TPN testemunha que "no que se refere a nossa geração, não há ninguém que se possa comparar a Hermilo Borba Filho como abridor de veredas e apontador de caminhos." A releitura do Hermilo Borba Filho das teorias universais do teatro passa pela ótica das manifestações populares do Nordeste. Sua contribuição no campo da pesquisa inclui as obras Teatro, Arte do Povo e Reflexões sobre a Mise-en-scène (1947), Teoria e Prática do Teatro (1960), Diálogo do Encenador (1964), Espetáculos Populares do Nordeste e Fisionomia e Espírito do Mamulengo, ambos em 1966, Apresentação do Bumba-Meu-Boi (1967) e História do Espetáculo (1968). Numa das cartas de Hermilo para o escritor Osman Lins, o autor de A Donzela Joana confessa em 19 de dezembro de 1966: "estamos afogados em dívidas e cada vez mais crentes que fazer teatro no Recife é um dos mais desesperados atos de heroísmo já cometidos pelo homem". Nesse sentido, Hermilo Borba Filho foi um herói até o fim da vida. \\

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Fotos: Alexandre Belém

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A vanguarda

vem de longe Gonzaga Leal consolida sua carreira no quarto álbum onde imprime ousadia, refinamento e sensibilidade ao interpretar canções do passado Raimundo Carrero

osé Teles tem razão: a marca de Gonzaga Leal é a ousadia. Ousadia, sobretudo, de realizar um trabalho refinado, de quem não se preocupa com as leis do mercado, mas continua investindo, sinceramente, na qualidade. O seu "E o nosso mínimo é o prazer" - na verdade verso de canção que tenta desvendar o segredo do álbum inteiro - é cuidado em cada detalhe, em cada pequeno detalhe, e resulta num trabalho extremamente zeloso. Durante vários meses, gravando ora no Recife, ora em São Paulo, Gonzaga conseguiu realizar aquilo que a arte tem de mais exigente: o sabor de inédito e da paixão, de algo que não termina nunca, porque se aproxima do perfeito. Zelo na escolha do repertório, zelo na escolha dos músicos, zelo na escolha da regência. Por isso cada uma das faixas está repleta de sentimentos e transcendência. É ainda o próprio José Teles quem destaca: "Ao contrário de muito roqueiro moderninho, não esboça o cantor o menor preconceito quanto a estilos, época, ou preocupação com o novo pelo novo". E, entanto, nem o novo que se pratica na música popular brasileira, hoje. Pudera. Pratica-se mesmo o medíocre, o insano, o horroroso. Daí porque é ousado. Nunca cai no lugar comum, não despenca para a grosseria, não se mostra vulgar. Para tudo e para todos, um Gonzaga Leal que prima pela maravilha da música, com peças até mesmo desconhecidas do grande público, algumas inteiramente desconhecidas, mas guardadas com cuidado, no zeloso baú da maravilha. Por isso, Weydson de Barros Leal destaca: “Em ‘E o nosso mínimo é prazer’ a escolha do repertório, sua musicalidade, os arranjos sofisticados sob a direção musical e regência do violinista Cláudio Moura, nos levam a uma atmosfera de outra época, uma época em que a poesia das letras era par irrepreensível para a poesia da música. Aqui o samba se recria em samba-canção, o chorinho em samba-choro, em maxixe, encontrando uma nova beleza”. Não tenha dúvida, o bom admirador de Gonzaga Leal - e até os que ainda não são admiradores : ele consegue reunir aquilo que melhor se aplica à arte musical: ritmo, elegância, refinamento. Basta também ler sempre perto das letras, os nomes daqueles que estão formando o elegante conjunto de valores que faz o acompanhamento. Não o acompanhamento naquele sentido tradicional, de pessoas que se reúnem para tornar a música possível. Nada disso. Estão todos elegantemente integrados aos arranjos, com uma leveza de que percebe os movimentos e se integram a eles como folhas de uma única árvore. Basta agora, assim, comprovar minhas palavras pelas palavras de Rubem Rocha Filho: "Sua narrativa dramatúrgica é de brisas espalhadas, sutilezas de um trocista capaz de se aprofundar em nossa maneira de focar o mundo. Ele contracena com os arcos da Lapa, a sonora garoa, os frevos-de-bloco, provando que quem ama não esquece". E mais ainda: Rubem Rocha Filho usa uma palavra definitiva para caracterizar Gonzaga Leal: sutileza. Isso mesmo. Uma palavra definitiva, verdadeira e insubstituível. Uma palavra que reunida a refinamento, sem dúvida revela todo o comportamento deste artista que realiza uma obra de vanguarda, com aqueles melhores elementos que vêm do passado. \\

