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E xpediente SUMÁRIO
EDITORIAL
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Úmido - Em pouco tempo, a gramática vai ficar de cabeça pra baixo com a reforma ortográfica
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Morel - Uma nova análise do clássico de Adolfo Bioy Casares, que ganha nova edição pela Editora Cosac Naify
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Nada se cria, tudo se copia - Fãs fazem seu próprio Harry Potter
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Roupas de heróis. - Como a Adidas e a Puma tomaram de assalto o mundo esportivo
Matéria de capa deste número do Pernambuco, a nova reforma ortográfica, que se anuncia para o mês de dezembro próximo, provocará, sem dúvida, uma revolução naquelas pessoas que, profissionalmente, usam a palavra escrita. Para comentá-la, convocamos o saber de Nelly Carvalho, não só uma especialista em língua portuguesa, mas também uma das integrantes da comissão que estuda a reforma. Na verdade, não uma simples reforma, mas uma unificação, o que vai possibilitar que escritores publicados no Recife, por exemplo, possam ser lidos sem a exigência de revisões, por pessoas de qualquer país de língua portuguesa. A atual situação gramatical exige, inclusive, que escritores como José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, não permitam que seus livros sejam traduzidos para o "brasileiro". As opiniões, porém, não são unânimes. O poeta Marcus Accioly, presidente do Conselho Estadual de Cultura, considera a reforma desnecessária. Ele acrescenta que a língua é dinâmica e que não precisa de algo assim tão determinante. Com o que não concorda o acadêmico Olimpio Bonnald, para quem a língua portuguesa devia ser cumprida à risca, inclusive no uso do coloquial. Ele não concorda com Mário de Andrade, que admitia a linguagem usada nas ruas pela população. Tudo isso está no Saber +, encarte deste jornal, que promete polemizar todos os assuntos, sempre com a colaboração de especialistas e interessados. Tatiana Arôxa vê a possibilidade de complicações, sobretudo para a sua geração de estudantes de Direito, porque será fundamental o uso correto da língua, em qualquer circunstância. "Até mesmo porque o dia-a-dia do Poder Judiciário é baseado em processos, e este são escritos segundo as regras da última reforma de 1971". E ela tem um conforto: haverá uma fase de adaptação das novas regras.
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Vulgar e soberana - Análise aponta a importância da mandioca na culinária do Brasil
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Teimosia que dá em luso-samba - Cantor português revela suas conexões brasileiras
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Eis que vos tenho dado toda erva que dê semente- Crônica de José Teles lembra a passagem de uma certa majestade pelo Recife
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Inédito - Adelaide Ivanova ensina como sair ilesa e renovada do inferno astral
Uma dica bem rápida. Entre as mudanças está prevista a queda do hífen. E agora? Guarda-chuva vira guardachuva. Sabia? Quer mais: as palavras assembléia, idéia e jibóia se transformam em assembleia, ideia e joboia, tudo porque "não serão acentuados com acento gráfico os ditongos ei e oi de palavras paroxítonas". O professor Ronaldo Cordeiro Santos chega a ser radical: unificar a língua é um desrespeito com o falante. E defende, entre outras coisa, a linguagem usada por Saramago. Também ele concorda que o coloquial tem uma missão importante, daí porque simplesmente não pode nem deve ser esquecido assim sem mais nem menos. Mas não é só de reforma ortográfico que vive o Pernambuco. Outras matérias interessantes estão distribuídas no corpo do jornal. Basta ler o texto de Carol Almeida a respeito de Harry Potter, cuja paixão impressiona o mundo. Em texto primoroso ela faz uma avaliação daquelas pessoas que se tornam mais do que fãs, intérpretes do famoso personagem e dos livros, recriando e reinventando as suas próprias histórias, o que altera, de modo significativo, a questão do autor. Na oitava página, Dario Brito escreve sobre as "roupas de heróis", tratando da questão das marcas famosas que transformam homens comuns em estrelas e celebridades. Não faltando, ainda, a importância da mandioca na cozinha brasileira, em matéria assinada por Bruno Albertim, seguida de crônica de José Teles, com a sua natural qualidade literária e capacidade criativa. Dessa maneira, este jornal procura construir uma edição com o uso de um projeto gráfico revolucionário aliado a um texto que se pretende leve, embora com a densidade de uma reportagem. Assim, o Pernambuco procura manter o leitor tradicional, na busca de encontrar o olhar daqueles que se colocam no jornalismo depois da internet. Boa leitura. pernambuco@cepe.com.br
Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “Festivais mudam a literatura em Pernambuco?”. Você participará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.
EXPEDIENTE GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos PRESIDENTE Flávio Chaves
VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto
DIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses
SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão DIRETOR INDUSTRIAL Reginaldo Bezerra Duarte
GESTOR GRÁFICO Júlio Gonçalves
EQUIPE DE PRODUÇÃO Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela
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Companhia Editora de Pernambuco -C CEPE Fone: (81) 3217.2500– Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro FAX: (81) 3222.5126 CEP 50100-140
EDITOR Raimundo Carrero
EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani
EDIÇÃO DE ARTE Andréa Aguiar - Interina
SECRETÁRIO GRÁFICO Gilberto Silva
TRATAMENTO DE IMAGEM Sebastião Corrêa
REVISÃO Gilson Oliveira
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Úmido
Como a reforma ortográfica vai mexer com todos os países de língua portuguesa
Nelly Carvalho stá sendo aguardado, com interesse temperado com algum sensacionalismo, o acordo ortográfico assinado entre países lusófonos e a entrar em vigor brevemente A pretendida reforma ortográfica começou a tomar forma em 1986 e foi decidida por uma comissão formada de um brasileiro - Antônio Houaiss - e vários portugueses, além de observadores das repúblicas africanas de fala portuguesa. A pretensão inicial era apenas a louvável unificação das ortografias brasileira e portuguesa. Ambas são regidas por leis promulgadas pelos respectivos congressos nacionais e têm poucas divergências, correspondentes a usos locais: a adoção do "c" em Portugal em palavras como "facto" e a não-correspondência entre os acentos circunflexos e agudos como gênio - génio, além das formas do verbo querer: quere (Portugal) e quer (Brasil). Sim, ia esquecendo , alguns usos do H: em Portugal escreve-se húmido, humidade e não sem h como nós. Porém, o projeto inicial ampliou-se e foram incluídas a abolição do hífen, a abolição dos acentos das proparoxítonas, do trema e do H interior. Super-homem conservará a mesma força com superomem? O Y,W,K voltariam e voltarão triunfantes. A primeira vista parece simplificar a nossa vida, esta atualização do código escrito. Mas, na realidade, estão embutidas nestas regrinhas simples as exceções que vão ser pedras no sapato do já mal alfabetizado povo brasileiro. Afinal, a palavra escrita é um retrato que temos na mente, e a ausência do hífen irá provocar grafias quilométricas que são avessas ao espírito da língua portuguesa, de certa forma, assemelhando-a ao alemão, esse sim, com uma longa tradição aglutinativa. Os acentos das proparoxítonas que iriam ser abolidos, foram deixados de lado e vão permanecer. As proparoxítonas, em sua quase totalidade, são palavras eruditas que foram diretamente importadas e adaptadas do latim clássico. Pouco usadas na linguagem popular, seu número é diminuto. A primeira ortografia da língua portuguesa pertence a uma época remota, quando o Brasil ainda não existia como nação. Foi a fase fonética e reinou durante este período a anarquia ortográfica. A seguir, por influência dos escritores clássicos chegando aos românticos, tivemos um período do pseudo-etimológico, quando ressuscitaram letras mortas e sem valor fonético. Foi o tempo da "asthma" e da "phtysica". A partir de 1911, Gonçalves Viana, em Portugal,
