Pernambuco 12

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Foto: Alexandre BelĂŠm


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Sumário

Editorial

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Agora é negócio e festa - De quantos “fogos de artifício” é feito o universo do livro?

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Nhac! - Cultura em fatia é o prato do dia

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O livro de Jonas - Nova versão de texto bíblico é discutida por seu tradutor

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Complexo de violência - O atualíssimo pensamento de Florestan Fernandes

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Receita de afeto - Animação retrata a importância da “comida da alma”

A literatura caiu na festa. Para atender a uma necessidade de mercado, que elegeu a cultura de massa como fonte de todo negócio na área da criação artística, os escritores não disputam mais espaços apenas nos suplementos literários ou nas páginas de opinião dos jornais. Precisam comparecer a festas e festivais, tornam-se figuras populares e enfrentam os fãs nas primeiras filas dos auditórios e tendas armadas para recebê-los. É por isso que as festas literárias se multiplicam em todo o País, com destaque para aquelas mais divulgados pela mídia, como a Festa de Parati, no interior do Rio de Janeiro, ou o Festival de Passo Fundo, na serra gaúcha, ou na Festa de Ouro Preto, Minas Gerais. Sem contar com as bienais, promovidas pela Câmara Brasileira do Livro. Tudo isso em meio a espetáculos apresentados por escritores que antes se trancavam em gabinetes para escrever romances, novelas e poemas, negando-se até a conversar com a Imprensa. Pernambuco, por exemplo, perdeu seus históricos suplementos literários, com até doze páginas nos tempos do papel farto, reunindo autores do porte de Gilberto Freyre, Ariano Suassuna e Mauro Mota, mas abriu novos espaços na efervescência das festas e festivais. Uma reação e tanto. Assunto de capa desta edição, o Pernambuco decidiu ouvir intelectuais, escritores e livreiros, para saber quais os méritos desta mudança, por assim dizer, radical, em matéria assinada por Marcela Sampaio. E constatou que a mudança é bem aceita, apesar de polêmica, e apesar das queixas. As opiniões se dividem, por exemplo, entre César Leal, Jommard Muniz de Brito e Tarcísio Pereira, em cuja livraria – a tradicional Livro Sete – realizavam-se os grandes eventos literários até a década de 90. Ouviu, inclusive, o escritor cubano Pedro Juan Gutierréz, que estará presente na Fliporto. Para o segundo semestre estão programadas no Estado a Fliporto - destaque desta edição -, o Festival de Literatura do Recife, Festival de Literatura de Ipojuca, Bienal Internacional do Livro, e programadas uma Usina Cultural, em Apipucos, Recife, e outro festival em Olinda. "O Espetáculo Graciliano", escrito por Maria da Paz Ribeiro, editado no caderno Saber +, mostra que, através do seu personagem Luís da Silva, de "Angústia", o escritor alagoano expressava também a sua insatisfação com a falta de pagamento ao escritor e, a partir daí, a exploração do mesmo escritor, que devia elogiar e prestigiar. Uma situação que sempre preocupou grande parte da intelectualidade brasileira.

Alexandre Belém

Nas páginas 6 e 7, um assunto não menos importante é discutido pelo escritor Diego Raphael, doutor em letras pela Universidade Federal de Pernambuco: "O Livro de Jonas", que ocupa parte significativa da “Bíblia Sagrada” e que tem sido também motivo de muita polêmica entre os teólogos. Além da análise, o estudioso faz uma tradução diretamente do hebraico, que este jornal publica como contribuição para o debate.

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Entre centenas de caso de amor - Não importa a embalagem ou a língua roxa, o vinho Carreteiro faz parte do inconsciente coletivo

E o vinho "Carreteiro", quem diria?, já não é mais o mesmo. Está chegando às lojas com nova embalagem, de forma a conquistar um público que, atualmente, não ia além daqueles que passeiam e vivem as noites nos bares ou nas boates. O texto sempre criativo é de Flávia de Gusmão, com foto de Alexandre Belém. Para contrabalançar com o texto de Luís Carlos Pinto sobre Florestan Fernandes e sua obra fundamental.

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Sexo kamikaze - Nada de sexo frágil, a volta das Spice Girls retoma a discussão sobre poder feminino

O conto "Medo dos Medos", de Cici Araújo, fecha a edição, na página de inéditos, revelando uma escritora madura, dona de suas próprias técnicas e manejo com a personagem. Mais ainda, é preciso acompanha a matéria de Carolina Leão sobre "Sexo kamikaze", com foto cedida por Adelaide Ivánova, que faz parte da série “Justin, obrigado por tudo”.

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Inédito - A jovem escritora Cici Araújo revela seus medos em conto

Boa leitura Raimundo Carrero

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “Profissões excêntricas no mercado de trabalho”. Você participará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

Expediente Governador do Estado Eduardo Campos Presidente Flávio Chaves

Vice-governador João Lyra Neto

Diretor de Gestão Bráulio Mendonça Meneses

Secretário da Casa Civil Ricardo Leitão Diretor Industrial Reginaldo Bezerra Duarte

Gestor Gráfico Júlio Gonçalves

Equipe de Produção Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco -CEPE

Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro CEP 50100-140 Fone: (81) 3217.2500– FAX: (81) 3222.5126

Editor Raimundo Carrero

Editor Executivo Schneider Carpeggiani

Edição de Arte Andréa Aguiar - Interina

Secretário Gráfico Gilberto Silva

Tratamento de Imagem Sebastião Corrêa

Revisão Gilson Oliveira

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Festivais de literatura ressaltam a necessidade do livro se tornar evento pop Marcella Sampaio

uerida, tenho aqui tuas perguntas. Estou em Madri chegando de Paris e da Alemanha. Tiro um dia de descanso e sonho e te respondo em seguida". Atencioso e suave (nada a ver com a pecha de pornográfico que parte da crítica lhe imputa), assim responde meu primeiro e-mail Pedro Juan Gutierréz, o escritor cubano que ficou conhecido no mundo inteiro depois de publicar sua "Trilogia suja de Havana", em 1998. Uma das figuras mais representativas da atual leva de escritores fenômenos de mídia, ele afirma que, só este ano, teve que recusar convites para participar de eventos literários na Grécia, Bulgária, Noruega, Itália, Estados Unidos, Espanha e Brasil. "Ás vezes, a exposição me deixa aborrecido. Recusei tranqüilamente o convite, por exemplo, para participar de uma mesa sobre Sexo e Literatura na Feira do Livro de Guadalajara, México. Não me interessa que me identifiquem como um escritor erótico ou qualquer estupidez destas". Sua obra está publicada em mais de 20 países. Na Espanha, onde é muito popular, a “Trilogia” já está na décima edição. Mesmo assim, Gutierréz afirma que viajar "lhe confunde", e que se irrita em ter que responder sempre às mesmas perguntas nas feiras e festas literárias. Participa das que considera interessantes e importantes (é um dos nomes confirmados na Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas - Fliporto, que acontece de 27 a 30 de setembro próximo). "O ofício de escritor é solitário e eu prefiro assim". O entorno da literatura hoje, no entanto, parece apontar para um caminho oposto à solidão. Se considerarmos fenômenos como Harry Potter e sua saga, veremos que a aura que ligava a literatura a um projeto de vida exótico e pouco convencional vem perdendo espaço, embora aqui e ali ainda se faça presente. Campeões de mídia e de vendas, os livros de J.K. Rowling não são os únicos a fazer da literatura um fenômeno de mercado, com direito a gritinhos histéricos de fãs, pedidos de autógrafos e muita divulgação espontânea. As festas e feiras literárias Brasil afora vêm reunindo uma quantidade impressionante de visitantes, principalmente levando em conta que o senso comum é de que o brasileiro lê