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A rtes plásticas oi numa conversa sobre as dificuldades de divulgação que os artistas enfrentam, aumentando as distâncias entre eles, curadores, público e mercado que a artista plástica Juliana Notari criou, junto com o também artista Lourival Cuquinha, o Movimento Pró-Trailers nas artes plásticas. “O mercado é muito pequeno. São poucas as galerias e instituições que abrem espaço para expormos. Sendo assim, o curador não tem muitas oportunidades de conhecer os trabalhos, a não ser através de portfólio, durante as seleções para salões. Portanto, é normal que ele escolha algo que já conhece, que já viu ao vivo. Acredito ser essa a razão da dificuldade de se inserir o novo e de o circuito de artes plásticas ser tão fechado”, analisa Juliana. A idéia - posta em prática pela primeira vez (espera-se que haja outras) na exposição Costumes – minha mãe sustenta minha filha, de Cuquinha, no Instituto Cultural Banco Real - é exibir, em vídeo, obras em andamento, como uma antecipação do que se vai ver, futuramente, na exposição daquele artista. Obras já acabadas, que somente serão vistas ali, também entram. Para o artista plástico Zé Paulo, toda iniciativa a favor da divulgação é válida. “Os trabalhos têm que ser mostrados mesmo, da forma que for. Eu, como público, só vejo vantagens em ir a uma exposição pensando em ver obras de um artista, e ao chegar me deparar com criações de outras pessoas”, descreve. A artista plástica Séphora Silva também achou a idéia interessante, porém não chegou a ver os trabalhos porque a TV onde estavam sendo exibidos os trailers ficou em lugar de pouca visibilidade. “Não acho que os trailers devam ficar no mesmo lugar das obras, porque ambos podem se confundir, e aí fica um trabalho que não é mais somente daquele artista, e sim também de todos os que estão exibindo os vídeos. Mas sugiro que haja mais destaque no espaço da exposição, não no mesmo espaço do artista”. Além de Juliana, expuseram trailers Fernando Peres e Paulinho do Amparo. Escolha do próprio Cuquinha, atuando como curador. A relação entre curadores e artistas, aliás, tem gerado divergências. Fernando, em vez de trailer, mostrou a obra acabada Fernandinho Viadagem - Um trailer de amor, onde critica Cuquinha e a relação de “babaovismo” que ele acredita haver entre artistas, instituições e curadores, que se legitimam uns aos outros. “O curador muitas vezes obriga o artista a fazer concessões, como impor a presença de um texto explicativo, por exemplo. Às vezes não quero que haja texto nenhum. Se for obrigado a dividir minha exposição com um texto de um curador, vou sempre procurar uma forma de tirar onda dessa imposição, pois acho que aquelas definições bitolam o artista”, diz Fernando. Para Cuquinha, essa história de ceder à “vontade” do curador não existe. “Se dois artistas vão fazer um trabalho juntos, ninguém fala em ceder. No fundo são duas pessoas pensando numa exposição. Se não há sintonia, não há trabalho”. O critério usado por Cuquinha para escolha dos artistas foi muito simples. “Escolhi os artistas ou os projetos que gostava. Mas para mim um bom curador é alguém que sabe fazer um recorte na obra de um artista (ou de vários) com um sentido de comunicação, didático até”. Zé Paulo completa: “Existe curador que pesquisa, estuda, está dentro do circuito, e consegue colocar o trabalho em um contexto. Nada impede, no entanto, que curador seja alguém sem esse compromisso”. “Se fosse escolher uma obra, escolheria por amizade mesmo, pois acho impossível separar artista e obra. Estou em uma fase de ultraviolência, e entendo que o tema não é facilmente digerível, e não quero de maneira nenhuma podá-lo para que fique”, diz Paulinho, que exibiu um dos episódios do seriado As mortes de Cáudio Assis, uma animação feita quadro a quadro, a partir de seus próprios desenhos. Juliana exibiu um trailer da obra Músicos no saco. No Abril pro rock desse ano, ela esteve no backstage empacotando os músicos dentro de sacos plásticos com códigos de barra. “A obra discute a relação do músico com o mercado, e é uma mistura de crítica e admiração, pois o músico concebe um CD, algo que está pronto para o consumo, coisa difícil para o artista contemporâneo”. Apesar de não ver com bons olhos o fato de o curador estar cada vez mais inserido na obra - “É como se a teoria passasse por cima da arte” -, Juliana reconhece seu papel. “Muitas vezes é o curador quem tem a idéia da melhor forma de apresentar a criação, é ele quem cria a concepção toda de uma exposição. Não há como não se envolver”. “Quando o artista souber ou tiver condições de fazer isso, talvez não precise mais de curador”, completa Séphora. Já para Zé Paulo, a aproximação cada vez maior entre curador e artista é um reflexo da mudança de conceitos. “O meio artístico hoje tem uma dinâmica muito maior, e o curador exerce um papel tão importante quanto o do artista”.\\

