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Foto: Alexandre Belém/Concepção: Jaíne Cintra


E xpediente SUMÁRIO

EDITORIAL

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A televisão está em crise. Vai para o divã ou não vai? A febre psicanalítica do século XXI parece não ter forças para resolver o problema. Porque não é apenas um problema humano, é humano e tecnológico. Aí entra o drama. Homens resolvem problemas das máquinas e máquinas resolvem problemas dos homens. Daí toda essa questão que sugere modificações revolucionárias. Alterações substanciais.

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Júnior de quê? - Publicação gay não retrata o mundo gay

Vem daí o interesse do Pernambuco ao reunir um grupo de jornalistas para debater o assunto, partindo, quase todos eles, de um questionamento elementar: a participação do espectador. Mas, afinal, o que vem a ser mesmo esta figura? Na sexta página, Carol Almeida responde: “Alguém que agora, para desespero de muitos e alegria de outros, em lugar apenas de ‘espectar’, prospecta. É nele, e somente nele, que a TV pode encontrar alguma estratégia de tabuleiro para evitar derrubar seu rei antes da hora”.

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Verger, a descoberta do Brasil - Fotógrafo viveu em Pernambuco e na Bahia e revelou nossa vida cultural

Na boca do povo - Homero Fonseca lança romance com personagem marcante

dilema para vencer a 06 Um tradição e o tédio - Equipe de jornalistas investiga a televisão do futuro no Brasil

Na sétima página, Beatriz Ivo parece ainda mais radical e anuncia veementemente: o espectador vai morrer. Pois é. Sem tirar nem por, a trombeta do apocalipse: “Os milhares de telespectadores que hoje estão espalhados pelo mundo vão morrer muito em breve”. Mas como isso acontecerá? Diz ela: “Será um extermínio em massa. E todos vão comemorar o seu fim”. Até porque o espectador “não vai se limitar a ficar na cadeira sendo bombardeado por frames e frames de informações. Vai querer participar. Por isso, pode encher o peito de orgulho”. Na oitava página, porém, Daniela Arraes informa que já existem mudanças radicais por causa da internet. Ela, sempre ela, a internet. Em muitos aspectos, os “novos telespectadores”, trocam “a televisão pelo computador e podem ter acesso ao conteúdo que quiserem, que desejarem”. No entanto, uma constatação infalível: “Este contingente está mais sintonizado com a cultura pop, com entretenimento, tem mais urgência por informações, conhecimento em informática e língua estrangeira”. Nas páginas nona e décima, o assunto é ainda tratado em outros ângulos por Luiz Carlos Pinto e Thiago Soares. O Saber + discute, essencialmente, a televisão pública no Brasil. Atenção para a entrevista do diretor-presidente da TV Cultura, Paulo Markun, que destaca os pontos essenciais para a sobrevivência desse setor importantíssimo da comunicação no País, seus conceitos, e suas modificações. Sem esquecer, todavia, os pontos de vista de José Mário Austregésilo, Paulo Jardel e Stela Maris Saldanha, em entrevistas concedidas à jornalista Mariza Pontes. Para não ficar apenas nesse tema, a editora do caderno, jornalista Marilene Mendes, trata da atualização do folheto de cordel, em matéria que pode ser encontrada na sétima página, e também em questões do vestibular, na décima página. Outra coisa: para atualizar os leitores, estamos publicando uma série de breves resenhas, destacando, fundamentalmente, os autores pernambucanos, com lançamentos locais.

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No corpo do jornal, quinta página, o escritor Fernando Monteiro analisa o romance “Roliúde”, de Homero Fonseca, que promete atrair a atenção dos leitores brasileiros nesta temporada do final do ano. Homero criou o personagem Bibiu, que se alinha, já agora, com os personagens mais destacados da literatura brasileira. E na oitava página, o especialista Rodrigo Carreiro lembra o personagem recorrente de Truffaut: Antoine Doinel.

O personagem recorrente de Truffaut Daniel Doinel persegue Truffaut e se transforma na sua principal criação - A longa espera pela bela atriz na 12 Inédito agitação do aeroporto

Boa leitura. Raimundo Carrero rcarrero@cepe.com.br

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre Machado de Assis. Você participará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

EXPEDIENTE GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos PRESIDENTE Flávio Chaves

VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão

DIRETOR DE GESTÃO DIRETOR INDUSTRIAL Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte

GESTOR GRÁFICO Júlio Gonçalves

EQUIPE DE PRODUÇÃO Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.

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Distribuído exclusivamente pela Rua Coelho Leite, 530, Fone: (81) 3217.2500 Companhia Editora de Pernam- Santo Amaro FAX: (81) 3222.5126 buco - CEPE CEP 50100-140

EDITOR Raimundo Carrero

EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani

EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra

REVISÃO Gilson Oliveira

TRATAMENTO DE IMAGEM Sebastião Corrêa

SECRETÁRIO GRÁFICO Militão Marques

CONSELHO EDITORIAL Flávio Chaves (presidente), Jaci Bezerra, Paulo Bruscky, Nivaldo Araújo, Ivanildo Sampaio, João Monteiro e Lucila Nogueira

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Júnior de quê? Publicação, editada por André Fischer, aponta que o mundo gay está longe de imitar o mundo gay Valmir Costa