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lançou as bases da atual ortografia, adotada no Brasil com modificações, oficialmente em 1943. É a que usamos hoje. Posteriormente, houve uma tentativa mal sucedida de reformulação e unificação em 1945, logo anulada. Chegou a ser ensinada nas escolas e adotada em livros didáticos. Mas, foi revogada. A partir de então, a Língua Portuguesa ficou com as duas ortografias oficiais. Isto, segundo pregava o bravo e sábio Antônio Houaiss, tornou-se um problema mais político que lingüístico, pois a língua portuguesa, com duas ortografias oficiais, não pode ser adotada como língua de trabalho nos fóruns internacionais (tipo ONU, UNESCO), apesar de ser uma das línguas mais faladas do mundo (está entre quinto e sétimo lugar, dependendo do modo de realizar o censo). Deve-se decidir que ortografia usar nas transcrições, o que traz problemas diplomáticos. Usar a ortografia da pátria mãe da língua ou usar daquela que detém o maior número de falantes? Pois nossa língua tem um contingente em torno de 200 milhões de falantes, dos quais fazem parte cerca de 160 milhões de brasileiros, enquanto Portugal tem mais ou menos 10 milhões de falantes . As ex-colônias africanas seguem o modelo da matriz, mas como o português disputa espaço com várias línguas locais, é apenas língua oficial, mas não é língua materna da maioria dos falantes de Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique. Continuando as mudanças unilaterais, em 1971 foram suprimidos os acentos diferenciais - ainda hoje usados inadvertidamente por muitos (sêca - seca/ côco - coco) que foram alfabetizados antes desta data O atual projeto de reforma, que partiu de uma acertada decisão de unificar as "grafias" (porque nem a língua, nem os usos, nem as pronúncias jamais serão regidos por lei) ao ampliar-se encontrou forte reação, sobretudo dos intelectuais portugueses, que julgaram ser influência do Brasil, com fins de monopolizar o mercado editorial e portar-se como "dono" da língua, por ser enorme seu contingente populacional. O Diário de Notícias, na época (meados da década de 80), em Portugal, chegou a publicar: "O Brasil passou-nos a perna". A dificuldade de aceitar reformas advém do fato de gravarmos a imagem visual do vocábulo e recusarmos-nos, após alfabetizados, a modificá-la. Além do mais, a língua escrita é apenas uma representação convencional da língua falada, sem obrigações, nem possibilidades de correspondência exata entre letras e fonemas, em nenhuma língua do mundo. As reformas são necessárias, mas devem ser adaptações ligeiras para não abalar o conhecimento estruturado nos livros e nas mentes. E foi isso que finalmente foi decidido, para o que contribuiu a ponderação do presidente da Academia Brasileira de Letras, o pernambucano Marcos Vinícius Vilaça, de certa forma, assumindo o papel de Houaiss nessa decisão. A reforma será uma adaptação, um ajuste, havendo casos opcionais, inclusive. É como funcionam as reformas ortográficas em espanhol, sabiamente conduzidas e autoritariamente impostas pela Real Academia Espanhola a todos os países "hispanohablantes". O Acordo Ortográfico ainda não vigora, mas foi aprovado e assinado por representantes dos sete países lusófonos, em 16 de dezembro de 1999, em Lisboa. Falta-lhe apenas o cumprimento do artigo 3º : "O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa deverá entrar em vigor após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados, junto ao Governo da República Portuguesa". Mas, ainda há muita resistência à reforma, sobretudo referente à acentuação. E, além disso, muitos pensam equivocadamente que a simplificação facilitará o processo de aprendizagem da escrita, o que não é verdade A reforma é apenas uma pequena tentativa de atualização de grafia, ajustando-a aos usos comuns dos povos lusófonos. \\
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ovo estranho esse nosso: fala numa língua e escreve noutra", dizia Mário de Andrade, um daqueles escritores nacionais - às vezes até nacionalistas - que tinha imensa preocupação com os problemas lingüísticos do povo brasileiro, obrigado a cumprir os rigores de uma gramática mais imposta do que viva. Na verdade, o brasileiro sempre teve dificuldades de conviver com regras e determinações que nada têm com o seu espírito. De repente, sempre me perguntei desde muito cedo, desde menino: por que a gente é obrigado a falar uma língua tão complicada, tão cheia ênclises, próclises e mesóclises, nem de longe parecida com aquelas que todos usavam nas calçadas, nos bares e nas escolas. Sim, porque o português usado nos corredores e nos pátios de recreio, não era o mesmo usado nas salas de aulas. Bem mais difícil e sem articulação. É claro que uma reforma gramatical não vai mudar em nada, em absolutamente nada, a fala das pessoas. Nem nunca, nem jamais. Não há imposição que resista. Na sociedade tudo é espontâneo. Mesmo com a invasão estrangeira que causa confusão na linguagem. Mas a invasão inglesa, por exemplo, não é maior do que a invasão francesa que implantou um garçom, um calofom ou um cachete. Mas esta reforma ortográfica parece ter um dado positivo para escritores, poetas e jornalistas: a língua escrita será uniforme em todos os países de língua portuguesa. Parece. A princípio apenas parece, porque pode ser que em outras nações exista o dilema de obedecer ou não à língua oficial. Em Portugal, um país com tradição mais conservadora, a língua escrita se aproxima demais da língua falada. Ou vice-versa. E em outras nações cheias de dialetos e influências? Porque é preciso constatar: a gramática sempre é impositiva, às vezes vai muito além daquilo que é razoável para a pacífica convivência entre as pessoas. A pretensão é unificar, o que é bom. Sem dúvida. Mas até que ponto essa unificação é verdadeira e salutar? Não pode ser uma nova imposição? Volto a afirmar: em tese, deve funcionar muito bem para os escritores. O que é escrito aqui será entendido em Guiné-Bissau, sem dificuldades. Ou sem aparentes dificuldades. Talvez facilite as coisas. Sem esquecer, porém, o caso de José Saramago. O autor de "Memorial do Convento" proíbe que seus livros sejam "traduzidos" para o "brasileiro". Não só nas questões de gramática, mas de grafia mesmo. E ele tem razão. É claro. Quem escreve quer ser lido da maneira que escreveu. Mesmo que seja no nosso saudável "brasileiro" quando optamos, muitas vezes, pelo coloquial ou pelas concordâncias. Uma das contribuições mais fortes do Modernismo vem do fato de que o coloquial tem prevalência sobre o gramatical. O que pode causar estranheza, como é o caso de Saramago, e até de uma certa linhagem portuguesa, que chegou a considerar a nossa língua apenas um dialeto. Polêmico, sem dúvida, é certo, certíssimo, aliás, que a unificação ainda vai provocar muito barulho, até o dia em que dormiremos intelectuais e acordaremos analfabetos. \\
