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Alexandre BelĂŠm

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E xpediente SUMÁRIO

EDITORIAL

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O que acontece com Gilvan Lemos? Vende bem, é publicado por grandes editoras, analisado nos vestibulares e concursos públicos, admirado pela crítica, respeitado pela Imprensa. Mas nem sempre podemos encontrar os seus leitores e discutir a sua obra, que envolve mais de vinte volumes, entre romances, novelas e contos. Tudo isso leva em conta uma questão fundamental: só é considerado aquele que está na mídia ou há uma literatura subterrânea que depende apenas do disse-me-disse ou da internet?

lendo gilvan - Gilvan Lemos fala do seu novo momento enquanto vê o mundo pela rua Sete de Setembro

O verde é o novo preto - O que há por trás do 04 debate sobre aquecimento global?

05 Nunca fomos, jamais seremos - Há vinte e

cinco anos, Blade Runner deixava o mundo um pouco mais pós-moderno

06 Inédito - Dois contos do próximo livro de Marcelino Freire

08 Ops, que tudo melhore de novo - Em fase

“pra baixo”, Adelaide Ivanova pensa o que “deu errado” na coreografia de Britney

09 A lua em sagitário - Paulo Caldas completa

vinte e cinco anos de carreira com novo livro

Isolado no apartamento da rua Sete de Setembro, no Centro da Cidade, o escritor pernambucano avalia que não tem tido sorte nas relações humanas e editorias. É perseguido por uma espécie de má sorte, segundo ele próprio, porque as pessoas – grandes críticos nacionais – que pretendem ajudá-lo morrem muito cedo e até as editoras falem. Um julgamento extremamente severo e injusto. Basta observar a crítica. E o ardor com que alguns dos seus leitores – e estudiosos – analisam a sua obra. A escritora Maria da Paz Ribeiro Dantas, especialista em literatura brasileira, afirma, a respeito do romance “A lenda dos cem”, na capa do Saber + , que é uma “narrativa moderna, com a desenvoltura de um Juan José Saer, que atinge por vezes a intensidade de uma tragédia grega, como na passagem em que o índio Picha retorna ao local do massacre de sua tribo e ali se depara com o silêncio que reverbera na sua voz chamando pelo nome dos de sua família que morreram, mas ninguém responde”. Nas páginas dois e três, uma rara e trabalhada entrevista de Gilvan Lemos. Outro assunto que chama a atenção nesta edição do Pernambuco é a questão do tratamento que as mulheres recebem da mídia, sobretudo de revistas especializadas, em matéria assinada por Fabiana Moraes, editada na décima primeira página, com diagramação de Jaíne Cintra, a partir de sugestões fotográficas de Alexandre Belém. O tema ganha dimensão através de entrevistas de Rose Maria Muraro, Cíntia Moscovich, Ivana Arruda e Fátima Quintas, nas páginas quatro, sete e oito, com diagramação de Militão Marques, acompanhando as sugestões de Jaíne Cintra. Numa rápida entrevista, Rose Maria Muraro faz uma análise da mulher brasileira na literatura e na sociedade, critica o romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, e diz que não é importante saber se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. E solta uma ironia, que retirou de uma pesquisa feita por sua equipe: “Só quarenta por cento das mulheres traem”.

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Nas páginas centrais, o Pernambuco antecipa dois contos – “Da paz” e “Cristão” – do novo livro de Marcelino Freire, que será publicado com o selo da Editora Record, do Rio de Janeiro, além de uma forte ilustração de Manu Maltez. O início do segundo conto: “Amor? Amar é a mordida de um cachorro pitbull que levou a coxa de Laurinha e a bochecha do Felipe. Amor que não larga, na raça. Amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa, como todo grande amor, a sua marca”.

30=15=02 neurônios Ensaio discute a tal infantilização da mulher de trinta

Na quarta página, o jornalista Alan Luna adverte que a luta pelo meio ambiente é a única hoje que consegue unir os discursos mais diversos. Ele lembra, por exemplo, que o assunto – cientificamente não é novidade – “caiu nas graças da Imprensa, da política, da publicidade, das artes” Luiz Piva, do Greenpeace, analisa o documentário preparado Al Gore, o político norteamericano, que percorre o mundo exibindo-o para advertir a sociedade e, de quebra, para fazer sua campanha à presidência dos Estados Unidos.

bem... - Há mais na dança do que 12 Procurando um deslumbrante pas de deux do Bolshoi

Raimundo Carrero rcarrero@cepe.com.br

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “A importância do patrimônio histórico”. Você participará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

EXPEDIENTE Governador do Estado Eduardo Campos

Vice-governador João Lyra Neto

Secretário da Casa Civil Ricardo Leitão

Presidente Diretor Industrial Diretor de Gestão Flávio Chaves Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte

Gestor Gráfico Júlio Gonçalves

Equipe de Produção Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo Circulação quinzenal. Parte integrante do Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro Distribuído exclusivamente pela CEP 50100-140

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Fone: (81) 3217.2500– FAX: (81) 3222.5126