pouco ou pouquíssimo. Só aqui em Pernambuco, no segundo semestre, teremos três eventos do gênero bem importantes: o 4º Festival Recifense de Literatura – a Letra e a Voz, a Fliporto e a VI Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Esqueçam, portanto, aquela imagem do escritor ensimesmado, excêntrico, anti-social. A figura do autor e sua interação com o público estão cada vez mais na ordem do dia, quebrando velhos paradigmas acadêmicos que evitavam ao máximo estabelecer esse tipo de relação (autor-obra-público). "Escritor em casulo só serve pra peidar", diz Marcelino Freire, autor do badalado "Angu de sangue", que não se furta em estar presente na maioria dos eventos para os quais é convidado."Quero falar do meu trabalho. Quero o extra-livro. O pós-pós. Por que fechar as portas que me abrem?" Suas performances em eventos literários já o fazem assumir o perfil de showman, sem traumas. "O escritor hoje, lendo seus textos para grandes platéias, retoma sua origem de contador de histórias ao redor das fogueiras". A escritora e acadêmica Lucila Nogueira, responsável pela coordenação literária da Fliporto deste ano, tem uma opinião semelhante à de Marcelino e acredita que "a figura do autor também interessa. Essa relação entre o escritor e a obra é natural e não deixa de ser um caminho para a leitura propriamente dita". Segundo ela, vivemos hoje o resgate da oralidade na literatura. "Já nos curamos da idéia de que a poesia é para ser lida apenas no papel. Os recitais e a criação poética sempre estiveram ligados. A narrativa em prosa, também, não prescinde dos 'contadores de histórias'. Os festivais e feiras são, portanto, uma oportunidade para que o grande público tenha acesso a uma seqüência organizada de obras diversas". Para o jornalista e escritor pernambucano Klester Cavalcanti, vencedor do prêmio Jabuti 2005 de melhor livro reportagem e finalista na mesma categoria em 2007, os eventos literários valem principalmente pelo contato mais próximo com o público. "As feiras


Ilustração: Jaíne

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são um momento de troca. Eu faço um trabalho de formiguinha. Vou, por exemplo, a qualquer palestra que me chamem, sem cobrar", diz ele, que não se importa em dar autógrafos e ser tratado como celebridade. Os prêmios, nestes casos, são um capítulo à parte. "Depois do Jabuti, ganhei prestígio. A relação com a editora ficou mais inte­res­sante, a distribuição foi reforçada. Assinei contrato do meu livro mais recente antes de começar a escrevê-lo, recebi adiantamento, esse tipo de coisa", enumera. O editor paulista Rogério Alves, da Planeta, que publica os livros de Klester, afirma que vale a pena participar de feiras, mas não se arrisca a quantificar o retorno, em termos de negócios, que elas trazem. "Não dá para fazer uma ligação direta entre os eventos e as vendas. Tudo é muito relativo". Quanto aos autores premiados, ele diz que realmente há um aumento de livros vendidos no momento em que os holofotes estão sobre eles, e, novamente, evita falar em números. "Para permanecer em evidência, um a obra precisa estar sempre sendo alvo de comentários, seja porque está presente em alguma lista, ou porque o autor ganhou um prêmio importante, ou foi citado por alguém conhecido", comenta Ricardo Mello, que teve um dos seus livros infantis recomendados por Xuxa em seu programa. "Meu celular não parava de tocar", conta. Por isso, acredita, a importância das feiras. "Elas potenciali­zam a divulgação das obras e servem para quem produz literatura se encontrar. Mesmo assim, a atenção é tão pulverizada que você precisa fazer alguma coisa 'diferente' para se sobressair entre tantos", diz, dando como exemplo o quiosque de Abdias Campos, que o próprio monta e faz sucesso nas feiras justamente por fugir da padronização geral. "Ele vende muito nestes eventos porque consegue chamar a atenção para o seu trabalho, muito bom, aliás". Pesquisa feita pelo Ministério da Cultura, divulgada do site da Câmara Brasileira de Livros, contabiliza 270 milhões de exemplares vendidos em 2005. Segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, o faturamento do setor girou em torno de R$ 2,5 bilhões no mesmo período, cifra superlativa para nosso entendimento pequeno-burguês, mas que não necessariamente se reflete numa vida tranqüila para os autores nativos. A fórmula de sucesso da livraria Cultura pode, talvez, explicar um pouco das relações entre os brasileiros e os livros que consomem. Ao contrário da maioria das livrarias, a rede não tem livros sob consignação e nem sempre pratica o menor preço, mas cresce a taxas de 25% ao ano. Diz

o proprietário Pedro Herz que sua empresa pratica um conceito baseado na física chamado de Long Tail (cauda longa), segundo o qual a cultura e a economia já não dependem apenas dos arrasa-quarteirões, mas de produtos e serviços segmentados que façam com que o cliente volte à livraria atraído pelo ambiente que encontra por lá. Ou seja, o típico comprador da Cultura tem apego à loja, não necessariamente aos livros. A tiragem ótima de um livro no Brasil é de 3 mil exemplares para obras gerais e 30 mil para didáticos e best-sellers. O giro de estoque é, em média, superior a um ano e os direitos autorais pagos estão em torno de 10% do preço de capa (às vezes menos). Ainda segundo a pesquisa do MinC, cerca de 52% das editoras e 40% das livrarias têm faturamento anual de até um milhão de reais. Não é de estranhar, portanto, que as festas, feiras e bienais sejam tão atraentes para quem edita, vende, publica ou escreve livros. "É uma vitrine importante", acredita Inês Kouly, da editora pernambucana Bargaço, cujo segmento de mercado são os autores regionais (nordestinos). Ela diz que o retorno é principalmente de mídia, de divulgação institucional propriamente dita. "Em termos de negócios o ganho é relativo, mas as feiras são uma boa oportunidade para tornar conhecido do púbico o nosso acervo". A última Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, teve, de acordo com os organizadores, cerca de 430 mil visitantes. Um estouro. A Festa Literária de Parati deste ano reuniu 20 mil turistas na cidade, muitos dos quais viveram momentos de tietagem absoluta ao lado de escritores como Amós Oz, Fernando Morais, César Aira e Gabriel, o Pensador (!). Ainda assim, não há uma relação já estabelecida entre os eventos e o retorno econômico que eles rendem a editoras, livrarias e autores. A assessoria de comunicação da CBL afirma que não há previsão para que uma pesquisa como essa seja realizada, e, informalmente, diz que a percepção dos envolvidos é que as feiras criam um calendário para o setor, imprescindível para a sobrevivência de qualquer negócio nos tempos moder­nos. É o tal do "gancho", expressão cara a nós, jornalistas, e que significa, mais ou menos, "fato novo", motor do citado showbizz. Pois é. Sem gancho, não há arte, ou pelo menos o público não fica sabendo que ela existe.

