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E xpediente SUMÁRIO
EDITORIAL
esperam as hienas?- Alan Luna pergun03 Ota:que o recifense ri de quê? Em louvor do aeroporto - eles falam a lingua04 gem da contemporaneidade, segundo Fernando Monteiro
Não há dúvida de que, com a mudança dos tempos, profissões desaparecem, e outras são criadas. Inventadas. É claro. Óbvio ululante. Estão lembrados de quem disse essa frase, tão exaustivamente repetida? O iconoclasta Nélson Rodrigues, aquele que foi destruído em vida e renascido em morte. Que morreu para viver. Pois é a partir dessa dualidade que se reflete sobre a vida e a morte das profissões no início do século XXI. O Pernambuco começa a discutir o assunto a partir da matéria assinada por Haymone Neto, na sexta e na sétima páginas, num texto primoroso, que circula entre a reportagem, a resenha e a crônica, e que enfoca a atividade de afinadores de piano, na área erudita, e de tambores de alfaia, o instrumento da moda no maracatu, na área popular. A atividade pode estar desaparecendo, mas fica o profissionalismo e o carinho com que os artesãos trabalham.
Fotos: Divulgação
clã amarelo está de volta 05 ORodrigo Carreiro adverte que a ironia dos Simpsons chega ao cinema
E o Conservatório Pernambucano de Música? Como se encontra no momento em que completa setenta e sete anos? Em atividade plena, apesar das dificuldades que sempre acompanha a música erudita no Brasil. Seu atual diretor, Sidor Hulak, por exemplo, está lançando o projeto “Bandas de Pernambuco”, que “oferece aos músicos e regentes do interior cursos de capacitação e formação musical”.
06 Concerto e conserto - o maravilhoso mundo novo lembra os afinadores de piano
O texto de Marcella Sampaio, na oitava página, destaca a transformação do Conservatório em centro eminentemente erudito agora em busca de uma maior aproximação com o popular. Hulak destaca que este é um projeto institucional, segundo a orientação do governo. De forma que a instituição deixa os seus muros vetustos e sua fachada conservatório para ir também ao interior do Estado.
A música tem que ser boa - o Conservatório Pernambucano vai em busca da música popular
O suplemento Saber +, sob a orientação de Marilene Mendes, torna o tema ainda mais envolvente e apaixonante, ouvindo músicos, instrumentistas, professores aposentados, profissionais os mais diversos, que atestam a dificuldade do momento, mas conservam a alegria do trabalho e o amor pelo instrumento.
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Mecânico, marceneiro, ferreiro... - o jovem professor Pardal revoluciona a arte pernambucana
end - as mortes de Bergman e Antonioni 10 The indicam o fim de uma era no cinema
Mas é sempre através da arte que se descobre o fim de uma era. Não somente na arte, também na sociedade. Vejam, por exemplo, na página 10, as mortes de Bergman e Antonioni, mais do que diretores, criadores de uma tendência cinematográfica que reflete a dor e a inquietação de uma época, e mais do que de uma época, de um século, com suas sombras e inquietações, o século XX, que somente agora está terminando. Terminando, enquanto chegam os renovados Simpsons, que no cinema preservam a ironia que repensa os Estados Unidos na televisão. E para o crítico Rodrigo Carreiro, “um dos maiores acertos dos roteiristas é a decisão de não poupar nada ou ninguém das críticas”. E no clima atualíssimo dos aeroportos, o Pernambuco publica um texto envolvente do escritor Fernando Monteiro, onde destaca: “Aeroportos são a minha pátria”. Na terceira página, Alan Luna se espanta com o riso dos políticos exibidos nos cartazes, e pergunta: “De que eles estão rindo”, para constatar, afinal: “Nossos políticos não estão sozinhos”, a partir da análise daquilo que é exibido nos cinemas, nos teatros e nos bares. E só mais uma coisinha: conheçam a poesia de Danilo Soares.
Em néon: café expresso blackbird - a cidade 11 estranha e desolada na poesia de Greta
Boa leitura. Raimundo Carrero rcarrero@cepe.com.br
Benitez, segundo Michelliny Verunscky
12 Inédito - celebre a poesia de Danilo Soares Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “Linguagens depois da Internet”. Você participará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.
EXPEDIENTE Governador do Estado Eduardo Campos
Vice-governador João Lyra Neto
Secretário da Casa Civil Ricardo Leitão
Presidente Diretor Industrial Diretor de Gestão Flávio Chaves Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte
Gestor Gráfico Júlio Gonçalves
Equipe de Produção Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo Circulação quinzenal. Parte integrante do Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro Distribuído exclusivamente pela CEP 50100-140
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Fone: (81) 3217.2500– FAX: (81) 3222.5126
Editor Raimundo Carrero
Editor Executivo Schneider Carpeggiani
Edição de Arte Jaíne Cintra
Revisão Gilson Oliveira
Tratamento de Imagem Sebastião Corrêa
Secretário Gráfico Militão Marques
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C omportamento
Bares e teatros do Recife vivem um boom do humor Alan Luna voltado para a classe média
“U
ma coisa que me impressiona é ver, em campanha política, que todos os políticos riem muito nas imagens, nos outdoors, nos panfletos. E eu sempre fico me perguntado: do que eles estão rindo?”. É difícil encontrar uma resposta para o questionamento do jornalista e crítico de teatro Luís Reis. Mas é possível acrescentar a ela ao menos uma constatação: nossos políticos não estão sozinhos. A julgar pela quantidade de peças de humor que vêm lotando os teatros do Recife nos últimos meses, a população também quer sorrir. Uma breve olhada no calendário de espetáculos da cidade e vamos constatar o boom do riso. De março até hoje, é possível listar, puxando rapidamente pela memória, os espetáculos “Notícias populares” (Cia de Comédia Os Melhores do Mundo), “Ventilador de alegria” (Terça Insana), “Nós na fita” (com Leandro Hassum e Marcius Melhem, do programa de TV Zorra Total), “Vixe Maria!, Deus e o diabo na Bahia” (Cia. Baiana de Patifaria), “As criadas mal criadas” e “Sai da frente que o riso vem aí” (da Trupe do Barulho). E só o teatro de fim de semana já não basta. No resto da semana, bares como Capibaribe e Gio Pizzeria oferecem eventualmente aos clientes, além de petiscos e cervejas, a possibilidade de rir com Zé Lezin da Paraíba, Rossicléia, Jessier Quirino, Rey Biannchi e Geraldo Majela, “o ceguinho”, entre outros. Isso prova que o Recife quer mais é sorrir, certo? Nem