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E nsaio Luiz Carlos Pinto ão são muitos os livros em que se pode encontrar um dos amores mais incondicionais da literatura, um crime perfeito e uma fuga espetacular. Mas eu conheço pelo menos um que reúne essas características: ”A invenção de Morel”, do argentino Adolfo Bioy Casares. O livrinho, de 1940, tem o formato de um diário apócrifo de um fugitivo da justiça venezuelana, que se esconde numa ilha deserta do Pacífico. No diário, o fugitivo relata as conseqüências do maquinário construído por Morel, o dono da ilha, e que permite a gravação através de espelhos de tudo o que ocorre e sua contínua projeção. A máquina não grava somente imagens, ela armazena formato, textura, som, cheiro, movimento das coisas, pessoas, plantas, vento, animais. O maquinário de Morel projeta essas coisas em movimento. Acontece que os seres vivos captados pelas lentes das máquinas morrem depois de alguns dias. Os escritos do fugitivo tratam justamente de sua surpresa em se deparar com as imagens projetadas de um grupo de amigos de Morel, que havia passado alguns dias na ilha. Entre esses visitantes está Faustine, mulher exuberante por quem Morel é apaixonado. O crime (na verdade, quase) perfeito reside aqui. Morel acredita que sua invenção capta mais que o aparente, que guarda as almas daquilo que retém. Sua intenção é seduzir Faustine e guardá-la em essência, junto a ele, numa espécie de existência perpetuada.Não se sabe se Morel ou Casares leram Derrida, o que para efeitos práticos aqui tanto faz. O fato é que é possível dizer que a invenção de Morel implica numa desconstrução daquela realidade. A vida daquelas pessoas durante os dias em que são gravadas passam a ser observadas como rastros pelo fugitivo. Rastros de unidades inalcançáveis, pois as imagens aparecem ao gosto das marés, que fornecem a energia e que aciona as projeções. A essa condição, Derrida deu o nome de différance, diferença. Morel foi tomado de um amor pelo hiper-realismo, algo que não é menos, mas sim mais do que real, não abaixo, mas sim além do real. Mais ainda, Morel quer arquivar esse mais que real, preservando-o. A reprodução maquínica dos espectros dos visitantes da ilha demonstra isso, pois a coisa mesma que as origina está a salvo (sauf), está ocultada em segurança, escapou. Ou seja, existe em Morel uma intenção não niilista, de constituição de algo que realmente acontece, que “nos acontece” e que pode acender a paixão. Não fosse pelo fugitivo, esse teria sido o crime perfeito. Todos acreditam que a ilha é o local de uma moléstia misteriosa, que destrói o corpo das pessoas em poucos dias, a começar pelo caimento da pele. É a observação daquela realidade posta em diferença que permite ao fugitivo verificar o crime e o egoísmo de Morel. Para este, é justificável o aniquilamento do corpo de Faustine em troca de perpetuar sua projeção ao seu lado. Mas não é este o belo amor a que me referi. É o do fugitivo. A simulação projetada pela invenção de Morel é tão forte e efetiva que consegue anular o vínculo da representação com suas referências originárias. E, para o fugitivo, esse fato é tão sedutor que ele crê inicialmente estar diante da própria Faustine; mas, mesmo depois de perceber que se trata de projeções, prefere perder sua própria identidade para entrar no espelho. Pois, mesmo como espectro, parece que Justine o seduz. Mesmo sabendo que seu corpo será aniquilado, o fugitivo procura a máquina na ilha, aprende seu funcionamento e se grava ao lado de Faustine, também como uma forma de perpetuar sua companhia. Bem pensado, o fugitivo anônimo é o verdadeiro intruso numa ilha (num mundo) habitada por maquínicos sujeitos criados por Morel. Eles são uma separação da natureza que se desnaturalizou. E assim, o livro ainda se presta à seguinte interpretação: os monstros morelianos metaforizam o enfrentamento entre a natureza, simbolizada por uma ilha, e a técnica, que produz seres de repetição, não de representação. A semelhança foi se debilitando progressivamente, assim como o edifício canônico construído pela modernidade. Esse desmantelamento entre o referente e a sua representação aponta também para um esvaziamento do eu, do sujeito, da própria identidade. Por isso mesmo o livro de Casares é de uma atualidade atordoante. Mas nada disso sabe o fugitivo, também tomado de amores por Faustine. Sua estratégia é humana, demasiado humana: é uma operação e uma esperança. Operação de entrar no fantasmático, anulando-se na morte pela impossibilidade de acessar Faustine. Esperança de que alguém possa encontrar seu relato, melhorar a invenção de Morel e fazendo isso, que possa acrescentar à consciência de Faustine o amor que ele tem por ela, pois a sua companhia já está gravada, eternizada: “Ao homem que, com base neste informe, invente uma máquina capaz de reunir as presenças desagregadas, farei uma súplica. Procure Faustine e a mim, faça-me entrar no céu da consciência de Faustine. Será um ato piedoso”, escreve. Mas seu ato é também a fuga perfeita, ainda que não intecional. É a fuga ideal da Justiça, por se colocar inacessível e na esperança de fazer valer seu desejo de que a consciência de Faustine saiba de seu amor. O livro de Casares ainda pode ser visto como uma metáfora da trágica pulsão humana por vencer a morte, igualando-se a Deus (segundo o ateu Casares, um monossílabo de extraordinário sucesso). O livro é uma homenagem ao clássico “A ilha do Dr. Moreau”, de H. G. Wells, no qual o cientista Moreau (que claramente inspira o nome de Morel) é anulado pela sua criação; o livro é ainda uma homenagem e uma oferta ao Jorge Luís Borges, grande amigo de Casares; o livro é um quebra-cabeças que contém uma ironia metafísica, em que um suposto editor duvida da veracidade do próprio relato. Mas ainda prefiro pensar que o livro é o relato sem falhas, como disse Borges, de um crime quase perfeito, de um amor incondicional e de uma fuga espetacular. \\
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Numa ilha perdida, Adolfo Bioy Casares montou o cenário de sua obra-prima, reeditada agora pela Cosac Naify
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Carol Almeida
Nada se cria, tudo se copia Carol Almeida
"Fan fiction é uma maneira da cultura reparar um erro cometido pelo sistema em que os mitos contemporâneos são propriedades de corporações, e não das pessoas." Henry Jenkins odo poder tem suas sobras. E toda sucata é simultaneamente um desafio e uma legitimação ao poder. A economia e cultura dos restos sempre tiveram um papel importante na quebra de paradigmas históricos, afinal de contas, tudo que transborda pode matar e, logo depois, fazer nascer. Estamos falando de Harry Potter. Ou melhor, de como um fenômeno midiático atrelado a uma hegemonia industrial pode ser subvertido e ao mesmo tempo sustentado a partir de seus excessos. Harry Potter, bruxo, míope, branco, inocente e, até agora, virgem, é uma das maiores representações de poder deste começo de século 21. Tudo nele é grandioso demais: a quantidade de páginas, de livros e, claro, de vendas. Este mês, a escritora J.K. Rowling - uma das mulheres mais ricas do mundo - lança o último livro da saga que começou a ser publicada há exatos dez anos. Fala-se no fim de uma era. Só se for para o mercado editorial. Porque tudo indica que Harry Potter, bem como os tripulantes da “Enterprise”, os jedis de “Guerra nas Estrelas” e os seres mitológicos de “Senhor do Anéis”, têm longos anos pela frente. Isso acontece porque o jovem Potter, a exemplo de seus colegas acima citados, está no topo da torre de onde se cria o imaginário de uma geração inteira de crianças e adolescentes. E são estes últimos que, de baixo da torre, começam inconscientemente a quebrar o ciclo do processo de criação: primeiro eles colhem (o que cai lá de cima), depois eles plantam (o que acham que podem aproveitar). E assim surgem as chamadas fanfictions, ou simplesmente fanfics. As fanfics, como o nome revela, são narrações fictícias escritas por fãs. Estes se apropriam dos personagens de um autor prévio para construir suas próprias idéias daquela história. Essas pessoas não pensam em subversão. Não querem levantar placas na rua e possivelmente nunca associaram Harry Potter a qualquer ideologia. Absorvidas por inteiro em um mundo fictício, elas abdicam da realidade e, nesse ato
