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Foto: Alexandre Belém/Concepção: Jaíne Cintra
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I néditos
EDITORIAL Quem está fazendo a novíssima literatura pernambucana? A pergunta incômoda circula em todos os lugares porque, com a modernização da Imprensa, os suplementos literários foram suprimidos e, em conseqüência, prosadores e poetas perderam os seus espaços. Por isso, o Pernambuco caiu em campo, através do jornalista Alan Luna, para constatar, nas e páginas, que há muitos grupos de escritores no Estado, impedidos de publicar pela segregação do silêncio.
Fazenda
sexta sétima
Cisterna abaixo descem os sonhos na lata presa a uma corda. Entre moleques risonhos, a vida sobe: cheia até a borda.
quarta
quinta
A Venezuela é o tema de Gustavo Tibiriçá, na página. Mas a polêmica se acende, ainda mais, no artigo de Haymone Neto, na página, em que se discute a regulamentação daTV por assinatura. O problema central está na determinação do Governo Federal em conceder dez por cento da programação às produtoras independentes. Pode ou não pode? Deve ou não deve? Eis a questão. No quesito das polêmicas, ainda outra: a qualidade dos filmes premiados pelo Oscar, numa análise de Rodrigo Carreiro, na página. Sem esquecer a matéria do historiador Leonardo Dantas Silva, na e páginas, sobre a planejada vinda de Napoleão Bonaparte para Pernambuco. Na página, a jornalista Fabiana Moraes, recém-chegada da Espanha, comenta a onda antiimigrante no país, num texto cheio de ironia, como é a marca do Pernambuco.
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décima décima-primeira
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GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos PRESIDENTE Leda Alves
VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto
DIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses
Eugenio Montale
Tempo exíguo
Boa leitura Raimundo Carrero (Editor) rcarrero@bol.com.br
“Al confronto la gioventù è il più vile degl’ inganni.”
O Saber + trata de tema no mínimo curioso: a volta da boemia literária, no Recife, com a reabertura do Bar Sovay, em pleno Bairro do Recife, de tantas farras e declamações. E com gosto de saudade. Nas páginas centrais o Pernambuco inaugura um caderno dedicado à literatura produzida no Estado, com ênfase nos novíssimos. São poemas e contos inéditos que saem do silêncio e invadem os olhos dos leitores.
SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão DIRETOR INDUSTRIAL Ricardo Melo
EQUIPE DE PRODUÇÃO Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Aluísio Ricardo
GESTOR GRÁFICO Júlio Gonçalves
Emergem do chão vívidos caminhos: minha face é o lago onde os dias se contemplam.
terceira
Na casca das águas tatua a verdade mais secreta: no coração dos homens as horas batem.
Mas este jornal ainda oferece um amplo painel para discussões e debates noutras matérias, a exemplo do artigo de Geórgia Quinpágina, assunto aparentemente tas, que aborda, na simples mas surpreendente, sob a perspectiva antropológica: a barba, que exerce tanta atração. A própria articulista concorda: nunca pensei nisso. Na página, o leitor encontrará tema também profundamente polêmico de Paulo Carvalho, que trata do fascínio das estrelas pelos extremos do prazer, considerando que “celebridade e comportamento suicidário sempre andaram juntos, pode-se objetar, mas o comportamento auto-destrutivo se desdobra inteiramente através de um écran revela sempre novas nuances (e limites)da perversão”.
A noite se ausenta. Uma estrela corre (volta à origem). Ó sol, descerra tua cortina, incita o mar com esporas afiadas.
Lenilde Freitas
Para sobreviver e serem lidos, que é da natureza de qualquer intelectual, os novos ocupam bares, investem na diversão, participam de concursos e promovem recitais, o que provoca divergências e polêmicas. Aline Arroxelas, por exemplo, do grupo Vacatussa, concorda que “essa experiência compartilhada acaba fazendo nascer novas possibilidades para quem está escrevendo”, mas Artur Rogério nem quer ouvir falar em grupo literário, alegando que os escritores reunidos em torno de Nós Pós “não necessariamente têm ligações estéticas, nem ideológicas, nem sexuais, nem financeiras, nada”.
EDITOR Raimundo Carrero
EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani
EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra
REVISÃO Gilson Oliveira
TRATAMENTO DE IMAGEM Roberto Bandeira
SECRETÁRIO GRÁFICO Militão Marques
Circulação mensal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro CEP 50100-140 Fone: (81) 3217.2500 FAX: (81) 3222.5126
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que causavam, sofriam discriminação social isolando-as. A feminilidade era questionada, fato que se refletia na sociabilidade. Em conseqüência desta exclusão social, nunca casavam-se. O fato é que a barba torna-se identidade indissociável de muitos homens. Diria mais, o uso da barba promove uma estética contundente. Não seria exagero dizer que alguns barbudos célebres, como Ernest Hemingway, Fidel Castro e mesmo o presidente Lula estabeleceram a essa característica certas particularidades fundamentais para a construção do nosso imaginário. Suas barbas são de domínio público, converteram-se em imagens-ícones. Estes senhores, cada um ao seu modo, atestam significados relevantes que ganham dimensão ante o olhar da sociedade. Mesmo que provoque certa simbologia ideológica-política, outros sentidos serão agregados a tais imagens como coragem, romantismo, superação e determinação. Sendo assim, a barba é como tudo no nosso corpo que promove a representação e reverbera a expressão de contextos sociais. Ou simplesmente, as próprias narrayy tivas que sulcam as rugas de nossos rostos.