Editor Raimundo Carrero

Editor Executivo Schneider Carpeggiani

Edição de Arte Jaíne Cintra

Revisão Gilson Oliveira

Tratamento de Imagem Sebastião Corrêa

Secretário Gráfico Militão Marques


Alexandre Belém

Alexandre Belém

Alexandre Belém

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omo estou diferente, dizia-se em pensamento. Antigamente não perdia os filmes que passavam no cinema da avenida. Apreciava.” Tal qual o velho Ageu, personagem do primeiro conto de “Na rua Padre Silva”, Gilvan Lemos está diferente, segundo sua própria avaliação. Mais caseiro, menos animado com a vida ao redor, talvez. A novela, como ele prefere classificar sua produção mais recente, será lançada na IV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, em outubro próximo, depois de quatro anos aguardando, em banho-maria, uma editora que a publicasse. O texto reflete um certo desgaste, um cansaço natural de quem já contou e viveu muitas histórias.“A vida antigamente era melhor, eu tinha mais interesse pelas coisas”. Gilvan conta que não tem mais o costume de freqüentar os arredores da Sete de Setembro, por exemplo, onde costumava ser visto com freqüência, até porque nem bebe mais. “O pessoal que vivia por lá agora vai para outro lugar, ficou distante, não vou mais”, diz, do alto dos seus 79 anos, com despudorada nostalgia e menos timidez do que há tempos atrás. As glórias e as derrotas da carreira literária de Gilvan Lemos são, na verdade, frutos da mesma aura personalíssima que o acompanha desde o lançamento do seu primeiro livro, em 1956. “Naquele tempo, entreguei meu livro a todos os cronistas literários da cidade e nenhum deu a menor bola”, relata, sem, no entanto, parecer magoado ou amargo, apenas ciente de uma realidade imutável. Diz ainda que Pernambuco não trata bem os filhos da terra, mas não nega que as características de sua personalidade terminam fechando algumas portas, e reconhece que muitas vezes o público lhe dá, sim, retorno. “Muita gente fala comigo na rua, sou bastante procurado, inclusive pelos jovens”.

lendo gilvan

Prestes a lançar um novo trabalho na Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, o recluso escritor pernambucano se abre à leitura Marcella Sampaio

O próprio fato do livro ter demorado a ser lançado exemplifica bem como funciona a lógica gilvaniana. “A editora que ia publicar meu trabalho demorou demais a decidir a data de lançamento, e eu tomei o livro de volta”, afirma. Flávio Barbosa, sócio da Nossa Livraria, atual editora do escritor, conta que teve que convencê-lo a publicar a novela, porque ele estava relutando em fazê-lo. “Sabe como ele é, né?”, comenta Flávio, cúmplice de uma lenda que já se criou em torno do nome de Gilvan. O cara recluso e pouco afeito a badalações justifica seu comportamento dizendo que é (já foi mais) tímido, tímido demais. Termina então, por isso, tirando o time de campo antes de se expor mais do que o que acha ser necessário. O episódio da candidatura à Academia Pernambucana de Letras é emblemático. “Fui convidado a me candidatar em 1969, não quis, por timidez (mais uma vez ela). Resisti novamente a um segundo convite. Na terceira vez que me chamaram, me candidatei, aí me disseram que o momento não era bom, que já estava decidido quem seria o próximo a ocupar a vaga e me pediram para retirar a candidatura. Não quis retirar e só tive um voto. Há pouco, fui procurado novamente, mas agora não tenho mais interesse”, explica, sem dizer se foi o pudor ou os brios que o fizeram desistir de ser um imortal pernambucano. Ao livro novo, então. “Na rua Padre Silva” é uma novela, segundo Gilvan, pois reúne contos que se relacionam uns com os outros, embora possam ser lidos separadamente, sem prejuízo para o entendimento. A personagem principal é a própria rua, e o tom saudoso e a crítica social permeiam os textos, que contam histórias de pessoas comuns, vivendo vidas sem grandes arroubos de heroísmos ou feitos extraordinários. O texto é seco, claro, sem muitos enfeites. Não há rebuscamento nem intervenções lingüísticas mirabolantes, só uma prosa fluida, agradável, familiar, morna. Parece até que a gente conhece aquelas pessoas, que elas são nossas vizinhas ou parentes. Embora os ambientes descritos não sejam particularmente alegres nem tristes – “minha literatura é realista”, diz Gilvan – uma certa fumacinha preta está sempre presente no ar. Muito conhecido e respeitado pela crítica, Gilvan Lemos também é um autor que vende bem, segundo seu atual editor. “Toda a semana vendemos pelo menos dois ou três livros dele aqui na livraria”. Mesmo assim, boa parte do público ao qual se dirige o mercado literário não ouviu falar nele. “Não conheço”, diz o estudante Elton Costa, 25 anos, que acha que “os escritores pernambucanos são mal divulgados”. Num mundo ideal, porém, um autor como yy Gilvan deveria prescindir de divulgação. Saber +

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Alexandre Belém

PL olêmica iteratura

A luta pelo meio ambiente é a única hoje que consegue unir os discursos mais diversos Alan Luna