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ontagem regressiva: “3, 2, 1... Chegou a hora.” Assim é apresentada a revista “Junior” para o público gay brasileiro lançada em setembro. A priori, será trimestral. Segundo seu editor André Fischer, é “assumida sem ser militante, sensual sem ser erótica, cheia de homens lindos, com informação para fazer pensar e entreter”. E nas bancas de todo Brasil está ela. Porém, meio sem propósito. Não diz a que veio e, quando diz, não justifica. Não apresenta nada de novo. Falta uma linha editorial que norteie o projeto como um todo. As seções de cinema, música, moda são insipientes. Faltou consistência. No entanto, a revista faz muito bem aos olhos pelo design gráfico, produção de ensaios e até na própria capa como cartão de visita. Muitos acham que faltava uma revista gay “decente” no Brasil, numa alusão à “G Magazine” com seus nus de famosos e adjacentes. Mas passada quase uma década do século 21, pode-se dizer que o mercado editorial gay está de volta para o futuro. Isso porque a revista “SuiGeneris”, lançada em janeiro de 1995, degringolou no mercado editorial, em março de 2000, porque exigiam o erotismo em suas páginas. Chegava a vez da “G Magazine”, lançada em setembro de 1997, assumir tal posto. A linha editorial da “Junior”, aparentemente, é um retrocesso no fazer editorial gay de sucesso, ou seja, o da “G Magazine”, que atravessou uma década e tem o título de publicação gay com maior tempo de circulação no Brasil. Mas não quer dizer que tal modelo seja o ideal ou o único. A conclusão é que o mundo gay está longe de imitar o mundo gay. Não há o que agrade. Se não há é porque não se deve criar um tipo gay porque somos homens e mulheres, criados desde então como tal. Se o desejo aflora para outro caminho é apenas na parte do objeto desejado e não por ser algo diferente. Daí, façamos uma alusão às revistas masculinas que não conseguem se desvincular da imagem erotizada da mulher nas suas páginas. Exemplo disso é o título americano “Men’s Helth”, lançado no Brasil em maio de 2006. Com o lema “viver melhor é fácil”, dá dicas estéticas do corpaço sarado. Vez ou outra exibe uma mulher junto ao moço com abdômen tanquinho na capa para não fugir do seu público-alvo, uma vez que caiu nas graças dos gays que cultuam o corpo. Mais uma vez aqui o tempo parece retroceder. No final da década de 40, havia revistas de fisiculturismo como “Força e saúde” (1947) e “Músculo” (1953), versões das americanas “Strength and Helth” e “Physique Pictorial”. Em torno delas havia um teor homoerótico. Como não havia uma produção nacional para tal público, elas eram uma alternativa mais próxima de homoerotismo. Até então, os gays eram expostos na imprensa erótica masculina com pilhéria e desdém, que data seu início a partir de 1889 com o “gênero alegre” e mais tarde chamado de “galante” – numa divisão do que seria pornográfico ou erótico – em periódicos como “O rio nu”, “Sans Dessous”, “O ferrão”, “O nabo”, entre outros. No período da ditadura militar, quando aparecem os primeiros grupos militantes inspirados no levante gay de Stonewall (1969), lançaram o primeiro periódico gay, o “Lampião de esquina” em 1978. Era a época em que o homossexual era tratado como subcultura. Em 1981 o “Lampião” sai de cena porque passou a publicar temas eróticos e menos militantes. Após a anistia, o público gay contava apenas com publicações do sexo hardcore internacional ou da “Alone” (1991), publicada por um holding americano das revistas “Jock”, “Mandate”, “Stallion”, “Torso”, “Colte” e “Playguy” aqui no Brasil. Somente a partir de 1995 é que tal público passa a ser tratado como cultura, quando nasce a “SuiGeneris” e o modismo GLS. O que procede nesse fazer e desfazer entre o que seria uma revista “decente”, ou não, é aceitar os estereótipos de quando gays eram tratados de subcultura e até os positivos quando considerados como cultura. O que demanda aí é o poder de compra. Mas não há como negar que existe um mundo gay, de interesses dos gays, da arte queer, que é uma forma de reação e não de ação. Aí é que está o xis da questão. Nem os próprios gays sabem o que são porque reagem a todo tempo. Essa reação sai às avessas quando entra em contato com o interesse do capital. A orientação homossexual transformou-se em indústria cultural e de consumo, rendeu-se ao capitalismo. Daí, uma visão escamoteada da aceitação gay. É a lei do “eu tenho, logo posso”. Se bem que num mundo livre de homofobia, nada diferenciaria um gay de um heterossexual. Então, como passar a agir? Essa é a discussão atual preponderante da militância, que a revista diz não querer assumir, sair do armário neste aspecto. O que há 12 anos eram as lutas a favor da união civil, hoje é o direito à vida e à integridade física. Segundo o Grupo Gay da Bahia, o Brasil é o campeão mundial de crimes homofóbicos. Os tempos mudam, mas se há séculos de discriminação querer desvincular um quê de militância numa publicação gay é colocar a peneira contra o sol. É fazer de conta que o Brasil é um país tolerante por ter a maior gay pride do mundo. Mas o “país tem sua lógica própria”, como diz André Fischer. Porém, há uma lógica a se considerar. Não há um mundo sem rótulos. Há sempre a relação de separação entre indivíduos que se consideram “estabelecidos” em relação a outros tidos como “outsiders” ou inferiorizados. Nessa distinção, tem-se a idéia de que o gay só se interessa por essas coisas: pornografia, sites e relacionamento com sexo delivery, notícias do meio gay pelo mundo. Dentro da própria comunidade gay está o principal problema. Os gays não se entendem, pois há uma gama de gêneros dentro dessa comunidade. Criar uma cultura gay é o mesmo que criar tipo único. Enfim, há séculos, muitos gays assumem sua identidade gay com estereótipos. Por quê? Por acharem que ser gay é ser aquilo que construíram para ele. São as coisas velhas ditas de formas diferentes. Tudo é uma questão de cultura. E a indústria de consumo aprendeu a lucrar com isso. O público gay espelhou-se demais no mundo hétero e hoje vive em crise. Usa o sexo pelo instinto, os relacionamentos por convenção. Não consegue se desvincular da culpa de não ser igual ao modelo hétero (falido) da relação monogâmica, uma falência abalizada pelo Estado e acobertada pelo moralismo religioso da família. E quando a invenção não dá certo, reinventa-se. Essa parece ser a proposta da “Junior”, que – em nome do pai – surge num momento de crise existencial pósditadura, pós-pinta, pós-nudez, pós-saunas, pós-sex clubs, pós-tudo! Nessa construção do gênero gay, por que não apelar para o uso do erotismo sem puritanismos? Afinal, se o que distingue o gay dos outros é a orientação sexual para que fazer vista grossa para isso? Não seria a hora de lidar com a sexualidade de forma mais sincera, sem a hipocrisia que cerca o meio hétero, porque são discriminados por isso? Fischer diz que esperava “o momento certo parar dar forma a essa revista masculina direcionada ao gay brasileiro, onde mulheres e homens de corações e mentes abertos, independente de orientação sexual, também se sentissem contemplados”. Talvez o momento seja este. Afinal, tem uma geração de gays que não conheceu a “SuiGeneris”, como outra não conheceu “Lampião de esquina”. Seja como for, este celeuma editorial de uma revista “decente” ou não faz lembrar uma frase de Freud: “Não posso ver mérito algum em se ter yy vergonha do sexo.” Ainda tem muita gente que tem.

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Fotógrafo francês inventou o Brasil e viveu intensamente a sua intimidade Bruno Albertim

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Verger registrou as cidades, o povo, suas festas, seu trabalho e sobretudo sua religiosidade. No Recife, fotografou maracatus históricos, a mitológica Dona Santa, do Nação Elefante. O cavalo-marinho. “Ele manda várias cartas dizendo que estava encantado com Pernambuco. Não tivesse viajado tanto, teria voltado ao Estado”, explica o curador. Interessado pelo xangô do Recife, Pierre Fatumbi pesquisou o centenário terreiro de Pai Adão, matriz ética e estética dos cultos afros do Recife, a casa aberta no final do século 19 no bairro de Água Fria, que segue hoje sob a orientação do babalorixá Manuel Papai, herdeiro de Pai Adão. Destacado para uma reportagem na região de Vitória de Santo Antão, registrou o fabrico da cachaça e os ecos históricos da cana-de-açúcar que viabilizou o projeto colonial português na sociedade agrária local. “A intensidade solar dos sertões brasileiros impressiona mesmo aos olhos mais acostumados a ambientes semi-áridos. Pierre Verger, em sua foto, nos aproxima de uma espécie de inscrição em alto-contraste, dando-nos a conhecer imagens particulares da ‘terra ensolarada e remota’ a que se aferiu Glauber Rocha nos anos 1960”, explica, em ensaio que acompanha as fotos produzidas em Vitória de Santo Antão, a historiadora Fernanda Carvalho. “Das grandes amplitudes do campo nordestino, Pierre Verger selecionou como tema central de seu registro indivíduos em sua lida, na lavoura, descalços, protegidos do sol por seus chapéus de palha e entre construções e puxados cobertos de sapé (...)”, continua. As lentes do fotógrafo capturaram caboclos processando mandioca em farinha, queimando bagaço de cana diante de antigas construções, carregando enxadas, ceifando a cana e bebendo a cachaça com a qual, historicamente, se comprou, na condição de escravos, alguns antepassados desses mesmos agricultores. Verger também registrou as pontes do Recife. O cordel nas praças da indefectível Igreja Matriz nas cidades do interior. Deteve-se longamente sobre o frevo no Carnaval do final da primeira metade do século passado. Homens de grandes guarda-chuvas ou sombrinhas na mão, executando passos primevos, transitórios entre a capoeira e a coreografia contemporânea: coice-de-mula, vôo de morcego, é-de-chupetinha-que-eu-vou. Quase sempre sobre os paralelepípedos marcados pelos trilhos de bondes ou as calçadas de pedras portuguesas, mosaico no contrate de suas lentes. “Não ‘vejo’, apenas, as fotos de Pierre Verger. Sinto-as profundamente, com todas as fissuras e reentrâncias do meu corpo. Elas me dão uma espécie de ardência de alegria tão arrebatadora que a culminância é uma comoção em que, por vezes, chorando, me tremo, tremo, tremo”, escreveu o músico o dançarino Antonio Nóbrega, sobre o registro vergeriano do frevo. No Carnaval, seu olhar também se estendeu sobre o erotismo, a subversão de valores e a ambigüidade sexual da festa. Fez longo ensaio yy sobre homens travestidos nos blocos. Verger a tudo queria.