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de desprendimento quase religioso, são elas quem conseguem melhor refletir o que há de mais real em Harry Potter: seu excesso. Entre as fanfics baseadas em livros, Harry Potter é de longe responsável pelo maior número de histórias. No Brasil, a série de J. K. Rowling popularizou o termo fanfic e abriu um mundo novo para uma geração que, no fim dos anos 90, começava a tatear o ambiente de rede online. De uma maneira geral, quem escreve são estudantes que dedicam boa parte de seu tempo a recriar a história original a partir de uma idéia - também original e própria - daquela ficção, em um movimento constante de imersão naquela realidade paralela e, mais importante, de domínio sobre essa realidade. Os fãs, dentro de seu território de desejos, deixam de ser os títeres e assumem o controle das cordas. Simultaneamente, as fanfics desafiam a gravidade de um mercado suspenso em direitos do autor e, por outro lado, carregam esse mercado nos ombros. Existem dois conceitos talhados em qualquer fanfic: um político e um psicanalítico. O primeiro diz respeito a esse processo de apropriação de poder, ao que Michel de Certeau identifica como tática, uma maneira de romper com as fronteiras do consumo e, a partir desse mesmo consumo, criar. Ainda hoje, os marqueteiros se ressentem por não terem inventando tão eficiente artifício de compra. O segundo aspecto, o psicanalítico, está justamente nesse processo de consumo desenfreado pela ficção. Qualquer narrativa, seja ela real ou fictícia, gera sentimentos como identificação, satisfação e, claro, frustração. E como todo fã é uma pessoa, por essência, passional, entende-se que esses sentimentos estão em contínuo diálogo com aquilo que se consome. O fato é que em uma fanfic há um processo psicanalítico que, para Lacan, é o momento conclusivo do tratamento: a "travessia da fantasia". Lacan entende que toda realidade é estruturada e suportada pela fantasia, mas que dificilmente se consegue mergulhar de cabeça nesse ambiente de sustentação, pois há um nível reprimido de nossa psique que resiste a tal imersão. Os fãs que escrevem fanfics identificam-se completamente com a fantasia e, só assim, conseguem atravessar esse espaço que serve de pilar para suas realidades. Em outras palavras: os fãs são como hackers que, em alguma madrugada, vislumbram a “Matrix”. Essa é a realidade de poder hoje. Um poder cujo maior excesso é o consumo e cujas sobras são fictícias. \\
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Aos poucos o dia vai amanhecendo... Os primeiros raios de sol vão mostrando as conseqüências da árdua batalha escondida pela noite. As pessoas começavam a levantar-se do chão, ao mesmo tempo assustadas e curiosas para saber o que acabara de acontecer. Aquela explosão que derrubara todos, seguida por um clarão e silêncio total. Na rua da pequena cidade no interior da Inglaterra havia uma enorme cratera e no interior dela apenas um corpo estendido. Uma jovem ruiva, que havia se levantado com uma certa dificuldade, agora caminhava lentamente em direção a cratera. Sua expressão era de tristeza, como se já soubesse o que estava prestes a ver, sua respiração era descompassada... Ela parou à borda do buraco, seus batimentos rapidamente se tornaram fortes e uma lágrima solitária corre pelo seu rosto. Sem esperar mais, Gina corre sem se importar com os ferimentos que havia sofrido, querendo chegar o mais rápido possível ao seu destino. Ajoelha-se ao lado do corpo estendido e, sem perceber, chorava como nunca o havia feito. Uma de suas lágrimas cai sobre o rosto de Harry Potter e, quase como em conseqüência, ele solta um suspiro de vida. "Oi!" diz ela ainda aos prantos, sorrindo aliviada quando percebe que ele abre os olhos. Ele acena a cabeça em resposta, olhando diretamente para os olhos dela. Nenhuma palavra mais foi dita; nem era preciso. No meio de tanto barulho, tanta confusão, o casal se distinguia dos demais. Naquele momento, nada era capaz de relembrar o que passara ali; nada exceto aquilo que mudou tudo há dezesseis anos atrás: a cicatriz. Elizabeth Lovegood Potter
... Fãs pela internet recriam à sua maneira o último capítulo da saga milionária de Harry Potter
Fanfic escrita especialmente para esta edição do Pernambuco
Ron abraçou a namorada pelos ombros, espantando Bichento para tomar seu lugar. - Eu mandarei Píchi com notícias todos os dias, não se preocupe! Hermione acariciou o rosto do rapaz com carinho, antes de surpreendê-lo com sua resposta. - Encantador! Mas não será necessário, já que eu estarei lá! - Como assim? - Eu e Hermione decidimos fazer o curso também! Eu vou demorar um pouco para encontrá-los, mas em um ano... - DE JEITO NENHUM! Harry você ouviu isso? - Essa briga é só sua, irmão. Eu sei quando a batalha está perdida... - De jeito nenhum. Por que, Sr. Weasley? - Perguntou Hermione em tom baixo e perigoso, enquanto os gêmeos começavam a recolher os nuques de Gui e Carlinhos, que apostavam em Hermione. Fleur, tocada pela gravidez, decidiu votar em Ron por generosidade. - Por que é muito arriscado! Vocês já estiveram em perigo por mais tempo do que deveriam a vida inteira! - E você e Harry não? - É diferente! O Sr. Weasley juntou-se às apostas, seguido de Tonks. Gui e Carlinhos fizeram caretas para a resposta do irmão. - Agora ele está lascado! - Ponderou Lupin. - Diferente como? Por um acaso eu e Gina deveríamos ficar em casa aprendendo tricô enquanto vocês se arriscam, é isso? - Mamãe fez isso e é feliz! - Tire-me dessa discussão, meu filho. Criar seis filhos como vocês foi mais perigoso do que ser auror... - Que mal há em me preocupar com o bem-estar delas?... - Mal há em você achar que não daremos conta. - Gina entrou na briga, levantando-se para enfrentar o irmão, bem mais alto que ela, de igual para igual. - Eu nunca disse isso! Só me preocupo de se colocarem em risco e não estarmos lá para... Enquanto observava a briga desenvolver-se, agora com Hermione e Gina cercando Ron de todas as maneiras e a Sra. Weasley apostando mais cinco nuques na filha, Harry teve um momento extremamente "Firenze". A certeza de que momentos como aquele se repetiriam muitas vezes correu por sua mente, juntando-se à verdade de que sempre poderia contar com a família com que a vida lhe presenteara. Estariam sempre juntos, brigando, namorando, divertindo-se ou lutando. O que quer que os dois extremos radicais que trazia guardados em si mesmo reservassem para Harry Potter, jamais estaria completamente sozinho, outra vez.