tanto, conforme explica o doutor em psicossociologia e professor da UFPE Aécio Gomes de Matos: “O riso aparece mais nas relações interpessoais. Ele é um elemento de ampliação da sociabilização, mas é interpessoal. Você não pode dizer que o país ou a cidade ri de tal coisa, mas sim que um grupo de pessoas ri de tal coisa”. A partir daqui é possível, sem muito esforço, chegar à conclusão de que este grupo tem nome e sobrenome: classe média. Basta olhar a tabela praticada pela maioria dos espetáculos citados: algo em torno de 50 reais, o ingresso inteiro, e 25 reais, a meia-entrada. Não são, portanto, preços que possamos chamar de populares. O fenômeno a que estamos nos referindo é compartilhado por pessoas que guardam ao menos um denominador comum: a situação econômica. E se “nenhum homem é uma ilha”, conforme preconizou o poeta inglês John Donne, isso só reforça a idéia de que estamos falando, também, de um fenômeno de massa. É o que pensa também o professor Gomes de Matos, mas não sem ressalvas: “Do mesmo jeito que as motivações emocionais, as motivações do riso podem variar de uma classe a outra. Isso é social e cultural. É possível que o riso também seja afetado por condições sociais e de convivência, mas eu não tenho evidência científica de que os pobres riem mais do que os ricos, ou vice versa”, explica. De toda forma, é mais do que suficiente para permitir reelaborar a pergunta de Luís Reis que abre esta matéria: do que ri a classe média? O próprio Reis arrisca uma resposta:
“Eu acho que as pessoas riem muito dos medos. Existe a catarse também pelo riso. A classe média do Brasil nunca teve tanto medo. A gente não pode mais sair na rua, a gente não pode mais andar de avião, a gente não pode mais pagar o plano de saúde. A classe média não ganha mensalão nem mensalinho, então eu acho que há um desamparo, o medo da corrupção, a pasmaceira”, afirma. Acuada, essa classe joga com os extremos: vaia o Presidente da República na abertura dos jogos Pan-americanos (evento para o qual os ingressos custavam entre 200 reais e 250 reais) enquanto lota os teatros para sorrir. “É muito difícil colocar um conteúdo específico no riso sem que você tenha feito um estudo mais aprofundado sobre o assunto. Mas você pode dizer que, de uma certa forma, quando você ri das piadas de português, é possível, sociologicamente, associar à questão do colonialismo, e aí se desenvolve no humor uma espécie de revanche. Como sociedade, como povo, nós tendemos a rir dos políticos no sentido de negar isso”, explica o professor Gomes de Matos. No ímpeto de se afirmar como classe, é preciso, ainda, agarrar-se a outras negativas. “Nós rimos um pouco da desgraça dos outros, nós rimos de situações ridículas. E quando você ri de situações ridículas, você não se identifica, você diz: ‘Eu sou diferente disso’”, explica o professor. Já Luís Reis, que é também autor do livro-reportagem “Cinderela, a história de um sucesso teatral dos anos 90” (sobre a Trupe do Barulho), exemplifica de forma prática o postulado: “Na Cinderela, as pessoas riem porque têm medo daquilo que está sendo representado, de ser pobre, de ser ignorado, de ser discriminado por suas opções sexuais”, garante. Por fim, há ainda um terceiro elemento que nos impulsiona na busca sôfrega por uma gargalhada: o efeito espelho, que faz a platéia rir de si mesma. “O besteirol carioca foi todo montado em cima da classe média, das pequenas tragédias e dos pequenos anseios da classe média”, explica Luís Reis. Não deixa de ser irônico que justamente essa vertente do teatro — feita por e para a classe média — receba a maior paulada do crítico: “Eu não tenho visto essas peças, mas o que impressiona é a força midiática: são pessoas que aparecem na TV. É coisa de quinta categoria. Não são comediantes brilhantes. Eu acho que isso é sinal dos tempos. A nossa elite, de uma forma geral, é muito inculta. A classe média de Pernambuco come McDonalds e Pizza Hut e acha que é bom porque estão dizendo a eles que é bom, mas se eles pararem para pensar vão ver que é uma porcaria”, compara. E deixa escapar porque não vê a menor graça nisso: “No teatro é engraçado você ver as coisas ruírem, os valores, as pessoas, a nobreza. O teatro tem a coisa de pôr por terra e, nesse momento que a gente tá vivendo, onde tudo já está por terra, é difícil fazer comédia”. yy
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eroportos são o suspenso território de ninguém – um pouco como nas trincheiras das antigas batalhas. Ainda mais na guerra atual do chamado “apagão aéreo”, os aeroportos (a maioria embelezada como uma balzaqueana de pernas partidas na primeira saída com sapatos de saltos de quinze centímetros) reforçam a imagem dos terminais aéreos como limbo, terra do não-ser e espaço abstrato de identidades e passaportes para o longínquo, o remoto, o distante daqui. Aeroportos são lugares de suspensão da realidade e encontro de pessoas inesperadas, gente dormindo em cima de bagagens protegidas com o corpo cansado de esperar, mulheres elegantes de pés nus descansados sobre a mala (aqueles sapatos largados no piso geralmente limpo) e de gente angustiada nos boxes das companhias brasileiras neste momento em que o mandatário mais uma vez não sabe de nada, não viu coisa alguma, não entende bulhufas e vai morrer, parece, sem entender como uma coisa mais pesada do que ar consegue voar. Aeroportos são a minha pátria. Quanto mais modernos, mais eu gosto deles, e, naqueles salões de Antonioni sem tédio, eu sinto um à vontade total, me entrego aos andares de baixo e de cima, transito qual um trânsfuga da rotina deixada para trás das vidraças, como quem – temerariamente – nunca teve medo de avião. Aeroportos falam a linguagem da contemporaneidade (não em momentos de apagão da responsabilidade, é claro), e não são para os medievais nem para os que olham para a retaguarda suassunesca das coisas. Sem apagão, aeroportos são – ou podem ser – a vanguarda das possibilidades, a linha de sombra-eclaridade de encontros inesperados num saguão, num restaurante de comida internacional servida entre avisos das melífluas vozes femininas dos anúncios de arrivals e departures em várias línguas, entre malas de embarque e malas de mão, sacolas de lembranças e a evaporação do nada – depois que parte a estrangeira que poderia ter sido a mulher de nossa life. Adeus, garota. Provavelmente, nunca mais a verei nesta vida – que é só uma. Vives solo para ti/ se puedes/ que solo para ti/te mueres – ela disse, em portunhol, não sei se guardei direito, agora é tarde, seu avião já decolou e tudo