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ensageiro de dois mundos, rótulo que lhe embalava sem esforço, o francês Pierre Verger só largou a confortável, elegante e nada decadente vida burguesa em Paris depois de fazer 30 anos de idade. Com a morte da mãe, pegou a Roleiflex e assumiu sua já reprimida condição de viajante. Foram quatorze anos rodando o mundo até que, 1946, se deixou seduzir pela Bahia. Viveu na cidade do São Salvador até a morte. Encantou-se. Achava ser o candomblé a fonte de vitalidade do povo baiano. Quis conhecer a matriz. Foi à África. E descobriu de novo o mundo. O seu próprio. Verger conduziu mensagens, objetos, informações e sobretudo imagens entre as duas margens negras do Atlântico. África e Bahia. Nas terras iorubas, renasceu. Recebeu o nome de Fatumbi: nascido de novo graças ao Ifá. Iniciado na Bahia, consagrado na África. África e Bahia. A dupla face de Verger, certo? Não. Praticamente oculta na incensada obra de Fatumbi, a produção dele nas terras de Pernambuco é enorme.Menos caudalosa quanto a baiana. Mas tão importante quanto. Ainda espera ser descoberto pelo público o olhar pernambucano de Pierre Verger. “Não sabemos exatamente quantas. Mas ele produziu muitas imagens em Pernambuco”, diz Carlos Trevi, presidente do Instituto Cultural Real, onde até o dia 20 de novembro, no Recife, a exposição “O Brasil de Pierre Verger” traz parte da produção do francês no Estado. Trevi deu início a uma negociação, ainda preliminar, com a Fundação Pierre Verger para a produção de um livro com o registro pernambucano do fotógrafo que virou babalaô. “Temos um livro chamado ‘Retratos da Bahia’. Há um tempo, alimentamos a idéia de produzir um ‘Retratos de Pernambuco’”, revela Alex Baradel, curador da exposição e responsável pelo Departamento Fotográfico da Fundação Pierre Verger. Antes de morrer, Verger deixou nada menos do que 62 mil cromos em posse da fundação com o seu nome. Sob catalogação, acredita-se que pelo menos 2,5 mil imagens tenham sido feitas em Pernambuco. “Esse trabalho é praticamente desconhecido. Mas é muito importante. Pernambuco é, depois da Bahia, o lugar no Brasil mais importante na obra de Verger”, diz Baradel. Em 1947, depois de se fixar na Bahia, a vocação de viajante trouxe Verger a Pernambuco. Ficou seis meses seguidos viajando pelo Estado. “No Recife e no interior do Estado, ele se interessou praticamente pelos mesmos temas que encontrou e retratou na Bahia”, comenta Déa Márcia, produtora da exposição. Centrou fogo em sua produção pernambucana neste período. Depois, só voltou esporadicamente. “Depois que volta do Recife para Salvador, Verger ganha a bolsa que o leva à África e, a partir de então, vive praticamente entre o continente e a Bahia, idas e vindas constantes”, comenta Baradel. Fotógrafo, ele começa a escrever suas primeiras pesquisas neste momento. Não gosta da palavra, mas vira etnógrafo.

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L iteratura Romance de Homero Fonseca reposiciona o cinema na ficção Fernando Monteiro

Na boca do povo

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cinema tem aparecido muito pouco na literatura – e não só no Brasil. Para a extensão da sua influência (e talvez fosse acertado se falar até mesmo numa “onipresença” do cinema no século que foi o dele: o vinte, cinematográfico até a medula dos anos de celulóide & glória), seria de se esperar que a narrativa literária acusasse mais a marca da tela, o mundo da sala escura iluminada por um quadrado de luz que nunca foi inteiramente mudo, a não ser naquela exibição, inaugural, no Grand Café (número 14 do boulevard des Capucines), em 28 de dezembro de 1895. Foi isto o que se comemorou, há cerca de doze anos: a primeira exibição – realmente pública – da engenhoca dos irmãos Lumière, “Le cinématographe”. Desde então, é o que se sabe: o cinema ultrapassou, de muitíssimo, o vaticínio de um dos dois franceses originários de Lyon (“este nosso ‘Cinématographe’ é interessante, mas sem muito futuro”), inventores pequeno-burgueses que não poderiam (?????) nem o cinema digital de agora nem o romance “Roliúde” de Homero Fonseca. Que livro bom danado. A gente lê de uma sentada – se tiver tempo, praia e silêncio – e ri sozinho das presepadas de “Bibiu”, que é um personagem de carne e osso (mais osso do que carne) e não da argila armorial que fez o Quaderna de “A pedra do reino” se tornar, recentemente, uma super-estilizada figura pedante na mini-série global que Luiz Fernando Carvalho dirigiu como se quisesse se tornar o Glauber Rocha da Mitologia de Emergência que o grosso romance pretendeu fornecer para a nossa cultura. “Roliúde” não tem tais pretensões. Pelo contrário, comete logo um crime de lesa-majestade armorial: elege um bando de filmes americanos que ficaram no nosso consciente (para não falar do sub) e, divertidamente, faz com quem passem pela máquina da imaginação do seu principal personagem, numa espécie de “Bibiumatographe” que “lasca” todas as obras mais conhecidas, vistas e revistas – do cinema internacional, principalmente – promovendo uma verdadeira antropofagia do enredo e das imagens de clássicos e “cults” populares, tudo gostosamente misturado com as aventuras pedestres do tal “contador de filmes” que fala como o Homem da Cobra. Homero gosta de cinema e de literatura. Mas, ele – o Homero daqui – “gosta” daquele modo isento de frescuras, e típico de quem foi menino de porta-de-cinema em dia de domingo, com “gibis” e pedaços de fita nos bolsos, para trocar e fazer negócio. Sem esse pré-requisito, talvez o seu romance “funcionasse” menos do que funciona – sem o ingrediente da necessária empatia para com o assunto de face e de fundo: as loucas aventuras da vida real de mistura com as maluquices das telas: aquelas de um tempo de fantasia desatada que foi, hoje, substituída por uma fantasia algo mecânica, justamente quando os recursos digitais abrem o sinal verde para a capacidade de imaginar mundos, criar outros e fazer disso tudo um universo imorredouro como o dos romances de um Jules Verne (o escritor tão querido, no Brasil, que se tornou “Júlio”, isto é, alguém como um tio velho contando histórias de vinte mil léguas submarinas, ilhas misteriosas e viagens ao centro da terra como metáforas até de viagens iniciáticas das antigas sagas modernizadas naquele tempo – o de “Júlio” Verne – da revolução industrial em marcha para transformar, definitivamente, o planeta que agora, infelizmente, pede socorro). Mas, nosso assunto não é a ecologia, e sim um romance nordestino, brasileiro e universal que atende pela alcunha de “Roliúde” – título que vem com “r” inicial, não tem o “h”, nem “y” e nem o “w”, e muito menos o duplo “o” da Meca da Sétima Arte glosada da mesma forma como os filmes se deformam na memória de “Bibiu”. Ali, tornam-se brasileiros e mais vivos e engraçados do que jamais o foram, projetados pelo facho de luz e poeira acima das cabeças fascinadas por Casablancas, Carlitos, King-Kongs e outros produtos da fantasia a que a literatura tem dado menos entrada do que poderia se esperar de autores formados também pelo cinema – como uma outra realidade, paralela e mais desejável do que aquela da qual mendigamos algumas experiências contadas, às vezes, num tatibitate de quem tem medo da própria voz. Pelo contrário, aqui está um livro ruidoso e alegre, vivo e luminoso. Ele nasceu com aquelas fanfarras da Fox, entre holofotes varejando um céu de Luiz “Lua” Gonzaga. A voz de Homero Fonseca soa como os urros do leão da Metro mostrando os dentes de uma ficção que tem tudo para ir, já-já, de volta para o cinema. Atenção, produtores pernambucanos e brasileiros: não durmam no ponto! Ou seja, não deixem que yy Hollywood compre os direitos de “Roliúde” antes de “vosmicês”...