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Sonia Sag Trechos de fanfics do site Floreios e Borrões (floreioseborroes.net)
Toda alcatéia sentira através de sua ligação a presença de Harry desaparecer, até mesmo Dumbledore sentiu, em todo mundo as batalhas pareciam terminar, e era mútuo o sentimento da perda de um grande líder, de um amigo e irmão, de um guia, um soberano. - Não! - gritou Hermione ao acordar na costa inglesa - Ele não morreu, ele não pode ter morrido. - Ele não morreu - falou Gina, seu rosto banhado pelas lágrimas. - O maldito não pode ter morrido sem me enfrentar pela ultima vez, eu que deveria ter matado-o - falou Draco. Ele não sabia o que sentia, mas um vazio se instalou em algum lugar e ele queria removê-lo. - Ele esta vivo - falou Siegfread - Em algum lugar ele esta vivo e retornara para nós, o máximo que devemos fazer é nos tornarmos mais fortes. - Tão fortes que nos tornaremos deuses - falou Luna como uma última sentença. - Não desistiremos - falou Dumbledore em um tom forte e baixo dessa vez. A Ordem da Fênix não sumiria, ela continuaria a ficar mais forte para o bem da humanidade. Black Wolf Trechos de fanfics do site Floreios e Borrões (floreioseborroes.net)
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Livro analisa como Adidas e a Puma dominaram o mundo esportivo Dario Brito
arte sedutora de todo grande herói se deve à vestimenta. Heróis clássicos, os superheróis estão no nosso imaginário, lutando contra o mal, salvando o mundo e promovendo a justiça. Heróis modernos, os atletas e pop stars estão, no primeiro caso, superando os limites do corpo humano, e, no segundo, dizendo através da música tudo aquilo o que queremos ouvir. O ponto em comum: todos têm na vestimenta seu objeto mais claro de comunicação visual. Se não, o que faz um cara completamente tímido e insosso sair de uma cabine telefônica transmitindo mais confiança? O que nos faz pensar que sempre podemos ser "mais rápidos, mais altos e mais fortes"? O que nos ajuda a crer, ao som de versos cortantes, que tudo vai ficar bem no fim das contas? Acredite, se todos os mensageiros não estivessem vestidos com propriedade, seria difícil concordar. Ponto marcado, então, para um ciclone, um felino e também para três listras simples que hoje vestem todos os heróis modernos. Vistos, reconhecidos e adorados na primeira esquina em que se encontrem, esses símbolos carregam consigo o poder de... "transmitir poder"! É difícil admitir numa primeira tacada, mas é a mais pura verdade a sensação despertada quando se veste pela primeira vez uma peça de qualquer uma das mais famosas marcas esportivas mundiais. E o nosso inconsciente aprendeu a associar poder a esses objetos inanimados (agasalhos, camisetas, tênis, bermudas e calças). Adolf e Rudolf Dassler já sabiam disso, desde a década de 50. Os irmãos alemães haviam fundado uma fábrica de calçados esportivos na pequena cidade de Herzogenaurach, na década de 20, e suportado brigas em nome de um sucesso impressionante. Em 1948, com uma situação insustentável, cada um foi para seu lado: Adolf criou a Adidas, e Rudolf, a Puma. Começou, então, a rivalidade: o mundo dos esportes e, posteriormente, os ícones da moda urbana, nunca mais seriam os mesmos. A história dessa diáspora, assim como da entrada do estilo esportivo no streetwear (com concorrentes como Nike e Reebok), está narrada em “Invasão de campo: Adidas, Puma e os bastidores do esporte moderno”, da jornalista Barbara Smit (Jorge Zahar Editor, R$ 47, 360 pág.), que acaba de ser lançado. O que deve ser lembrado, valorizado e até questionado nessa experiência é o nascimento do fenômeno do marketing esportivo. Adolf, que resolveu colocar em evidência as três faixas de couro utilizadas para reforçar as laterais de seus calçados, acabou criando uma das identidades visuais mais cobiçadas e reconhecidas do século 20. Sua aposta era identificada de longe em campos, quadras e pistas de corrida, não somente pelas pessoas in loco, mas eternizadas em fotos estampadas nos jornais, por causa dos campeões (os heróis modernos... lembra?) que utilizavam seus acessórios. O tempo avança e com ele chegam novos materiais, designs mais surpreendentes e herdeiros com menos escrúpulos dirigindo a marca. Mesmo com tudo isso, a lição deixada pelo fundador estava internalizada. E havia contaminado a concorrência. Nas décadas posteriores, os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo se tornariam o palco dessa
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batalha de gigantes entre Adidas e Puma: a cada medalha conquistada, a cada recorde quebrado, a cada foto publicada, milhões de dólares seriam computados indiretamente nas contas das marcas esportivas. Centenas de astros foram protagonistas nessa história (inclusive Pelé, pivô de um pacto entre as marcas na Copa de 70). O confronto estava restringido ao campo esportivo até meados da década de 80 (com um capítulo interessante vencido pela Adidas, como fornecedora oficial de acessórios nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972). Mas foi após as Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, que algo começou a mudar. A americana Nike, mesmo com poucas medalhas (53 ao fim da competição, enquanto os da Adidas contabilizaram 259), saiu como vencedora moral dos Jogos, em parte pelo estardalhaço, em parte pelas "animadas festinhas" nas praias californianas. A segunda lição estava dada: não era necessário apenas vencer nas pistas, mas "circular" fora delas. Como resposta, um italiano chamado Angelo Anastácio, coringa da Adidas nos Estados Unidos, escreveu, nos anos 80, o capítulo mais recente e fascinante da saga, mudando a sorte da companhia e prenunciando o merchandising. Suas idéias, simples e ingênuas, são hoje as mais caras e rentáveis da publicidade. Escolher e convencer Sylvester Stallone a usar um agasalho preto (que vendeu 750 mil unidades), como Rocky Balboa, em “Rock”, em troca de absolutamente nada foi um feito sem precedentes. Ou Ziggy Marley a utilizar casacos Adidas no palco, contanto que a marca patrocinasse seu time de futebol na Jamaica. Ou ainda apadrinhar com roupas e calçados de basquete três jovens negros que dançavam break na rua, após um show no Madison Square Garden, antes que eles se tornassem o Run D.M.C e retribuíssem o favor com uma música que fazia os jovens mostrarem com orgulho seus tênis e camisetas Adidas nos shows. O conhecido pagamento ao chefe, está na terceira faixa de Rasing Hell, nos poderosos versos de “My Adidas”: "We make a good team, my Adidas and me / We get around together, rhyme forever / And we won't be mad when worn in bad weather / My Adidas, My Adidas, My Adidas". Nesse momento estava finalmente oficializado o deslocamento: a moda esportiva invadindo, com propriedade, as ruas. O fato é que desde então, os heróis modernos têm se vestido de forma nada aleatória a cada aparição. Aerosmith, Michael Jordan, Madonna, Pete Sampras, Missy Eliott, Carl Lewis, Kylie Minogue, Schumaker, Eminem, Beckham e uma série de outros protagonizaram uma glória devidamente ensaiada e nos emprestam momentos de esplendor ao fazer com que cheguemos perto de seus feitos simplesmente utilizando cópias de suas roupas. E enquanto isso, o marketing nos pede inconscientemente para que façamos nossas apostas. E nos cubramos, cheio de orgulho, com elas. "Escolha seus heróis. Escolha seus modelos. Escolha seus desejos. Escolha suas vestimentas. Escolha sua personalidade". Não importa como. Just do it. \\