que ela deixou foi, no chão, um lencinho de papel perfumado amassado (que eu apanho antes da moça atenta da limpeza passar com o seu escovão). A Estrangeira disse que morava em Milão – mas o seu avião partiu para o Marrocos, o país de Volubilis, a cidade de nome mais bonito da antiguidade, hoje em ruínas numa parte qualquer da África do Norte para onde Kit e Port viajaram, sob o céu que não protege ninguém da queda inesperada e da separação. Viajar, navegar, é preciso. Viver, Pessoa disse que não. Navegar, viajar, são sinônimos de navio e de avião, de carro e até de caminhão de Taperoá para Taperoá mesmo. Viajar é para quem compreende a modernidade – caso a modernidade em causa possa incluir um presidente responsável. Viagem é mais viagem de avião – eu diria (como sempre diz que “diria”, o político da suprema hesitação, Marco Antonio de avião-em-avião, de governoem-governo dos Césares de plantão). Um político, um diplomata, uma aeromoça gentil (mas há as que não são) não podem ter medo de avião. Nem podem subscrever a frase-lema da Associação dos Que Têm Medo de Sair de Casa: “voar é para os pássaros”. Não é. Ou é – isto é, voar é também para a invenção do brasileiro Santos Dumont, o avião. E os aeroportos são os ninhos dessa extraordinária invenção, preferentemente com o grooving bem retalhado nas pistas vigiadas e viajadas pelos trens de aterrissagens seguros sobre a concretagem bem contratada do concreto chão de chegadas sem desastres de manetes na posição errada igual à do chefe da nação de cabeça enfiada na poeira de Brasília distante da realidade como o aeroporto do Afeganistão – para onde seria agradável despachar quem não vê coisa alguma, seja do tamanho do desastre da TAM ou do alfinete que, descubro, também ficou da Estrangeira que acabou de partir (a do lencinho perfumado). Na poltrona confortável do terminal reformado, ficou esse alfinete de cabelo, que eu guardo. Mais uma lembrança no bolso com a passagem para lugar nenhum, sem mala nem documento, passaporte ou dólar – pois o meu passatempo é passear nos aeroportos. Nunca viajei para destino algum. Meu destino é ficar para ver quem passa e quem vai viajar, nos aeroportos que me fascinam mais do que as viagens. yy
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“N
ão acredito que estamos pagando por algo que podemos ter de graça na TV”. Essas palavras refletem com exatidão o pensamento dos executivos dos estúdios Fox, diante da possibilidade de fracasso durante o lançamento de “Os Simpsons – o filme” (Simpsons – The Movie, EUA, 2007) nos cinemas. Sem medo de passar ridículo, porém, os criadores da série criaram um divertido prólogo metalingüístico para a primeira aventura em longa-metragem da família mais amada da cultura pop, e exorcizaram o medo dos engravatados homens de negócio colocando esta frase demolidora na boca de ninguém menos do que Homer Simpson, o patriarca do clã amarelo. Na cena, que não tem nenhuma relação com a trama aloprada do longa-metragem, o quinteto está no cinema e assiste, em tela larga, às maluquices de “Comichão & Coçadinha” (para quem não vê o programa, trata-se de um seriado dentro do seriado, o favorito de Bart Simpson). Mas Homer, sempre bonachão e cabeça-dura, não entende a situação. Sem papas na língua, ele se vira para a platéia e comete a maior das heresias, no dicionário dos estúdios de Hollywood. Aponta o dedo direto na cara do espectador e esbraveja: “As pessoas nesse cinema são um bando de idiotas”. Uma estratégia arriscada, que poderia ter dado errado, mas não deu. “Os Simpsons – o filme” foi um sucesso desde o primeiro fim de semana em cartaz, arrecadando US$ 74 milhões em três dias e superando, em só 72 horas, o que havia sido gasto (US$ 65 milhões) na produção. A mesma produção, aliás, que rendia notícias desanimadoras aos fãs da série desde 1999, ano em que a Fox registrou oficialmente o domínio online simpsonsthemovie.com. Desde ali, já se sabia que haveria um longa-metragem com os personagens animados mais queridos da TV nos EUA. Mas quando? O tempo ia passando, as idéias que surgiam iam sendo descartadas. Foram necessários onze roteiristas, quatro consultores de roteiro, oito anos de trabalho e nada menos do que 158 rascunhos para que a produção finalmente tomasse forma. Com tanta gente trabalhando na parte criativa, havia o medo de que o filme se tornasse uma colcha de retalhos e não fizesse jus à qualidade da série, sempre firme e certeira na intenção de alfinetar os aspectos mais exóticos, bizarros ou ridículos do american way of life (a censura, a crença de que o aquecimento global é um mito). Para alegria dos fãs, os temores não se confirmaram. “Os Simpsons – o filme” pode não ser uma obra-prima do humor satírico, e tem lá sua cota de piadas desgastadas, mas se situa num patamar muito acima da dieta de clichês grotescos da comédia jovem que se pratica nos EUA neste século XXI, sempre repleta de peidos, arrotos, palavrões e fluidos corporais. Além disso, os ótimos momentos cômicos – politicamente incorretíssimos, sem jamais serem apelativos – quase sempre funcionam como crítica social de bom nível. Quer um exemplo? O filme expõe o problema da poluição ambiental sem o ranço de didatismo de obras como “Uma verdade inconveniente”, fazendo graça também da habitual carolice dos que defendem mo-
dos ecologicamente corretos (a aula-filme de Al Gore é parodiada, muito apropriadamente, como “Uma verdade irritante”). A história, à moda das melhores sátiras sociais (entre as influências estão os filmes do grupo humorístico inglês Monty Python), não se preocupa em estabelecer um arco dramático muito sólido. A trama gira em torno de Homer Simpson, que provoca um acidente ambiental ao atirar dejetos de porco no lago de Springfield. Tornado “a cidade mais poluída da história da humanidade”, o povoado atrai a atenção de uma agência governamental, que decide resolver o problema isolando-a, com um domo de vidro inquebrável gigante, do resto do país. Não há muita lógica no roteiro, com o diretor David Silverman preferindo espalhar piadas e gags em profusão, criando um ritmo alucinado em que é praticamente impossível ficar sem rir por mais do que 30 segundos. Um dos maiores acertos dos roteiristas é a decisão de não poupar nada ou ninguém das críticas. A própria Fox, que sempre cai na tentação de exibir anúncios durante a exibição dos desenhos na TV (com texto aparecendo numa barra negra na parte inferior do vídeo), foi sacaneada duplamente – na vinheta de abertura e com um falso anúncio que