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Saber


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Daniela Arrais e Francisco Bertioga

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o fim das introduções maçantes, dos solos exagerados, dos refrãos que se repetem e se repetem e se repetem. Na rádio Sass (www.radiosass.com), esse tipo de música está morto e sepultado, e quem ganha, quantitativamente, é o ouvinte: em apenas uma hora são oferecidas 30 músicas –­ o número não passaria de 12 em uma rádio tradicional. Para conseguir esse resultado, a saída encontrada pelo DJ George Gimarc, idealizador do projeto, foi simples: "passar a faca" nas canções. Todas as faixas são picotadas, e os intervalos não passam de um minuto e meio. A rádio on-line é um dos muitos exemplos de uma nova forma de consumo de cultura que ganha cada vez mais espaço com a internet: a “snack culture” (cultura do aperitivo, ao pé da letra). A expressão, difundida pela revista especializada em tecnologia “Wired”, engloba um universo amplo: de “snacktones” (músicas de dez a 30 segundos compostas especialmente para tocar em celulares) e minigibis a filmes de ginástica com menos de dois minutos (para serem assistidos pelo iPod na academia) e versões reduzidas de clássicos do cinema, como “Pulp Fiction” (1994), de Quentin Tarantino. Segundo Gimarc, a idéia para criar a rádio veio da observação das pessoas enquanto ouvem música. “A gente vive em uma época em que a velocidade é supervalorizada. Buscamos uma internet mais veloz, dirigimos mais rápido, comemos fast food, zapeamos por canais de TV. Queremos mais músicas, mais filmes, mais estímulo do que antes”, diz. Para o idealizador da Sass, apenas a rádio ainda não havia se adaptado à instantaneidade do consumo. Tanta sede pelo entretenimento instantâneo é conseqüência da sociedade de consumo, na opinião de Gabriela Borges, professora de ciências da comunicação da Univerisdade do Algarve, em Portugal. “Os produtos culturais são feitos para serem rapidamente consumidos a fim de que novos sejam produzidos e introduzidos no mercado. Com o acelerado desenvolvimento tecnológico, mais produtos culturais são disponibilizados”, afirma. Já o jornalista, apresentador e diretor de TV Marcelo Tas diz acreditar que a instantaneidade causada pela revolução digital tem efeitos mais amplos. “A febre não atinge só o entretenimento, mas a informação, a comunicação e até a vida afetiva.”

Como as novas tecnologias estão levando a cultura a ser consumida em pedaços

Para Tas, a “snack culture” funciona como “um índice para o internauta decidir aonde vai gastar seu tempo”. “A indústria precisa urgentemente parar de subestimar a inteligência do consumidor-leitor-telespectador. Cada vez mais independente da grande mídia, ele tem o poder de decisão na mão: pesquisa preços antes de comprar, zapeia pelos diversos canais de informação e entretenimento antes de decidir aonde vai investir o precioso tempo da sua atenção”, diz. O músico Gustavo Mini Bittencourt, da banda gaúcha Walverdes, também ressalta o papel do consumidor. “O fã é cada vez mais editor da obra do artista. Tem tanto o cara que curte ver o filme inteiro quanto o que assiste só a trailers. No meio, tem o cara que gosta de 'mashupar' (misturar obras diferentes para obter um novo resultado) trailers.” Criador da rádio Sass, Gimarc diz que as versões enxutas das músicas trazem benefícios para músicos e gravadoras. “Se a minha rádio toca duas vezes mais do que as outras estações, ela venderá o dobro”. Na mesma sintonia, Steve Ellis, fundador do programa de licenciamento on-line de música independente Pump Audio ( www.pumpaudio. com), afirma enxergar na “snack culture” uma grande possibilidade de fazer negócios. “Nós não compramos uma música, simplesmente representamos a música de artistas independentes. As empresas pagam de acordo com licenças. Podem ser poucos dólares, mas de centenas a milhares, nós agregamos um grande valor”, explica. Só em 2006, o Pump Audio, que vende trechos de músicas para programas de TV, filmes, sites e jogos de videogame desde 2001, pagou US$ 125 mil (cerca de R$ 254 mil) a artistas independentes por suas obras. O aumento na diversidade de produtos culturais é um dos pontos positivos da “snack culture”, como aponta Gabriela Borges. Mas ela alerta: “A superficialidade e a instantaneidade fazem com que não haja tempo para uma maior reflexão sobre o que está sendo consumido”. Para Hudson Moura, editor da revista Intermídias (www.intermidias.com) e pesquisador do Centro de Estudos da Oralidade da PUC, mesmo que o produto deixe de ser o mesmo, ele pode ser permanente. “Esses fenômenos midiáticos se prolongam no tempo muito mais do que antes, ele podem ser consumidos de uma maneira muito mais dinâmica e ter uma vida duradoura e prolongada”, afirma. O músico Bittencourt reconhece uma possível superficialidade, mas não a vê com tanto pessimismo. “Cabe olhar pra isso com atenção e curiosidade e não com uma atitude ranzinza tipo 'hoje em dia é tudo mais superficial'”, diz. Disponível no site YouTube, a versão reduzida de “Pulp Fiction”, com menos de dois minutos, aumenta a vida útil e o interesse pelo filme, segundo Marcelo Tas. “A versão curta mostra que o filme, lançado no distante 1994, continua atiçando o imaginário da molecada. É uma prova da atenção e respeito dos fãs.” Para Tas, não se deve confundir “snack culture” com fast food. “Os pedacinhos de diversão digital servem como um aperitivo. É um engano hoje pensar que as pessoas gastam menos tempo com cinema, TV e até literatura. Senão, como explicar o sucesso de livros e séries que demandam tempo entre os jovens como 'Lost', '24 Horas', 'Senhor dos Anéis', 'Harry Potter' etc.” O apresentador vê com bons olhos as mudanças causadas pela revolução digital e defende a geração que consome cultura aos pedaços. “Há um mito que antigamente as pessoas eram mais cultas e inteligentes. Pura mentira. Há uma molecada digital extremamente bem informayy da que não perde tempo com bobagem, como fazem os adultos zonzos no meio dessa mudança gigantesca.”