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G astronomia raca, incompleta, irregular, defeituosa, subalterna, inferior, com tantos títulos no libelo acusatório, a mandioca, rainha do Brasil, continua inabalável no seu trono." O diagnóstico é de Luís da Câmara Cascudo no clássico "História da alimentação no Brasil". Comum, barata e acessível, reles até, como aponta o folclorista, a raiz de origem sul-africana sempre teve sua importância vulgarizada. Anterior à batata e ao milho levados por Colombo para as panelas do Velho Mundo, a mandioca é o alimento cultivado mais antigo do Brasil. Aqui, a mandioca foi e continua sendo civilizatória. "É o pão da terra", disse o catequizador padre Antonio Vieira. Não se concebe o brasileiro - ou seu país - sem farinha. De mandioca, evidentemente. A mandioca era a espinha dorsal das dietas indígenas quando os portugueses começaram a anexar a grande colônia no Atlântico Sul ao mundo ocidental. Os nativos acreditavam ser a raiz um presente de divindades que, através dela, conferiam aos povos a possibilidade de inaugurar um novo estágio social. Aí reside seu caráter de sedimentação de populações, germe das primeiras civilizações nacionais. Para alcançar uma nova etapa de conforto material, os indígenas recorriam ao mito para explicar a adoção da agricultura. Com as plantações, os grupos fixavam-se, abandonavam o nomadismo. "A mandioca fez o indígena demorarse ao redor das plantações, porque a farinha não era colheita, mas preparo", analisou Cascudo. Depois de seca e processada, a mandioca era convertida nos dois artigos de primeira hora da alimentação nativa, a farinha e o beiju, clássicos pela capacidade de vencer o tempo. Cascudo classificou a importância cultural da farinha, o principal subproduto da maninhot, como a chamavam os tupi. "O conduto essencial e principal, acompanhando todas as coisas comíveis, da carne à fruta". Além da guarnição fundamental sem a qual nada ia à boca indígena, a mandioca seca e ralada também ía o fogo para virar uma espécie de broa ou biscoito, o beiju, adotado pelas gordas mãos das senhoras portuguesas. Com a dificuldade de importação e cultivo de trigo no Brasil, o colonizador se deixou colonizar pelo colonizado num dos aspectos mais importantes de sua fixação à nova terra, a alimentação cotidiana. "Foi completa a vitória do complexo indígena da mandioca sobre o trigo", apontou Gilberto Freyre. "Tornou-se a base do regime alimentar do colonizador. Ainda hoje, a mandioca é alimento fundamental do brasileiro", afirmou, em "Casa Grande e Senzala". Não só do brasileiro mais humilde, de roça e cercado. Os governadores coloniais Tomé de Souza, Duarte da Costa e Mem de Sá não gostavam de trigo. Achavam-no indigesto. Preferiam mandioca. Embora os historiadores apontem a presença do beiju até nas naus de volta à Europa, foi mesmo a boa, velha e miúda farinha a pièce-de-resistènse não só na alimentação como no programa de ampliação das fronteiras internas do colonizador no Brasil. Fácil de obter e de conservar, ela estava logo dentro das cozinhas coloniais como guarnição fundamental. Por onde passou para interiorizar o País, o bandeirante foi deixando novas roças de mandioca, bases de vilas futuras. Era a farinha também o farnel desses des-
“F Apesar de muitas vezes esnobada, a mandioca é espinha dorsal do paladar brasileiro Bruno Albertim
bravadores. Comida dos viajantes, a paçoca tem como constituição farinha e carne seca, desidratadas e resistentes, sempre à mão para consumo, mesmo do lombo do cavalo. Do Norte ao Nordeste, no Sudeste e no Centro-oeste, em todas as regiões a época das farinhadas ainda constitui motivo de festas e de congregação social. Uma produção que pouco maculou as técnicas originais. Ou seja, o passado cai no seu prato a cada porção de farinha. Das derivações culinárias da farinha, a mais óbvia e abrangente no cardápio nacional é a farofa. Gourmet e estudioso da cozinha, o lingüísta Antonio Houaiss listou 27 diferentes maneiras de se preparar farofa no Brasil. Em "Magia da cozinha brasileira", para deuses e mortais, escrito em 1979, ele classificou as farofas brasileiras em três grandes grupos, as farofas d’água, as de gordura e as de molho. A palavra, segundo o filólogo, teria aparecido por volta de 1899, derivando provavelmente do termo angolano falofa. Também pelas mãos portuguesas, a mandioca tornou-se insumo da alimentação na África. Desde as primeiras trocas, mercadores de escravos africanos eram recompensados com sacas de farinha. Exemplo curioso das farofas de gordura é a baiana de dendê, mostrando que a mandioca também encontrou abrigo nas cozinhas regionais brasileiras de ascendência predominantemente africana. "Variado era o uso da mandioca na culinária indígena. Muitos dos produtos preparados outrora pelas mãos avermelhadas da cunhã, preparam-nos hoje mãos brancas, pardas, pretas e morenas da brasileira de todos os tempos", observou ainda Gilberto Freyre para afirmar que "da índia, a brasileira aprendeu a fazer de mandioca uma série de delicados quitutes". Inclusive para os primeiros paladares, como o mingau de carimã . Onde havia fogo e fogão, a mandioca abrasileirou a cozinha. Verdadeiro grito de independência culinária no Brasil, o bolo Souza Leão preteria o trigo importado e a manteiga francesa Le petellier. Usava massa de mandioca. Aprimorada pelo tempo, a variação de beiju chamada de tapioca leva massa mais fina e úmida, resultando mais flexível. Elaborada por dezenas de senhoras de Olinda, damas e guardiãs da receita tradicionalista, a iguaria tombada como patrimônio imaterial brasileiro funciona como metáfora culinária dos elementos étnicos constitutivos do Brasil: na base, a panqueca feita de de mandioca, no recheio, o coco originário da Ásia, trazido pelos portugueses e já forte nas tradições de panelas africanas. Além disso, queijo de coalho e manteiga derretida, possíveis com o desenvolvimento da pecuária pelos portugueses. A mandioca, aliás, fez companhia às mais tradicionais fórmulas lusas de cocção. Os lusos sempre foram adeptos das comidas molhadas, ensopados. Transposições tropicais de seu cozido pátrio, a peixada e o cozido pernambucanos são exemplos dessas trocas culturais. Aqui, se fizeram sempre acompanhar de pirão. A farinha nativa engrossando o caldo do colonizador. "Foi nas cozinhas das casas-grandes que muitos quitutes perderam o ranço regional, o exclusivismo caboclo, para abrasileirarem-se", lembra Gilberto Freyre. Nós fizemos, então, um país de farinha, farofa e pirão. Vulgar e soberana, a mandioca do Brasil. \\