ridiculariza a prática comercialmente reprovável da empresa. A ironia também é dirigida à política – no filme, o presidente dos EUA é Arnold Schwarzenegger (“fui eleito para liderar, não para ler”) – e, claro, ao alvo preferido do desenho: o americano médio, quase sempre alheio aos problemas que ocorrem fora das fronteiras do país e chegado a práticas religiosas no mínimo questionáveis. Fica claro, aqui, que a maior referência dos produtores foi mesmo o bem-sucedido longa-metragem da série concorrente “South Park”, lançado em 1999. A receita é semelhante, e consiste em acelerar o ritmo da trama como um todo, prestando especial atenção na qualidade das piadas. Com apenas 87 minutos e a participação de algumas celebridades verdadeiras – a banda punk Green Day e o ator Tom Hanks dão as caras, retomando uma tradição do desenho na TV –, o filme passa um pouco a sensação de ser um episódio ampliado, mas tudo acontece com uma velocidade estonteante e a boa qualidade das piadas só cai um pouco no segundo ato, quando a família está no Alasca. Um aspecto que pode desagradar a uma parte dos fãs é a participação relativamente pequena do personagem mais amado do seriado, o pivete Bart Simpson. Mesmo assim, ele protagoniza alguns dos momentos mais engraçados, como uma bebedeira com garrafinhas de uísque de hotel (“eu tenho problemas!”) e uma pescaria pouco ortodoxa com o vizinho pentelho Ned Flanders, com quem ele estabelece uma relação, digamos, paternal, na mais fraca subtrama do longa. Há também certo excesso de paródias, quando o título repete um erro comum nas animações adultas e exagera na quantidade de citações a filmes famosos (“Titanic”, “Independence day” e o velho “Frankenstein” de 1931 estão entre eles). Fora isso, “Os Simpsons” é comédia yy direta e simples – e das boas.
Na sua versão para o cinema, Os Simpsons preservam a ironia que repensa os EUA na TV Rodrigo Carreiro
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Haymone Neto
Histórias de profissionais que levam adiante uma tradição que há décadas não dá uma só nota em falso
concerto em conserto “P
ode ser na segunda-feira às 7h30?”, me pergunta Jonas Chateaubriand Filho por telefone. É preciso que a entrevista seja bem cedo, porque a sua empresa, a Chateau Pianos, é uma das referências em restauração, afinação e transporte de pianos no Nordeste. Isso exige que Jonas e sua equipe estejam sempre viajando. “É que eu estou indo ver uns pianos em Campina Grande à tarde”. Sem problemas. Ao chegar à Chateau, como era de se esperar, tudo que se vê são pianos. De cauda inteira, meia cauda, um quarto de cauda, verticais, máquinas de piano abertas, pianos novos, pianos velhos, alguns muito velhos, outros caindo aos pedaços e aquele cheiro de madeira, verniz e óleo que só quem já abriu um desses instrumentos conhece. De fora, a casa, no bairro de Água Fria, parece uma firma comum. Mas é só atravessar o portão e uma sala que surge à vista uma grande oficina. Lá dentro, a sensação é de que o tempo parou e a cidade ficou pra trás. Jonas me conta que está no ofício desde bem moço. “Eu comecei com 18 anos, com cara de menino, ainda. Não conseguia emprego em canto nenhum, aí comecei a ajudar meu avô a transportar pianos”, diz. Foi com o avô e um tio, os irmãos Nathanael e Djalma Pessoa, então proprietários de uma oficina especializada, que Jonas aprendeu a trabalhar com os instrumentos. Ele me mostra vários recortes de jornais em que seus mestres são citados, mas destaca um deles, publicado em 1988, que relata a passagem da profissão do avô para o neto. “Considero esta matéria o meu diploma”, recorda. Ativa desde 1985, a Chateau Pianos tem hoje dez funcionários. “Um dos nossos marceneiros trabalhou com o meu avô”, se orgulha. A maior parte das pessoas que lá trabalham, contudo, foram formadas dentro da própria oficina. No meio da nossa conversa, ele me apresenta a Joab. “Ele é afinador. Começou a trabalhar comigo quando tinha 14 anos. Agora está com 30”. Foi a Chateau que montou o recém-adquirido piano Steinway & Sons do Teatro Santa Isabel. Pelas mãos do pessoal da equipe comandada por Jonas passaram os pianos das universidades federais de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, pianos de conservatórios, teatros e festivais de música em toda a região. Não é exagero afirmar que todos os grandes pianistas que passaram pelo Recife nos últimos 20 anos puseram as mãos em instrumentos previamente restaurados, afinados, transportados, montados ou mesmo adquiridos junto à empresa. A lista é extensa, e inclui desde grandes nomes da música erudita, como Nelson Freire, Miguel Proença, Cussy de Almeida e Clóvis Pereira, até mestres da música popular brasileira, dos quais podemos citar a família Jobim, Wagner Tiso e tantos outros. Nós tivemos uma longa conversa sobre pianos, pianistas, feltros, teclas, madeiras, cordas e a máquina de fazer bordões dos anos 30 que ainda está em atividade, mas quando estamos chegando ao fim, Jonas pergunta se pode fazer um alerta. Claro. “Olhe, a gente não é nada. No Brasil se vendem cerca de mil pianos por ano. Nos Estados Unidos, esse número chega a 100 mil. Os governos não prezam por essa área de construção e reforma de pianos”, lamenta. “Nós não somos comerciantes comuns. Estamos trazendo arte para a população, colocando cultura na mão deles”. A preocupação de Jonas é com a preservação da atividade. “Eu sou a terceira geração, estou aqui por acaso. Os meus herdeiros são os meus funcionários”, diz. “O meu alerta é para que isso tudo não se perca. O Brasil tinha várias fábricas de pianos. Hoje, só tem uma”, lembra. “O piano forma um cidadão com sensibilidade e visão de mundo diferentes”. Em julho de 1953, o jovem Francisco Reinaldo Ebbers saiu do Recife para visitar sua mãe, que se mudara para Curitiba. Havia concluído o curso científico, estava sem trabalho e, através de um primo que trabalhava na fábrica paranaense de pianos Essenfelder (fechada em 1996), conseguiu um emprego de afinador lá. “Eu já tocava piano. Quando mamãe comprou um piano, eu pedi a chave ao meu pai, e, aos 12 anos, já afinava de ouvido o instrumento”, conta Franz, como é mais conhecido. Quando chegou lá, um técnico chamado Schneider entregou-lhe uma chave e uma paleta, colocou-o à frente de um piano e mandou que o afinasse. À época, Franz tinha apenas 22 anos. Depois de uns 30 minutos, o técnico lhe disse: “não é exatamente isso que você tá fazendo, mas você tem bom ouvido. O resto se aprende: o essencial é ter bom ouvido”. E foi assim que ele se tornou afinador de pianos.