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inceramente, nunca havia parado para refletir sobre os pêlos faciais. Em termos de imaginário, os “barbudos” sempre nos rondam desde muito cedo através de representações mais pueris como na imagem de Papai Noel ou na emblemática figura de Cristo. E então, nos recordamos de algum avô “envolto” numa terna barba branquinha, tão fofa que parece de algodão como as crianças costumam dizer. No entanto, conheci um livro português raríssimo, “A barba em Portugal”, de J. Leite de Vasconcelos, edição de 1925, que me fez adentrar no maravilhoso mundo por mim desconhecido da história do uso da barba. É uma verdadeira pérola para quem gosta de “sentir” livros antigos: o cheiro do passado, folhas amareladas com uma fina camada de poeira, tipologia elegante, os delicados detalhes da diagramação. Puro deleite. Contudo, o seu conteúdo é ainda mais prazeroso. Trata-se de um estudo de etnografia comparativa sob uma perspectiva histórica, com ilustrações sobre o universo da barba, suas representações visuais, os materiais utilizados no ato de barbear, assim como fotografias antigas que inventariam as mais criativas maneiras de domar com estilo tais barbas. Talvez, por não ter uma origem acadêmica, a análise do autor ganhe uma narrativa quase de almanaque. Repleto de referências da literatura sobre o assunto (monografias, enciclopédias, livros, artigos, etc.), Leite de Vasconcelos escreve de forma simples. E o que poderia tornar-se um texto datado ou anacrônico é absolutamente o oposto, revela uma linguagem dinâmica, envolvente e atemporal. Com a mesma simplicidade estampada no tíítulo, J. Leite de Vasconcelos nos coloca com tamanha sinceridade que o seu trabalho “é mais uma colecção de apontamentos, do que estudo definitivo”. Assim, com maestria, explica o que de fato a barba tem a “dizer” através de uma reflexão antropológica e simbólica. Por outro lado, também descreve sobre o ofício do barbeiro, as formas e cortes da barba e seus significados ao longo dos tempos, além de discutir a barba enquanto linguagem e sua presença na literatura. Há explicações bastante pitorescas. Antigamente, os antropólogos consideravam que o uso da barba era este-
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reotipado e que tinha um caráter de evolução e progresso. Diziam até, que “por isso certas raças não a adquiriram ainda, nem o sexo feminino a possue como propria”. Eça de Queiroz também é lembrado quando cita em sua obra “Ilustre Casa de Ramires” a figura monstruosa de um homem peludo, que alude diretamente à noção do homem selvagem, bárbaro – o qual ainda vagueia pelo estágio da natureza, bem distante da civilidade e da cultura. Esse teor maniqueísta prevaleceu em outros simbolismos da barba. De maneira que, fosse a barba clássica, bigode, suíças, cavanhaques e mais outras formas estranhíssimas que tiveram seu momento de glória no passado e hoje superadas, o homem que as possuísse seria associado a alguns valores culturais. Digamos que o próprio rosto projetava muitos símbolos, que insinuaria (sim, porque nem sempre a verdade está na cara) status social, virilidade, honra, seriedade e sabedoria. Nesse sentido, alguma imagem naturalmente vem à mente recompondo uma iconografia de filósofos, figuras eclesiásticas, a monarquia, a aristocracia, enfim uma elite de barbas fartas. Em contraponto, a tais aspectos positivos provenientes da barba, outras interpretações simbólicas podem sugerir tristeza, depressão ou profundo desgosto da alma. Assim, a barba seria um “termômetro” de sentimentos, reflexo de uma grande perda ou de determinada penitência. Como relatou o autor, em Açores (Portugal) era costume não fazer a barba por motivo de luto, deixando o rosto ser invadido pela dor do espírito. E as pobres mulheres que ainda hoje sofrem com os insistentes buços que causam mal-estar a quem os têm e a quem os vê. Relativizemos o olhar, mal-estar e certo constrangimento causado, principalmente, pelo padrão de beleza contemporâneo e pela rigidez em ser perfeita e bela para todo o sempre. No livro, pobres são as mulheres barbudas. Sim, barbudas. Segundo lembra o autor, Heródoto escreveu com admiração sobre a história de uma sacerdotisa da deusa Athena. Ao pressentir algum infortúnio, lhe surge espontaneamente a barba como forma de aviso ao seu povo. Ainda sobre as mulheres, outra história mais dramática é relatada sobre uma santa barbuda de origem portuguesa, Santa Liberata. O autor conta que a mulher para não se casar com seu pretendente, pede a Deus que a torne feia. Após o pedido ser realizado, o pai com vergonha e desesperado crucifica a própria filha. Claro, tornou-se mártir e milagrosa. A vida das mulheres comuns barbadas não era fácil. Estigmatizadas pelo estranhamento
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ilosofia CF rônica O neologismo suicidário explica o porquê das estrelas do entretenimento estarem tão fascinadas pelos extremos do prazer Paulo Carvalho
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os “Cadernos do subterrâneo”, você se depara com seguinte fórmula: “O homem, em todos os tempos e por todo o lado, seja ele quem for, sempre gostou de agir pela sua vontade e não como lhe mandavam a razão e a vantagem; entretanto, pode se seguir a vontade até contra a própria vantagem, e por vezes isso é positivamente necessário...”. É mesmo preferível não desejar a querer tirar a raiz quadrada de um capricho, comenta o personagem de Dostoievski, para quem continua valendo uma regra limite (que nunca chega a ser determinado enquanto há vida): o direito de querer para si a estupidez completa é uma (des)vantagem capital já que reafirma “nossa personalidade e nossa individualidade”. Será verdade? Há indecência no gosto exclusivo pela prosperidade. Sim, certamente há indecência. Mas se o mundo mais parece uma grande festa de suicidários (e não uma comunidade cingida pelo consenso racional e pela autoconservação), como traduz o filósofo Peter Sloterdijk, obviamente, cabe a nós perguntar em que programa se insere a repetição sistemática da fórmula subterrânea. O próprio conceito de “suicidário”, termo importado do francês, enriquece o debate sobre o ethos voltado ao nirvana, ao repouso, à morte, dando conta dessa atividade programática que apenas “tende ao suicídio” sem estabelecê-lo definitivamente. Busca-se a “saciedade do vazio, plenitude do nada absoluto” (F. Pessoa), mas sem a convicção de liquidar a própria vida. Nesse sentido, o suicidário é um “para-suicida” ou um “sub-suicida”, se é que isso realmente faz alguma diferença. Dos esportes radicais ao suicídio parcelado, midiatizado e celebrado de uma estrela qualquer; da bodymodification ao consumo de drogas. A estupidez feliz encontrase espalhada por todos os lugares, expressando-se pela crescente onda de riscos, realmente arriscados e autoconsentidos. “O que o homem precisa é só de uma vontade independente, custe o que custar e leve aonde levar esta independência. E sabe-se lá que diabo de vontade é essa...”, escreve Dostoievski. Mas ao contrário da fórmula sugerida por seu personagem (apoiada na fixação sobre o Eu), essa predisposição ao auto-sacrifício atua como vetor de embotamento das subjetividades: uma existência monacal, “independente”, solitária, voltada exclusivamente para si, não permite que a felicidade do estado de morte iminente seja solapado por algo que está além disso, pela realidade irredutível do Outro. Em “Além do princípio de prazer”, obra em que expõe o conceito da “pulsão de morte”, Freud afirma que o sentido da vida é dado pelo movimento que busca continuamente o repouso absoluto de todas as tensões, a descarga imediata da energia psíquica. Dessa maneira, estabelece-se uma tendência à repetição que motiva o retorno indeterminado à experiência de prazer submissa, alienada ao desejo do outro. Repare como a economia sintomática é algo amplamente difundido pela cultura midiática (over and over and over, the joy of...) e que a felicidade zen-budista postulada por essa cultura é sempre hipócrita por não retirar o sujeito da repetição mortífera, não o fazendo confrontar-se com as conseqüências geradas pela impossibilidade de realização ideal de seu próprio desejo. Revela-se, através das aventuras arriscadas, sacrificiais e mutiladoras, a necessidade de provocar artificialmente adversidades, como substituição à ausência de destino. O sujeito, indiferente e monocromático, “apenas” experimenta e recria os riscos a que a natureza outrora lhe havia imposto, num esforço para conservar a alteridade. Não se trata, aqui, do outro da sedução, do estranhamento inassimilável, mas construído por um “destino trompe-l´œil”,
Adelaide Ivanova
como define Baudrillard. Veja só como a imprensa tratou a morte do ator Heath Ledger: suicídio acidental, cogitouse. Ora, suicídio acidental não existe. Para quem se mata numa situação de risco que se desejou demasiado para si mesmo, não pode haver nuances entre o dolo e a má fortuna da morte. A dificuldade para atravessar a fantasia suicidária (“ele só tinha a intenção de pagar a sexta prestação de sua morte e não todas elas!”) é apenas a dificuldade de aceitar que o destino pode ocorrer, e geralmente ocorre, longe da observação, da virtualização e da produção artificial do acontecimento. Certamente nem o próprio Ledger admitiria que cometeu “um suicídio”, ao passo que na morte iminente da cantora Britney Spears, ninguém pode negar que comete-se o suicídio perfeito: encenado, assistido de perto e adiado ao infinito. A promoção midiática, numa exaltação inconteste do rosário suicidário (presenteísmo, niilismo, narcisismo, hedonismo...), redefine a economia do desejo através de outra questão: a autoviolência, cada vez mais, estabelecese como mediadora da experiência de realidade. Como esclarece o esloveno Slovoj Žižek, os atos de autoflagelação, do corte, do masoquismo desritualizado e da bodymodification são encenações cujo efeito não é inserir o sujeito na ordem simbólica, teatral. Trata-se, antes, de trazê-lo de volta à realidade corporal, numa tentativa de redominá-la, firmando o ego na dimensão da dor física em contraposição à angústia de uma existência vazia de sentido, artificial, amplamente midiatizada e teatralizada. Obviamente, numa tréplica, a dor física autoinfligida retorna à dimensão virtual através da promoção generalizada de estilos de vida arriscados (educação, práticas esportivas, consumo de bens, divertimentos...); através dos reality shows em geral; dos programas sadomasoquistas, da pornografia caseira, dos snuff movies; como também, mais profundamente, através de uma estética documental/ catastrófica com exemplos abundantes na fotografia, no cinema e na literatura. Isso porque o documental sempre remete primeiro ao autosacrifício de quem “esteve lá” para o registro e não, como se coloca com freqüência, à questão realidade/ficção. Não há grandes diferenças, portanto, entre um filme como “Cloverfield” e a cobertura do suicídio anunciado da cantora Britney Spears. Nos dois casos, subjaz à qualidade “mais verdadeira” (ainda que puramente ficcional) da captura, a angústia inerente às relações sadomasoquistas e a exaltação da própria morte. Veja bem que, nessa experiência fatal sobre si mesmo, o grande sacrifico é assumido pelos paparazzi (extensão vitimizada da curiosidade pública) e, não como se costuma supor, pelo “monstro” Spears (não reconhecer a alteridade – mexicana, muçulmana, louca... – permite que eu use o outro como objeto do meu gozo e o desumanize). Celebridade e comportamento suicidário sempre andaram juntos, pode-se objetar, mas o comportamento auto-destrutivo quando se desdobra inteiramente através de um écran revela sempre novas nuances (e limites) da perversão. “Talvez a imagem sádica definitiva, a de uma vítima que não morra de tortura, que possa suportar uma dor infindável sem a opção de fuga para a morte, esteja à espera de se tornar realidade”, escreve Žižek. A cantora Britney Spears e tantas outras celebridades “em vias de suicídio” seguem, assim, ampliando o horizonte da tortura autoconsentida, tanto no que diz respeito a nossa capacidade de lhes infligir o sofrimento, quanto a sua capacidade para suportar a dor. E não resta dúvida, Spears nunca esteve tão perto da felicidade, nem mesmo quem busca ansiosamente por novas notícias de seu colapso, angustiado com o desejo de uma masoquista, mas com a yy certeza de um inevitável final feliz.