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Artistas plásticos encontram nos trailers nova forma de divulgação dos seus trabalhos

SXC/Cortesia

Carol Botelho

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A rtesanato

A reinvenção

dos mundos

inguém precisa perder tempo para verificar com um rápido olhar: a arte popular em Pernambuco está se renovando. Sinais do tempo? Nada disso, apenas um encontro das novas formas da construção artística com os materiais até então rejeitados.. Para constatar a novidade, basta visitar a 8a. Feira Nacional de Negócios e Artesanatos - Fenneart - de 6 a 15 de julho, no Centro de Convenções do Recife. Para que isso se tornasse possível, foi preciso valorizar o artista que recolhia nas ruas o chamado material reciclável, composto, por exemplo, de garrafa pet, arame, madeira de demolição, ao lado de jornal velho, garrafa de vidro rachada. Tudo constatado, também, pela premiada pernambucana Mariane Perreit, para que no primeiro mundo esse tipo de material já era trabalhado pela artística plástica francesa Louise Bourgeois, que mora em Nova York. Ela acrescenta que "não é só quem dispõe de dinheiro para aquisição de matériaprima". Perreiti, porém, não está só. Tem a companhia de Renata Campos, primeiradama do Estado, da também artista plástica Teresa Costa Rego, de Madalena Arraes, e da AD-Diper, entusiasmadas com a Primeira Galeria de Reciclados, que será implantada durante a feira. Os visitantes também vão participar de uma votação para escolha o melhor trabalho que receberá o Prêmio Silvia Coimbra. De alguma forma, isso altera o mapa do artesanato popular do Estado, tradicionalmente concentrado na Zona da Mata e no Agreste pernambucanos. Até porque, o número de inscritos das mais variadas áreas culturais do Estado se mostra surpreendente. Duzentos e cinqüenta e três trabalhos foram inscritos: Três Marias, Maracatu, Guerreiro Cristão, Cortador de Cana, Brinquedo de Feira, Slaver o Saber, além de luminárias, conforme atesta o curador Ticiano Arraes, com vasta experiência em ONGs que trabalham em comunidades. Ele também conta com colaboração de Eric Gomes e