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O cantor português JP Simões em turnê pelo Brasil diz como perdeu de 1 a 0 do ídolo Chico Buarque Daniela Arrais e Francisco Bertioga le é fã declarado de Chico Buarque, mas, em campo, chegou a ser adversário. Seu time, formado exclusivamente por artistas portugueses, perdeu para a equipe brasileira capitaneada por Chico por 1 a 0, no final do ano passado, em Portugal, durante as filmagens de "Meu Caro Amigo Chico” – documentário, ainda em produção, que trata da influência do cantor brasileiro nos músicos lusitanos. O placar, ele ressalta, foi “injusto”. Deixado de lado o resultado da partida, o cantor e compositor português JP Simões, de 37 anos --apenas quatro anos mais novo do que o primeiro álbum de Chico--, deixa transparecer sua paixão pela obra do brasileiro. A prova está em “1970”, seu primeiro disco solo, lançado no início do ano em Portugal – ouvido em shows que paulistas, cariocas e cearenses puderam ver ao vivo no final de junho e no começo deste mês. No palco do Sesc Pompéia, em São Paulo, além dos músicos portugueses Tomás Pimentel (piano, flugelhorn) e Sérgio Costa (piano, flauta), que acompanharam o cantor durante sua turnê no país, foram convocados os brasileiros Alfredo Bello (baixo) e Bruno Tessele (bateria). A cantora carioca Teresa Cristina fez participação especial, com direito a um dueto com Simões em “A Rita”, do supracitado Chico Buarque. Nascido em Coimbra, em 1970 (ano que dá nome ao disco), Simões chegou a se mudar com a mãe para o Brasil aos cinco anos. Em sua primeira incursão profissional por terras brasileiras, o cantor relembrou o período de um ano e meio em que viveu no Rio de Janeiro. “Minha mãe se apaixonou por um carioca e mudou-se para o Rio. A história de amor não deu muito certo para ela”, lembra. Da época vivida em território carioca, JP guarda mais sensações do que relatos. “Minhas lembranças musicais mais afetivas começaram nessa época”, diz o cantor, lembrando que descobriu recentemente que Vinicius de Morais costumava freqüentar sua casa. “Falei para a minha mãe: por que você não me contou que eu conheci o Vinicius? Ela disse que eu nunca tinha perguntado”, diverte-se. Do primeiro contato com Chico Buarque, no entanto, ele se lembra bem: ouviu “Mulheres de Atenas” no rádio. Impressionado com o que acabara de escutar – afinal, aquilo “soava mais familiar do que qualquer música que tinha ouvido até então” –resolveu ir atrás da obra do cantor e, graças à internet, teve acesso às primeiras gravações do brasileiro. “A revolução digital facilitou bastante o acesso aos discos antigos”, diz Simões, que elege “Meus Caros Amigos” (1976) seu favorito dentro da discografia do ídolo. Questionado sobre a oportunidade de conhecer Chico Buarque de perto, durante a partida de futebol que disputaram, Simões esclarece: “Não fui forçar a barra, não faz muito meu gênero [pegar no pé de alguém]. Nunca precisei da presença dele para gostar de sua música”. E quando o assunto é a semelhança entre a sua música e a do brasileiro, Simões cita o próprio Chico: “Ele mesmo fala que fica muito feliz quando
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alguém diz que sua música parece Tom Jobim. Comigo é a mesma coisa quando falam que pareço Chico”. No rol de influências citadas pelo cantor, os nomes brasileiros são os primeiros: Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Edu Lobo. “Consigo ver uma filosofia na música deles”, afirma. Já em cantores como Caetano Veloso, o compositor português diz enxergar uma certa “diversidade”. “Gosto dos discos londrinos de Caetano, mas o considero mais diverso, não consigo ter clara sua filosofia como vejo nos outros”. Sobre a música “Porquê?”, cantada por Caetano com sotaque português em seu último disco “Cê” (2006), o músico diz não tê-la aprovado. “Não me inspirou boas coisas.” Simões ainda considera os trovadores Tom Waits e Leonard Cohen como fontes de inspiração. Ná Ozzeti, Jorge Ben, Arto Lindsay, David Bowie e Roxy Music completam a lista de referências – e resultam numa sonoridade que Simões classifica “fossa nova” ou “luso-samba”. Em sua música, a melancolia portuguesa se soma a um samba criado por quem “não sabe fazer samba como os sambistas”, como ele admite. Em “1970 (Retrato)”, Simões canta desilusão, voltada contra sua própria geração. (“A minha geração já se calou, já se perdeu, já amuou, já se cansou, desapareceu ou então casou, ou então mudou, ou então morreu: já se acabou.”) Em “Fábula Bêbada”, o cantor retoma a imagem da cidade pulsante de “Construção”, lançada em 1971 por Chico Buarque, mas sem a grandiosidade épica de seu arranjo. “A música é claramente inspirada em 'Construção', mas o tema tem outra intenção, é outro personagem. Tento traçar uma espécie de caricatura da cidade, confusa, que parece estar sempre bêbada”, diz sobre a música, que pode ser ouvida no endereço www.myspace.com/fabulabebada. No Brasil Simões veio pa rar por acaso, graças ao convite de uma produtora. “Nem sabia que me conheciam aqui, nunca mandei material para o Brasil. Então, foi uma grande surpresa ser chamado para os shows. Espero que gostem da minha música”, disse o cantor, dois dias antes da estréia no Sesc Pompéia, em São Paulo. “Músico mais admirado por músicos do que pelo público em geral”, em sua própria definição, Simões já passou por vários projetos, como o Pop Dell´Arte e o Belle Chase Hotel (de onde surgiu a denominação “fossa nova”, nome do primeiro álbum de grupo). Fez parte, também, do Quinteto Tati, grupo que aposta na sonoridade jazzística para fazer rumbas, valsas e boleros. Tentou ser escritor com “O Vírus da Vida”, mas a editora que comprou os direitos da obra perdeu os originais. Também foi jornalista. Hoje, dedica-se integralmente a composições, ensaios e shows – de vez em quando faz trilha sonora para cinema e televisão. É cantor por insistência, já que sua música não é do tipo que é cantada por multidões. “É preciso muita teimosia para continuar a viver da música.” \\
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Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente Os bastidores da tumultuada visita de Haile Selassie, rei dos rastafaris, ao Recife José Teles
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reggae está em alta no Recife (em Olinda sempre esteve), levando muito regueiro a professar sua fé em Jah, e no rastafarianismo, uma religião meio confusa. Na realidade, mais uma forma de viver, que mistura judaísmo com cristianismo, e reverencia Ras Tafari Makonnen, a encarnação de Jah na Terra, segundo os ensinamento do reverendo Marcus Garvey. Em 1920, Garvey preconizou que Jah viria à Terra encarnado em um rei negro na África. O tal rei, acreditam os rastas, é Sua Majestade Imperial Haile Selassie I, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, o Filho de Negus, descendente de Salomão e da rainha de Sabá. O rastafarianismo também é conhecido pelo fato dos que o professam usarem a erva maldita em quantidades cavalares, com aprovação de Jah. Baseiam-se no livro do Gênesis 1:29, que versa: "E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, servos-ão para mantimento". Então tome fumaça! Fé é fé. Não importa se Haillé Selassié figurou entre os governantes mais corruptos da África, e tenha sido derrubado pelo militares, com um golpe de estado em 1974, depois de 44 anos de poder absoluto. Selassié morreria no ano seguinte, sem entender bem a razão de ser tão adorado pelos rastas. Muito menos porque logo na Jamaica. Ele visitou o país em 1966, e quase não desceu do avião, com medo da multidão de dreadlocks (tranças rastas) que o saudava no aeroporto de Kingston (no meio dela estava o ainda pouco conhecido Bob Marley). Poucos rastas pernambucanos sabem, mas Ras Tafari Makonnen (o nome de batismo de Haille Selassié) esteve no Recife, em dezembro de