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No hay nada, chamo
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eroporto internacional Simon Bolívar, 23:15, mais um brasileiro pousa na terra do petróleo. A emoção começa vinte minutos antes da aterrissagem quando o comandante do vôo anuncia: “Atenção, Srs. passageiros, gostaria de informar que a ponte que liga a cidade aeroportuária de Maiquetia até Caracas caiu! A travessia deverá ser feita pelas montanhas (ou melhor, as imensas cordilheiras andinas) à sua esquerda”. No desembarque, um taxista pega a minha mala e diz que me leva até a capital por uma pequena fortuna em cifras americanas. Topo! Eu, viajante solitário, chego à Venezuela com uma mochila nas costas, uma mala à tiracolo, poucos dólares no bolso, uma nação revolucionária para conhecer e o coração batendo na mão. Denis, o taxista, saca logo que sou estrangeiro. Digo que não tenho a moeda local. Ele se pronuncia “Tranquilo, Chico. Todo se puede hacer”. Ele é taxista e conversor internacional de câmbio, “pero solo euro y dólar”. O caminho pelas montanhas é transitado e vigiado por uma milícia de boina vermelha armada com faca, fuzis, revólver, espingarda ou qualquer outro arsenal bélico que lhe fazia questionar onde seria o próximo desvio para voltar ao avião. Quatro horas depois de ter cruzado a alfândega, a namorada de Denis (ela apareceu por detrás de um arbusto no acostamento e juntou-se a nós nessa odisséia) diz que eu pareço pálido (de medo!) e pergunta se eu quero parar para comer algo antes de entrar em Caracas. “Sí, sí, por supuesto”. O lugar escolhido era uma tasca, ou famoso barzinho de beira de estrada para nós brasileiros. Peço um leite para acalmar os nervos. “Leche no hay, Chico, en parte ninguna de Benêssuela”. Leite Ninho tampoco hay. O negócio é pedir aquela cerva de sempre, infalível para momentos de necessidade de uma experiência extracorpórea instantânea. Eles têm até cerveja brasileira. “Muchacho, dáme un vaso de cerbêssa Brahma, por favor”. Apaga tudo que veio antes. A viagem começa agora! Os arranha-céus de Caracas que ficam em meio a ruas largas com parques onde se respira o verde para tudo quanto é lado, e túneis subterrâneos que passam por debaixo das avenidas principais dão um ar cosmopolita à cidade. Ainda na madrugada, jovens perambulavam pela rua. Bares e restaurantes abertos para atender a demanda de uma freguesia notívaga e ávida pela boemia. Minha impressão do país estava mudando a cada esquina. Já não podia esperar para conhecer o atual epicentro do socialismo hispano-americano e conferir de perto o que a cidade oferece. Mas isso, depois de um banho, um lexotan e doze horas de sono completas. A capital venezuelana é uma metrópole como São Paulo, Nova Iorque ou Paris. Um verdadeiro mercado mix que tem de tudo para todo mundo. Não é à toa que o general Simon Bolívar tem seu nome nas avenidas, nas praças, na moeda e até no nome do país (República Bolivariana de Venezuela). Sua casa, conforme me disseram, é parada obrigatória para o eventual turista. O legal de grandes centros urbanos, como Caracas, é a locomoção no meio de transporte. O acesso aos museus, teatros, cinemas de arte é facilitado pela via ferroviária. O metrô é limpinho e lhe deixa em qualquer canto. Ao contrário dos ônibus que, como fui informado desde o aeroporto, em certos lugares no hay. Depois de passar dias e mais dias na maratona metrô/atração turística/metrô, descobri que tinha uma forma mais econômica que Mcdonald’s para o reabastecimento. Eram as milhares de padarias portuguesas espalhadas pela cidade que ficam abertas 24h. Em algumas eles vendem “arepa”, comida típica venezuelana, que se trata de um pão caseiro feito de milho servido quente e recheado com o que você quiser. Uma delícia se degustado com queijo, presunto e suco de laranja e econômico para estudante recifense, liso e usuário do passe-fácil. No cair do dia, o bom era dar um pulo na Plaza Venezuela. Lá se encontravam os estudantes, os poetas, os amantes, os chavistas, os opositores, todos se juntavam com o ideal comum de desfrutar a noite caraquenha. Nas tascas, me sentava numa mesa de chamos (tradução deles para “bróders”) e tinha agradáveis conversas com muita cerveja. Aqui, se você disser que é conterrâneo de Abreu e Lima, amigo do general Bolívar, você tem tratamento diferenciado. Perguntava aos meus novos amigos de copo onde eu podia encontrar uma miss Venezuela para mim. Eles riam ironicamente como se dissessem que isso era uma coisa que aqui também no hay. Numa ocasião, conheci la chica regional, equivalente à garota da Antarctica, cujo traseiro estava estampado em todos os outdoors e que se referia a mim sempre como “mi amor”. Nessa hora, já tinha superado todo o trauma do início e estava adorando a Venezuela. Não imaginava voltar. Mas, que me desculpem os cidadãos dessa terra de que tanto gostei. Preferi a Juliana Paes. Nos últimos dias de permanência, já sem a euforia do começo, curtia fazer um passeio pelas ruas e ver mais a estética da cidade. São nesses passeios, longe do frenesi turístico, que você conhece um povo alegre, simpático, receptivo e gentil que vive alheio a qualquer ameaça de guerra. Após tanta andada, descansava numa praça, comia uma AREPA e olhava a paisagem que sabe-se lá quando terei o privilégio de vê-la novamente. A viagem se completou quando dei de cara com o presidente Hugo Chavez, ex machina, profetizando pelas ruas de Caracas com uma caravana de seguidores e comemorando mais um ano da ditadura vermelha. Na despedida, troquei o telefone com os chamos e as chamas. Quando voltar, tenho casa pra ficar, uma cama para dormir e, o melhor, alguém para me buscar no aeroporto. Aproveitei os últimos momentos para comprar lembrancinhas como uma camisa com a foto do presidente, chaveiros, artesanatos e um boneco estilo Falcon do Chavez. Sim, o Hugo é também um ícone da cultura pop Venezuelana. O aeroporto dessa vez parecia menos amedrontador que outrora. Amigos foram me dar uma carona até o terminal de passageiros. Saí do país como Arnold Schawarznegger deixa uma das cenas de o exterminador do futuro: I’LL BE BACK. Na Venezuela talvez não tenha ponte, não tenha leite, não tenha ônibus, nem miss, mas o que fez da minha estadia na República Bolivariana especial foi la gente. yy Porque lá sim, hay companheiros que ficarão para sempre.