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O que fazer quando o futuro da televisão, como a conhecemos, está em cheque?

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a angústia de viver agora um futuro que está passando por sua estação de trem, a televisão põe a mão no rosto e não vê aquilo que durante todo esse tempo estava na sua frente: o espectador. Alguém que agora, para desespero de muitos e alegria de outros, em lugar apenas de “espectar”, prospecta. É nele, e somente nele, que a TV pode encontrar alguma estratégia de tabuleiro para evitar derrubar seu rei antes da hora. E para aqueles que fizeram fortunas nessas últimas décadas com um modelo à Gutenberg, perder o jogo não é uma opção. Existem repostas, claro, e todas elas convergem para o mesmo ponto: o dono do botão e imperador dos índices de audiência, sua majestade, o Consumidor. Mas antes do sujeito, falemos do objeto: até 2011 o mercado acredita que o dinheiro investido em publicidades online dos Estados Unidos ultrapasse a soma depositada nos cofres da televisão de broadcast /// As seis maiores empresas que produzem conteúdo de vídeo para celular estão rindo à toa /// No final de setembro, a rede americana CBS anunciou a criação do Eyelab, um estúdio digital que vai produzir pequenos clipes no melhor estilo You Tube de ser /// No Brasil, a turma do “Fantástico” está em Pânico na TV! Enquanto o programa da Globo tomba em audiência um domingo após o outro, o humor de sensibilidade duvidosa do “Pânico” decola no mesmo bat-horário /// Ainda em nosso país emergente, a elite empresarial perdeu confiança na televisão brasileira segundo o Ibope. Na pesquisa feita este ano com 537 executivos de 381 grandes empresas nacionais, 48% dos entrevistados acreditam que as deficiências anunciadas na programação televisiva tendem a piorar. E sabem o que eles estão achando da internet? Hoje, 75% desses executivos a consideram satisfatória como mídia... não muito tempo atrás, esse índice era de 29%. Tem mais uma: o ex-futuro-quase-candidato-a-presidente dos EUA, Al Gore, levou o Nobel da Paz. E? E este é o segundo “troféu” que Gore levou neste semestre. E? O primeiro prêmio foi um Emmy (o Oscar da TV) pela Current TV, a primeira rede de canal a cabo online cujo conteúdo é 70% da casa, 30% do público. Gore é sócio desse canal. O Emmy foi pela recém-criada categoria de melhor serviço de “televisão interativa”. Termo que, convenhamos, parece ter sido inventado por ressentidos produtores de TV, empoeirados de suas relutâncias em admitir que, hellooooo, se não for interativa a partir de agora, é o fim da televisão como a conhecemos. Mercado publicitário, CBS, Mobile TV, Pedro Bial & Glória Maria, Vesgo & Silvio, empresários frustrados e, finalmente, Al Gore. Em comum, todos têm um foco: o consumidor ou, no caso de Al Gore, o eleitor (no final, as terminações dão no mesmo lugar). Pra onde o consumidor vai, os outros vão atrás. A questão é que estamos vivendo uma época do “o que o consumidor faz, nós os deixamos fazer, e lucramos com isso”. E se ele “vai”, vá com ele, e não atrás dele. Dê a ele um celular e uma conexão wireless e o mundo é pequeno para as possibilidades de vídeo. Quem são, portanto, esses novos sujeitos da TV que não mais se reconhecem em uma caixa retangular? Aliás, se fosse para ter uma forma agora, a TV podia assumir

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Carol Almeida

uma identidade circular, de mobilidade e construção participativa. Deixemos essa tarefa para a turma do design e voltemos à pergunta que não quer calar: quem, ó pai, quem? João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim, Lili e todas as quadrilhas conectadas não apenas à idéia de redes sociais online, como particularmente à idéia de mobilidade e participação ativa. As redes sociais permitem ao consumidor algo imprescindível que é o sentido de pertencimento, mesmo que este seja usado apenas para te dar a impressão e sensação de auto-suficiência de não pertencer a nada. “Pertença ao grupo dos que não pertencem a nada”, dizem então os verbos imperativos da publicidade. Por mobilidade, não precisa dizer que esta é resultado direto de avanços tecnológicos que, aos poucos, estão varrendo os fios de nossas salas e esticando ao infinito o cordão umbilical entre você e o plugue. Quanto à participação ativa, essa fica fácil de demonstrar. É como se alguém te desse um lápis e um mural em branco. Alguns esperam que você simplesmente não faça nada. Outros, como Al Gore, chegam à não muito difícil conclusão que você pode desenhar, riscar e assinar seu nome no mural. Este mural, no fim das contas, passa a “idéia” de que é de todo mundo e não é de ninguém. Mas saiba que sempre, sempre mesmo, as “idéias” têm donos. Em outras palavras, escritas originalmente no fim dos anos 60 por Marshall McLuhan, “o meio é a mensagem”. A televisão que, durante muito tempo, foi tomada apenas como meio, ou seja, o aparelho de TV, precisa lidar com a realidade de que antes de tudo ela sempre foi mensagem. Existem outros significados embutidos na palavra “televisão” que vão muito além do eletrodoméstico adquirido em 12 prestações. Características específicas do modo de fazer e editar imagens, ritmo, enquadramento, deixas para o próximo bloco ou capítulo. Porém, uma vez que se quebra a soberania do meio, a idéia de mensagem ganha novas proporções. O que seria então isso que hoje se toma por televisão? A pergunta pode render páginas e páginas de respostas prontas com uma compilação de guias técnicos e teóricos sobre as duas premissas básicas de qualquer um que já tenha estudado o assunto: o “quê” e o “como”. Volta-se então ao ponto inicial deste texto: faltou aos manuais de TV o princípio do “quem”. Isso aconteceu porque antes da internet o único “quem” que despertava interesse dos índices de audiência era uma massa homogênea e passiva. Pois “quem” é a resposta para o que a TV vai ser depois de amanhã. Não se fala aqui de uma revolução social ou democratização de qualquer coisa. Trata-se de um mercado “on demand”, de soluções para consumidores de verde-berilo ou branco-gelo, tudo com a “sua cara”, do “seu jeito”, feito “por você” e, para não perder mais um bordão, “para você”. A TV, em qualquer uma de suas plataformas de comunicação – entretenimento, informação ou educação – será a partir de agora resultado direto de seus usuários. Esse será o meio e essa será a mensagem. O passado é dos espectadores. O presente é dos “prospectadores”. Quanto ao futuyy ro, certamente ele não é do “Fantástico”.