N

Décio Genival. Mais há, ainda, uma ressalva fundamental: "Só pernambucanos participaram da seleção para Galeria de Reciclados", salienta. A idéia foi da coordenadora de Artesanato da AD-Diper, Yara Nóbrega, ressaltando que "fizemos um concurso para escolher peças para o salão. Foi muito difícil, pois os trabalhadores são maravilhosos. Escolhemos 50 trabalhos que surpreendem o olhar. Para tal levamos em consideração peso, dimensão da arte, material utilizado e técnica de reutilização". Ela vai aproveitar a Fenneart para lançar a Companhia do Lixo Zero. Enquanto isso, outra boa novidade foi anunciada para Fenneart 2007. Os preços dos estandes baixaram 20%. "Também houve uma ampliação no espaço físico e pela primeira vez o mezanino será utilizado", conta Carlos Augusto Lira que assina toda a concepção do maior evento de artesanato do Estado. Nos preparativos da feira, ocorreu, ainda, o concurso para escolher as peças do Salão de Arte Popular, que recebeu 183 trabalhos de vários artistas. E artistas populares de Igarassu, Garanhuns, Caruaru e Buíque estão comemorando. É o caso de José Abias da Silva, 40 anos. Com galhos de árvores, aroeira e azeitona, por exemplo, em duas semanas criou uma peça, que chamou de Capoeira. Foi o grande vencedor do Salão. Roberto Vital da Silva, 32 anos, desde criança faz artesanato, e pretendia criar algo novo. Também deu certo. Arrebatou o segundo lugar com um trabalho feito de tronco de coqueiro denominado "O Cangaço". Mais novidade? É claro: há também o poder criador dos Quilombolas, classificado de excelente pela professora Célia Novaes, também técnica de artesanato. Aliás, todo o vigor artístico dessa área vem da tradição negra no Estado, alimentada por uma população que ainda ocupa várias regiões pernambucanas, desde o Agreste até o Sertão, a exemplo de Garanhuns e Conceição das Crioulas, município de Salgueiro. \\

Marilene Mendes

A Fenneart é um bom indício de como a arte popular tem se renovado

Divulgação

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Pernambuco_ Jun 07.2 O que mais gosto de fazer na vida é escrever. Não tenho talento para mais nada além. Isso seria quase um defeito, não fosse o que de melhor faço na vida. Por mim, ficaria o dia inteiro com os dedos no teclado, inventando histórias. Infelizmente não posso. No Brasil (com exceção daquele que todos sabemos quem é), o escritor não consegue viver do seu ofício. A depender de direitos autorais e eu estaria passando fome. Como não tenho vocação para faquir, tive que ir atrás de algo que me garantisse não só a comida como também, vez ou outra, uma cervejinha com os amigos, um cineminha, um livrinho. Assim mesmo, tudo no diminutivo. Os superlativos foram abolidos de vez do meu orçamento. Conheço muitos escritores que vivem da escrita. Não da escrita inventada, da ficção propriamente dita, mas sim da que serve a fins mais prosaicos e mercantilistas. São jornalistas, redatores de publicidade, gost whriters de biografias de aspi-