Alexandre Belém
As ausências que fazem da Venezuela um ótimo destino para um viajante solitário Gustavo Taribá
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O que pensam e quais são os planos da novíssima geração de autores de Pernambuco Alan Luna
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do livro bíblico do Eclesiástico que vem o termo “novíssimos”, designação dada aos últimos acontecimentos na trajetória de um indivíduo: a morte, o juízo, o céu e o inferno. Curioso que, no jargão literário, ele sirva para rotular gente que mal começou a trilhar os primeiros passos. É assim que normalmente são chamados os autores recém-descobertos ou ainda por se fazer descobrir dentro de uma tradição literária. Pensando bem, é até compreensível: não é a literatura, também, uma profissão de fé? O Pernambuco foi atrás dos que rezam por essa cartilha e caiu em campo para saber quem faz literatura hoje no Estado. Não é uma tarefa fácil. Agora mesmo, enquanto eu escrevo, enquanto você lê, a “nova literatura pernambucana” pode estar sendo forjada por um recluso qualquer inatingível. Se é impossível abarcar tudo, deve-se, então, fixar parâmetros; procurar os que dão a cara à tapa. Chegamos, assim, aos grupos. E, deles, ao Vacatussa (www.vacatussa.com). Fundado em 2004 por profissionais liberais, o coletivo tem o mérito de ter recolocado a literatura em pauta como um projeto... coletivo. “Essa experiência compartilhada acaba fazendo nascer novas possibilidades para quem está escrevendo”, acredita a advogada Aline Arroxelas, uma das integrantes da trupe. Seu colega, o publicitário Mário Lins, concorda: “Acho que o Vacatussa, além de ser importante pra mim, é algo que faz bem a todos os outros integrantes, aos nossos vários colaboradores e aos leitores. Até mesmo os novos grupos literários que surgiram depois do Vacatussa se beneficiaram, pois mostramos que existe, sim, um espaço a ser preenchido pela nova geração de escritores”. Entre as iniciativas surgidas de lá para cá, é possível citar o Nós Pós (http://nospos.blogspot.com), projeto que organiza encontros quinzenais, sempre em algum bar da cidade. Neles, além de autores lendo seus textos, pode haver exposições fotográficas, apresentações de dança contemporânea ou de música experimental. Mas — a tomar pelas palavras de um dos seus idealizadores, o estudante de letras Artur Rogério (http://vozesdantartica.blogspot.com) — é melhor não falar em grupo: “Não existe grupo. Os que se apresentam pelo Nós Pós, a priori, não necessariamente têm ligações estéticas, nem ideológicas, nem sexuais, nem financeiras, nada. Não existe essa idéia romântica de grupo, de intelectuais, de ‘paladinos das belas artes’. Talvez, a ligação que possa existir a partir de contatos nos eventos do Nós Pós tenha um caráter muito mais político do que estético. Aí sim, muito mais financeiro do que romântico. Muito mais prático e sóbrio” diz. Tal idéia parece ter como substrato o binômio popularização/profissionalização da literatura. “Saraus, recitais, isso tudo me parece, quase sempre, encontros de ‘poetas anônimos’, de viciados sem perspectivas, de artistas envergonhados que conseguem um mínimo de reconhecimento puramente passional entre ‘familiares’. Sempre quis fazer algo com uma dimensão maior. No ano passado, passei um tempinho em São Paulo e pude ter contato com o profissionalismo com que eles andam tratando a cultura literária”, explica Artur. A exemplo do Nós Pós, outros eventos franqueiam o palco aos novíssimos. No Centro de Cultura Luiz Freire (www.cclf.org. br), uma vez por mês acontecem as Quartas Literárias, em que jovens escritores — ou nem tão jovens assim — podem apresentar sua obra, dividindo espaço com shows, mostras de arte, manifestações da cultura popular, etc. Já o D’Improviso, cuja primeira edição aconteceu em fevereiro, pretende aportar n’algum bar da cidade a cada três semanas, reunindo leitura dramática de contos adaptados por atores e uma jam session musical. Por trás dessas iniciativas distintas, um elemento comum: a interface entre a literatura e outras linguagens artísticas. Diante de tal fato, questiono os entrevistados: a literatura já não se basta a si mesma? Ou estamos diante do vale-tudo da popularização? As opiniões se dividem.
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“Vejo como algo positivo. A literatura, por se realizar com elementos materiais simples, é muito versátil. Essas interfaces são o futuro da literatura, que se realiza retomando o passado histórico. Principalmente no nosso país, tão marcadamente oral e às vezes tão desconfiado de tudo que esteja ligado às idéias de ‘erudição’ ou da palavra escrita”, afirma Cristhiano Aguiar (http://cristhianoaguiar.blog.uol.com.br), um dos editores da Crispim – revista de crítica e criação literária (aliás, eis aqui outro grupo a que é bom estar atento - www.revistacrispim.com). Aline Arroxelas é um pouco mais cautelosa: “Entendo essa proposta de integração: a intenção, muitas vezes, é tornar a literatura mais fácil e acessível a públicos diversos. Mas impor essa ‘muleta’ acaba formando um público mal-acostumado e de opiniões fáceis. Assim como a música, por exemplo, tem uma instância própria para apreciação, e independe de outras formas de expressão para ser arte, a literatura deve ter um espaço exclusivo. Integrar essas expressões pode, ou não, ser um projeto; só não pode ser o único”. A favor dessa interface, diga-se que ela já rendeu ao menos um produto exitoso em termos de público: o CD JMB em Comuna, que traz “atentados poéticos” do escritor pré-pós-tudo Jommard Muniz de Britto (www.myspace.com/jomardmuniz) musicados pela banda Comuna (www.myspace.com/comuna e www.acomuna.com). No início deste mês, eles superlotaram o auditório da Livraria Cultura para lançar o álbum, arriscando um caminho possível para o encontro não só de linguagens, mas de gerações — o termo, aliás, não agrada ao guitarrista da banda, Ricardo Maia Jr: “Acho que essa coisa de idade, geração, é balela. A cabeça, o espírito da pessoa, diz mais sobre sua disponibilidade com relação aos jovens, aos velhos ou até às crianças”, teoriza. Voltando aos hibridismos, Artur Ataíde, também da revista Crispim, traz novos elementos à discussão: “A impressão que tenho é a de que os leitores são, sobretudo, os amigos dos escritores, sendo poucos os que transcendam essa esfera mais ‘privada’. A literatura, nesse sentido, já começaria ‘menos pública’ que outras formas de arte. Todos querem ser escritores, mas poucos querem ser leitores, a não ser dos seus amigos. Somos cada vez menos escritores e cada vez mais adolescentes em busca de algum reconhecimento. É claro que há gradações nisso tudo, mas acredito que seja essa a fórmula geral. Em suma: acredito que essa ‘privatização’ fragmentária da circulação das obras, a existência dessas comunidades fechadas em si, é um dos motivos para termos de pedir ajuda à música, à fotografia, ao cinema, etc., sob a pena de tais encontros ficarem fadados a não passar de um encontro de amigos”. Há, porém, quem veja o fato sob outra ótica: “Esse ciclo fechado sempre me incomodou um pouco, porque não atrai novos leitores nem faz o meio crescer. No entanto, a cena literária local talvez não estivesse fervilhando de novidades sem esse espaço seguro. Acho que o ciclo produtor/consumidor é, atualmente, uma necessidade para a sobrevivência da literatura local. Fazer com que ele se expanda e deixe de ser um ciclo é dever, sobretudo, dos novos autores”, acredita Mário Lins. Na expansão para além do “espaço seguro” é possível que se esbarre em novidades. “Daqui a alguns anos, cada vez mais vamos escutar a voz de escritores vindos de outros lugares, que não os da classe média convencional”, aposta Cristhiano Aguiar. Exemplo disso talvez seja a escritora Maria Aparecida Campos, 18 anos. Oriunda de Itacuruba, no Sertão do Estado, ela veio ao Recife se apresentar na última edição das Quartas Literárias após ganhar um concurso de poesias na escola (o que lhe rendeu também um mp4). Apesar disso, Cidinha (como se assina) diz que gosta mesmo é de romances. “Tenho vários prontos, entre eles ‘O inesperado amor’ e ‘Laços fraternais’”, diz. E talvez esteja nascendo ali, entre Floresta e Belém do São Francisco, a 480 km do Recife, a “nova literatura de Pernambuco”. É difícil prever. Mas eu nunca disse que era fácil. Saber+