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em precisa ir ao dicionário. Telespectador é o ser humano que assiste a televisão, ou seja, quase todos nós. Pois tenho uma boa notícia. Os milhões de telespectadores que hoje estão espalhados pelo mundo vão morrer muito em breve. Será um extermínio em massa. E todos vão comemorar o seu fim. Vem aí um novo consumidor de telejornalismo. Ele não vai se limitar a ficar na cadeira sendo bombardeado por frames e frames de informações. Vai querer participar. Por isso, pode encher o peito de orgulho. Você será co-autor dos principais fatos jornalísticos veiculados nas telinhas. É uma evolução importantíssima. É o equivalente ao seu nome assinar os créditos de encerramento dos principais telejornais das próximas décadas. Hoje a tecnologia é a ampulheta implacável que acelera a contagem regressiva para a queda da ditadura da telenotícia. Para quem vive no mundo das imagens, o megapixel é a descoberta mais libertadora dos últimos tempos. Ele é a vingança do videorepórter amador. Possibilita que a captação de conteúdo televisivo, principalmente notícias, não seja uma exclusividade de profissionais de TV. Saiba que até 2010 quase todos os celulares vão sair de fábrica equipados com câmeras acima de 5 megapixels, com potência suficiente para gravar fatos do dia-a-dia com qualidade tecnicamente aceitável. Vou descrever uma cena que será comum nos próximos anos. Você está na rua. Por sorte ou azar do destino fica diante de uma informação de interesse público. Basta apertar o rec do seu celular e captar a notícia. Depois é só enviar os dados pela banda larga do seu celular para as redes de TV. Um jornalista vai avaliar se a gravação é importante para quem está em casa. Se a resposta for sim, fique feliz. A sua videoinformação vai estar no telejornal. E estar no telejornal significa levar seu flagrante a milhares de pessoas. Significa também que sua videoinformação caiu na rede da multiplicação da notícia. Pode ser reproduzida por portais de internet, emissoras de rádio, jornais e revistas. O que vem por aí em termos de possibilidade de produção de conteúdo permite uma interatividade verdadeira. Não esta que temos hoje. Limitada a registrar opiniões, comentários ou somar votos dos competidores de reality show. A chegada do videoinformante não decreta o fim dos jornalistas de TV. Eles ainda terão um papel importante no relato dos principais acontecimentos do dia. Âncoras, editores, repórteres e produtores sempre serão fundamentais para garantir a apuração precisa da notícia, o compromisso em ouvir todos os lados envolvidos nos fatos, a análise do contexto e o acesso aos bastidores. Mas a contribuição do videoinformante vai deixar o telejornal mais plural. É como se as novas telenotícias fossem traduzidas através de um novo vocabulário, em que as sílabas dessas novas histórias do cotidiano fossem formadas pelos olhares, ângulos e vozes do cidadão. Essa mudança de prática não vem por acaso. É uma exigência do novo consumidor de informação. A internet formatou um modelo mais democrático de produção de conteúdo final. A geração wireless vai exigir que o seu dedo esteja presente na versão final da telenotícia. Quem não ceder, pode perder o jogo para os personalizados blogs, msns e orkuts da vida. É mesmo uma pena que a televisão que hoje está presente em 98% dos lares brasileiros tenha demorado tanto tempo para flexibilizar conceitos e admitir o compartilhamento de conteúdos. Em minha opinião, a inserção do telespectador na execução da notícia é tão revolucionária quanto a chegada da TV Digital e a convergência dos veículos de comunicação. Bem-vindo à redação.

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Fique certo: os milhões de telespectadores de jornalismo vão morrer muito em breve Beatriz Ivo

Alexandre Belém

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Fotos: Alexandre Belém

A internet, o melhor controle remoto televisivo Daniela Arrais

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uarta-feira, nove da noite nos Estados Unidos. Jack tenta, pela 197848ª vez, escapar da ilha onde caíram os sobreviventes do vôo 815 da Oceanic. Aterrorizados por ursos, criaturas que emanam barulhos esquisitos direto da selva e, claro, pelos “outros”, o time composto por personagens como Kate, Locke, Eko e Hurley se desdobra em inúmeras aventuras para sair dali. No sofá, o telespectador assiste a mistérios infindáveis, que só têm data prevista para serem solucionados quando a série chegar na sexta temporada, em 2010. Manhã de quinta-feira no Brasil. Na internet, usuários fazem download do episódio, já com legendas em português. Em vez de esperarem a Globo, a Record ou o SBT comprarem os direitos de exibição de séries (ou canais pagos, como o AXN, exibirem episódios com uma diferença que chega a três meses – como foi o caso da terceira temporada de “Lost”), internautas modificam o consumo de programas de televisão. E o que é melhor: sem pagar nada por isso. Com base na cooperação mútua, usuários se articulam em sites para fazer downloads (transferência de dados de um servidor para um computador local) e uploads (o contrário – transferência de dados de um computador local para um servidor) de suas séries preferidas – outros ficam responsáveis pelas legendas. Um dos softwares mais usados é o BitTorrent, que centraliza e direciona as informações de milhares de microcomputadores. Funciona assim: uma espécie de rastreador acha vários arquivos, que são “quebrados”, ou seja, divididos em pedaços para facilitar a transmissão. Enquanto um usuário baixa a primeira parte, o outro faz o download da última – quanto mais gente compartilha arquivos, mais rápida fica a velocidade. Quando a transferência termina (e os dados ficam disponíveis automaticamente para outro internauta), o programa junta todos os pedaços em um arquivo único, que fica pronto para ser visto. O ritual já é rotina para gente como a advogada Eduarda*. Ela resume os motivos que a levam a deixar o computador ligado 24 horas por dia, sete dias por semana. “As séries demoram a ser exibidas na TV, quando o são. Algumas vezes os canais editam as cenas, alterando o conteúdo original, distorcendo a história, ainda que minimamente (a Warner dez isso com a primeira temporada de ‘The l word’, por exemplo)”, explica. “E assistir na TV significa estar disponível no momento em que a série vai ao ar, tendo que agüentar os intervalos comerciais. Por mais que eles sejam curtos na TV a cabo, não deixa de ser uma perda de tempo”, completa. O jornalista Luiz*, que não agüenta esperar meses para assistir aos episódios de “Lost”, série que, segundo ele, “deixa o telespectador intrigado/curioso”, acha que ao fazer download está contribuindo para a pirataria. “Mas isso é o preço que os canais pagam por não tratar os telespectadores de forma igual em todo o mundo. Por que não passam ‘Lost’ aqui junto com os EUA?”, questiona. “Eu, como outras pessoas, não quero ficar dependendo das emissoras para ver minhas séries favoritas”. Para quem quer entrar nessa e tem medo de ser punido sob acusação de pirataria, um consolo: o monitoramento dos usuários, em sites como o supracitado BitTorrent, é difícil, porque mesmo que um computador seja retirado da rede de downloads, sobram outros milhares para fazer a ponte... Sorte dos “novos espectadores”, que trocam a televisão pelo computador e podem ter acesso ao conteúdo que quiserem, no momento que desejarem. “O perfil desse telespectador (se é que ele ainda pode ser chamado assim) que baixa e assiste a séries estrangeiras é diferenciado. Em regra, este contingente está mais sintonizado com cultura pop, com entretenimento, tem mais urgência por informações, conhecimento em informática e língua estrangeira. É um perfil de consumidor mais impaciente e ansioso”, define Eduarda. yy

* Os nomes foram mudados a pedido dos entrevistados.