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Após dois anos de trabalhos na Essenfelder, ele retornou ao Recife. Desde então, nunca se dedicou exclusivamente ao ofício, exercendoo paralelamente a outras atividades. Mesmo assim, hoje Franz é responsável pela afinação de alguns dos principais pianos da cidade, como o do Teatro de Santa Isabel e o da Universidade Federal de Pernambuco. Pelas mãos de Franz, passaram instrumentos tocados por virtuosos como Nelson Freire, Arthur Moreira Lima, Arnaldo Cohen e Elyanna Caldas. Atualmente aposentado, ele viaja freqüentemente a capitais vizinhas para afinar pianos e, quando me recebeu em sua casa, havia voltado há pouco de João Pessoa. “Passei sete dias lá. Afinei 17 pianos, dessa vez”, conta, sem alarde. Apesar de tantos anos dedicados à afinação de pianos, Franz conta que não tem um exemplar em casa. “Me desfiz dele. Eu quase não tinha tempo de tocar, então ele ficou sem uso. Quando apareceu uma boa oportunidade, eu o vendi”. Questiono se ele não sente falta de ter um piano em casa. “Falta, a gente sente. Mas tem tanto piano pra afinar...” Pergunto se ele já ensinou alguém a afinar piano, se tem a preocupação de passar à frente a arte que vem exercendo há tantos anos. Com sinceridade, ele me diz que não, que não se preocupa com isso. “Só se pode ensinar a dinâmica do trabalho. O resto depende do ouvido”, diz. “Hoje em dia existem uns aparelhinhos, mas eu só confio no meu ouvido. Já estou com 76 anos, mas meu ouvido ainda está bom”. Se é triste perceber que o universo dos pianos parece estar em extinção no Brasil, a fabricação artesanal de outros tipos de instrumentos encontra espaço para se desenvolver cada vez mais. É o que me conta Abílio Sobral de Lima, um artesão e músico que começou a fabricar seus próprios instrumentos de percussão por não ter condições de comprá-los. Nascido e criado no Morro da Conceição, Abílio começou a tirar os primeiros sons percussivos aos 13 anos de idade. Depois, virou percussionista. “Foi assim que construí a minha primeira bateria. Comecei a fazer por necessidade. Faltavam os recursos, então eu tinha mesmo é que me virar”. Ele passou então a fabricar, recuperar e vender baterias. Aí veio o movimento Mangue e, com ele, o súbito interesse dos jovens pelos tambores de alfaia do maracatu. “Eu já fabricava o cilindro, só faltava as cordas. Então eu fui passar uns dias com os maracatus para aprender”, conta. Hoje, Abílio integra a Só Instrumentos, uma cooperativa de artesãos que fabrica diversos instrumentos de percussão e ocupa um espaço da Prefeitura do Recife na avenida Norte, onde o material é vendido. Ele também ministra oficinas com o objetivo de repassar o conhecimento para os interessados, em especial nas comunidades. E não são apenas os instrumentos de percussão que despertam interesse. Há cerca de um ano eu havia entrevistado o músico e luthier Sávio Couto, que fabrica instrumentos de corda como bandolins, cavaquinhos, violas caipiras e, principalmente, violões. Ele havia me recebido no quintal da sua casa, utilizado como oficina. “As coisas estão melhorando”, ele me conta um ano depois, quando novamente nos encontramos. “Venho recebendo uns pedidos de fora por causa do site na internet. Estou reformando a oficina, comprei umas máquinas novas, e agora tem uma pessoa trabalhando comigo”, diz. Conheço Jemerson, um rapaz de 19 anos, aparelho nos dentes, que agora está aprendendo com Sávio a arte de construir violões. “Eu sou filho de marceneiro. Nasci na marcenaria, e sou músico também, estudei na Escola Municipal de Arte João Pernambuco”, conta. Nós três passamos a tarde sentados no chão da casa de um vizinho conversando sobre madeiras, tipos de verniz, sobre a lei da simetria, acabamentos. Sávio me contou sobre a diferença entre a Escola Italiana, de violinos e violoncelos, para a Escola Espanhola, dos violões. Quando já estava anoitecendo, e eu precisava ir embora, Jemerson me diz: “É uma pena que a oficina esteja em reforma. O ideal era que a gente pudesse ter essa conversa lá, daria pra visualizar tudo melhor. Com certeza o teu texto ia sair muito mais poético”. yy Eu concordo com ele. Saber +
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A música tem que ser boa
Ao completar 77 anos, o Conservatório Pernambucano de Música se aproxima da cultura popular do estado Marcela Sampaio
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onhecido por ser um espaço de manutenção do conservadorismo musical no Estado, o Conservatório Pernambucano de Música, misto de escola e palco, está buscando ampliar seu alcance e modificar sua orientação. No ano em que comemora seu 77o aniversário, o Conservatório se aproxima efetivamente do papel de formador que lhe cabe, ao trazer para dentro de seus muros a cultura popular de Pernambuco ao mesmo tempo em que toma para si a tarefa de promover e divulgar as diversas possibilidades que a música oferece Estado afora. “Queremos dar à nossa instituição uma dimensão estadual. Além de ser um desejo institucional, é também uma orientação de governo”, diz Sidor Hulak, diretor do Conservatório, replicando um direcionamento que tanto a Secretaria de Cultura, na figura de Ariano Suassuna, quanto a Fundarpe de Luciana Azevedo e a própria Secretaria de Educação, à qual o órgão é ligado, deixaram bem claro quando instituíram suas políticas. “Trabalhamos com três diretrizes: o ensino de excelência, a promoção musical do que não tem espaço na mídia e a pesquisa musical, com foco no resgate histórico”, explica Hulak. Para cumprir este objetivo, a instituição está orientando suas atividades pelos vieses da didática, da formação profissionalizante e da aproximação com a cultura popular. “Não vejo como podemos fazer uma divisão definitiva entre o erudito e o popular”, segue argumentando o diretor. “O que importa é que a música seja boa”. Para definir “música boa”, ele utiliza as palavras “sofisticada, com elementos de refinamento” e também um conceito menos estético – “é uma música que não costuma ser contemplada pela mídia”. Hulak acredita que a atuação do Conservatório tem que ter um caráter pedagógico e de popularização, sem, no entanto, apelar para a “banalização” da cultura. Fred Andrade, professor do Conservatório há 13 anos, um dos músicos mais requisitados pelos cantores pernambucanos, vê com bons olhos a “nova cara” que essa gestão quer dar à casa. “Acho que não vale a pena rotular, até porque mesmo