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oa parte do prestígio do Oscar, a láurea mais popular da indústria do cinema internacional, se deve a eletrizantes disputas polarizadas entre dois grandes filmes lançados no mesmo ano. Nas oito décadas em que a premiação vem sendo concedida pela Academia de Artes Cinematográficas de Hollywood, vários confrontos deste gênero já foram registrados. Alguns deles se tornaram tão históricos quanto os mais lendários combates de boxe: “Como era verde meu vale” x “Cidadão Kane” (1942) e “Laranja mecânica” x “Operação França” (1972) são algumas das polarizações mais lembradas. A temporada de 2008 promete ficar gravada na pedra como o ano da briga encarniçada entre “Onde os Fracos não têm vez”, dos irmãos Joel e Ethan Coen, e “Sangue negro”, de Paul Thomas Anderson. As virtudes cinematográficas desses dois filmes transformaram a cerimônia deste ano em uma exceção. Como se sabe, amantes de filmes de ambição artística não costumam prestar atenção no Oscar, porque o prêmio é mais voltado para o cinema comercial, que se preocupa menos com a qualidade narrativa e mais com os lucros. Desta vez, contudo, os cineastas envolvidos na batalha são respeitados nos círculos especializados. Os três têm na cabeceira troféus ganhos no circuito dos mais prestigiados festivais europeus, onde trafega a nata do cinema autoral. Joel e Ethan Coen já foram coroados em Cannes (“Barton Fink”), tanto como diretores quanto como roteiristas. Paul Thomas Anderson tem um Urso de Ouro na estante (“Magnólia”), obtido no Festival de Berlim. Todos estão entre os poucos cineastas na ativa que podem ser chamados de autores. “Onde os fracos não têm vez” (No Country for Old Man, EUA, 2007) adapta para a tela um elogiado romance de Cormac McCarthy. Trata-se de um silencioso thriller surreal que realiza, em tom de lamento fúnebre, uma meditação triste sobre os excessos de violência do mundo moderno. A forma clássica como o filme é narrado, através de uma montagem que se apóia em longos silêncios e na justaposição de imagens simples, cria um subtexto metalingüístico interessante. “Onde os fracos não têm vez” também funciona como lamento da morte iminente da narrativa cinematográfica. O cenário da ação – as estradas semi-abandonadas da região fronteiriça com o México, pontuadas por motéis vagabundos – reforça ainda mais esta sensação de desesperança. A atmosfera permanente é de cansaço, de exaustão. A sensação de estar no fim da linha. Toda a ação gira em torno de uma negociação mal-sucedida envolvendo drogas e US$ 2 milhões. Por uma série de coincidências, as jornadas de três homens vão se cruzar em torno deste negócio frustrado. O soldador Llewelyn Moss (Josh Brolin) encontra o cenário de uma chacina, no meio do deserto, durante uma caçada. Ele descobre uma mala com o dinheiro, e decide mantê-la. A decisão põe em seu encalço o assassino profissional Anton Chigurh (Javier Bardem), um psicopata com cabelo de fã dos Beatles. Investigando o caso está o xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones). Os três se embrenham numa tripla perseguição que, como nos faroestes de Anthony Mann, tem mais a ver com a ética peculiar dos criminosos românticos do que com o dinheiro em si.
Os irmãos Coen e P.T. Anderson trouxeram de volta a personalidade em dois dos filmes mais fortes do ano Rodrigo Carreiro Não por coincidência, “Sangue negro” também é uma adaptação literária. Seu gênero veio do romance “Oil!”, escrito nos anos 1920 por Upton Sinclair. O roteiro de “Sangue negro”, escrito pelo próprio PT Anderson, transforma um afresco panorâmico da corrida pelo petróleo na Califórnia do começo do século XX em um impressionante estudo de personagem. O minerador Daniel Plainview (Daniel DayLewis) era apenas um rosto anônimo na multidão de maltrapilhos que chegou ao Texas, em 1898, em busca de ouro. Nos anos seguintes, ele desviaria seu foco para outro produto milionário. Enquanto se tornava um dos maiores magnatas do petróleo dos EUA, Plainview caía num isolamento de proporções colossais. A saga de ascensão e queda deste empreendedor obsessivo é o fio condutor do filme. Plainview é uma esfinge, um enigma. Ele encapsula com perfeição uma característica fundamental da cultura americana: a capacidade empreendedora extraordinária. Homem de tenacidade inabalável e energia inesgotável, o magnata é o tipo de sujeito que vê mais longe do que os demais. Daniel adota o bebê órfão de um empregado porque gosta da idéia de ter companhia, mas sobretudo porque sabe que uma criança pode ser útil para os negócios, dando-lhe um aspecto amistoso e familiar perante as pessoas humildes com quem negocia terras. Seu humor oscila terrivelmente; parece charmoso e afável num minuto, se torna rude e cínico no seguinte. Ele tem uma personalidade volátil e misteriosa. Para Plainview, o mundo gira em torno da obsessão por riqueza. Paul Thomas Anderson conta a saga de trinta anos deste enigma humano explorando, de forma magnífica, todos os recursos visuais e sonoros de que dispõe: a fotografia oscila, como o humor do personagem, entre ensolarados panoramas exteriores e escuras cenas de interiores; a trilha sonora atonal de Jonny Greenwood (guitarrista do Radiohead) subverte tudo o que se espera de uma trilha sonora normal; a montagem preciosa valoriza as texturas empoeiradas criadas pela direção de arte de Jack Fisk (observe a clareza da narrativa dos primeiros quinze minutos, que não contêm um único diálogo!). Paul Thomas Anderson é reconhecido desde sempre como um cineasta ambicioso, e “Sangue negro” faz jus a esta ambição. Ao misturar empreendedorismo com religião, família com obsessão, corrupção com apego à terra, o diretor deixa evidente a tentativa de criar, como bem observou a crítica Isabela Boscov, o equivalente cinematográfico do “grande romance americano”, como são chamadas as narrativas literárias que buscam encapsular os valores essenciais do país. Embora a humildade de “Onde os fracos não têm vez” contraste com a clara ambição épica de “Sangue negro”, as semelhanças entre os dois vão além do fato de serem, ambos, inspirados em literatura de primeira qualidade. As duas histórias se desenrolam, por exemplo, no mesmo cenário de faroeste. Nenhum dos dois, porém, filia-se ao gênero. São narrativas sombrias e silenciosas, que investigam os recantos mais escuros da alma humana. Além disso, tanto “Sangue negro” quanto “Onde os fracos não têm vez” possuem terceiros atos alegóricos, de caráter aberto, que apostam mais na sugestão do que na ação. Normalmente, filmes assim nunca chegam a empolgar os velhinhos republicanos que formam a maioria do colégio eleitoral do Oscar. Exatamente por isso, é possível afirmar que o grande vitorioso yy do Oscar 2008 não foi “Onde os fracos não têm vez”, mas o cinema autoral de qualidade.