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Como a legislação brasileira precisa entrar em sintonia com a nova TV

Luiz Carlos Pinto

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menos de dois meses do início das transmissões do sinal da TV Digital no Brasil, o modelo de implantação dessa tecnologia passa por mais um decisivo capítulo. Espera-se que desta vez a sociedade civil não saia perdendo, porque a história recente da rádio-transmissão no país mostra o contrário. O que está em debate neste momento é a possibilidade de o modelo incorporar um sistema anti-cópia, com o argumento de que assim a produção das grandes redes de televisão – leia-se SBT, Globo, Record, Rede TV e Bandeirantes – estará protegida da pirataria. Essa possibilidade é nociva principalmente porque criminalizará quem fizer a cópia de um programa com fins de uso pessoal ou educacional – o que está dentro do perímetro da lei de direitos autorais. Essa ameaça é reflexo, por um lado, do aumento das restrições à fruição de bens imateriais e da intensificação das regras de proteção à propriedade intelectual, que tomaram ares quase fascistas desde mais ou menos a metade do século 20. As possibilidades de cópia geradas com o acesso mais e mais barato a tecnologias digitais intensificaram esse processo. A tal ponto que governos e indústrias em escala mundial restringem intensamente o compartilhamento de bens imateriais utilizando-se das leis e de tecnologias para isso. Mas essa ameaça também reflete, por outro lado, a relativa anulação da política, projeto político que marcou os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso e que foi identificado pelo sociólogo Francisco de Oliveira em 1996. Esse projeto, entranhado na onda de privatizações do sistema Telebras, colaborou para intensificar ainda mais o já muito concentrado setor das comunicações através da participação sem limites acionários de empresas de capital transnacional em empresas nacionais e de participações cruzadas dos setores de TV a cabo, nas operadoras de telefonia celular e de telecomunicações via satélite. Aliás, a concentração no setor da comunicação por rádio-difusão no Brasil se dá pela existência de grandes blocos econômicos controlados por grupos familiares, por elites políticas, por igrejas (sobretudo evangélicas) e pela hegemonia das Organizações Globo. A retirada das empresas estatais e a entrada do capital transnacional na década de 1990 não alteraram o quadro (hoje, apenas sete grupos empresariais dominam mais de 80% do que é visto e ouvido pela grande maioria da população brasileira). Enfim, a legislação no Brasil não dá conta do processo de convergência entre tecnologias e mídias por ser obsoleta e por uma esquisita disposição do legislador. Hoje, quando essa convergência nos bate à porta, o mesmo processo de anulação da política esteve presente na forma pela qual a sociedade civil foi alijada da escolha do modelo de TV Digital, pensada inicialmente como uma alternativa à concentração do setor (o que poderia se tornar viável através da reorganização do espectro eletromagnético). Muitas das organizações que há anos lutam por democratizar os meios de comunicação no Brasil já tomam a chegada da TV Digital como mais uma oportunidade perdida, tanto para refletir de forma mais equilibrada as particularidades de cada região, mas também como uma frustrante experiência para a indústria nacional. É por essas razões que as possibilidades de restrição à cópia precisa ser vista pela sociedade civil como mais uma ameaça ao acesso a informação e conhecimento, com o que a concentração do setor já colabora bastante hoje em dia. Nos Estados Unidos, onde o mecanismo anti-cópia não foi instalado, a questão foi objeto de intensos debates e mobilização. A pergunta que paira no ar agora é: se fosse uma novela, esse capítulo yy teria um bom ou um mal desfecho?

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C apa O videoclipe é um bom exemplo do impasse em que vive a velha televisão

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m lugar privilegiado para se observar as transformações no campo da televisão parece ser a MTV. A Music Television, que durante os anos 80 e 90 serviu como alicerce de estripulias visuais e de uma “lógica jovem” de fazer programação, chega a este final da primeira década dos anos 00 exatamente do mesmo jeito que começou: se reinterpretando. É fato que a MTV nasceu de braços dados com o mercado: fruto da expansão da TV a cabo nos Estados Unidos, da associação direta de corporações do mercado financeiro (American Express e variáveis) e do mundo do entretenimento (Warner e suas variações), a emissora serviu, sobretudo, como terreno para o lançamento de produtos das indústrias fonográfica e cinematográfica. Estando atrelada ao mercado, no entanto, a MTV usou como principal estratégia discursiva a filiação a matrizes estéticas de uma suposta vanguarda do vídeo. Vinhetas, MTV Art Breaks, videoclipes reforçavam uma proximidade visual da emissora com experiências da videoarte, ao mesmo tempo em que, deste conjunto, emergia uma certa ambigüidade: mercado e vanguarda, cifras e niilismo, controle e subversão. Era a chamada vanguarda pós-moderna, como já apontada por autores como E.Ann Kaplan e Andrew Goodwin: um discurso que patina entre a certeza e a dúvida, criando matrizes estéticas que não têm uma clara proposta, são incompletas, cheias de lacunas. Em síntese: mesmo gritantemente filiada ao mercado, a MTV, em seu discurso, adota uma certa postura blasé, despreocupada, “tô nem aí”. Chegamos, então, a um impasse. Os anos 00 trouxeram a emergência da cibercultura, da “vida líquida” imersa na internet e das inúmeras possibilidades de consumo “desintermediado”. Compartilhando músicas em programas como Emule ou Soulseek, assistindo a vídeos no YouTube, descobrindo novos sons no MySpace ou fazendo arquivos pessoais musicais no Last.FM, a televisão também se questionou. Se os baluartes da indústria fonográfica ainda se interrogam sobre os novos formatos de consumo da música, na televisão musical (e a MTV dá relevo a este segmento), a reviravolta é ainda mais repentina. Não é só a indústria da música que se transforma, mas também a indústria das mídias (como propõe enxergar Douglas Kellner).

Thiago Soares

Lembremos que a Music Television é uma emissora jovem. E que, na Europa e nos EUA, os adolescentes de até 17 anos já trocaram a televisão pelas muitas mídias que surgiram depois que eles nasceram. São os chamados digital natives, meninas e meninos que nasceram na época digital. Para eles, mobilidade e conectividade não são conquistas tecnológicas recentes: são parte natural do mundo, como os automóveis ou a Coca-Cola. Também para estes jovens, o peer, construção do conteúdo pelo usuário, tem uma ética mais forte do que os meios que emanam da radiodifusão. A confiança no que está sendo dito pela mídia é bem menor. Na encruzilhada desses impasses está a MTV: buscando novas formas de fazer televisão na era do peer, da “música líquida”, dos digital natives. Observando o último Video Music Awards, a maior festa de premiação da emissora, foi possível levantar algumas hipóteses sobre esta nova forma de apresentação do discurso televisivo. Num período caracterizado pelo fragmento (seja no que assistimos, de forma “partida”, no YouTube, ou nas músicas que ouvimos, faixa-a-faixa e recombinadas, no Ipod), a MTV fez um Video Music Awards cheio de atalhos. Primeiro, a festa foi feita num hotel em Las Vegas, com shows acontecendo em vários quartos, várias “janelas” (lembrou da interface do seu computador?). Depois, muito do que foi exibido, do show do cantor Kanye West numa mega-suíte presidencial, aos duetos de Justin Timberlake e do produtor Timbaland numa varanda, era fragmentado: veja aqui um pedaço, vá ao MTV Overdrive assistir ao resto (o MTV Overdrive é o YouTube da própria MTV). No mesmo MTV Overdrive, era possível ver vídeos postados pelos artistas que gravavam dos seus próprios celulares ou assistir a material inédito não exibido em sistema broadcasting. Na ocasião, parece que a MTV estava, mais uma vez, no cume de uma certa vanguarda pós-moderna: patinando na tentativa de encontrar um caminho em que o mercado parece encontrar uma certa utopia. Muita gente não gostou de ver as coisas assim: fragmentada, em partes. Mas, confesse, você não tem receio sempre que uma tecnologia nova aparece yy na sua frente? Saber +

Alexandre Belém

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Rodrigo Carreiro

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Mesmo sem querer, Truffaut se deixou conduzir pela sua criação