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adonna está preocupada. Sting e Lenny Kravitz também. Hommer Simpson e seu filho, Bart, não estão nem aí. Bush pai e Bush Jr. também não. A CNBB dedicou a Campanha da Fraternidade ao tema. Sebastião Salgado fez o mesmo com sua última exposição. Até a Força Sindical resolveu aderir, embora seu presidente admita que, “até pouco tempo atrás, isso era coisa de veado”. “Desde a Eco-92, a gente não tem um assunto que seja tão pertinente a todo mundo”, diz o coordenador da campanha de clima do Greenpeace no Brasil, Luiz Piva. Estamos falando, claro, do meio-ambiente — ou, em sua versão mais “up-to-date”, do aquecimento global, provavelmente o único tema capaz de articular num mesmo discurso figuras tão díspares quanto as acima citadas. O assunto — que, cientificamente, não é novidade nenhuma — caiu nas graças da imprensa, da política, da publicidade, das artes. “Eu lembro que, cinco anos atrás, quando a gente falava do aquecimento global, parecia um bando de loucos. As pessoas, até pela falta de informação, ignoravam o assunto. Hoje, a gente fala de aquecimento global até no futebol. A imprensa abriu um espaço de debates e a gente consegue discutir isso no campo científico, da ética, da política, da educação... Como é um tema bastante transversal, você consegue inseri-lo em diversas agendas. Essa variável está sendo incorporada em segmentos que nós jamais imaginamos que isso pudesse acontecer”, diz Luiz Piva. A jornalista Verônica Falcão, que há mais de dez anos cobre ciência e meio ambiente para o “Jornal do Commercio”, reforça a tese: “É o que tem dominado a pauta nos últimos 24 meses. E não é só discurso de ambientalista. Não se restringe mais a uma bandeira do Greenpeace. Tem embasamento cientifico”, constata. Tais declarações fazem pensar sobre as causas de um crescimento tão vertiginoso. E seria até reconfortante pensar que os problemas factuais se tornaram tão acachapantes a ponto de estimular uma reação da sociedade. Em parte, isso pode até ser verdade. Mas não explica tudo. Meio-ambiente, além de monóxido de carbono, desmatamento de florestas e extinção do urso panda, é, também, discurso. E não é à toa que ele tenha sido articulado e sistematizado nessa sua nova roupagem – o aquecimento global – por um político democrata americano: o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore, tornado uma espécie de guru dos ecologicamente corretos após o documentário “Uma verdade inconveniente” (sagazmente parodiado no filme “Os Simpsons” como “Uma verdade irritante”). A verdade — seja inconveniente ou irritante — é que a reunião dos adjetivos “político”, “democrata” e “americano” não é aleatória. Embora afirme, em certa passagem do documentário, que “Essa questão é bem menos política do que moral”, Al Gore sabe que não se trata disso. Por isso mesmo, adiante, constata: “Temos tudo para mudar, menos o desejo político”, discursa, numa clara alfinetada no atual ocupante da Casa Branca, o republicano George W. Bush, que se recusa a assinar qualquer tratado internacional de redução de poluentes, embora seu país seja o campeão na emissão de gases tóxicos (seguido de perto pela China). “O Al Gore soube aproveitar uma oportunidade. Ele cruzou um cenário propício com a falta de um líder mundial no assunto”, considera Luiz Piva, sem, no entanto, deixar de fazer ressalvas: “O documentário é bom, é tecnicamente bem fundamentado, é didático, foi uma ferramenta importante na época, mas tem um apelo emocional muito americano que me incomoda. Ele não é esse super-herói que se mostra, tem grandes interesses, cobra 250 mil dólares em uma palestra, por exemplo, e eu sinceramente não sei para onde vai esse dinheiro”, questiona. Mesmo não tendo visto o documentário, a repórter Verônica Falcão tem uma visão semelhante sobre o livro que o gerou: “Nao vi o filme mas li o livro. Tem um lado piegas de Al Gore, com aquelas fotos de família bem americanas, com gente de bochecha rosada lado a lado, rindo para mostrar que está feliz. Mas é um importante instrumento de divulgação científica do problema”, acredita. Apesar, ou, antes, justamente por ter ressurgido com força no meio democrata dos Estados Unidos (o que, em linhas gerais, equivale ao conceito de “esquerda” no resto do mundo), o discurso ambientalmente responsável entrou na pauta política em outras partes do globo. Na Europa, por exemplo, foi um dos quinze princípios elencados pelo Manifesto de Eauston, lançado no ano passado por um grupo de intelectuais britânicos que procuraram (re)definir a esquerda do século 21. Curiosamente, aqui no Brasil, que tem um governo petista — e, portanto, de esquerda, certo? —, a política ambiental não tem agradado a determinadas organizações. “Eu só vejo reação, e não uma proatividade do Governo Federal, que já foi protagonista com relação a esse assunto e agora vem assumindo posturas totalmente reativas”, dispara Piva, fazendo pensar que, quando o assunto é política verde, nem tudo é assim, preto no branco. yy

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Carolina Leão

Como “Blade Runner” disseminou as polêmicas pós-modernas pelo mundo

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e volta à cena: 1982. Olivia Newton-John soava profética: Let’s get physical. Let me hear your body talk. Seu corpo, baby. Deixe que ele te comande. Mas não se esqueça das malhas de ginástica, da boa alimentação, dos cosméticos, dos tratamentos de retardamento do envelhecimento e do seu espelho, claro, que como o da rainha má de Branca de Neve nunca tem uma notícia muito boa para te contar. Ou então, como outra blondie girl, Debbie Harry, “morra jovem; continue bonita”. De volta à cena: 1982. Enquanto dava suas piruetas com seu visual cyber-dark, Pris, a replicante sexy de “Blade Runner”, pura sedução e corpo na interpretação de outra loira, Daryl Hannah, citava num “indigesto” intertexto a máxima cartesiana/moderna “eu penso, logo existo”. Mas não existia porque não tinha “humanidade”. Era apenas uma cópia perfeita do homem em corpo e reflexividade; sem sua durabilidade. Nem a própria manipulação genética que a transformara num andróide perfeito, com emoção e racionalização até, poderia corresponder ao seu desejo de viver um pouquinho mais. Os andróides de Blade Runner tinham prazo limitado. Quatro anos, apenas. Mas quem não tem? A única diferença entre os poucos exemplares de humanos que restaram na Los Angeles de 2019 e os andróides em circulação numa cidade caótica e artificial era a de que os primeiros tinham na incerteza do fim um alento para a sua própria continuidade. Mas homens e andróides em “Blade Runner” representavam simples joguetes do destino, como um Deus que joga dados, ou xadrez, com a ciência. Não tinham escolha. No filme, Rick Deckard é um policial angustiado ao ser coagido a encarar a missão de exterminar quatro rebeldes replicantes, inteligentes demais e, como qualquer Frankenstein, loucos para usurpar o trono dos seus criadores. Rachel, com suas roupas sintéticas e sua frieza emocional, acredita ser uma reles mortal. Suas lembranças não passam, porém, de implantes de fotografias e memórias em seu cérebro robótico pelo qual ela se identifica com uma história que não era a sua; pois nunca a teve. Sebastian, um dos engenheiros da Tyrell Corporation, indústria responsável pela confecção dos andróides, tem apenas 25 anos e a Síndrome de Matusalém que o deixa com uma aparência de um cinquentão. Roy, o mais revoltado dos replicantes da prodigiosa série “Nexus 6”, luta em vão pela sua liberdade: o direito de ter mais vida. Cinco personagens em busca de uma história. Cinco personagensmarionetes. Eles estão de volta na última edição do diretor Ridley Scott para um clássico da ficção-científica e praticamente libelo do contexto pós-moderno. “Final Cut”, lançado em setembro no Festival de Veneza, é a sexta versão do cultuado filme que estreou timidamente nos cinemas em todo o mundo e só apenas no final dos anos 80 ganhou a distinção que hoje o acompa-