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os clássicos incorporaram muitos elementos populares de sua época à sua produção. Ravel, Stravinsky, Villa-Lobos e Mozart são apenas alguns exemplos. Música tem que ser boa”, diz Fred, repetindo praticamente as mesmas palavras que seu diretor falou minutos antes. Quanto a definir o que é isso, a tal “música boa”, ele não se arrisca. “Para ser boa, a música tem que ‘chocar’. Não é necessariamente ter muitos acordes, nem ser difícil. Uma música de composição muito simples pode ser excelente, emocionar. É uma avaliação muito subjetiva”. Durante sua carreira, Fred fez vários trabalhos que contemplam essa fusão. Guitarrista por excelência, ele desmistifica o instrumento, que para muita gente tem “cara” de rock, gravando frevos e forrós com ele. Atualmente, está em fase de produção de um CD novo, que vai se chamar “Pele da alma”, para o qual compôs até um “frevotango”. “O disco vai ter violão de 7 cordas, violão erudito e um quinteto de sopros, a cargo do Sá Grama”, adianta. Para instituir esse “abrir de portões” que alguns dos seus professores já iniciaram por conta própria, o Conservatório começará, este mês, a promover apresentações de artistas populares. Além disso, a democratização da música clássica e a interiorização das atividades também está na pauta. “Estamos implementando o projeto Bandas de PE, que oferece aos músicos e regentes do interior cursos de capacitação e formação musical”, afirma Sidor Hulak. Há ainda o projeto Susuki, que está formando em música clássica 24 jovens no bairro dos Coelhos sem que eles precisem sair da comunidade. O Conservatório, segundo seu diretor, parte para ser também um executor de políticas públicas, não apenas uma escola. A programação de aniversário, que se estende durante todo o mês de agosto, já começa a dar sinais dessa nova orientação. Entre os artistas convidados está o Mestre Salu, reconhecido mestre da cultura popular que influenciou gente como Antônio Carlos Nóbrega e Siba. A idéia é organizar, de forma mais sistemática, eventos do gênero. “Esse é apenas o primeiro”, promete Hulak. yy
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aurício Castro gosta tanto do que pinta que transforma em realidade – leia-se objeto. Para isso ele dá uma de mecânico, marceneiro, ferreiro, designer industrial, cenógrafo, iluminador, roteirista, diretor de arte, e seja qual for a especialidade necessária para concretização do objeto pensado. Não deve existir melhor maneira de produzir objetos tão incomuns e funcionais ao mesmo tempo do que unir características de artesão e artista em uma só pessoa. Um artista até pode mandar fazer, mas o executor nunca pensará em soluções técnicas tão artísticas quanto as possíveis a um idealizador habilidoso. E agora seus objetos tornaram-se máquinas de espetáculo, como Maurício os definiu, já que muitos deles fazem parte de suas performances, que estão mais para peças de teatro. “Quando digo teatro, estou querendo enfatizar a encenação que, na linguagem típica das artes plásticas, tem o nome de performance. Só que esta, muitas vezes, é chata para o público comum. Acredito que, quando se acrescenta a ela roteiro, figurino e texto, o resultado é mais interessante do que somente uma utilização plástica do corpo”. A primeira peça, já filmada, é um projeto de Maurício com mais três artistas, Bruna Rafaela, Joelson e Soraia Fonseca. Todos integrantes de seu atual grupo A Firma da Irmã de Irma. O trabalho ainda é inédito, mas o artista adianta: “São três pessoas que moram em um ambiente absurdo, ao ar livre, onde ninguém se entende”. A peça foi encenada e filmada em seu ateliê, em São Lourenço da Mata. Outra peça já tem roteiro, e será encenada na capota de um carro. O interesse nessa mistura performática-artístico-teatral começou com “A monga”, espetáculo exibido no seu antigo atelier, o Submarino. Foi Maurício quem possibilitou que Tatiana, a monga, virasse macaco, com o recurso dos jogos de espelhos necessários à “transformação” tão conhecida do público circense. Sem falar do texto de apresentação escrito por ele, que torna cômicas as informações sobre a anatomia humana. Dando uma de designer industrial, Maurício concebeu a “Máquina de fazer caipirinha”. A invenção não é sua, mas tem seu mérito, pois trata-se de uma releitura, mais modesta, da origi-