1960. Ele chegou na tarde do dia 12, foi recebido pelo governador Cid Sampaio no aeroporto dos Guararapes. O único milagre obrado em terras pernambucanas foi não ter sido vítima de um acidente de automóvel. O Lincoln do governo do estado seguiu para o Palácio do Campos das Princesas sem batedores. Na Imbiribeira por pouco um caminhão não manda o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, o Filho de Negus, e a sua neta Aida Desta, para um hospital. Ele chegou incólume ao palácio, mas não conseguiu o milagre de realizar com facilidade uma ligação telefônica para Brasília. Queria dar um esporro em um coronel chefe de seu cerimonial que, em lugar de esperá-lo no Recife, ficou na recém-inaugurada capital federal. A ligação pedida por Haille Selassié só foi feita 24 horas depois, quando ele já se preparava para deixar o palácio. Segundo o noticiário da época, o santo homem dos rastas chegou muito cansado e foi dormir cedo, no Palácio do governo, depois de jantar Peru à dinamarqueza, peixe, pudim e suco de tomate. Dois seguranças postaram-se à noite inteira diante da porta do quarto de Sua Majestade Imperial. Pediram silêncio aos policiais que Cid Sampaio trouxe para reforçar a segurança. Ras Tafari Makonnen, quem diria, sofria de um incômodo que atinge milhões de mortais: insônia. E com o filho que tinha, era para sofrer mesmo. Quando Haille Selassié chegou em Brasília, no dia 13 de dezembro, soube que haviam dado-lhe um golpe de estado. E o chefe dos golpistas era Asfa Wossen, filho do Filho de Negus, ou seja, dele, Haille. Selassié interrompeu bruscamente sua visita ao Brasil, e voltou às pressas à Etiópia. Foi sua segunda visita ao Recife, onde o avião (meio sucatão, segundo o reporter do JC que fez a cobertura da visita do Leão de Judá a Pernambuco) fez uma parada para abastecer, e foi mais uma vez recebido por Cid Sampaio e secretários. Desnecessário dizer que o imperador voltou à Etiópia com gosto de gás. Mandou o filho desta pra melhor, dizimou todos os que o traíram, e retomou o trono. Da rápida passagem de Ras Tafari Makonnen pelo Recife ficou pouca coisa. Uma cigarreira de ouro com o governadro Cid Sampaio, uma pulseira do mesmo metal com a primeira dama Dulce Sampaio, moedas de ouro distribuídas com várias pessoas no palácio, e um traveller cheque de 200 dólares entregue ao mordomo para dividir pelos quatro garçons que o serviram no palácio. Quer dizer, com este traveller check como relíquia os rasta não devem contar, porque ele certamente foi descontado. Jah! Rastafari! \\
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mas você vai ficar bem. Tem uma música muito importante que me ajuda muito nessa época do ano. Survivor (ou "sobrevivente"), das Destiny's Child, é quase um mito. Tipo "o mito da renovação", como se Beyoncé fosse Édipo ou outro de seus colegas que vivem ensinando coisas pra gente. Eu paro de sofrer quando escuto esse verso: "depois de toda a escuridão e tristeza, logo vem a felicidade. Se eu me cercar de coisas boas, ganho prosperidade". E eu aposto que se eu dissesse que essas são palavras de Gandhi, você acreditaria. E no clipe, o melhor, é que Beyoncé supera os perigos da floresta e da ilha deserta rebolando (e de shortinho!). As unhas estão feitas tipo francesinha (apesar de ela estar na floresta), ela troca de roupas três vezes (apesar de ela estar na floresta), os cabelos estão cheios de mousse (apesar de ela estar na floresta) e até argolas gigantes ela tascou na orelha (apesar de ela estar na floresta). E o mais importante é que Beyoncé desbrava a ilha, não tem medo de enfrentá-la - apesar da mata fechada e da chuva, que pode destruir o topetão dela. É assim que a gente tem que fazer: se jogar no inferno astral, bem dignas e com as unhas feitas, como se ele fosse uma piscininha. E não tenha medo de mergulhar de cabeça, mesmo que isso lhe custe estragar a escova. De que adianta tanto sofrimento se você fizer a asna e não tirar proveito da caótica situação para aprender alguma coisa? Certifique-se também de estar com pessoas queridas por perto - se uma cobra venenosa te ameaçar e você endoidar demais, são elas que vão te oferecer algum antídoto. No meio do mato, Beyoncé não se separou um segundo de Kelly Rowland e Michelle Williams, suas companheiras do Destiny's Child (muito embora hoje em dia ela prefira Shakira, mas quem não preferiria?). Aí, queridinha, se você for corajosa, no fim de tudo não vai nem ter que correr atrás de um PE-15/Boa Viagem para sair da crise - um helicóptero bem inesperado aparece e leva a gente para terra firme, de novo. E aí é hora de soprar as velinhas. \\
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O inferno astral é uma floresta. É aquela parte da trilha onde você estila e quer voltar para o acampamento porque acha que não dá para você, mas por algum motivo você tem que ir em frente. No caminho, você escorrega na lama, se enrosca numa teia de aranha, rala a canela numa urtiga e tem que fazer xixi no mato. Mas, no fim, você chega ao ponto que fez com que tantos outros trouxas (incluindo você) seguissem por aquele caminho: uma cachoeira linda e barulhenta, ou o topo de uma montanha com vista para o mar. Foi-se o tempo, pois, em que eu me descontrolava por causa do inferno astral. Não que as catástrofes cessem, mas é tudo uma questão de como a gente se posiciona diante do assunto. A primeira coisa que tento pensar é: "Ivi, calma. Madonna também está passando por isso". (Além de termos os dentes da frente separados, eu e Sua Majestade fazemos aniversário no mesmo dia, 16 de agosto, o que significa que ambas tomamos uns drinks no inferno por um mês a partir do dia 16 de julho). Se é impossível evitar que os astros testem nossa capacidade de mutação, inevitável, vamos enfrentá-los com um mínimo de dignidade. Pense bem, querida leitora: o aniversário marca o novo ano astral, representa a possibilidade de recomeço, de coisas novas (e não somente os peitos um pouco mais moles). Mas cachoeiras barulhentas e lindas só aparecem para pessoas que andam para frente, evoluem, né? E é aí que o inferno astral entra. Deixa eu explicar. Eu fiz terapia, né? E se eu sou assim hoje, imagina se não tivesse feito. Minha maravilhosa terapeuta, Andréa, uma vez me explicou a etimologia da palavra "crise", que vem do grego e significa transformação. E eu, que sou obcecada por mim mesma, quis saber mais. Encontrei (no Google mesmo) um texto que diz que crise vem de "krisis" e que é "sinônimo de um momento certamente dramático, mas potencialmente fecundo, já que é anunciador de modificações" (segundo um tal de Osório num livro de 1989). Ou seja, gente: inferno astral é tudo! Ainda mais em Recife, onde a gente vive reclamando do tédio! É um tédio também saber que por um mês inteiro tudo vai ser dolorido, difícil. E mais que os fatos, nossa cabeça vai estar diferente e, fora do nosso controle, vai ter novas opiniões, reagirá de formas inesperadas. Faça que nem Whitney Houston: aceite que as coisas não estão perfeitas,
Adelaide Ivánova
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