nha. Além de uma obra inquietante esteticamente, “Blade Runner” pode ser usado perfeitamente em aulas-didáticas sobre um conceito que tanta gente corre só em ouvi-lo: o pós-modernismo. O roteiro do filme, no entanto, é baseado no romance de Philip K. Dick escrito em 1968, “Será que os andróides sonham com carneiros elétricos?” – época em que o termo pós-modernismo se referia apenas a algumas extravagâncias estéticas. No hipotético futuro de Dick, ter um animal de estimação verdadeiro é um luxo reservado para poucos. A terra fora destruída por guerras nucleares e resta aos humanos se contentar com exemplares falsificados desses companheiros domésticos. Ridley Scott apostou, entretanto, num thriller que mescla elementos futuristas e romances retrô, com direito a fugas interplanetárias e declarações “humanistas” de solitários e niilistas. Todos os personagens são joguetes do destino, vivem o acaso e buscam no amor a redenção para a sua possível história. Nada mais contemporâneo. São vários os temas caros ao pós-modernismo como interpretação histórica que estão em “Blade Runner”. Entre eles, a noção de que a História não está caminhando numa definição linear como alguns intérpretes da modernidade acreditavam, apoiados pelo entusiasmo com o progresso científico. A ciência, aliás, é o grande embate de filmes do gênero. Na obra de Scott é possível ver todo um ideal humanista de crença na racionalidade e na liberdade humana cair por terra como as lágrimas de Roy. As possibilidades de emancipação individual entram em choque com novos deuses. Ninguém nessa narrativa sai incólume a uma ciência assassina. Naturalmente, a ciência não é o Jack Estripador do ser humano. Obviamente, o desenvolvimento da tecnologia não é por si só a causa de Auschwtiz ou Chernobyl. Mas não há como negar que a ciência foi responsável por tragédias como estas. O pós-modernismo, não como estilo estético, mas como interpretação epistemológica da nossa cultura, enfatiza o caráter sombrio da existência humana, a ausência de saídas – e o enfrentamento dessa problemática é visto na arte em sua obsessão nostálgica por um passado que fora “melhor” ou, ainda, em sua postura irracionalista. É preciso conviver com ela nem que seja negando: a noção de uma verdade absoluta, de um sujeito uno, de um futuro animador. Esteticamente, ele anuncia a volta ao corpo com uma Olívia Newton-John frenética em lycra colorida. Cultua a mágica do cotidiano em seu hedonismo, em suas ironias. Revela um novo contexto cultural no qual “Blade Runner” se insere perfeitamente com seus comentários que desafiam o discurso entre homem x máquina. Para muita gente, pós-modernismo é coisa do passado, quase um tabu. Rever “Blade Runner”, no entanto, é uma experiência assustadora. Talvez, nunca fomos, em artificialidade, imagens, conceitos, compulyy sões e identidades, tão pós-modernos.

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Urubu: gravura de Manu Maltez cedida pelo autor

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I nédito

Marcelino Freire Da paz Eu não sou da paz. Não sou mesmo não. Não sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. Não solto pomba nenhuma, não, senhor. Não venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A paz é uma desgraça. Uma desgraça. Carregar essa rosa. Boba na mão. Nada a ver. Vou não. Não vou fazer essa cara. Chapada. Não vou rezar. Eu é que não vou tomar a praça. Nessa multidão. A paz não resolve nada. A paz marcha. Para onde marcha? A paz fica bonita na televisão. Viu aquela atriz? No trio elétrico, aquele ator? Se quiser, vá você, diacho. Eu é que não vou. Atirar uma lágrima. A paz é muito organizada. Muito certinha, tadinha. A paz tem hora marcada. Vem governador participar. E prefeito. E senador. E até jogador. Vou não. Não vou. A paz é perda de tempo. E o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Arroz e feijão. Sem contar a costura. Meu juízo não está bom. A paz me deixa doente. Sabe como é? Sem disposição. Sinto muito. Sinto. A paz não vai estragar o meu domingo. A paz nunca vem aqui, no pedaço. Reparou? Fica lá. Está vendo? Um bando de gente. Dentro dessa fila demente. A paz é muito chata. A paz é uma bosta. Não fede nem cheira. A paz parece brincadeira. A paz é coisa de criança. Tá uma coisa que eu não gosto: esperança. A paz é muito falsa. A paz é uma senhora. Que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue. Já disse. Não quero. Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha. Nem morta. Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Eu não abro. Eu não deixo entrar. A paz está proibida. Proibida. A paz só aparece nessas horas. Em que a guerra é transferida. Viu? Agora é que a cidade se organiza. Para salvar a pele de quem? A minha é que não é. Rezar nesse inferno eu já rezo. Amém. Eu é que não vou acompanhar andor de ninguém. Não vou. Não vou. Sabe de uma coisa: eles que se lasquem. É. Eles que caminhem. A tarde inteira. Porque eu já cansei. Eu não tenho mais paciência. Não tenho. A paz parece que está rindo de mim. Reparou? Com todos os terços. Com todos os nervos. Dentes estridentes. Reparou? Vou fazer mais o quê, hein? Hein? Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado de polícia. Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no peito. Sem fim. Uma dor. Dor. Dor. Dor. Dor. A minha vontade é sair gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! Matando todo mundo. É. Todo mundo. Eu matava, pode ter certeza. Todo mundo. Mas a paz é que é culpada. Sabe? A paz é que não deixa. Amor? Amor é a mordida de um cachorro pitbull que levou a coxa da Laurinha e a bochecha do Felipe. Amor que não larga, na raça. Amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa, como todo grande amor, a sua marca. Amor é o tiro que deram no peito do filho da dona Madalena. E o peito do menino ficou parecendo uma flor. Até a polícia chegar e levar tudo embora. Demorou. Amor que mata. Amor que não tem pena. Amor é você esconder a arma em um buquê de rosas. E oferecer ao primeiro que aparecer. De carro importado. De vidro fumê. Nada de beijo. Amor é dar um tiro no ente querido se ele tentar correr. Amor é o bife acebolado que a minha mulher fez para aquele pentelho comer. Filhinho de papai, lá no cativeiro. Por mim ele morria seco. Mas sabe como é. Coração de mãe não gosta de ver ninguém sofrer. Amor é o que passa na televisão. Bomba no Iraque. Discussão de reconstrução. Pois é. Só o amor constrói. Edifícios. Condomínios fechados. E bancos. O amor invade. O amor é também o nosso plano de ocupação. Amor que liberta, meu irmão. Amor que sobe e desce o morro. Amor que toma a praça. Amor que, de repente, nos assalta. Sem explicação. Amor salvador. Cristo mesmo quem nos ensinou. Se não houver sangue, meu filho, não é amor.