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Diego Raphael

Tradutor explica sua nova versão para o livro de Jonas

os livros que compõem o “Antigo Testamento” – tanto o judaico quanto o católico – citados no “Novo Testamento”, o livro de Jonas está, numericamente, entre os menos mencionados. Em termos de alusão, há apenas seis, em, respectivamente, Mt 11.21, Mt 12.41, Mt 26.38, Mc 14.34, Lc 11.32 e 1 Cor 15.4. Essa estatística, aparentemente pobre, não demonstra o valor significativo que o livro exerce sobre a relação entre as antiga e nova alianças. Poder-se-ia dizer que o livro de Jonas é uma espécie de ponto de interceção entre elas, pois nele nos é apresentado, talvez pela primeira vez de forma explícita, um Deus compassivo e piedoso – embora irônico – não apenas com os israelitas como, também, com os pagãos, o que, em termos comuns, poderia ser considerada a marca registrada da pregação cristã – sobretudo paulina. Há no livro de Jonas, porém, problemas de maiores complexidades para a reflexão cristã, como, por exemplo, a Ressurreição de Cristo. Para que se tenha uma idéia mais clara do que dizemos, em Mateus 12.38-41, Cristo, repreendendo os escribas e os fariseus, menciona o profeta indisciplinado de IHVH – segundo a tradição, o nome impronunciável de "Deus" – para sinalizar a própria Ressurreição. Vejamos, para não restar qualquer dúvida, a passagem em questão, no original grego e numa tradução bastante literal realizada por nós – esclarecemos que o texto a seguir é o da quarta edição do “The Greek New Testament”, da UBS, e que a passagem em negrito, presente no original, é citação do livro de Jonas, a única em todo o “Novo Testamento”, provavelmente extraída da “Septuaginta”: 38 To/te a)pekri/qhsan au)t%= tinej tw=n grammate/wn kai\ Farisai/wn le/gontej, Dida/skale, qe/lomen a)po\ sou= shmei=on i)dei=n. 39 o( de\ a)pokriqei\j ei)=pen au)toi=j, Genea\ ponhra\ kai\ moixali\j shmei=on e)pizhtei=, kai\ shmei=on ou) doqh/setai au)t$= ei) mh\ to\ shmei=on 'Iwna= tou= profh/tou. 40 w(/sper ga\r h)=n 'Iwna=j e)n t$= koili/# tou= kh/ touj trei=j h(me/raj kai\ trei=j nu/ktaj, ou(/twj e)/stai o( ui(o\j tou= a)nqrw/pou e)n t$= kardi/# th=j gh=j trei=j h(me/raj kai\ trei=j nu/ktaj. 41 a)/ndrej Nineui=tai a)nasth/sontai e)n t$= kri/sei meta\ th=j genea=j tau/thj kai\ katakrinou=sin au)th/n, o(/ti meteno/hsan ei)j to\ kh/rugma 'Iwna=, kai\ i)dou\ plei=on 'Iwna= w(=de. [38 Então lhe responderam alguns dos escribas e fariseus, dizendo: "Mestre, queremos ver de ti algum sinal." 39 Ele, respondendo, lhes disse: "Geração maligna e adúltera, busca um sinal e um sinal não lhe será dado, senão o sinal do profeta Jonas. 40 Pois como esteve Jonas nas entranhas do peixe três dias e três noites, assim estará o filho do homem no coração da terra três dias e três noites. 41 Os homens de Nínive se levantarão no juízo com esta geração e a condenarão, pois se arrependeram à pregação de Jonas, e eis alguém maior que Jonas."] A relação, aqui, está mais que estabelecida: assim como Jonas nas entranhas do "grande peixe", Cristo, o "alguém maior que Jonas", estará no coração da terra por três dias e três noites, profecia que, sabemos todos, se realiza. A fé na Ressurreição de Cristo é problema tão grave para o cristianismo nascente que Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios 15.1219, escreve – o texto é igualmente o da UBS4 e a tradução por nós realizada a mais literal possível: 12 Ei) de\ Xristo\j khru/ssetai o(/ti e)k nekrw=n e)gh/gertai, pw=j le/gousin e)n u(mi=n tinej o(/ti a)na/stasij nekrw=n ou)k e)/stin; 13 ei) de\ a)na/stasij nekrw=n ou)k e)/stin, ou)de\ Xristo\j e)gh/gertai: 14 ei) de\ Xristo\j ou)k e)gh/gertai, keno\n a)/ ra [kai\] to\ kh/rugma h(mw=n, kenh\ kai\ h( pi/stij u(mw=n. 15 eu(risko/meqa de\ kai\ yeudoma/rturej tou= Qeou=, o(/ti e)marturh/samen kata\ tou= Qeou= o(/ti h)/geiren to\n Xristo/n, o(\n ou)k h)/geiren ei)/per a)/ra nekroi\ ou)k e)gei/rontai. 16 ei)\ ga\r nekroi\ ou)k e)gei/rontai, ou)de\ Xristo\j e)gh/gertai: 17 ei) de\ Xristo\j ou)k e)gh/gertai, matai/a h( pi/stij u(mw=n, e)/ti e)ste\ e)n tai=j a(marti/aij u(mw=n, 18 a)/ra kai\ oi( koimhqe/ntej e)n Xrist%= a)pw/lonto. 19 ei) e)n t$= zw$= tau/ t$ e)n Xrist%= h)lpiko/tej e)sme\n mo/non, e)leeino/teroi pa/ntwn a)nqrw/pwn e)sme/n. [12 Se é anunciado que Cristo ressurgiu dos mortos, como dizem alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos? 13 E se não há ressurreição de mortos, Cristo não foi ressucitado. 14 E se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa proclamação e vã a vossa fé. 15 Logo também somos reconhecidos como falsas testemunhas de Deus, porque testemunhamos contra Deus, que ressuscitou Cristo, a quem não ressuscitou, se de fato mortos não são ressuscitados. 16 Pois se mortos não são ressuscitados, Cristo também não ressuscitou. 17 E se Cristo não ressuscitou, vã é a vossa fé, e ainda estais em vossos pecados, 18 e assim também os que adormeceram em Cristo pereceram. 19 Se apenas nesta vida estamos esperando por Cristo, somos os mais miseráveis de todos os homens.] Diante de todos esse fatos – e de outros que, por falta de espaço, não podemos sequer mencionar – a leitura do livro de Jonas, literariamente agradável e teologicamente importante, se faz indispensável. Por isso resolvemos, nós mesmos, traduzi-lo, naturalmente a partir do original hebraico, cujo texto base foi o da “Biblia Hebraica Stuttgartensia”, mas não deixamos de espiar, vez por outra, a versão grega da “Septuaginta”. De antemão, esclarecemos que a nossa tradução não se configura única e exclusivamente literal. Se assim o parecer, é porque procuramos, deliberadamente, manter o sabor 'primitivo' do original. Para o poema intercalado – possivelmente adição posterior à redação do livro –, não ensejamos metrificá-lo nem muito menos rimá-lo, na medida em que a poesia hebraica não se pauta por tais yy questões formais. O máximo que fizemos foi, a partir de leitura em voz alta, alcançar as aliterações e assonâncias possíveis.

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O livro de Jonas Tradução de Diego Raphael 1 1 Veio a palavra de IHVH a Jonas, filho de Amitai, dizendo: 2 "Ergue-te e vai a Nínive, a grande cidade, e clama contra ela, pois sua injustiça subiu à minha face!" 3 Ergueu-se Jonas para fugir a Társis da face de IHVH, desceu a Jope e encontrou uma embarcação que ia a Társis. Deu sua passagem e desceu para ir com eles a Társis da face de IHVH. 4 Mas IHVH lançou grande vento sobre o mar e houve grande tempestade no mar, estando a embarcação prestes a se quebrar. 5 Temendo, os tripulantes invocavam, cada um, os seus deuses, e lançavam os equipamentos que estavam na embarcação ao mar para torná-la mais leve, enquanto Jonas descia ao porão do navio, deitava-se e dormia profundamente. 6 Aproximou-se dele o comandante da tripulação e lhe disse: "Como podes dormir? Ergue-te, clama ao teu deus, talvez esse deus se lembre de nós e não pereçamos!" 7 E dizia cada um ao seu companheiro: "Vinde, lancemos as sortes e procuremos saber por causa de quem este mal caiu sobre nós". Lançaram as sortes e a sorte caiu sobre Jonas. 8 E lhe disseram: "Fala-nos a razão de este mal ter caído sobre nós: qual o teu negócio? De onde vens? Qual a tua terra? De que povo és tu?" 9 Disse-lhes: "Sou hebreu e temo a IHVH, deus dos céus, criador do mar e da terra firme". 10 Medraram nos homens grande medo e lhe disseram: "O que fizeste?", pois sabiam esses homens que ele fugia da face de IHVH, uma vez que lhos declarara. 11 Disseram-lhe: "O que faremos contigo para que o mar se acalme em torno de nós?", pois o mar se tornava mais tempestuoso. 12 Disse-lhes: " Erguei-me e lançai-me ao mar para que o mar se acalme em torno de nós, pois sei que, por minha causa, sobreveio esta grande tempestade em torno de nós". 13 Os homens remavam para voltar à terra firme mas não suportavam, pois o mar se tornava mais tempestuoso em torno deles. 14 E, clamando a IHVH, disseram: "Ah! IHVH, suplicamos: que não pereçamos por causa da vida deste homem nem caia sobre nós sangue inocente, pois tu, IHVH, fazes como queres!" 15 Ergueram Jonas e o lançaram ao mar, e o mar cessou a sua fúria. 16 Medraram nos homens grande medo de IHVH, ofereceram sacrifício a IHVH e fize-ram-lhe votos. 2 1 E preparou IHVH um grande peixe para que engolisse Jonas e esteve Jonas nas entranhas do peixe por três dias e três noites. 2 E Jonas orou a IHVH, seu Deus, das entranhas do peixe, 3 dizendo: Clamei na minha angústia /// a IHVH e ele me respondeu, do ventre do Xeol chamei /// e ouviste a minha voz. 4 Lançaste-me no abismo, no coração dos mares, /// e o rio me rodeou. Todas as tuas vagas, tuas ondas /// pesaram sobre mim. 5 E eu disse: "Fui expulso /// da frente de teus olhos, mas tornarei a ver /// o teu sagrado templo". 6 Circundaram-me as águas até a alma, /// o abismo me cercou e as algas apertaram-me a fronte. /// 7 Às bases das montanhas desci e a terra /// e seus ferrolhos me aguilhoaram para sempre. Fizeste minha vida subir da sepultura, /// IHVH, meu Deus. 8 Quando minha alma em mim desfalecia, /// lembrei-me de IHVH e a ti chegou a minha oração, /// ao teu sagrado templo.