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O que mais gosto de fazer na vida é escrever. Não tenho talento para mais nada além. Isso seria quase um defeito, não fosse o que de melhor faço na vida. Por mim, ficaria o dia inteiro com os dedos no teclado, inventando histórias. Infelizmente não posso. No Brasil (com exceção daquele que todos sabemos quem é), o escritor não consegue viver do seu ofício. A depender de direitos autorais e eu estaria passando fome. Como não tenho vocação para faquir, tive que ir atrás de algo que me garantisse não só a comida como também, vez ou outra, uma cervejinha com os amigos, um cineminha, um livrinho. Assim mesmo, tudo no diminutivo. Os superlativos foram abolidos de vez do meu orçamento. Conheço muitos escritores que vivem da escrita. Não da escrita inventada, da ficção propriamente dita, mas sim da que serve a fins mais prosaicos e mercantilistas. São jornalistas, redatores de publicidade, gost whriters de biografias de aspirantes a celebridade, escrevem discursos de políticos, folhetos de liquidação, etc etc... Não é o meu caso. Sou funcionária pública há três qüinqüênios quase completos. Hoje são raros os escritores que ganham a vida como barnabés, prática bastante comum até meados do século passado. Reconheço que o serviço público é um bom lugar para escritores. A garantia do emprego, malgrado o baixo salário, sossega, e muito, nossa alma por natureza atormentada. Mas sou sincera em dizer que o trabalho não me dá alegria alguma. Não tive a graça de aliar profissão e prazer, labor e alegria. Agora já é tarde demais pra isso. Hoje em dia não há quem desconheça as benesses de se trabalhar num lugar que te faça feliz, numa profissão que te realize espiritualmente, psicologicamente e financeiramente. As páginas das revistas, os artigos dos jornais, os programas de TV repetem esse conselho à exaustão. Como se fosse fácil. Como se houvesse tanta escolha ao alcance do cidadão comum. Se emprego está escasso, imagine um que seja do seu agrado. O jeito é agarrar o primeiro que aparece e seguir pela estrada que, geralmente, nos leva pra bem longe do lugar que gostaríamos. No caso de emprego público, a coisa fica ainda mais complicada. Quem, em sã consciência, tem coragem de mandar às favas um emprego que garante o pão do mês seguinte? Ao lado da minha cama tenho um lápis vermelho que uso para fazer risquinhos na parede, contando um a um os dias que faltam para a aposentadoria. E rezo pra que ela não chegue tarde demais e ainda me pegue inteira, a tempo de fazer da minha vida aquilo que eu queria que ela fosse. Tendo isso em mente, segure sua língua e pense duas vezes antes de chamar um funcionário público de preguiçoso. Por trás daquele sujeito que te atende mal e que boceja desanimado do outro lado do balcão pode ter um escritor abatido pelo fardo que lhe pesa nos ombros. Tenha compaixão do pobre. Eu sei que poucos têm a felicidade de ter estabilidade no emprego, mas isso também pode ser uma prisão.

Ivana Arruda Leite 6/26/2007

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O que mais gosto de fazer na vida é escrever. Não tenho talento para mais nada além. Isso seria quase um defeito, não fosse o que de melhor faço na vida. Por mim, ficaria o dia inteiro com os dedos no teclado, inventando histórias. Infelizmente não posso. No Brasil (com exceção daquele que todos sabemos quem é), o escritor não consegue viver do seu ofício. A depender de direitos autorais e eu estaria passando fome. Como não tenho vocação para faquir, tive que ir atrás de algo que me garantisse não só a comida como também, vez ou outra, uma cervejinha com os amigos, um cineminha, um livrinho. Assim mesmo, tudo no diminutivo. Os superlativos foram abolidos de vez do meu orçamento. Conheço muitos escritores que vivem da escrita. Não da escrita inventada, da ficção propriamente dita, mas sim da que serve a fins mais prosaicos e mercantilistas. São jornalistas, redatores de publicidade, gost whriters de biografias de aspirantes a celebridade, escrevem discursos de políticos, folhetos de liquidação etc, etc... Não é o meu caso. Sou funcionária pública há três qüinqüênios quase completos. Hoje são raros os escritores que ganham a vida como barnabés, prática bastante comum até meados do século passado. Reconheço que o serviço público é um bom lugar para escritores. A garantia do emprego, malgrado o baixo salário, sossega, e muito, nossa alma por natureza atormentada. Mas sou sincera em dizer que o trabalho não me dá alegria alguma. Não tive a graça de aliar profissão e prazer, labor e alegria. Agora já é tarde demais pra isso. Hoje em dia não há quem desconheça as benesses de se trabalhar num lugar que te faça feliz, numa profissão que te realize espiritualmente, psicologicamente e financeiramente. As páginas das revistas, os artigos dos jornais, os programas de TV repetem esse conselho à exaustão. Como se fosse fácil. Como se houvesse tanta escolha ao alcance do cidadão comum. Se emprego está escasso, imagine um que seja do seu agrado. O jeito é agarrar o primeiro que aparece e seguir pela estrada que, geralmente, nos leva pra bem longe do lugar que gostaríamos. No caso de emprego público, a coisa fica ainda mais complicada. Quem, em sã consciência, tem coragem de mandar às favas um emprego que garante o pão do mês seguinte? Ao lado da minha cama tenho um lápis vermelho que uso para fazer risquinhos na parede, contando um a um os dias que faltam para a aposentadoria. E rezo pra que ela não chegue tarde demais e ainda me pegue inteira, a tempo de fazer da minha vida aquilo que eu queria que ela fosse. Tendo isso em mente, segure sua língua e pense duas vezes antes de chamar um funcionário público de preguiçoso. Por trás daquele sujeito que te atende mal e que boceja desanimado do outro lado do balcão pode ter um escritor abatido pelo fardo que lhe pesa nos ombros. Tenha compaixão do pobre. Eu sei que poucos têm a felicidade de ter estabilidade no emprego, mas isso também pode ser uma prisão.