Cristão Pernambuco_Set 07.2


C rônica

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Adelaide Ivanova

sxc.hu/cortesia

u sou como uma Britney Spears no palco do VMAs. Exposta, super-exposta, com vergonha e em frangalhos, esperando o momento em que a luz se apague e eu possa, finalmente, voltar para o conforto do anonimato, do camarim pessoal, do esquecimento. Antagônica, randômica, como Britney, eu fujo e me jogo em cima do exibicionismo. Hoje não vou falar de resignação alegre e esperança. Hoje eu vou falar de como a gente se sente quando está sozinha, perdida, cansada e sem saber como juntar as peças soltas – aliás e afinal, essas coisas todas não são parceiras de crime? Hoje eu não estou nem aí se você terminar de ler isso aqui e perder o apetite. Hoje eu não sou auto-ajuda. Exatamente como Britney fez: aqui é o palco indigesto da maximização do desespero e do abandono. A apresentação desastrosa de Britney no VMAs foi amor. Foi uma menina coroando a própria desgraça com uma tentativa frustrada de mostrar ao mundo que, não, aquele bofe do mal não tinha destruído sua carreira (e sua vida). Do mesmo jeito que a gente faz quando vai para a balada em que a gente sabe que estarão os amigos do ex, e enche a cara e dança em cima da mesa e geralmente acaba se enroscando com mais um bofe do mal – enquanto os amigos do seu ex riem de você (de pena, se a humilhação for máxima, ou por pura diversão leviana, se você assim merecer). A Britney Spears do VMAs pôs uma lupa em cima da seqüela das desgraças que só um homem pode causar a uma mulher; foi o resto da dignidade, há tanto perdida, que ela tentou recuperar antes do tempo (ou seria tarde demais?), em roupas que não lhe cabiam e com a cara massacrada pela confusão. Foi como quando eu voltei a ir ao Garagem para gastar minha figura, acreditando que, ao ser vista em ação e em público, o povo poderia acreditar que eu estava bem, de novo. Só eu não via que o mico maior era meu. Eu, sinceramente, duvido que Danuza Leão tenha transado com aquele cara, história que ela descreve no fim de “Quase tudo” (se você ainda não leu desculpe, acabei de te contar o fim). A vida é dura, quantas vezes já falei, e não me parece real que uma mulher de 72 anos atraia alguém só pela aparência (como Danuza bem diz no livro, eles nem conversaram, foi olhou-comeu. Acredito que Danuza consiga pegar quem quiser, mas seria pelo seu charme e inteligência, não pelo seu embrulho). Seja aqui, seja na França e nem mesmo em Shangri-La. Mas, de qualquer jeito, sendo verdade ou não, Danuza consegue dar uma com o cara e ir embora sem olhar para trás, sem sequer cogitar pegar o telefone dele. E não foi porque a noite foi ruim, não, senhora. Estou falando isso porque é impossível para uma menina de 20 e poucos anos ficar com um cara sem se obcecar – e, conseqüentemente, estragar tudo (tudo não, estragar a si própria). Na verdade, creio que isso é impossível para mulheres de qualquer idade – talvez essa reação aconteça em menor intensidade quanto maior for a idade, mas que sempre rola, rola. Eu tenho uma mãe, no momento solteira, que foi mãe-solteira, e sei como são as coisas. Hoje em dia todo mundo quer ter uma relação, mesmo que seja só para dizer que tem uma. Aliás, não foi assim desde sempre? Britney colou no primeiro que apareceu, depois que Justin solenemente desistiu dela. E deu no que deu. Na cadeia alimentar (você entendeu a metáfora) do ser humano não há espaço para solteironas, nunca houve. Para Britney, muito melhor do que ser uma mãe-solteira em busca da honra, é mostrar que ainda é capaz de seduzir quem quiser, arquétipo tão bem representado por ela quando tinha 19 anos e era namorada de Justin. Hoje, depois de dois filhos e tendo sido devastada por um bofe uó (quem nunca teve o seu?), tudo o que Britney quer é provar que ainda tá no jogo. Coitada. Sábia decisão toma aquela que aceita que o mundo não é lugar para felicidade gratuita. Vai doer, every single time, mesmo durante o melhor namoro de sua vida. Agora, não é porque vai doer que a gente não deva arriscar. É como diz a propaganda nova (muito boa, preste atenção na próxima vez que ela passar) do Anador: você vai deixar de fazer as coisas com medo de sentir dor? O medo da dor fez de Britney uma pessoa que está sempre tentando parecer bem. Isso faz dela uma pessoa descolada da realidade, que a gente chama por aí de doida. Isso porque grande sofrimento combina com isolamento, e se essa máxima não for respeitada, nossa dor e nosso medo serão violados, desrespeitados – aí gente sai, sim, com cara de doida na foto. Fugir da dor torna muito mais difícil superar aquilo que aflige. Fugir das coisas com medo da dor não é nada salutar, assim como não é inteligente fugir da dor com medo de se enxergar. Minha amiga de Tatuí acabou de me ligar para me oferecer seu guarda-chuva (me entreguei com 6 meses de atraso a Rihanna): “Toda ruptura é dolorosa, mas na maioria das vezes elas trazem novas possibilidades”. Eu duvido, Bia, hoje estou tão triste. Mas tomara que assim seja – um comeback de verdade, se não para mim, ao menos para Britney. yy :**********