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TVs por assinatura do Brasil lutam contra a lei que estabelece cotas de produção independente Haymone Neto
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aíses como França, Canadá, Alemanha e Espanha estabelecem cotas para a produção independente nos canais de TV por assinatura. O Brasil, ainda não, mas o Projeto de Lei 29/07 prevê, entre outras coisas, uma medida semelhante por aqui. Se aprovado na íntegra, garantirá que 10% da programação será de autoria de produtoras independentes nacionais. As empresas de TV por assinatura, contudo, não querem ouvir falar em regulamentação. Desde dezembro do ano passado, a Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA) convoca seus telespectadores (e sua bancada no Congresso) a “deter a sanha autoritária e a censura” e “lutar pela liberdade na TV” através de uma campanha veiculada no site www.liberdadenatv. com.br e de anúncios nos próprios canais. Eles são contrários ao projeto e, entre várias acusações, alegam que as cotas vão reduzir a diversidade cultural, tirar a liberdade de escolha do consumidor e criar uma reserva de mercado ao invés de ajudar a fomentar a produção nacional. De acordo com a campanha da ABTA, as cotas ameaçam a retirada do ar de canais consagrados “que não possam cumprir os critérios do atual Projeto de Lei”, como TNT, Sony, Warner, Cartoon Network, National Geographic, Disney, MGM e outros. Diz ainda, com base num estudo encomendado, que as mensalidades dos assinantes podem ficar até 80% mais caras, tornando o serviço “inacessível a milhares de brasileiros que hoje são assinantes”. As cotas, segundo as emissoras, também reduzem drasticamente a possibilidade do serviço ser universalizado no Brasil. A assessoria de imprensa da entidade que representa as democráticas TVs por assinatura foi procurada para explicar estes e outros assuntos, mas não deu qualquer retorno até o fechamento desta edição. As organizações ligadas aos produtores independentes e à democratização dos meios de comunicação, contudo, apóiam a iniciativa e estão prontas para rebater os argumentos da ABTA. Em meados de março, elas publicaram um manifesto em defesa do Projeto de Lei. Nele, defendem que “uma política de cotas, aliada a uma forte política de estímulo à produção nacional, como consta no projeto, é a fórmula ideal para fortalecer a indústria audiovisual brasileira”. O manifesto contesta a acusação de que as cotas vão tornar a TV por assinatura mais cara. Com base em dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine), afirma que o Brasil já tem hoje um dos serviços de TV por assinatura mais caros do mundo e o segundo pior percentual de penetração junto à população em toda a América Latina, de apenas 8,1%. “O alto preço cobrado pelas programadoras pela venda de canais às empacotadoras (que comercializam os pacotes de canais) e o modelo de negócio das operadoras, sustentado no alto valor da assinatura, fazem com que a base de assinantes não cresça de forma significativa. Ao mesmo tempo, dificultam a obtenção de uma escala maior de assinantes, criando um círculo vicioso que mantém o preço do serviço nas alturas e impede seu acesso pela maior parte da população”, diz o texto. Dados da Ancine revelam que, de fato, a produção brasileira ainda ocupa pouco espaço na TV paga do país. Os dez principais canais de filmes da TV paga exibiram apenas 0,5% de conteúdo brasileiro no quarto trimestre de 2006, de acordo com o estudo. “A TV por assinatura no Brasil é ocupada fundamentalmente por conteúdo internacional”, afirma João Brant, coordenador do Intervozes, uma das entidades signatárias do manifesto. “O mercado brasileiro coloca a produção nas mãos de quem veicula o conteúdo. Não é o modelo usado na maior parte do mundo, tanto para a TV aberta quanto para a TV por assinatura”, diz. Outra medida que tem o apoio dos produtores independentes e consta no Projeto de Lei é o direcionamento de parte dos recursos que hoje são destinados ao Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel) para o Fundo Nacional de Cultura (FNC), com o objetivo de fomentar a produção audiovisual brasileira. O projeto não prevê aumento da carga tributária. Ele diminui em 10% a tabela do Fistel e cria uma contribuição para o audiovisual com o mesmo montante. Com isso, cerca de R$ 300 milhões a mais por ano seriam destinados ao FNC. Segundo a Ancine, as leis do Audiovisual e Rouanet captaram, em 2006, R$ 150 milhões. A estimativa do projeto é de que, com o direcionamento dinheiro do Fistel, o mercado audiovisual brasileiro tenha três vezes mais recursos disponíveis. A ABTA é contrária à medida, e diz que ela vai gerar aumento de impostos. Sugere que os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) sejam usados para estes fins. Empresas como Abril e Band já sinalizaram apoio ao Projeto de Lei. Hoje, é importante ressaltar, o mercado das TVs por assinatura é controlado pela Globo. Elas também têm interesse em ampliar sua participação num setor que, só em 2006, de acordo com a Ancine, faturou R$ 5,13 yy bilhões e foi responsável pela remessa de cerca de R$ 500 milhões ao exterior.