9 Os que reverenciam ídolos vãos /// abandonam a sua bondade. 10 E eu, com a voz da gratidão, /// imolarei a ti; o que votei, repararei: /// a salvação é de IHVH! 11 Então falou IHVH ao peixe, que vomitou Jonas em terra firme. 3 1 Veio a palavra de IHVH a Jonas pela segunda vez, dizendo: 2 "Ergue-te e vai a Nínive, a grande cidade, e clama contra ela a mensagem que eu te disser!" 3 Ergueu-se Jonas e foi a Nínive segundo a palavra de IHVH. Nínive era uma grande cidade em relação a Elohim, de três dias de caminhada. 4 Iniciou Jonas a entrar na cidade, na ca-minhada de um dia, e clamou, dizendo: "Ainda quarenta dias e Nínive será destruída!" 5 Creram os homens de Nínive em Elohim e proclamaram jejum e vestiram sacos, dos maiores aos menores. 6 Chegou a palavra ao rei de Nínive, que se ergueu do seu trono, despiu-se do seu manto, cobriu-se com saco e sentou-se sobre as cinzas.7 E decretou e anunciou em Nínive, por mandato do rei e de seus grandes, dizendo: "Homens e animais, bois e ovelhas, nada provem, nada comam, nada bebam! 8 Que se cubram com saco o homem e o animal e clamem a Elohim com firmeza, arrependendo-se cada um de seu mau caminho e da injustiça que há em suas mãos! 9 Quem sabe assim retrocede Elohim, afasta-se do furor de sua ira e não nos destrói?" 10 Viu Elohim o que faziam, que retrocederam de seu mau caminho, e Elohim se arrependeu do mal que lhes anunciara, e não o fez. 4 1 Isso ofendeu grandemente a Jonas, que se revoltou. 2 E orou a IHVH, dizendo: "Ah! IHVH, não foi isso o que falei ainda em minha terra? Por isso me apressei a ir a Társis, por saber que és clemente, compassivo, paciente em irar-se e te apiadas do mal! 3 Então, IHVH, peço agora que me tires a alma, pois é melhor estar morto que vivo!" 4 Disse IHVH: "Fazes bem em te revoltar?" 5 Jonas então saiu da cidade e sentou-se ao oriente da cidade. Fez uma tenda e sentou-se à sombra, esperando ver o que aconteceria com a cidade. 6 Preparou IHVH-Elohim uma cucurbitácea para cobrir Jonas e lhe fazer sombra sobre a cabeça, aliviando-o do cansaço, e Jonas alegrou-se grandemente com a cucurbitácea. 7 Mas Elohim preparou um verme e o enviou ao nascer do dia seguinte, o qual atacou a cucurbitácea e a fez secar. 8 Veio o raiar do sol e Elohim preparou um vento oriental veemente e o sol feria a cabeça de Jonas, que, desfalecendo, perdia a alma e dizia: "Melhor morrer que viver". 9 Então disse Elohim a Jonas: "Fazes bem em te revoltar pela cucurbitácea?" Ele disse: "Faço bem em me revoltar até a morte!" 10 Então disse IHVH: "Tens compaixão da cucurbitácea, na qual não trabalhaste nem a fizeste crescer, que numa noite nasceu e numa noite pereceu. 11 E eu não terei compaixão de Nínive, a grande cidade, na qual estão mais de cento e vinte mil pessoas que não fazem distinção entre a mão direita e a mão esquerda, e miríade de animais!"


ononoersonalidade

Como Florestan Fernandes estaria interpretando o Brasil de hoje? Luis Carlos Pinto

uando Florestan Fernandes era criança, sua madrinha o chamava de Vicente. Achava que "Florestan” não era um nome adequado para uma criança pobre, ainda mais filha de uma lavadeira de roupa. Anos mais tarde, Florestan declararia que somente quando entrou na Universidade de São Paulo deixou de ser o Vicente e passou a ser Florestan. O Florestan que anos mais tarde produziria uma obra tão vasta quanto perene da sociedade brasileira e mais do que nunca necessária para entender o Brasil. O paulistano do Brás teria feito 87 anos no último dia 22 de julho; e no próximo dia 10 de agosto completam 12 anos de seu falecimento. É necessário ler mais Florestan Fernandes. A história (as histórias) da formação da sociedade brasileira contadas e interpretadas por Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Hollanda, Machado de Assis e Celso Furtado se encontram com Florestan no seu clássico “A Revolução Burguesa”. Escrito entre 1966 e 1973, como uma “resposta intelectual à situação política que se criara com o regime instaurado em 31 de março de 1964”, o livro parece que teve sua atualidade renovada nos últimos anos. Razões não faltam. Recentemente, foi observado por Francisco de Oliveira que nossa história é um complexo de violência, proibição da fala e mais recentemente privatização do público. Em que a implantação e consolidação do capitalismo no Brasil foi dominada pelo patrimonialismo, revolução pelo alto, enfim, uma incompatibilidade entre dominação burguesa e democracia. A base estrutural foi, claro, fornecida pelo escravismo, em que a anulação do corpo e da fala do outro se dá pela violência sexual, coisa que foi analisada por Gilberto Freyre. O mito do “homem cordial”, analisado por Sérgio Buarque, deixa claro a anulação da diferença, da alteridade, e a impossibilidade de uma experiência liberal. Caio Prado, por sua vez, salientou que o velho latifúndio se tornou capitalista sem perder muitas das características do periodo colonial, como as múltiplas formas de abuso não-econômicos – a violência física, por exemplo. Foi uma via não clássica para a revolução que implantou o capitalismo: a grande propriedade e a velha classe lati­ fundiária se conservaram e introduziram, progressivamente e pelo alto, desde o fim do período colonial, novas relações de produção que se cristalizaram no capitalismo. Essas interpretações todas desaguam em Florestan, que mostrou como e porque a implantação e consolidação do capitalismo no Brasil foram intrinsecamente estabelecidas em face de garantias, privilégios, interesses privativos. Entender isso é uma necessidade das mais atuais, frente a políticos (em todos as esferas) que parecem cada vez mais rezar o credo da orientação particularista, voltada para o privado. A presença