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ma série de cinco filmes de François Truffaut acompanhou o personagem Antoine Doinel, durante duas décadas, em todas as fases importantes da vida dele: infância, juventude, casamento e maturidade. Apesar de todas as obras (quatro longas e um média-metragem) terem sido filmadas em intervalos regulares, entre 1959 e 1979, a série nunca foi concebida exatamente como tal. Sempre que terminava um novo trabalho com o personagem, Truffaut imaginava que seria o último. No íntimo, porém, a história era diferente. A vontade de revê-lo logo se mostrava irresistível, e o cineasta arrumava uma desculpa para convocar o ator Jean-Pierre Léaud e imaginar um novo ciclo de aventuras para Doinel. Durante anos, as aventuras de Antoine Doinel permaneceram inéditas para as gerações mais jovens de cinéfilos brasileiros. Apesar de todos os quatro longas terem sido exibidos nos cinemas nacionais, apenas o primeiro – o clássico “Os incompreendidos”, título dos mais celebrados da nouvelle vague francesa, e considerado de forma unânime como uma das mais brilhantes e completas representações cinematográficas dos anseios e angústias da juventude – ganhou lançamento digital por essas bandas. A lacuna acaba de ser preenchida pela Versátil DVD, empresa que vem se especializando em resgatar clássicos obscuros do cinema europeu. Os filmes podem ser adquiridos de forma individual ou em uma caixinha de quatro CDs intitulada, muito apropriadamente, “As aventuras de Antoine Doinel”. Mas quem é de fato Antoine Doinel, poderiam perguntar alguns? A resposta simplificada diz que ele foi o alter-ego de Truffaut. No primeiro filme, de 1959, não há dúvida de que Doinel era exatamente isso. Assim como o personagem ficcional, Truffaut também havia crescido no seio de uma família pobre, que não se entendia e não lhe dava atenção. Ele também fora um delinqüente juvenil, cometendo pequenos furtos pelas ruas de Paris, e também passara uma temporada no reformatório. O que o diretor desejava, transpondo essas experiências para a tela, era traduzir para o mundo as idiossincrasias que fazem o universo adolescente só ser compreendido por aqueles que conservam a alma jovem. Nesse sentido, inclusive, o título nacional é até mais feliz do que o original, cuja tradução seria algo como “Pintando o sete”. “Os incompreendidos” foi o filme certo na hora certa. Em 1959, ano em que foi lançado, o mundo assistia a uma revolução branca comandada pelos... adolescentes. O rock’n’roll os ensinava que eles podiam ser ouvidos pelos mais velhos, mesmo que fosse na marra. “Acossado”, de Godard, também se beneficiava dessa descoberta, mas era um filme completamente diferente, mais agitado e amoral, e dirigido a um público mais velho. Truffaut mostrava mais amor pelos personagens e tinha um estilo de direção mais clássico, invisível, sem chamar atenção para si. O que ele fez foi contar a história de um jovem de 15 anos que ninguém – pais, educadores, parentes ou policiais – entendia. Antoine Doinel não é bom nem mau, é só um adolescente. Truffaut contou essa história com uma gigantesca dose de carinho pelo personagem. Queria tornar Doinel e seus colegas íntimos do público, amigos, pessoas por quem sentimos afeto, gente que queremos bem. Queria fazer dele o protagonista de uma série de vinhetas que, reunidas, compunham uma espécie de poesia do cotidiano. A mesma estratégia foi seguida à risca nos filmes seguintes. “Antoine e Colette” (1962), um média-metragem de 30 minutos, foi concebido inicialmente como um de cinco segmentos criados por jovens cineastas europeus para um projeto coletivo sobre o amor. O retorno de Antoine foi um sucesso. O menino ansioso que amava Balzac havia se transformado em um jovem amante de cinema que tentava conquistar a primeira namorada aproximando-se primeiro dos pais dela – um movimento instintivo absolutamente coerente para um personagem que, no filme anterior, se ressentia justamente do amor dos pais. Aos poucos, Doinel ganhava vida própria, e deixava de ser um mero alter-ego, sem no entanto deixar de sê-lo completamente. O ator que o interpretava, Jean-Pierre Léaud, também trouxe muito de si para Doinel. O personagem virava um amálgama de ficção e realidade, uma espécie de repositório de memórias afetivas justapostas, em séries de vinhetas agradáveis, a observações de Truffaut e Léaud sobre a vida e seus percalços. Se o diretor não tivesse morrido jovem – em 1984, aos 52 anos, com um tumor no cérebro – é bem provável que tivesse brindado o público com pelo menos um retrato do personagem na velhice. É curioso, porém, perceber que parte dos fãs de Truffaut, bem como a maioria da crítica internacional, cansou da série ainda no terceiro exemplar, o maravilhoso “Beijos proibidos” (1968). Nele, Doinel já é um adulto. O diretor francês acompanha sua vida com humor e delicadeza. Amante de literatura, o rapaz é libertário e descontraído como o filme – um horror para gente pragmática. Doinel não pensa no dia do amanhã e desfruta cada instante. Viver, para ele, é estar perto de belas mulheres e poder ter um cantinho onde possa ler e escrever sossegado. O filme o acompanha em uma desastrada série de empregos (soldado, porteiro de hotel, detetive particular) e o mostra construindo os primeiros relacionamentos afetivos, com uma namorada adolescente (Claude Jade) e com a mulher do chefe (Delphine Seyrig). Talvez por ter sido realizado apenas dois anos depois, um período de tempo relativamente curto, “Domicílio conjugal” (Domicile Conjugal, França/Itália, 1970) foi recebido com frieza, e ganhou a fama de ser o longa-metragem mais fraco de todos aqueles que contam com Antoine Doinel. Uma fama injusta. Pode-se argumentar que Truffaut voltou rápido demais ao personagem, e que um espaço de dois anos não registra mudanças suficientes na vida de uma pessoa para justificar uma nova história sobre ela, mas a verdade é que “Domicílio conjugal” flagra Doinel em uma fase bastante diferente daquela vista no filme anterior. Ou melhor, diferente no aspecto íntimo, pois ele continua sem conseguir se adaptar a nenhuma atividade profissional, sempre flutuando em empregos esdrúxulos (tintureiro de flores, manobrista de navios em miniatura). Aqui, porém, o casamento já não é mais novidade. Christine dá aulas de violino para sobreviver, e espera um bebê, enquanto Doinel flerta com uma mulher japonesa (Hiroko Berghauer) e inicia, sem querer, uma crise. Como acontecera no filme anterior, a atmosfera é de crônica leve, sem uma história propriamente dita. Truffaut costura episódios casuais do cotidiano do casal, amarrando-as com uma atmosfera afetuosa e poética, e insere no filme elementos autobiográficos (Truffaut tinha uma tia professora de violino e um vizinho obcecado em conseguir tingir flores com tonalidades de vermelho cheias de vitalidade) e coadjuvantes fascinantes, como o rapaz cabeludo que pede dinheiro emprestado a Doinel a cada vez que encontra com ele na rua. Há de se louvar, também, a coerência com o passado do personagem, um elemento que nos ajuda a reconhecer nele alguém de carne e osso, um amigo, alguém que não demoraremos a ver de novo. Isto é raro no cinema, e também muito bom. “Amor em fuga” (1979) também não foi bem recebido pela crítica internacional. Reza a lenda que Truffaut só o dirigiu porque o fracasso do filme anterior (“O quarto verde”) o havia deixado à beira da falência. Retornar ao personagem seria, para o diretor, uma maneira de garantir a sobrevivência financeira e a continuidade da carreira cinematográfica. De qualquer modo, ao manter inalteradas a estrutura narrativa em forma de vinhetas e a atmosfera lírica que rodeia o personagem, o cineasta francês providenciou não apenas uma despedida digna para ele, mas também momentos de regozijo para os fãs, que podiam de deliciar com a chance de espiar, por exemplo, o reencontro de Doinel com a primeira paixão de adolescência, a mesma Colette do curta que leva seu nome. Os cinco filmes podem ser vistos isoladamente, sem qualquer prejuízo. Conferido em ordem cronológica, porém, o conjunto insere o personagem dentro de um contexto muito mais amplo e complexo, que transcende a ficção porque supera o tradicional formato do arco dramático clássico (conflito>resolução>fim da história), transformando este arco em algo parecido com uma estrada sinuosa, com picos e vales, altos e baixos – mais parecido com a vida como ela é. Os mais perspicazes perceberão como esta imagem metafórica da estrada sinuosa se ajusta bem à principal característica do personagem – o apego ao instante, ao imediato, ao aqui e agora. “As aventuras de Antoine Doinel” não é só um conjunto de bons filmes, mas uma lição de vida. yy