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apoleão Bonaparte (1769-1821), general e estadista, imperador dos franceses, por pouco não se tornou um dos destaques da História do Brasil, com repercussões na América Espanhola e nos Estados Unidos, caso tivesse sucesso o seu plano de fuga da ilha de Santa Helena, onde se encontrava prisioneiro dos ingleses, para Pernambuco por ocasião da proclamação da Revolução Republicana de 1817. Na época, era propósito da maçonaria internacional e de um grupo abastado de refugiados franceses libertar Napoleão da ilha de Santa Helena e conduzi-lo ao Recife, no caso viesse a se confirmar o sucesso da República de Pernambuco, proclamada em 6 de março de 1817. A ser confirmada esta última hipótese, que imagens seriam geradas para a história, com a figura carismática do Corso levando a chama republicana às plagas da América do Sul? No ano de 1817 transpirava-se em Pernambuco um notório descontentamento com a sua situação de uma capitania tão rica reduzida à condição de colônia de Portugal, o que fez ressurgir sentimentos separatistas acalentados desde a expulsão do governo holandês em 1654. Jovens bacharéis egressos de Coimbra e de outras universidades européias, padres e seminaristas do Seminário de Olinda, discutiam ardorosamente nos cenáculos das cinco lojas maçônicas e nos púlpitos das igrejas, o ideário liberal proclamado pela Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e pelos princípios da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776). Em 6 de março de 1817 um movimento armado contra o governo português tomou conta das ruas do Recife, com o apoio do clero, das classes militares e do comércio, visando transformar Pernambuco e as demais províncias, que hoje integram o Nordeste brasileiro, numa República independente de Portugal. Para isso fora enviado preso para o Rio de Janeiro o governador português, Caetano Pinto de Miranda Montenegro; promulgado um projeto de Constituição – que tinha por princípios básicos a interdependência dos três poderes, as liberdades de crença e opinião e as garantias individuais –; criada uma nova bandeira e outros símbolos da pátria; constituído um conselho de notáveis e eleitos os representantes das classes governantes. Para a manutenção da nova república, movimentaram-se as lojas maçônicas no sentido de conseguir apoio e recursos junto às suas congêneres de Londres e, em particular, dos Estados Unidos. Para tal missão foi enviado como embaixador da nova República o comerciante Antônio Gonçalves da Cruz, conhecido pelo apelido de Cabugá. Levando em sua bagagem o desenho aquarelado da Bandeira Republicana, o texto do projeto de constituição, a Lei Orgânica, e “uma carta para o irmão presidente”, Cabugá iniciou sua delicada missão pelos Estados Unidos da América. Muito embora sem conseguir o prometido encontro com o presidente Madison, vem ele ser recebido em audiência particular pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, para o qual relatou os propósitos e necessidades da mais nova República sulamericana. Não foi feliz o Cabugá nos seus primeiros contatos, mas, não se sabendo o porquê, talvez até pelo seu relacionamento com a maçonaria internacional, ele vem despertar simpatias entre os maçons norte-americanos e um grupo de emigrados franceses, simpatizantes da causa bonapartista. Com tal apoio, conseguiu os recursos necessários à contratação de embarcações e marinheiros, para o transporte de ar-
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mas e munições para a nova república. O movimento contou também com as simpatias de José Bonaparte, que viu nos novos acontecimentos a possibilidade de por em execução o plano de fuga de seu irmão, Napoleão Bonaparte, então prisioneiro dos ingleses em Longwood, capital de Santa Helena, uma ilha do Atlântico Sul, situada a 1.850 quilômetros da costa ocidental da África. Para Alfredo de Carvalho, que disserta sobre o episódio em seu livro “Aventuras e Aventureiros no Brasil” (Rio de Janeiro: Pongetti & Cia., 1929), firmara-se assim entre o embaixador da nova República de Pernambuco, Antônio Gonçalves da Cruz, e os emigrados franceses “uma espécie de contrato de auxílios mútuos: os bonapartistas deveriam ajudar os revolucionários na luta pela independência e, conseguida esta, os republicanos prestariam seu apoio à tentativa de evasão de Napoleão da prisão onde se encontrava, na ilha de Santa Helena”. Para isso contavam os bonapartistas com as simpatias de dez mil “emigrados franceses sempre prontos a sacrificarem-se pelo seu imperador”. Para as despesas com a formação de uma frota de guerra, devidamente armada e bem municiada, bem como a contratação de soldados e marinheiros necessários, dispunham eles de quantia superior a um milhão de dólares. Com a conciliação de propósitos, inicia-se assim a execução do plano de fuga de Napoleão Bonaparte, tendo como base de operações a nova República de Pernambuco. Primeiramente, atendendo pedido de Cabugá, o governo dos Estados Unidos nomeia como cônsul daquela república no Recife o diplomata M. Joseph Ray, notório simpatizante da causa dos bonapartistas, que deveria dar acolhida a todos os envolvidos que viesse aportar nas costas de Pernambuco. Sem qualquer notícia recente dos acontecimentos envolvendo os simpatizantes da República Pernambucana, bem como da reação tirânica da coroa portuguesa contra os insurretos, partiu da Filadélfia o navio americano Parangon em direção às costas do Rio Grande do Norte, o qual veio aportar na baía Formosa, distante cinqüenta quilômetros de Natal, em 29 de agosto de 1817, transportando um carregamento de breu. Depois de despachar sua carga e se abastecer de víveres, o barco seguiu viagem com destino à Paraíba, não sem antes deixar em terra quatro franceses. O pequeno grupo era chefiado pelo coronel Paul-Albert-Marie de Latapie, militante da infantaria dos exércitos napoleônicos, que gravemente ferido na batalha de Waterloo (1815), ocorrida a quinze quilômetros. de Bruxelas, fora buscar refúgio nos Estados Unidos. O experiente militar se fazia acompanhar dos também oficiais bonapartistas Artong e Roulet, apresentando-se como quarto personagem, um jovem cientista, Louis Adolpho Le Doulcet (1794-1882), que vem alcançar destaque nos estudos da Botânica e na produção musical. Seu nome é registrado pela Enciclopédia Larousse (ao tratar de sua aventura no Brasil), o verbete informa ser ele filho do Conde de Pontécoulant (1769-1840), senador do Império francês ao tempo de Napoleão I. Este último, que também era dado ao exercício da medicina, logo fez amizade com José Ignácio Borges, secretário do governador do Rio Grande do Norte, que facilitou para todo grupo os passaportes necessários para viagens por todo território brasileiro. De posse dos papéis os aventureiros rumaram para o Recife, onde os aguardava o cônsul dos Estados Unidos M. Joseph Hay, que lhe
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A inusitada e fracassada fuga do imperador para Pernambuco Leonardo Dantas Silva
fora indicado por Cabugá. O cônsul tinha como secretário o dinamarquês Georges Fleming Holdt, que havia servido na marinha de Napoleão, e que mais tarde vem a ser preso pelo governo, ocasião em que confessa a existência do plano de fuga do imperador da Ilha de Santa Helena. Só ao chegar ao Brasil é que os franceses se dão conta do fracasso da Revolução Republicana de Pernambuco, cujos principais líderes se encontravam presos no Recife e Salvador, já tendo alguns deles dado suas vidas à causa da liberdade. No Recife foram os franceses Latapie, Artong, Roulet e Louis Le Doulcet recolhidos ao forte do Brum, por ordem do capitão-general Luiz do Rego Barreto, responsável pela repressão da coroa portuguesa ao movimento republicano de seis de março de 1817. Por interveniência do cônsul M. Joseph Hay foram eles libertados, não sem antes confessar que “estavam na Filadélfia quando tomaram conhecimento das notícias da revolução de Pernambuco”. Tal acontecimento fez com que José Bonaparte desse continuidade a um ardiloso plano visando resgatar o seu irmão, Napoleão, de sua prisão na ilha de Santa Helena. Louis Adolfo regressa ao Rio Grande do Norte, enquanto os três outros ficaram no Recife, na casa do cônsul dos Estados Unidos. Logo depois Latapie e Artong seguem viagem para o Rio de Janeiro na tentativa de avistar-se com outros bonapartistas, inclusive com o general Theodoro van Hogendorp (1761-1822), militar holandês que depois de galgar os mais altos cargos no exército de Napoleão vivia anonimamente numa chácara, na Estrada da Tijuca, onde por vezes recebera a visita do príncipe D. Pedro. Nesse ínterim chega às costas da Paraíba, na