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Arte: JaĂ­ne Cintra

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I néditos

EDITORIAL A partir desta edição, o Pernambuco inicia uma discussão sobre o Recife, investigando o que pulsa, as expectativas e a cara de algumas das regiões mais emblemáticas (e nem tanto assim, pelo menos à primeira vista) da RMR. A missão ficou nas mãos da jornalista e doutoranda em sociologia da UFPE, Carolina Leão, que já colaborou com o suplemento antes investigando a cidade. Carolina já cascavilhou o charme de concreto e mar de Boa Viagem e as identidades que flanam pelo Shopping Boa Vista. Mas desta vez, sua missão é ainda maior: fazer um roteiro sociológico, literário e, claro, afetivo da nossa geografia. O início do “passeio” é por dois bairros que buscam uma reinvenção: Santo Amaro e sua periferia abafada pela confusão da Boa Vista; e São José, que agora recebe duas polêmicas torres em meio ao seu cenário tão tradicional. Este mês, o Festival de Cannes conta com a estréia do filme “Sex and city”, que adaptou o seriado televisivo que tão bem flagrou o comportamento sexual e afetivo dos últimos anos. Para pensar o que ficou de Carrie, Samantha, Miranda e Charlote (as protagonistas do seriado), a jornalista Lorena Mascarenhas traça as lembranças de uma certa feminista radical que ela conheceu na Espanha (página 3). Numa cidade que ficou famosa por grandes festivais, quais as dificuldades para quem gosta e toca música antiga, tradicional? Esse é o problema que o jornalista André de Sena traça na reportagem “A difícil arte de amar” (página 4). Que relação é essa tão estreita que as assessorias de imprensa estão mantendo com as redações de jornais? Foi a partir dessa pergunta que Adriana Santana montou sua dissertação de mestrado em comunicação social na UFPE. Um apanhado do seu estudo ela faz na página 5. Quem estréia nesta edição do Pernambuco é Paulo Marcondes Ferreira Soares, professor do departamento de pós-graduação em sociologia da UFPE. Sua missão foi pensar o porquê dessa nostalgia pelo passado tão recente que tanto se espalha pelo universo pop. O ponto de partida do seu ensaio (página 9) foi o “Almanaque dos Anos 90”, feito para passar a limpo uma década que a gente mal teve tempo de esquecer. O jornalista Thiago Soares tece uma análise sentimental do novo CD de Adriana Calcanhoto, “Maré”, e procura responder o porquê do título do disco da cantora tão bem exprimir a duração enxuta do seu repertório (página 10). Luiz Carlos Pinto retrata a situação da América Latina perante o Maio de 1968 (página 11), que este ano é lembrado pelos seus 40 anos. Esse assunto se estende pelo Saber +, que buscou entender também o que foram os anos 60 no Recife e uma certa passagem relâmpago da mãe de Che Guevara por aqui, que a imprensa da época procurou esquecer. Na parte de autores novos do Saber +, nosso editor Raimundo Carrero avalia a poesia intertextual de Artur Rogério e Conrado Falbo mostra seu texto cheio de erotismo. E por falar em trabalhos inéditos, quem ilustra essa página é uma foto do artista plástico Bruno Vilela, que faz parte do seu ensaio “Bibbdi bobbdi boo”. Esse é uma referência à frase de Cinderela,no momento em que a fada transforma, com sua varinha, ratos em cocheiros e abóbora, em carruagem. No trabalho, ele desconstrói o mito, atacando num passe de mágica, ou melhor, num clique, a fragilidade os ícones femininos da literatura infantil nos dias de hoje. Para isso, simula o assassinato de personagens como Alice (no caso da foto), Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho. Essa foto faz parte ainda da exposição “Espelhos meus”, que entra em cartaz em junho no Museu Murillo La Greca, através do Projeto Amplificadores 2008. A curadoria é de Olívia Mindêlo, uma das três selecionadas pelo projeto este ano. Além de Bruno, participam Alexandre Belém, Adelaide Ivánova e a catalã Lali Masriera. A temática feminina pontua a mostra.