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dessa orientação particularista em nossa constituição teve, tem e terá conseqüências graves em todas as áreas, especialmente na economia e na política. Isso tudo significa o seguinte. Na passagem da sociedade colonial para a nação independente, a camada senhorial tomou conta do poder sem a preocupação de efetivar mudanças no plano social. A revolução burguesa por aqui, ou seja, a implantação e sedimentação do capitalismo, nunca resultou de uma revolução econômica, nem ajudou a formar ideais de autonomia econômica que implicassem em ruptura imediata, irresistível e total com o passado recente. Olha que Florestan escrevia na década de 1970, quando Lula ainda era sindica­li­sta e o PT ainda não existia (a carta de princípios é de 1º de maio de 1979 e o lançamento da sigla só viria a acontecer em fevereiro do ano seguinte, em 1980). Mesmo assim, aquilo que o pensador paulista escreveu se adequa como uma luva aos dois governos de Luiz Inácio, em que a expectativa por uma mudança econômica deu vez (pelo voto) à continuidade dos mandamentos desmantelados do neo-liberalismo. E isso não é culpa do PT, como podem querer que seja. A falta de uma autonomia econômica, a dependência é, mostra o autor, um padrão básico que se mantém em toda a história de nosso capitalismo. Nossa autonomia nunca existiu. Parece ser essa a fonte do esgotamento de nossas energias utópicas. Às transformações introduzidas pelo capitalismo na estrutura das relações so­ciais, à emergência do proletariado independente (mais recentemente a partir da décadade 1970), às pressões pela igualdade no campo, a burguesia sempre reagiu com a anulação da fala, com a violência que anula a política, com os vários regimes de exceção – cada um deles confirma essa tese. É necessário lembrar Florestan. E assim ser mais preciso: as classes dirigentes sempre estiveram prontas a recorrer a formas autocráticas (antidemocráticas) para organizar o poder. Ou seja, a concentração exclusivista e privatista de poder. O que, nas palavras do próprio Florestan, convertia o Estado nacional e democrático em instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva. Florestan escrevia sob o sol e a chuva da última ditadura militar no Brasil. O que não o impediu de fornecer material de análise coerente para classificar o nosso neoliberalismo de todo santo dia como um Frankstein construído de pedaços de social-democratas, antigos e novos oligarcas do Nordeste, populistas de direita, trânsfugas de esquerda (esses, existem aos montes) cuja face é a de um real totalitarismo, como diria o sociólogo Francisco de Oliveira. Florestan, lembremo-nos dele para além de sua obra, tão necessária. Sua vida não cabe nesse pedaço de papel: teve dois nomes, trabalhou como engraxate, auxi­liar de marceneiro, auxiliar de barbeiro, alfaiate e balconista de bar; voltou a estudar aos 17 anos; foi à universidade, Universidade de São Paulo, recriou a estrutura da tribo dos Tupinambás, já extinta, em seu mestrado e doutorado. Foi parlamentar da constituinte de 1988; ajudou a fundar o PT; cassado pelo AI 5, exilou-se no Canadá. Morreu aos 75 anos, tendo deixado atrás de si gerações de intelectuais e uma obra ainda necessária yy para entendermos porque o Brasil está do jeito que está.


astrono-

O filme “Ratatouille” colocou novamente em discussão que um dos principais ingredientes de um prato é o afetivo

Receita de afeto orte as berinjelas em fatias e polvilhe com sal. Retire a pele dos tomates. Esmague o alho, descasque as cebolas, fatie as abobrinhas e os pimentões, que devem ser das cores que você preferir. Refogue no azeite até tudo ficar macio. Pode ser servido quente ou frio. É difícil encontrar receita tão simples quanto essa, do clássico da cozinha provençal ratatouille, que dá nome ao último sucesso da Pixar, empresa da Disney conhecida por suas animações com criatividade acima da média. Mais que apenas diversão garantida, o filme vem despertando em muita gente – crianças incluídas – um novo sentimento em relação à alimentação. Em Paris, o restaurante do recém-falecido chef Auguste Gusteau acaba de perder uma de suas cinco estrelas. Para os adultos a par do mundo da gastronomia, a referência ao suicídio do francês Bernard Loiseau às vésperas de perder uma estrela no Guia Michelin – o que, diga-se de passagem, nunca ocorreu - é clara. A casa não está em sua melhor fase e agora é comandada por Skinner, mais preocupado em fazer milhões com a venda de comida congelada sem nenhuma personalidade às custas do nome do antigo chef. Para piorar, trata mal sua brigada de cozinha, ao contrário do que faria o bonachão Gusteau. Longe da capital, o ratinho Remy coloca sua família numa fria ao tentar roubar um pote de açafrão de uma velha senhora. Todos são obrigados a fugir, Remy se perde e vai parar em Paris, pertinho do restaurante do chef cujo programa de TV acompanhava com avidez. Sim, nosso herói é um ratinho gourmet, que anda sobre duas patas em nome da higiene alimentar! Depois de ajudar o iniciante lavador de pratos Linguini a preparar uma sopa sublime, acaba fazendo um pacto para que este consiga se manter na cozinha e, de quebra, realiza seu sonho de trabalhar onde sempre sonhou. Como era de se esperar, o roedor passa por muita confusão. Precisa viver escondido sob a toque blanche, aquele chapéu comprido típico dos cozinheiros, para que ninguém além de Linguini saiba de sua presença na cozinha. O jovem vira uma marionete nas mãos do ratinho, que compreende o que ele diz, mas não fala sua língua e conta com gestos e puxões de cabelo para se fazer entender. Recebe ainda auxílio de Colette, cozinheira de personalidade forte por quem acaba se apaixonando, mas que demora a entender a situação e mais ainda a apoiar o namorado em sua empreitada. Além do preconceito, Remy precisa lidar com a pressão da família, para quem os humanos são inimigos cruéis dos quais é preciso se manter o mais longe possível. Só que esse não é um rato qualquer, mas sim um rato de paladar e olfato apurados – não por acaso, sua função na toca era cheirar todos os alimentos reco­lhidos do lixo para selecionar o que servia e o que poderia envenenar seus amigos. Para ele, comer é uma experiência estética, algo que surge nas brilhantes seqüências em que a degustação se traduz nas imagens de cores, luzes e fogos de artifícios que ele tenta passar ao seu irmão (sem muito sucesso, aliás).