nal fabricada por um engenheiro alemão para uma indústria de aguardente local. Bastou uma olhada, em uma festa onde conheceu a invenção, para Maurício criar a sua própria máquina. A indispensável função etílica do artefato foi muito importante nas reuniões ocorridas às quartas-feiras, no Branco do Olho (grupo do qual fez parte antes da Firma). Depois ela virou máquina de espetáculo e foi parar no trabalho apresentado no SPA (Semana de Artes Visuais) do ano passado: “A gênese da caipirinha contemporânea” trazia ao mundo limõezinhos recém-nascidos de sua mamãe humana, com direito a parto e tudo, para virarem caipirinha, devidamente distribuída com o público. Se não assumem uma função tão específica quanto a de embriagar os outros ou de se tornarem máquinas de espetáculo, os objetos carregam uma função de crítica social, sem perder o bom humor e o ludicismo. Foi assim com sua série de tra-balhos com o lixo, que voltou a ocupar posição extremamente oposta na cadeia de consumo, tornando-se obra de arte. Graças ao lixo, Maurício descobriu o ferro. “Foi o melhor suporte que encontrei para fazer o eletrodoméstico ganhar outra forma”. Os trabalhos começaram na Espanha, em 1994, junto com o grupo Torre de Papel, e continuaram no Brasil, durante sua participação no Submarino, e no Balneário de Água Fria. Exposições como o “Catálogo de inutilidades” mostraram obras como a “Cama capô”, feita com dois capôs de fusca acoplados, e “Tira daqui joga ali”, peça que aspirava de um lado e jogava de outro. “Como faz o aspirador de pó que conhecemos, e como fazem as pessoas, com muitas coisas em suas vidas”. De ferro ele fez objetos que chamou de invisíveis, porque possuem apenas o contorno, o que os empresta sensação de leveza, característica bem oposta à do material utilizado. É o caso do Submarino, do Jato, e da Casa Invisível. Esta última é a casa onde moram os três integrantes da peça citada no começo da matéria. Trata-se de uma estrutura de ferro, sem paredes, somente com uma escada. “Esses trabalhos são uma corrupção do objeto, e nessa linha fiz também corrupção das funções do corpo humano”. Da tela para o mundo real, as Esculturas Moles trocaram o ferro por tecidos estampados e bolinhas de espuma para criar língua, neurônio, olho e intestino, em grandes proporções. Geralmente causadores de aversão, principalmente quando vistos separados ou fora do corpo, os órgãos ganham versões fofas e aconchegantes, como enormes almofadas. E parece que Maurício quer dar continuidade a esse universo lúdico, e adianta que vem por aí uma série de brinquedos criados por ele. Bom para seu filho, Júlio, que, provavelmente, será inspirador e cobaia das invenções do pai. yy
Entenda o universo do professor Pardal das artes plásticas pernambucana, Maurício Castro Carol Botelho
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nunciar o fim de qualquer coisa, principalmente no campo da estética, é sempre um risco. A morte recente, quase simultânea, de dois dos cineastas-autores mais representativos do século XX, entretanto, dá o que pensar. Bergman e Antonioni, cada um com suas nuances, criaram um estilo próprio, arregimentaram seguidores, conquistaram crítica e espaço no mercado. Entre os anos 1950-1980, auge da popularidade e fase mais profícua da criação de ambos, eles tinham público e salas de exibição, coisa difícil de imaginar, assistindo à sua obra, que conseguissem hoje em dia. Para este tipo de cinema, sobram atualmente os espaços alternativos e as semanas de homenagem. Será que, como muitos apregoam, morreu o cinema autoral? Não temos mais quem se inte-
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Mortes de Bergman e Antonioni marcam o fim de uma era no cinema e na vida social Marcela Sampaio resse por filmes estilosos, densos, exigentes? Talvez o caminho da reflexão não seja exatamente esse. Não é tão fácil encontrar, neste início de século XXI, mesmo entre os autores que fogem da estética explode-carro de Hollywood, seguidores formais de Bergman e Antonioni. Claro que espírito, estilo, influências, declaradas ou não, estão presentes em muitas obras recentes da safra européia, vide Lars Von Trier, Win Wenders, Sofia Copolla, mas os recursos formais, principalmente nestes primeiros anos 2000, são outros, e não estou falando de inovações tecnológicas de som e imagem. Provavelmente, e aqui faço uma conjectura, já que não tenho instrumentos científicos para avaliar isso, a forma como pensamos e consumimos cultura não combine mais com a maneira como eles faziam cinema. Bergman apostava no diálogo como força criativa. Enquanto eu via “Cenas de um casamento”, em sua versão integral, ao lado do meu marido (perigo...), pensava em quanto os autores de novelas brasileiros, principalmente os melhores, devem a ele. Conversas aparentemente normais, sem muitos porquês envolvidos, transformam-se em pequenos momentos dramáticos sucessivos que mais à frente vão tomar proporções destruidoras. Bergman era mestre em revelar o drama que existe no cotidiano. Hoje, estamos acostumados em considerar drama apenas eventos como o 11 de setembro e que tais, talvez porque o espaço da intimidade esteja banalizado demais. É mais fácil tomar um remedinho tarja preta e viver a ditadura do prazer a que estamos submetidos do que mergulhar em questionamentos que possam trazer ruptura real. Bergman não combina com superficialidade, e mais ainda, não parecia nem um pouco interessado em trazer alívio a ninguém. Antonioni, por sua vez, cultivava cenas longas, lentas, com poucos diálogos, em boa parte de sua obra. É difícil imaginar um cinema assim arregimentando muita gente nos dias de hoje, mesmo o público que tradicionalmente freqüenta as salas de arte. Temos pouca paciência, somos videoclípticos, gostamos das histórias com flashbacks, com pontas soltas que se amarram depois, que se entrecruzam. O silêncio nos incomoda, não estamos mais acostumados a ele. Cannes, por exemplo, premiou no ano passado Alejandro Iñárritu pela direção de “Babel”, e o roteiro de Pedro Almodóvar em “Volver”, ambos filmes que se constroem a partir de histórias entrecruzadas, onde para tudo há uma explicação e os acontecimentos se sucedem rapidamente. Não cabe classificar essas mudanças de boas ou más. A morte de Bergman e de Antonioni traz à tona a reflexão sobre a permanência ou não de uma lógica criativa, que naturalmente terá que se adaptar às circunstâncias. O tempo está muito menos complacente conosco, e é principalmente esta condição que se reflete nas produções cineyy matográficas consagradas hoje.