Bruno Vilela

É isso, ótima leitura, Schneider Carpeggiani (Editor executivo) carpeggiani@gmail.com

Governador do Estado Eduardo Campos Presidente Leda Alves

Vice-governador João Lyra Neto

Diretor de Gestão Bráulio Mendonça Meneses

Secretário da Casa Civil Ricardo Leitão Diretor Industrial Ricardo Melo

Equipe de Produção Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Aluísio Ricardo

Gestor Gráfico Júlio Gonçalves

Editor Raimundo Carrero

Editor Executivo Schneider Carpeggiani

Edição de Arte Jaíne Cintra

Revisão Gilson Oliveira

Tratamento de Imagem Roberto Bandeira

Secretário Gráfico Militão Marques

Circulação mensal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro CEP 50100-140 Fone: (81) 3217.2500 FAX: (81) 3222.5126

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omportamento PCassaporte

sob o efeito de um final feliz

Durante temporada na Espanha, jornalista conta que até a mais ferrenha das feministas está mais para Carrie do que para a liberal Samantha de “Sex and the city” Lorena Mascarenhas

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as várias lembranças que guardo da Espanha, a imagem caricatural de uma argentina feminista (tenho quase certeza de que ela era argentina) vem à tona quando me deparo com algumas idolatradas – e também odiadas – séries enlatadas. A tal argentina, talvez de Buenos Aires, talvez de araque, era assídua das aulas de Gênero e Narração. A matéria era ministrada por uma italiana nada simpática, mas, sem dúvida alguma, bastante competente. A professora tinha uma obsessão peculiar pelo manifesto cyborg de Donna Haraway. Já a argentina, eu acreditava nisso piamente, devia dormir abraçada com a obra completa de Foucault, pois quase sempre o citava durante suas intervenções. Eram tardes inteiras - às vezes quatro, cinco horas ininterruptas – de discussões sobre o feminismo e o poder, sobre o corpo feminino e as novas tecnologias, sobre como a mulher deixou de ser a encarregada dos assuntos domésticos para começar a pagar as contas de casa. A estudante argentina participava com afinco. Lia todos os textos com antecedência e tinha respostas e contestações para tudo. Para mim, ela era a cheerleader das feministas da sala, tamanha era sua empolgação. Só faltava o pompom. Semanas mais tarde, quando já não tinha mais notícias de Foucault, de Haraway, e de toda a sorte de teóricos que empolgavam a turma, encontrei, por acaso, no fundo da sala – não de aula, mas de um cinema - a tal argentina. A moça parecia muito entusiasmada. Mas dessa vez não era com as teorias do poder e de gênero. Estava acompanhada de um rapaz com pinta de intelectual, um colega de turma, mais especificamente das aulas de Semiologia. Foi inútil tentar prestar atenção ao filme. Aqueles pombinhos foram a minha sessão da tarde. E quando os créditos finais subiram, surgiu a conclusão inevitável: assim como os brutos, as feministas cheerleaders também amam. Lembrei-me das críticas das colegas de turma aos últimos filmes de Almodóvar. Eram tachados de muito hollywoodianos, muito convencionais. Bom mesmo era quando o diretor, lá nas décadas de 1980/1990, brincava com o conceito de gênero, com a ambigüidade dos sexos, diziam algumas delas. Aquela cena de amor, no entanto, destoava bastante das convenções feministas as quais presenciei. A moça do cinema não parecia nada com a estudante que eu conhecia da sala de aula. Após presenciar aquele momento digno de película água-com-açúcar, nunca mais a olhei com os mesmos olhos. De ali em diante, tive a certeza de que, às escondidas, ela fuçava canais televisivos atrás de séries do tipo “Desperate Housewives”, “Grey´s Anatomy” e “Sex and the city”. Imaginei que utilizava algum bilhetinho de declaração de amor assinado por seu Mr. Big para marcar páginas e anotações de seus livros de Estudos Culturais. Ela era uma romântica. Uma feminista romântica, estava certa disso. Não sei se o namorico da moça e do intelectual com pinta de nerd acabou no altar, mas se houvesse alguém com quem ela se pareceria numa série de TV, após aquele momento romântico, seria definitivamente com Carrie Bradshaw, a jornalista-narradora de “Sex and the city”. A imagem da argentina abraçadinha