H omenagem educativo. Não se quer dizer com isso que a literatura infanto-juvenil seja leviana e pouco séria. Acontece que muitas vezes envolve uma tal ingenuidade que chega a se tornar boba. Basta agora conferir o texto de Paulo Caldas: “Primeiro, senti a dor de ver as lágrimas de mãe e das meninas. Nos olhos de pai, não sei, nem sei se sentiu ou se escondeu a emoção entre as covas do roçado. Embora já estivesse tudo resolvido, a decisão ficara em família. O povo não precisa saber. Foi o que mãe recomendou”. Com essas palavras, o escritor Paulo Caldas inicia o seu novo livro – “Lua em sagitário” – em comemoração aos vinte e cinco anos de carreira. Narra a história de Miguel e Lenora, com um apuro técnico que aponta para a maturidade de sua obra. Há, no entanto, um enredo entrecruzado, em que a técnica elimina o sentimentalismo e o vulgar. Eis a principal questão deste tipo de literatura infantil ou infanto-juvenil: tornar-se sentimental a ponto de vulgarizar palavras e personagens. Um risco que é preciso evitar sempre. Ou seja, evitar personagens edificantes ou educativos que se tornam orgulho da raça. Nem pensar numa coisa dessas. E que, apesar de serem medíocres, abarrotam as estantes das livrarias. Parecem cidadãos acima do bem e do mal, e que, na verdade, não contribuem em nada para a formação do jovem. E quem foi que disse que a literatura contribui – ou deve contribuir com alguma coisa? Paulo Caldas é diferente. Mesmo considerando a possibilidade do leitor jovem, busca uma linguagem e um enredo que estão longe, muito longe, do lugar-comum. O enredo? Sim, o enredo de “A lua em sagitário” constrói a vida de dois personagens incomuns, refletidos de forma vigorosa neste livro. Um jovem e uma mulher. E o leitor se responsabilizará pela construção do texto tão hábil em técnicas e sutilezas. yy Um livro para vinte e cinco anos bem comemorados.

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em sempre um escritor brasileiro pode chegar aos vinte e cinco anos de carreira. Por todos os motivos possíveis. Inclusive pela falta de apoio, o que gera um certo tipo de depressão e o abandono da carreira – se é que se pode chamar de carreira. Mas também não é correto dizer que alguém precise de apoio – governamental, familiar, social – para construir uma sólida carreira literária. A carreira de um escritor só depende dele. E mais nada. Mas também se pode construir uma verdadeira carreira de escritor sem estar ligado a datas. São semanas, meses, anos, escrevendo um texto que talvez venha a se transformar num romance ou numa novela. Daí porque não há exatamente uma data referencial. Quem sabe, apenas uma lembrança, recordação, ou coisa assim. É o que acontece com autores, digamos, de uma obra só, e de apenas um instante literário. O livro chega aos vinte e cinco anos apenas por dados informativos.Vejamos o caso de “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo. Embora tenha publicado mais um livro, “Planalto em chamas”, o mexicano se tornou célebre por causa de uma novela – de pouco mais de cem páginas – que mudou a história da literatura latino-americana. Quando começou? Quando terminou? Serve apenas a data de publicação? Mas seria tortura pensar em tudo isso quando há motivos para consolidar uma data. Neste ano de 2007, por exemplo, o escritor pernambucano Paulo Caldas celebra os vinte e cinco anos de sólida carreira literária, com destaque para a literatura infanto-juvenil. É não o caso de se comemorar apenas um livro ou uma referência. Trata-se de um autor que conseguiu, seriamente, construir mais do que uma carreira, um nome, um verdadeiro nome, respeitado e amado pelos caminhos que revelou na atividade intensa. Embora dedicado ao mundo infanto-juvenil, a seriedade de sua obra leva o leitor a um comportamento sóbrio, sem cair no lugar-comum do texto metido a

A lua em sagitário Ao completar vinte e cinco anos de carreira, Paulo Caldas publica um livro com enredo complexo e muita técnica Raimundo Carrero

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Foto: Alexandre Belém/Concepção: Jaíne Cintra

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30 = 15 = 02 neurônios As revistas femininas confundem os dramas das balzaquianas com os caprichos garota de quinze anos Fabiana Moraes