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I nédito

José Teles

E Brigitte fez beicinho

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Rivoli, Albatroz e Coliseu, em Casa Amarela, Atlântico, no Pina, Cine Boa Vista, Politeama, Soledade, estes na Boa Vista. Central e Ideal, em Afogados, Torre, na Torre-Madalena. Olympia, em Beberibe, Brasil, no Cordeiro, e os grandes, do Centro: Moderno, Trianon, Art Palácio, São Luís. Podia assistir a um filme diferente todo dia. Na cidade do interior, onde nasceu, só havia uma sala de cinema. Geralmente um filme passava a semana inteira. Só mudava aos sábados, quando começava também um seriado. Sem deixar de lembrar que os filmes chegavam com atraso, quando chegavam. “E Deus criou a mulher”, só passou no Cine-Teatro Paternon no final de 1960, em novembro, por aí. O filme era de 1957. E até que não demorou. Muitos nem chegavam lá. Seu Miguel, o dono do cinema, preferia os mais antigos por serem mais baratos. Viva comprando latas e mais latas de filmes dos anos 40, alguns mudos, que repetia quando não alugava nenhum novo. Seriados também. Possuía vários. “Os perigos de Nyoka”, “Jim das selvas”, “Flash Gordon”, “Zorro”, “Durango Kid”, “Capitão Marvel”. Passasse o que passasse, eu nunca deixava de ir. Fazer o quê? A única diversão da cidade era o cinema, afora parque de diversão, que se montavam por qualquer motivo. Até no aniversário de quinze anos da filha do prefeito, montaram parque. Eu nunca fui de parque, nem quando criança. Nunca fui de me juntar com os outros, de me dar com os meninos. Mãe e pai insistiam pra que eu saísse, jogasse bola, brincasse de pega, barra-bandeira. Não tinha jeito pra isso. Sempre fui muito envergonhado, não sei a razão. Sou até bonito. As moças dizem isso. Mas a timidez é a minha derrota. Meus pais não foram. Meu irmão, um que vive em São Paulo, muito menos. Se nasce assim, pronto. Brigitte Bardot, desde que viu “E Deus criou a mulher”, virou paixão. Veio para a capital a fim de ficar mais perto dela. Modo de dizer, claro. Havia mais cinemas, passavam todos os filmes de Brigitte, e nas bancas se podiam comprar revistas sobre cinema, com artigos, fotos, tudo sobre Brigitte. Tinha três caixotes com recortes, no quarto da pensão. Nas noite que lhe batia a insônia tornavam-se seu passatempo. Admirava também outras atrizes. Grace Kelly, não podia negar, era mais bonita. Porém de uma boniteza tão perfeita que não se dava nem sequer para se sonhar com ela. Já havia ousado fantasias com Grace Kelly, mas não iam muito longe. Linda demais, distante demais. Silvana Mangano, Gina Lollobrigida também faziam parte de suas preferências e devaneios. Lolo, quem havia de dizer, viu ao vivo, quando ela passou pelo Recife. O avião que a trazia fez escala na cidade. Ia para Buenos Aires. Era adolescente, veio com uma tia, só por causa da atriz. A tia também era fã. Felizmente. Gina Lollobrigida deu uma descida, veio até o saguão do aeroporto, se deixou fotografar, até riu para os fãs. Mas em pessoa, Lollobrigida não lhe pareceu tão glamurosa quanto no cinema. Pelo contrário. Abigail, uma moça que trabalhava como professora no seu interior era a cara de Lolo, todo

mundo dizia. Com a vantagem que Abigail era mais boazuada, mais violão. Um peixão. Lolo lhe pareceu meio franzina, pálida. Se bem que viu a atriz por pouco tempo. Pouquíssimo. Quando souberam dela, surgiram curiosos de todos os lados do aeroporto, os guardas levaram a atriz, mal ela apareceu, para uma sala até o avião levantar vôo novamente. Vi também Silvana Mangano, e aí eu já morava no Recife, vim só ao aeroporto. Muito bonita, mas de uma beleza que intimidava os homens. Silvana Mangano recendia a sexo Eu nunca teria coragem de abordar uma mulher assim, nem se não tivesse esta timidez que tenho. Vi também Bat Masterson, Gene Barry o nome do sujeito. No Clube Português. Não era fã nem nada. Via na televisão da pensão o seriado. Assistia por assistir. Fui para o show de Bat Masterson por curiosidade. Só. Quer saber o que achei? uma merda! Muito melhor na TV, e já não era lá estas coisas. Brigitte, deu no jornal, também viria ao Recife. Viria não, seu avião, assim como o de Lollobrigida, faria escala no Guararapes. Naquele início de janeiro de 1964, a loja A Girafa ainda estava em balanço. Ainda mais com aquela loucura de preços nas alturas, a carestia obrigando remarcações quase todo dia. O Recife estava que era uma confusão só. Camponês desfilando com foices pelas avenidas. Nas ruas lutas da polícia com estudantes. Greves a dar com o pau. Um frege. Mas ele não perderia Brigitte. Antes perdesse o emprego. Não deu nem satisfação a seu Manoel, o chefe da seção. Trabalhou nervoso. Era seu dia de plantão, pra remarcação, que no dia seguinte haveria liquidação de mesa, cama e banho. Disse que iria jantar, pegou um ônibus e rumou para o aeroporto. O vôo chegaria por volta das onze da noite. Não apenas ele tinha tido ido ver a francesa. Umas duzentas pessoas encontravam-se no Guararapes para ver BB. A imprensa também, muito jornalista. A demora para o avião aparecer, aumentava sua ansiedade. Brigitte Bardot, a BB, quem acreditaria, ele iria ver em pessoa. Que não lhe desse a decepção que lhe dera a outra estrela, Gina Lollobrigida. O avião taxiou. gritos dos fãs. Pousou. A gritaria aumentando. Parou. Desceram alguns passageiros. Mas nada de Brigitte. O avião iria para o Rio de Janeiro. Brigitte Bardot estava lá dentro com o namorado, um tal Bob Zagury. Um brasileiro. Se é que fosse mesmo brasileiro, com um nome daqueles! O tempo passava e Brigitte que é bom, nada. Os repórteres foram até o avião. Ouvi, no telefone, no balcão de uma companhia aérea, um jornalista ligando para a redação. Contou que havia conseguido entrar no avião, disfarçado de comissário de bordo. Achou Brigitte baixinha e chata. Disse que ela se recusava a descer. Queria dormir no ombro do namorado, o tal Zagury. O tempo passava, e nada.O pessoal começou a gritar: “Brigitte, Brigitte, Brigitte. Desce, desce, desce!” Eu também gritei. E não havia de? Brigitte era primeira sem segunda. Mas ela nem aí. Deu até no jornal: “Brigitte fez beicinho e não desceu no Recife”. O avião começou a se mover na pista. Ia embora. Sem que se visse Brigitte. Começaram as vaias, que se intensificaram a medida que o avião corria na pista. decolou debaixo de vaias. Eu não vaiei. Tinha mais era vontade de chorar. Afastei-me dos fãs, e fui interpelado pelos repórteres. Dois. Um bateu meu retrato. Outro me perguntou o nome. Disse-lhe: “Francinaldo Siqueira”. Quis saber se eu estava no aeroporto por causa de Brigitte. “Brigitte, eu? E é ruim! Foda-se Brigitte”, falei alto. Me olhou espantado: “Meu amigo, olha o respeito, olha o respeito!”. “Foda-se Brigitte”, repeti, me dirigindo para a saída do aeroporto.

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