ao namorado, como se estivesse sob o efeito de um final feliz, deveria ter saído de alguma cena do trailer do extinto programa, que agora virou filme, com Carrie fazendo planos de juntar os trapos com o homem de sua vida enquanto Samantha, uma de suas inseparáveis amigas, diz não acreditar em casamento e sim em botox, porque este sempre funciona. Por mais que as mulheres moderninhas gritem a torto e a direito que sonham em ser como a ousada Samantha Jones, cujas peripécias sexuais até hoje ruborizam telespectadoras mais recatadas, é Carrie a representante feminina com um pé no que se pode chamar de independência financeira e com o outro na carência. É como se a personagem representasse o paradoxo da feminista argentina: ela pregava a libertação sexual, o poder de ditar as regras do jogo, mas, ao mesmo tempo, sonhava em se entregar ao seu Mr. Big e dormir de conchinha. Se, numa mesa de bar, surgisse a fatídica pergunta sobre se América mudou depois do desastre de 11 de setembro, afirmaria que não. Pelo menos no que depender das heroínas televisivas. Para constatar isso, basta um controle remoto na mão. Carrie Bradshaw não mais existe na telinha (a série terminou em 2004), porém deixou crias. Meredith Grey, a personagem principal da série “Grey´s Anatomy” – meio drama, meio comédia, meio história de hospital – vive obcecada por um médico cujo apelido é digno de uma promoção de fast-food: “McDream”. Assim como Carrie, ela quer seguir com sua vida sem dar satisfação a muita gente. Mas confessa, no final do dia, que não consegue abrir mão de um bom cafuné depois de uma noite de amor com o homem dos seus sonhos. As quatro personagens de “Sex and the city” disseram um “até breve” para TV, porém foram prontamente substituídas por outras quatro amigas, na nova série made in Manhattan, “Cashmere Mafia”. E do que se trata o seriado? De amizade, sexo e relacionamentos. Até na Inglaterra, há uma espécie de “Sex and the city” dramático. Mistresses, série produzida pela BBC, também fala sobre quatro grandes amigas e seus problemas pessoais. Uma das personagens, por sinal, vive as conseqüências do desaparecimento do marido em meio ao ataque às Torres Gêmeas. Apesar de personagens “mais complexos” e do ar de seriedade do enredo, o plot da série gira basicamente em torno das carências afetivas das personagens principais. Certa vez, ao referir-se à “Sex and The city”, um produtor-executivo do programa comentou que os telespectadores se equivocavam ao achar que o seriado só travava de sexo e moda. Na verdade, disse ele, a série falava principalmente sobre o amor. Exagero ou não, o fato é que até Samantha, nos capítulos finais da última temporada, reconsiderou boa parte de sua filosofia de mulher solteira liberal e tentou buscar um lugar no reino das compromissadas. Se numa época na qual até Madonna, ícone pop para muitas feministas e modernas de carteirinha, se rendeu à tradicional vida de mulher casada, não seria de se espantar se a chica argentina um dia largasse seu curso engajado na Espanha e se mudasse com seu Mr. Big espanhol para Nova Iorque, trocando filosofia francesa e palestras sobre a construção do sujeito feminino por boas doses de Martini e por algumas edições da “Cosmopolitan”. yy