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ulie d’Aiglemont, moradora do século dezenove, vivia entediada. Seu casamento? Um saco. Geni, esta pós-moderna, nascida no tempo dos vinte, era por sua vez toda alegria, desejo e putaria ao ver Herculano. Mas terminou achando terrível aquele apaga a luz, papai, mamãe, amém. A primeira, trinta e poucos, é filha de Balzac. A segunda, trinta e tantos, de Nelson Rodrigues. Em comum, além da faixa etária, o fato de não terem uma boa revista “Nova”, uma “Elle”, talvez a “Cláudia”, para dar uma folheada e aprender a ser feliz. Mesmo com o marido que tinham – ou com aquele que estava por vir. Nem Julie nem Geni tinham acesso a um guia lacrado de sexo tão comum na primeira revista. Ou as dicas quentes de moda e comportamento da segunda e as receitas caseiras. As meninas, coitadas, não estavam aqui para ver o maravilhoso mundo da mulher de trinta. Surpresa: para as revistas femininas, ela só tem no máximo uns quinze. Percebe-se que estes magazines tratam a moça a partir de 3.0 – localizadas na nova ordem social como bem-sucedidas, poderosas, donas de bundinhas bola de bilhar, capazes de manipular um laptop de última geração tão bem quanto uma mamadeira –, falam para um ser estranhamente infantilizado. Inseguro, medroso, que precisa a todo momento revisar seu discurso. Senão vejamos: em julho, a “Elle” nacional (a origem é francesa), uma espécie de “Capricho” para moças com mais de dez salários mínimos, trazia uma matéria que prometia traduzir o que o homem realmente queria dizer. “Entenda os significados ocultos do que eles dizem e dê as respostas que merecem!”, prometia o subtítulo. As pérolas que se seguem são preciosas demais para serem furtadas ao caro leitor, por isso transcrevo quase literalmente o que foi publicado: se ele falar “Estou quase sem cuecas na gaveta”, você deve responder: “Tudo bem, amor, vou comprar cuequinhas para você. Me empresta o cartão de crédito? Quero aproveitar e dar uma passadinha na La Perla para renovar meu estoque de lingerie”. (Sim, e ainda rola uma propagandazinha no meio, afinal o novo jornalismo perdeu-se nas fronteiras da publicidade faz tempo...). Tem outra dica infalível: se ele diz “Eu preciso te falar uma coisa”, quer na verdade dizer “Quero me separar porque estou apaixonado por outra”. Você, que em tese pode até pagar as salgadas roupas dos editoriais de moda da revista, não sabe o que responder. Amiga “Elle” ajuda: diga apenas “Sinto muito. Agora não vai dar porque eu estou indo para o aeroporto, de mudança para a China”. Uma última dica quente beira o absurdo: quando o rapaz fala “Eu te adoro, mas estou apaixonado por outra pessoa”, ele na verdade quer dizer... “Querida, acorda, sou gay!”. Analisando as dicas às quais Julie e Geni jamais tiveram acesso, a mulher de trinta atual pode chegar a diversas conclusões. Primeiro, que comprar cuecas para o marido é ato absurdamente desonroso – a moral feminina só será lavada de tal ato vil mediante um cartão de crédito sem limites. Segundo: encarar o fim de uma relação, jamais. Se ele abre a boca para um fora, dê você primeiro o pé na bunda e finja que nada aconteceu. Afinal, é preciso chegar com a maquiagem impecável para a próxima balada. Finalmente, descobrimos que a frase “estou apaixonado por outra pessoa” sempre significou uma tremenda saída do armário. E nós, linda, que só temos nosso feeling atinado quando o Visa ou Mastercard não passam na maquininha, nunca sacamos a verdade. Tia “Cláudia”, essa verdadeira instituição nacional entre as revistas femininas, também é boa em listar dicas para essa mulher de trinta e tantos, como Geni. Na edição de setembro, há um oásis: “93 segredos que toda mulher inteligente deve conhecer”. Atenção para o “inteligente”. A revista não está sugerindo, de forma alguma, que você é assim... bobinha. “Para ter boa auto-estima, é preciso se conhecer bem. Portanto, uma terapia bem conduzida ajuda a resgatar e rever pedaços da nossa história (...). Não dá para fazer agora? Então encontre um tempo para você e invista em pequenas coisas que a façam feliz, como ver no cinema a comédia romântica da hora (...)”. É claro. Toda mulher com mais de trinta sabe que seu verdadeiro self está em um lugar chamado Notting Hill. “Titia”, mais voltada para o lar, continua com dicas do coração: a 83 diz que é bom organizar as peças no armário por tonalidades (assim você economiza tempo ao separar a roupa para o dia seguinte), enquanto a 84 ensina a fazer compras grandes sempre no mesmo supermercado (você já conhece a disposição das gôndolas, fica mais fácil). Amiga “Elle” ensinou a ser fashion e “sacada”, Tia “Cláudia” a ser analisada e a cuidar do lar. Mas e o sexo? Estar bem-vestida e ser uma dona de casa inspirada não bastam: agora, você vai recorrer àquela sua prima safadinha, “Nova”, que em setembro traz uma matéria chamada... “Sexo depois dos 30”. “Dar ou não dar depois do primeiro encontro?” é uma das questões. Sim, a mesma que a “Capricho” ou a “Toda” teen já publicaram inúmeras vezes para suas leitoras passando por suas primeiras menstruações. Em outra reportagem, sugestões vitais para agradar o macho antes, durante e depois do sexo. Para manter a conexão após o sexo, a posição recomendada é a da colher. “(...) Para prolongar essa ligação física e emocional (o pós-coito), basta aninharem-se na posição colherinha (...) quando ele fica atrás, esse contato faz com que se sinta poderoso e másculo.” A aula prossegue: para levantar a bola dele, a posição poderosa sugerida pela “Nova” é a do colinho: “Um truque simples vai providenciar a descarga de testosterona da qual ele precisa para reafirmar seu papel de macho. Repouse a cabeça no colo de seu querido enquanto estiverem no sofá, deitados na cama conversando”. O gesto, de acordo com uma sexóloga entrevistada, serve para trazer à tona o instinto primitivo dele de provedor. Fechando a revista, a mulher de trinta, sorridente, percebe que a banca de revista pode facilmente dar conta da sua felicidade. Com o coração pesado, a heroína midiática, corpinho de quinze e cabecinha também, percebe o terrível drama pelos quais Julie e Geni yy passaram. A resposta, meninas, estava naquele pequeno guia lacrado. Saber +