Além de Skinner, o outro vilão da trama é o crítico gastronômico Anton Ego. Figura triste e sombria, espanta-se quando Linguini fica pasmo com sua magreza. Como alguém poderia gostar tanto de comer e ser tão esguio, questiona o ingê­nuo lavador alçado a cozinheiro? Ora, responde Ego, não se trata de gostar, mas de adorar comer: se algo não está perfeito, ele simplesmente não come. Sua visita é esperada com um medo ansioso pela brigada do Gusteau's, a quem ele não pede nada além de ser surpreendido. "Peça ao chef algo que me surpreenda", afirma, para desespero do garçom. E adivinha o quê Remy escolhe oferecer? A missão é mais que cumprida e agora chega a hora em que o autor pede ao leitor que pare de ler se não quiser saber o final do filme. Basta colocar a primeira garfada na boca para Ego voltar à sua infância no campo, ao cheiro de panela fumegante no fogo e à imagem de sua mãe servindo o prato para se comer às colheradas. O sensorial se mistura ao afetivo e ele se emociona – e ao espectador mais ainda – ao ver que finalmente alguém o surpreendeu depois de tantas refeições em restaurantes da moda. Não é preciso ser alta cozinha, basta ser co­zinha boa, gostosa, bem feita. "Qualquer um pode cozinhar" é o lema de Auguste Gusteau que Remy segue à risca. Ao ver o que se passa na cozinha comandada por um rato, Ego tem que rever seus conceitos e repensa sua função, ao ver que precisa se arriscar mais para descobrir – ou, no caso, redescobrir – o que o alimenta de verdade. O crítico assume seu papel e defende aquilo em que acredita, mesmo que venha de uma "fonte inesperada", como afirma no texto que publica no jornal. Ganha um doce quem não deixar escorrer uma lágrima e sair com fome do cinema direto para o restaurante preferido. Obviamente, é mais importante aqui ser querido do que ser francês. A ratatouille é um prato da chamada cozinha de bistrô, aquela comida com ar caseiro, rústica e perfumada, regada a boa conversa com amigos ou familiares. É simples (mas nem sempre fácil de preparar), saborosa e generosa, situando-se no extremo oposto das pequeninas porções em voga desde a nouvelle cuisine e das etéreas desconstruções da cozinha molecular. Sabe aqueles pratos que reúnem todos na cozinha, atraídos pelo cheiro e pela partilha de vozes, sabores e aromas? É essa a cozinha de bistrô, nome dado na França aos pequenos restaurantes que servem esse tipo de comida – e todas as sensações agregadas. Já "Ratatouille", o filme, é feito para crianças e adultos pensarem. É sintomático que, num filme dito infantil, o maravilhoso prato servido no Gusteau's seja à base de legumes, tão em baixa no cardápio do público-alvo. Boa parte já tem o paladar viciado em produtos industrializados e torce o nariz para qualquer alimento não processado. Cabe perguntar que tipo de memória gastronômico-afetiva essa geração vai ter. Aos não tão jovens assim, fica a deixa para buscar dentro de si o que se quer – seja no desejo de Remy de seguir seu sonho, contra tudo e contra todos, ou yy na felicidade de Ego ao saborear suas histórias de infância.

Alexandre Belém

Renata do Amaral


ononorônica

Entre centenas de casos de amor

Flávia de Gusmão

Alexandre Belém

O vinho Carreteiro vem com novas embalagens, uma long neck, para desenrolar o seu velho novelo de emoções

eu que pensei que nunca mais veria na minha frente uma garrafa de Carreteiro. Realmente, não vi pela frente, mas qual não foi o meu susto quando me deparei com um exemplar no banco de trás do meu carro. Lá estava ele, dentro de um recipiente bojudo, quase um litro da mais vomitada memória da adolescência, envolto na sua indefectível teia de plástico, simulando pobremente o que deveria ser um artesanato da Toscana ou outra região qualquer da Itália. O rótulo multicolorido, o subtítulo: vinho tinto seco. Um simulacro alegre como só podem ser os verdes anos. Medo. Ou eu estava entrando numa espécie do túnel do tempo, num estágio irremediável de alcoolismo, ou, finalmente, alguém estava me pregando uma boa peça. Hesitei entre as três alternativas, todas altamente compatíveis, mas até por uma questão de amor próprio optei pela última. Algum desafeto andava profundamente despeitado porque hoje sou uma mulher fina, que só toma vinho botando a mão no joelho, dando uma rodadinha, enfiando o nariz pra dentro e recitando uma série de aromas improváveis: amora, tabaco, couro, café, chocolate, frutas vermelhas (melancia não vale). E, quando nada mais me ocorre, cito sempre, fazendo o maior carão: pimentão. Não havia que duvidar, era tinto, era seco, mas era Carreteiro. Não sei por que, um flashback me atingiu como um raio e lembrei o slogan da marca: "O companheiro das emoções". Isso e mais a canção de Marquinhos Moura ("Fica comigo, meu mel / Tira o adeus das mãos"), que se derramava pelo rádio, foi o suficiente para colocar por terra minha couraça de civilidade. Fiquei ali, o sentimento de indignação sendo substituído por uma traiçoeira nostalgia, palavra gosmenta que transforma o péssimo em tudo de bom. Não havia o que duvidar, o vinho Carreteiro foi, sim, o amigo fiel de todas as horas em que o juízo anda cobrando juros e vivemos permanentemente numa espécie de cheque especial de bom senso. E aí reside a sua beleza e, por que não dizer, o segredo do seu sucesso. Enquanto a indústria do vinho se acotovela para chegar a números menos ridículos de consumo per capita, o Carreteiro se ergue como um monumento de resistência, graças à força, ao miserê e ao fígado de aço da pouca idade. De 1934 para cá, época do seu surgimento, já alimentou incontáveis milhões de ressacas juvenis. Vangloria-se de bater a casa de dois milhões anuais de litros vendidos. Pintou de roxo a língua, os dentes e a alma dos muitos que se renderam ao seu charme barato. Hematomas falsos de uma época em que a vida dói de verdade. Dada a sua longevidade, o Carreteiro deve ter feito companhia a um casal que descobria borboletas no estômago ao som de Noel Rosa; afogado as mágoas de uma dama com a ajuda de uma trilha sonora movida a Orlando Silva, Elizete Cardoso e Aracy de Almeida. Esteve com os bichos-grilos numa barraca de acampamento, no embalo de Caetano Veloso, devidamente harmonizado com um delicioso ragu de salsicha Swift, que eu não me furto em dar aqui a receita: Ingredientes Uma lata de salsicha tipo viena (pode ser mais, dependendo da larica) Uma colher de sopa de manteiga ou margarina Uma colher de sopa de extrato de tomate. Equipamento Um fogareiro de camping Uma frigideira Colher para mexer Modo de fazer Abra a lata, escorra a salmoura, corte as salsichas em cilindros menores. Esquente a manteiga na frigideira, junte o extrato de tomate e, depois, as salsichas. Quando tudo estiver da mesma cor, sirva acompanhado de arroz de saquinho. Um breve questionário em minha própria casa dissolveu o mistério. O Carreteiro pertencia à minha filha e seus amigos. Troféu que havia sobrado de uma recente ida a um balneário com direito a show (Ivete Sangalo, Babado Novo, sei lá). Esquecida de que o absolutismo dos 20 anos dispensa a transferência de experiência, ainda sugeri. Posso jogar fora? Ao que ela me responde com outra receita: fica delicioso geladinho ou com uma pedra de gelo. E ainda me mostrou outras opções, que eu, desatualizada, tinha perdido junto com o bonde do desejo – aromatizado com gengibre ou limão. A vida gira, gira, mas o Carreteiro está ali, um eterno companheiro das emoções. E quem há de negar? yy