Preguiçosa eu? O que mais gosto de fazer na vida é escrever. Não tenho talento para mais nada além. Isso seria quase um defeito, não fosse o que de melhor faço na vida. Por mim, ficaria o dia inteiro com os dedos no teclado, inventando histórias. Infelizmente não posso. No Brasil (com exceção daquele que todos sabemos quem é), o escritor não consegue viver do seu ofício. A depender de direitos autorais e eu estaria passando fome. Como não tenho vocação para faquir, tive que ir atrás de algo que me garantisse não só a comida como também, vez ou outra, uma cervejinha com os amigos, um cineminha, um livrinho. Assim mesmo, tudo no diminutivo. Os superlativos foram abolidos de vez do meu orçamento. Conheço muitos escritores que vivem da escrita. Não da escrita inventada, da ficção propriamente dita, mas sim da que serve a fins mais prosaicos e mercantilistas. São jornalistas, redatores de publicidade, gost whriters de biografias de aspirantes a celebridade, escrevem discursos de políticos, folhetos de liquidação etc, etc... Não é o meu caso. Sou funcionária pública há três qüinqüênios quase completos. Hoje são raros os escritores que ganham a vida como barnabés, prática bastante comum até meados do século passado. Reconheço que o serviço público é um bom lugar para escritores. A garantia do emprego, malgrado o baixo salário, sossega, e muito, nossa alma por natureza atormentada. Mas sou sincera em dizer que o trabalho não me dá alegria alguma. Não tive a graça de aliar profissão e prazer, labor e alegria. Agora já é tarde demais pra isso. Hoje em dia não há quem desconheça as benesses de se trabalhar num lugar que te faça feliz, numa profissão que te realize espiritualmente, psicologicamente e financeiramente. As páginas das revistas, os artigos dos jornais, os programas de TV repetem esse conselho à exaustão. Como se fosse fácil. Como se houvesse tanta escolha ao alcance do cidadão comum. Se emprego está escasso, imagine um que seja do seu agrado. O jeito é agarrar o primeiro que aparece e seguir pela estrada que, geralmente, nos leva pra bem longe do lugar que gostaríamos. No caso de emprego público, a coisa fica ainda mais complicada. Quem, em sã consciência, tem coragem de mandar às favas um emprego que garante o pão do mês seguinte? Ao lado da minha cama tenho um lápis vermelho que uso para fazer risquinhos na parede, contando um a um os dias que faltam para a aposentadoria. E rezo pra que ela não chegue tarde demais e ainda me pegue inteira, a tempo de fazer da minha vida aquilo que eu queria que ela fosse.

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