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magine uma cidade como um povoado onírico, habitado por marinheiros, michês, vampiros dançando punk rock, mocinhas diáfanas e perigosas vestidas de teias de aranha e virando cartoon antes do final do segundo ato. Uma cidade doce (ainda que exalando um discreto cheiro de podre) e bizarra. Uma cidade feliz com tudo de tristeza que se possa esconder por baixo da maquiagem. Esse é o espaço urbano delineado em “Café Expresso Blackbird” (Landy, 2006), segundo livro da poeta e publicitária curitibana Greta Benitez. Como que saído das páginas dos comics, este lugar, a cidade, é dito em poemas que desfilam, alegóricos, sobre as ruas (páginas?), equilibrando-se sob um fio condutor único, musicais em suas assonâncias, quase simbolistas não fosse a presença inequívoca da carne:
Novo livro de Greta Benitez desenha uma cidade estranhamente desolada e alegre Micheliny Verunschk
o centro da cidade arde casas de umbanda peixaria, antiquário loja de armarinhos praças, ônibus, trânsito, tráfico e uma loja de roupas de bebês do lado do cine pornográfico. O olhar que conduz os poemas nesse itinerário é feminino em sua essência. Mas não se tratam, no entanto, de poemas de “mulherzinha”, desses que cabem no rótulo-chiclete “poesia feminina”. Pelo contrário, passeiam por sua estética da perversidade pin-ups, strangedolls, belas da tarde, gordas felizes e sensuais, virgens perversas e atrizes infelizes. Personagens alegres e desoladas (como a cidade desenhada para elas), insaciáveis e, ao mesmo tempo, fartas de tudo, coloridas e em P&B, cujas individualidades só conseguem emergir sob a égide da estranheza ou da melancolia. As “deusas de papel” de Greta são as personas que seu olhar, ao mesmo tempo íntimo e voyeur, inventa e desconstrói num jogo dialético entre a crítica e o maravilhamento: (…) Mulheres à luz do sol/Essas deusas dançam/O tango do trânsito/Mulheres fatais/Sangue quente, cristais/Mulheres procurando seu cenário/Mulheres saindo do camarim/Todas elas dizem sim/ Amigas do Marquês de Sade/Desfilam no meio da tarde/ Essas estranhas mulheres da cidade/ Mulher-dama/ Dominatrix/Mulheres do norte/ Mulheres que eram homens/Mulheres sabem a verdade/ Essas estranhas mulheres da cidade. Perceba-se que essa poética, rítmica e visual, é catalisada por uma ironia fingida de ingenuidade que ao mesmo tempo que a tempera, também a degenera. O riso que provocam seus flashs, suas pequenas epifanias, é provocativo, sutil, denuciador da “sublime deformação” das personagens que apresenta. Greta rejeita a nomenclatura poema-piada que acaso sua poesia possa evocar, embora admita que coisas maravilhosas foram colocadas, ou quem sabe escondidas, dentro dessa gaveta. O riso que sua poesia instiga, adverte a autora, é amargo, desesperador. Filiada a Poe e Baudelaire, a poesia de Greta Benitez explora frestas, fragmentos do caos, o burburinho do cotidiano. Suas referências, a pop art, o jazz, a fauna humana de Almódovar, os santos e demônios de Buñuel, o circo inusitado de Fellini, a rota do tarô. Requintado e abusado, Café Expresso Blackbird é também um convite. Alguém se atreve? yy
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I nédito
Tempo logo passa... Já passou, marcou. Quem nos disse que ele é o patriarca? Quem por ele passou guarda sua marca, E quem não o viveu, da vida não provou. Mas se ia acabar, por que começou? Se não ia durar, por que marca? (Tu) és transitório qual rápida barca... Tão calma, que nem esteira ficou.
Danilo Soares
Quando se vai o inverno, Logo vislumbro a primavera ardente. E percebo vir o veloz poente, D’um sentimento, que me é nada terno. O translúcido gelo antes eterno, Já se dissolve muito lentamente. E numa pequena, plácida corrente, Volta a correr o ribeirinho terno. E de nós, numa grande velocidade, A dar lugar a novos calores, Distancia-se a brumal tempestade. E ao olhar o desabrochar das flores, Sinto em mim a vontade, De (da vida) exp’rimentar os sabores
Isso não é vida; É Inferno, é tortura. E proclama Fortuna em sopranino: “Não terás a (de Lia) ternura”. De muitos erros eu não falaria, Mas falo do maior que cometi... Três letras, que são da fria, suja Lia.
Juro que em minha alma jamais senti, Que tais brutos erros cometeria. Frias provas do quão pouco vivi.
Tanto vim a falhar... Confessarei! Deixei-me ser por ti ludibriado. Já se confundem o certo e o errado. Como fui tolo em pensar que eu amei.
Contra Amor pequei... Existe amor? Não sei. Se tu, ó Lia, estivesses ao meu lado, Decerto que eu não teria pecado... Será? Dúvida... Só sei que errei.
Ó Desventura, ó funesto Destino! A terrível visão dantes futura, Torna-se presente de modo ímpio.
Sopram os Zéfiros muito cadentes. Sopram somente pelo belo dia, Dia no qual em contínua alegria, As napeias corriam sorridentes. Na costa é que, as ondas intermitentes, Se mostravam. Poseidon se fazia, Com uma graça que jamais se veria, Maestro que rege graças potentes. Mas tudo logo vem a se calar. Cala-se o sabiá e, por mais que incida Sol raios, ele não vem a cantar. Cai enfraquecida, cai agora vencida, Essa visão que vai se desmanchar. Mas não tua beleza, já que é infinda.
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