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a Wilhelm Reich. E eu descobri, enfim, que era inteligente. Mas era uma inteligência kamikaze. Simone de Beauvoir resumiria a angústia: a mu-lher só conquista quando se faz de presa. Bem... Digamos que eu tinha uma vontade enorme de caçar o meu próprio antílope. A bomba, assim, estourou. Ora, eu tinha uma combinação explosiva: prazer + culpa + conhecimento. O que fazer diante disso? O que fazer quando se nasce mulher sob o signo de uma sociedade hedonista mas não mudada o bastante para eliminar as diferenças? Existem dezenas de estereótipos atribuídos aos homens. Às mulheres, reservou-se uma polaridade que a estigmatiza em duas categorias-padrão: santa e safada. O uso do corpo é um indicador dessas identidades que você as aceita se quiser, claro. Não as aceitei porque não sou uma massa uniforme. Ninguém é. Mas como diz o velho jargão do feminismo: o pessoal é político. Assumir-me como uma mulher que rejeita os estigmas da sexualidade resultou em fracassos consecutivos. Esse foi o tempo em que amaldiçoei a razão. Três namorados até hoje não me perdoam por eu ser mais inteligente do que eles. Outros dois ainda me vêem com o chifre do diabo na cabeça. A profecia de Dorothy Parker se auto-realizou: “descasque um amante e descobrirá um inimigo”. Perdi o amor e ganhei inimigos que me olharam com desprezo só porque eu li “A história da sexua-lidade”, de Foucault. E eu nem li todo! Pior: nunca apliquei com eles as teorias que busquei para entender o meu pertencimento a essa cultura, a minha singularidade dentro dela. Antes tivesse recitado, apontado, levado um manual de feminismo barato e atirado na cara. Alguns homens não suportam sua mediocridade. Como Vado, de “A navalha na carne”, de Plínio Marcos. Neusa Sueli é a prostituta feia, gasta, envelhecida que ele sente prazer em maltratar. Mas quem é que vive sob o princípio da realidade e com seu corpo, pragmático, o faz sobreviver? Neusa Sueli. Corpo não é apenas sensualidade, piruetas mágicas e açougue cultural. Pode até ser, também, em diversão, consumo e fantasias sexuais. Assumir essa sexualidade em sua liberdade só é possível, porém, quando se tem o conhecimento do corpo sem o seu uso como moeda de troca para o afeto. Corpo é, portanto, conhecimento (interpretação do prazer e utilização inteligente deste para que não se vire um mero capacho do desejo). Um souvenir numa cultura que prefere a superfície, o simulacro de poder.

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Foto: Adelaide

lá vêm as Spice Girls tentando outra vez dar um novo sentido à alienação do corpo pela mídia. Será que vale a pena falar, ainda, em Girl power, o carro-chefe “ideológico” do quinteto, quando vemos suas integrantes anoréxicas, bulímicas; e submetendo-se à imagem dos homens para aparecerem no show biz? Que poder é esse, afinal? Lembro que aos 15 anos, quando os hormônios me deram uma cabeleira sedosa e os seios mais fartos da minha vizinhança, eu achei que o poder estava nas minhas mãos. Aos 15 anos, são os hormônios que nos guiam como as antenas das baratas. E eu estava completamente sob a sua direção. Antes, era apenas mais uma. Não mais uma: a menina desastrada que vendia papel de cartas para as freiras do colégio tentando alcançar a minha salvação aqui na terra mesmo. A diferença surgia no meu corpo que crescia e com o qual eu me destacava das outras tantas garotas magras e pueris do meu tempo. Esse foi o tempo primeiro em que a carne se fez determinante. A descoberta do corpo é um das primeiras manifestações da identidade humana. É a partir do toque de nossas mãozinhas, dos passeios por regiões de surpresas, que o bebê começa a se reconhecer. Quando se é adolescente, esses passeios já não são tão inocentes assim– se é que um dia eles o foram. Foi o impulso, o desejo, os instintos mais primários que me levaram ao reconhecimento do meu corpo como instrumento de poder. Frágil, bobo. E pelo caminho da sedução era fácil chegar ao amor que tive precariamente. E era mais fácil, ainda, vê-lo sumir noite afora pelo fato de eu não saber exatamente o que eu queria com aquele corpo. Às vezes, era diversão. Às vezes, era só e só atenção. Para quem o consumia, ele representava possibilidades; não poder. Foi assim que descobri amargamente que meu corpo, inscrição cultural, índice biológico, recurso sensual, pertencia não só a mim mas a uma história de dominação. O reverso da fortuna. Eu tinha em mãos uma bomba pronta para explodir. Primeiro, as aulas de catecismo foram cruéis. Absorvi com fervor a moral cristã da pureza feminina. Queria tanto ser uma boa moça que os recursos da sensualidade utilizada não ficaram sem punição. Não o martírio com silícios; as rezas em cima do grão de milho. Mas um terço por noite já era o suficiente para retirar a culpa de ser hedonista demais. Depois, vieram os livros, as leituras, as horas gastas em textos que iam dos romances de aventura

Carolina Leão

Retorno das Spice Girls leva à discussão: o que fazer com essa bomba chamada girl power?

Sexo kamikaze

omportamen-


Olha a rua por entre as dobras da cortina – tem o rosto colado à vidraça – vê o amarelo das acácias – não vê outra coisa – admira a cascata de flores se diluindo em ouro – faz tempo que está ali – fugindo do medo – do medo do choro – sente o sangue latejar nas têmporas – no pescoço – o suor a borbulhar na testa – deixando marcas no vidro da janela – no agasalho do medo - da alma escapulir por todas as veias – todos os capilares – todos os poros – restam cicatrizes da mesa preparada – no fogo das velas – no vacilar das chamas – no balanço das sombras – uma lágrima de vinho tinto desliza na taça - lentamente – escorre nas mãos – faz horas que a sustenta entre os dedos – medo do medo – de descer ao inferno de si mesma – chorar com os olhos enxutos – com a vida se esvaindo pelo ralo -– tantos silêncios desdobrados em outros – feixe de nervos expostos – precisa de pés fortes – pés de libertação – asas possantes – não iguais às dela – pássaro de asas cortadas numa gaiola invisível – encapsulada - precisa de um vôo maior que o das gaivotas – vôo de águia – sente medo – o medo do medo de optar por uma vida sem truques – sem dissimulações – sem mentiras - quando a desilusão vira rotina – a dor vem à superfície – o medo – o medo de aspirar a imersão – mergulhar para dentro – o coração ainda pula – doido – respira golfadas – precisa de plasma – o movimento da mão agita o vinho – a glicerina desliza nas paredes do interior do copo – desenha pontas agudas – depois se dissolve no sangue da uva – não há mais cheiro - não há mais buquê – se embaraça numa teia de vazios - tem a cabeça desordenada feito casa velha – aranhas tecem fios leves – quebradiços – frágeis – sente a aridez da flor de semente cozida – medo do medo – de não resistir a tanta devassa – medo do amor – do verbo transitivo – paixão é semente viva – presa no cerco de armadilhas – afasta a cortina – escancara a janela – é intensa a ventania - açoita o rosto ardente – os cabelos se embaraçam –- o cheiro da terra se une ao das flores suspensas – inunda a sala - perfume tem cor – tem som - usar perfume é um ato secreto – liturgia – dogma de sedução – incomoda o amarelo das acácias – é intenso demais – poderia ser mais fluido – menos brilhante – cor-de-poeira – de âmbar – de ardósia – seria menos envolvente – um cacho isolado de acácia não é – precisa de terra para ser – não como está ali – na rua descalça – se exibindo – matando de inveja – pétalas soltas no chão de areia – tem medo de ter medo - do faz de conta – olha a rua - mãos também olham –- dedilham teclas de vento – um rito se cumprira – não entende que possa ter medo de uma flor – nada senão que uma sala escura – uma tristeza sem dor – o amarelo no chão – dobras da cortina – sorrateira a tarde se enrosca nas folhas – no ar molhado – exausta – não suporta mais ser corpo – tem os lábios ressecados – arde a garganta – esvazia o copo até a última gota – exaure a alma – precisa decidir – escapar do abatedouro – sair do casulo de carne e osso – vestir a esperança – o atalho é um caminho estreito demais – sente medo – de não ter coragem para cruzar o rio até a outra margem – o medo de sucumbir no medo – o medo dos medos. yy

12 Pernambuco_ Jul 07.2

Cici Araújo

Medo dos medos

nédito onono-


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