baía da Traição, um barco com oito marinheiros do navio Pingüim, que presos e levados ao Recife, vieram confessar estar a serviço de Cabugá que fretara aquele navio nos Estados Unidos e o mandara para Pernambuco, carregado de armas e munições para uso dos revoltosos. Diante dos novos fatos, o Pingüim seguiu viagem rumo à Bahia, deixando oito tripulantes na praia. O fato vem a ser comunicado pelo governador da Paraíba, Bernardo Teixeira, ao ministro Villa Nova Portugal, em data de 1º de março de 1818. No Recife foi de pronto requerida a prisão de Roulet e de três outros franceses que se encontravam na casa do cônsul. Feita a busca no local foram presos o secretário do consulado Georges Fleming Holdt, Roulet e três outros suspeitos, além do livro de correspondência oficial. Na prisão o dinamarquês Holdt veio confessar mais detalhes do plano traçado para a fuga de Napoleão, que lhe fora descrito em minúcias pelo coronel Latapie, quando de jantar na casa do cônsul norte-americano. Do plano ali narrado já tinha conhecimento o próprio Napoleão, que autenticara com a sua assinatura as cartas geográficas enviadas sob sigilo de Santa Helena para José Bonaparte, nos Estados Unidos, confirmando a existência da quantia de mais de um milhão de dólares para fazer face às despesas com a pequena frota. Depois de alguns meses na prisão, onde eram visitados constantemente pelo cônsul americano, afirmando Alfredo de Carvalho que “a sua enérgica conduta pesou nas determinações do governo de Pernambuco e do Rio e precipitou o desfecho do processo”. Para o diplomata M. Joseph Hay, as autoridades portuguesas estavam cientes que “nem Roulet, nem Latapie, nem Louis Adolfo, nem Artong, tinham vindo ao Brasil com intuito de fazer agitação e de pregação em favor da proclamação de uma república”, mas tão somente sondar o ambiente a fim de estudar a possibilidade de por em prática o plano de fuga
de seu imperador, então prisioneiro dos ingleses na ilha de Santa Helena. Acatando tal argumentação o Tribunal de Alçada de Pernambuco, julgando-se incompetente em razão dos fatos alegados, enviou os franceses para o Rio de Janeiro de onde foram, no mais curto espaço de tempo, embarcados para Portugal, que logo os expulsou do seu território através da fronteira com Espanha. O plano de fuga de Napoleão, orquestrado por José Bonaparte, porém, só muito depois vem a ser conhecido com detalhes, quando em 1853 é publicada, em Londres, a correspondência diplomática por: trocada por Charles Bagot, de Washington, com o Lord Castlereagh. Segundo “Alfredo de Carvalho, que faz referência à documentação no seu livro Aventuras e Aventureiros no Brasil” (1929), em relatório datado de 29 de julho de 1817, ficara escolhido como ponto de encontro da expedição “a ilha de Fernando de Noronha, situada a 62 léguas da costa do Brasil”, para onde iriam os barcos de guerra especialmente fretados para aquela operação, destacando o documento: “Ali devem reunir-se oficiais franceses de Bonaparte, em número de aproximadamente oitenta, setecentos oficiais americanos, duas escunas e um navio armado pelo Lord Cochrane, tendo a bordo oitocentos marinheiros e duzentos oficiais”. Terminava assim o malogrado plano daqueles aventureiros de resgatar Napoleão Bonaparte de sua prisão na pequenina ilha rochosa de Santa Helena e transformá-lo no grande comandante dos exércitos republicanos da América do Sul. Findaram-se assim, sem maiores conseqüências, os sonhos daqueles bonapartistas que, como os nossos patriotas, também acreditaram no aryy rebol da República de Pernambuco de 1817.
A República de 1817 no noticiário da imprensa internacional Apesar de acontecer numa época de difíceis meios de comunicação, a Revolução Republicana de 1817, em Pernambuco, alcançou repercussão invulgar na correspondência diplomática da época, hoje conservada em arquivos de Lisboa, Londres, Paris, Madri, Viena, São Petersburgo e Washington. Os acontecimentos do Recife ganharam às páginas dos jornais londrinos de língua portuguesa – Português, Investigador Português e Correio Brasiliense –, tendo o Time (Londres) lhe dedicado o editorial de sua edição de 27 de maio de 1817, cujo noticiário transcrevia a correspondência trazida pelo navio Tigris, abrindo a sua edição com a manchete de primeira página: “General Insurretion in the Brasilis” (“Insurreição Geral no Brasil”). De 27 de maio a 16 de junho daquele ano, o Time mantém os seus leitores informados acerca da República de Pernambuco, estendendo-se o noticiário até 1º de agosto, quando narra os acontecimentos de sua derrocada. Nesse período nada menos de vinte e um editoriais foram dedicados à Revolução de 1817, sendo o seu noticiário transcrito em cinqüenta e oito edições daquele jornal londrino. Nos Estados Unidos, a chegada do enviado dos revolucionários pernambucanos, Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, aparece na imprensa de Boston, tendo sua fracassada missão se estendido por dois meses.
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As notícias sobre celebridades divertem os mesmos espanhóis que espalham cartazes antiimigrantes pelos muros de Madrid Fabiana Moraes
E
nquanto a pátria ferida ainda tenta digerir a sola de sapato oferecida aos brasileiros que pousaram nas últimas semanas no aeroporto de Barajas, em Madri, a Espanha em peso continua a exercitar a sua temáticafetiche: celebridades. A vida do astro local Kiko Rivera, filho da “cantante” Isabel Pantoja e do matador (bem melhor do que toureiro) Francisco Rivera Paquirri é um exemplo clássico do fascínio que a baixaria ocorrida no mundo dos famosos exerce nos noticiários do país. Da Galizia à Catalunha, na Extremadura ou no País Vasco, todos querem saber quem será a próxima namorada do gordinho meio careca, qual o nome da loura (ou morena, tanto faz) vista ao seu lado na boate da moda, se a sua antiga noiva, a ex-stripper Tamara, abortou ou não o bebê. Kiko é tema de debates acalorados que duram toda a tarde, onde a sua família, seu papagaio, seu RG e sua marca de boné preferido tornam-se tão importantes quanto eram os euros perdidos pelos brasileiros barrados. Por trás dessa futilidade já transformada, no mundo inteiro, em necessidade social (como podemos ficar imunes aos penteados de Hebe Camargo?) há um fato importante a se considerar: os longos debates televisivos que cercam o filho da cantante e do matador de touros divertem os mesmos espanhóis que espalharam os cartazes anti-imigrantes vistos atualmente nos muros de Madri. Em letras brancas, garrafais, sobre um fundo vermelho, lemos: “Colapso na saúde, na educação, nos empregos. Já são seis milhões de imigrantes. O que vamos fazer? Espanhóis, temos que nos unir”. Na primeira semana de fevereiro, pouco antes das eleições que deram vitória a Zapatero, o anúncio estava espalhado por quase todo o chique bairro de Salamanca. Caminhar pelas ruas da capital que oferece diversão, Almodóvar, tapas e
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copas de vinho tendo como pano de fundo a seqüência de cartazes que convida milhares de pessoas a se retirar do país provoca um desconforto imenso. Quem está na (ainda?) confortável posição de turista pode até se dar o luxo de achar a situação apenas desagradável. Quem é de fora e vive no local, no entanto, sente no ar o desagradável cheiro da naftalina do fardão do General Franco. A Espanha solar, alegre e colorida está ali – mas a impressão forte é que yy nem todos estão convidados para a festa. A vida continua incrível no setor de cosméticos do El Corte Inglés, a loja de
departamentos ícone do país. Mas lá embaixo, na eficiente linha de metrô, são outros quinhentos. Em um mesmo vagão, estão africanos, indianos, brasileiros e madrilenhos. Também estão os gitanos (ciganos) romenos, estes odiados historicamente. Estão ali os gitanos que servem como ícone e símbolo cultural apenas quando postos em um cartaz de flamenco. Eles se entreolham, apenas. Entre aqueles onde a situação de imigrante pobre é palpável, o comportamento comum, quase como de defesa, é a manutenção da cabeça baixa. Os espanhóis mais jovens parecem gostar
do mix cultural. Os mais velhos são menos condescendentes e não perdoam: o olhar é desconfiado e as atitudes idem. Enquanto isso, Kiko Rivera, estranhamente mais noticiado do que Penelope Cruz, continua a ser chamada de capa da prensa del corazón. Parece que sua nova namorada está grávida. Parece que sua mãe sofreu um novo colapso nervoso. E que sua irmã declarou que sua família é infeliz. A vida segue na cidade obcecada pelo gordinho do cartão de crédito sedutor. Mas como ficar imune aos cartazes dos muros do bairro da Sayy lamanca?
Pernambuco_Abr 08
1/4/2008 12:25:27