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ano era 2004. As poltronas, do Teatro de Santa Isabel. No palco, os intérpretes do Grupo Cena 11 (SC) atiravam, literalmente, contra o chão, seus corpos semi-nus, no espetáculo “SKR procedimento 01”. E repetiam, repetiam, repetiam, travando uma conexão entre dança, homem e tecnologia. A essa altura, ao meu lado, uma amiga ria de nervosa e me perguntava, a cada estrondo no tablado, por que diabos eu a tinha levado para ver aquilo no Festival de Dança do Recife. Percebi que a inquietação diante daquele exemplo contemporâneo investigativo não era só dela, mas um tanto coletiva. As cadeiras rosnavam e, pouco a pouco, alguns deixavam o teatro. Educada, minha amiga esperou até o fim, mas bastou o grupo distribuir questionários ao público depois da apresentação para ela sair correndo. Refletir sobre a proposta da montagem era demais também. Tudo bem. Tenho convicção de que se fosse um espetáculo de balé clássico russo, provavelmente ela teria me agradecido, beijado meus pés por estar lhe dando uma oportunidade rara de ver “uma coisa tão bela”. Sem preconceito algum, há várias posturas assim no público de dança. No Recife, então, muitas. A pesquisadora e bailarina Valéria Vicente tem razão quando diz que “É difícil falar numa arte contemporânea como um todo homogêneo, do qual se pode afirmar que se gosta mais ou não. Alguns espetáculos de dança contemporânea atraem tanto público quanto uma grande produção de balé romântico”. Ok, mas estamos falando de um senso comum, responsável por colocar uma venda nos olhos da platéia e fazê-la de cabra-cega diante da produção do século 21. É claro, existe meio termo, sim. Deborah Colker, por exemplo, é um block buster cênico no Brasil. Mas, um caso à parte de dança no País. Portanto, se por um lado toda generalização é estúpida, por outro é impossível não reconhecer que é muito mais fácil encontrar quem se deslumbre com um bem-executado pas de deux do Bolshoi Ballet do que com uma das criações contemporâneas, como as da francesa Mathilde Monnier, atração confirmada para o 12º Festival de Dança do Recife, que vai de 11 a 20 de outubro este ano. O contrário soa quase como um sacrilégio. “A idéia de dança contemporânea não consolidou uma referência para a maioria do público (e mesmo para a comunidade de dança), ainda mais num Estado que vê com desconfiança aquilo que não é tradição. E isso vale muitas vezes para quem produz, ou acha que produz, dança contemporânea. Basta ver a confusão em tantos festivais competitivos”, pontua o professor e mestre em comunicação Airton Tomazzoni, em texto publicado no site Idança.net. O choque ainda é inevitável, embora séculos e diferentes linguagens separem o início do balé clássico do que é produzido atualmente em dança, sobretudo dos anos 60 para cá (batizado por muitos de fase pós-moderna). Por que será? Várias explicações são possíveis. A primeira, e mais evidente, é que enquanto no primeiro caso estamos diante de uma linguagem fechada em si, com códigos pré-estabelecidos segundo um valor estético social do passado (calcado na habilidade técnica), no segundo não há nada disso. Dança contemporânea cênica não é um estilo, ou simplesmente um modo de dançar, mas o acúmulo de vários discursos não padronizados, ou mesmo o “não-discurso”. Um imenso guarda-chuva, como costumam dizer, ou uma caixinha de surpresas. Os limites para a criação são muito tênues, ou quase inexistentes. E a técnica pode até ser um meio, mas não um fim. Isso abala qualquer eixo e dá margem para a iconoclastia, a negação do “estado arte”. O mesmo acontece nas artes visuais, por exemplo. Não existe, portanto, um “contrato” firmado entre autor e espectador nesse caso; ao contrário, ele está sempre se renovando. Resultado? Frustração, ou como já afirmou o crítico e curador Fernando Cocchiarale, uma quebra das expectativas do público mais geral. “O que está em questão é uma busca ansiosa pela explicação verbal de obras reais e concretas, como se, sem a palavra, fosse-nos impossível entendê-las. A explicação assassina a fruição estética, já que, ao reduzir a obra a uma explicação, mata sua riqueza polissêmica e ambígua, direcionando-a num sentido unívoco”, explica Cocchiarale no livro “Quem tem medo da arte contemporânea?”. No balé clássico não aparece esse tipo de conflito. Estamos diante de uma atmosfera burguesa de entretenimento, sem grandes ruídos de comunicação, mesmo no nível não verbal. Há uma predominância da homogeneidade, do virtuosismo e do equilíbrio cuja referência é o céu, o desafio à gravidade. Não é fácil entender seu complexo arranjo de códigos em detalhe, mas o balé é uma narrativa cartesiana, que atinge o bem-estar do público e agrada pelo fato de que ele já sabe o que vai ver em cena – a menos que o bailarino tropece, erre, ou o coreógrafo não seja competente o suficiente para executar com maestria uma peça. Embora haja algumas tendências de padronização no universo contemporâneo, como coloca a bailarina e crítica de dança Rosa Primo, num artigo do livro “Lições de dança 5”, e o próprio balé seja muitas vezes ponto de partida para os espetáculos, não temos como prever o que pode acontecer. Cada concepção tem uma lógica, ancorada muitas vezes na singularidade de cada corpo e, por isso mesmo, imprevisível e heterogênea – o que não quer dizer necessariamente bem-resolvida em cena. Tudo é possível nesse terreno flexível. Até a harmonia entre movimento e música, condição sine qua non da linguagem clássica, se tornou rara. O que acontece é que estamos diante de produções imbricadas ao ritmo do mundo atual, reflexos do cotidiano. É difícil manter um certo distanciamento quando arte se confunde com vida. Além disso, as coreografias se envolvem quase sempre com outros campos de arte, criando uma complexa rede de relações entre si – a chamada hibridização. Soma-se ainda o conflito entre os paradigmas culturais. Como convencer uma pessoa situada nos ideiais renascentistas de que o belo não é mais um critério fundamental? O coordenador do 12º Festival de Dança do Recife, Arnaldo Siqueira, está certo: só a informação cura o senso comum. É preciso ver mais para entender, aliás, sentir melhor. E yy para isso servem os festivais.

Todo mundo tem pereba/ Marca de bexiga ou vacina/ E tem piriri, tem lombriga, tem ameba/ Só a bailarina que não tem Olívia Mindêlo

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