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M úsica

odo os anos, durante o carnaval, os recifenses constatam como a cidade dispõe de instrumentistas que, amadores ou não, se reúnem sem compromisso para tocar e animar os foliões. São centenas de músicos que tiram o pó dos tradicionais instrumentos de sopro e percussão para os dias de folia, em sua maioria, egressos das escolas de música e, especialmente, das bandas marciais que mantêm acesa a chama do centenário frevo. Por outro lado, aos que desejam enveredar em outros caminhos musicais que não necessariamente os da música popular, a estrada continua sendo muito difícil. É certo que, atualmente, a cidade conta com festivais de música erudita de ponta, além de instrumentistas de alto quilate, oriundos do trabalho profissional efetivado pelo Conservatório Pernambucano de Música (CPM) e o Departamento de Música da UFPE. Mas quem se aventura a tocar (ou simplesmente ouvir) instrumentos que já foram populares – e hoje constituem trabalho de gente especializada – como o alaúde, transverso, viola da gamba, cravo, vihuela e tantos outros que fazem a alegria dos apreciadores da chamada música antiga (em resumo, o repertório da Idade Média, Renascimento e segmentos do Barroco), precisa esperar muito tempo por isso, ou melhor, eventos especializados e apresentações bem esparsas. A cidade já dispôs de grupos muito bons de música antiga, como a Camerata Ad Libitum, Incontri, Temperamentos, Gruppo, Orquestra de Música Barroca, entre outros, que não sobreviveram por conta da falta de apoio, fato que é ainda mais problemático devido ao Recife ter sido, na década de 1970, uma referência nacional neste gênero musical, com o sucesso do Quinteto Armorial, que valorizava a união entre a música medieval e a popular nordestina, mesclando as sonoridades de instrumentos como o cravo e o pífano, a rabeca e o violino. Atualmente, mesmo contra todas as tendências, dois grupos de música antiga ainda estão em atuação na cidade: o Allegretto e o Trio Sonata, oriundos do Conservatório Pernambucano de Música. Segundo o flautista e diretor artístico do Allegretto, Alberto Guerra, os dois principais problemas para quem deseja ingressar numa carreira baseada em repertório e instrumentos antigos, são a falta de cursos especializados e os custos para aquisição do material básico. “A primeira dificuldade para quem quer aprender um instrumento antigo é financeira: uma viola da gamba custa, em média, cerca de dez mil reais; um alaúde simples, de dois a quatro mil; um cravo, mais de vinte mil; e são feitos por luthiers especializados que trabalham de forma artesanal”, explica Guerra. Outro problema é a falta de um curso efetivo que ensine as técnicas de instrumentos antigos na cidade, à semelhança do Departamento de Música da ECA-USP, que conta desde 2001 com um Núcleo de Música Antiga, e da Escola de Música de Brasília (EMB), onde também há uma Coordenação de Música Antiga, entre inúmeros outros exemplos existentes nas regiões Sul e Sudeste. No Recife, raríssimas vezes são oferecidos cursos de alaúde ou flauta transversal barroca e, quando ocorrem, constituem esforços voluntários de professores do Conservatório ou do Departamento de Música da UFPE. Por exemplo, a professora Marta Gondim, do Allegretto, iniciou um curso de viola da gamba no CPM utilizando seu próprio instrumento, mas, graças a um pequeno acidente ocorrido com este, as aulas tiveram de ser suspensas e a professora voltou às aulas tradicionais de flauta. Da mesma forma, um alaudista profissional, como Guilherme Calzavara, ensina apenas violão clássico. De acordo com a professora de violino e diretora da extinta Orquestra de Música Barroca, Viviane Pimentel, que ensina no Conservatório, muitos profissionais esperam que a instituição volte a se transformar numa autarquia e, dessa forma, possa organizar novos cursos e núcleos, como jazz e música antiga. “Pelo regimento atual, não se pode fazer muito; quando um professor se aposenta, ou a sua cátedra se extingue, ou esperase muito por novo concurso”, afirma. Atualmente, mesmo contando com instrumentos, faltam professores de cravo e viola. Há, também, entre os grupos remanescentes de música antiga, a dificuldade em conseguir partituras e atrair “mão de obra” nova. “Quando um músico viaja para o exterior, para estudar ou mesmo para encontrar terreno mais propício, fica geralmente uma lacuna difícil de ser preenchida”, diz Alberto Guerra. “Mesmo assim, o interesse pela música antiga vem aumentando a cada dia entre o público recifense, especialmente o grande público, como constatamos durante as apresentações do Allegretto”, completa o músico, que se interessou pelo estilo em inícios da década de 1990, após a vinda de professores intercambistas europeus e norte-americanos ao CPM, os quais trouxeram na bagagem muitas partituras antigas. Atualmente, Guerra é um dos músicos que mais possuem partituras da área, graças à colaboração inicial de Ilma Lira, professora de música da UFPE, que fez pós-graduação na Inglaterra e é uma das grandes incentivadoras desta arte no Recife. Enquanto se espera a criação efetiva de núcleos de música antiga, com apoio do Governo, no CPM e no Departamento de Música da UFPE – já que os baixos salários ainda impedem a contratação de mão-de-obra profissional –, a professora Viviane Pimentel anuncia, em primeira mão, a realização do “6º Encontro de Música Antiga do Recife”, a ser realizado entre os dias 30 de junho e 05 de julho, que contará com a presença de instrumentistas de todo o país e da Europa, os quais também oferecerão cursos de viola da gamba, violino barroco, cravo, entre outros. Evento de suma importância que mostrará novamente todo o potencial da área em nossa cidade. Da mesma forma, o grupo Allegretto, que recentemente tocou na reabertura da Igreja Madre de Deus e possui dez membros, estará se apresentando no Castelo de Brennand, no dia 18 de maio. yy

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a difícil arte de amar O caminho tortuoso de quem gosta de música antiga no Recife André de Sena


J ornalismo

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No período de um mês, 66% de tudo o que foi publicado em jornais sobre a Universidade foram “provocados” pelas estratégias de divulgação da assessoria. Mais ainda: 44,7% dos releases aproveitados foram veiculados com pouca ou mesmo nenhuma alteração, ou seja, a participação dos repórteres chegou a uma quase nulidade. Diante do quadro que era apresentado, surgiu a suposição que uma espécie de conformismo estava se apoderando das redações e transformando o próprio modo de se fazer jornalismo. O dia-a-dia dos jornalistas e a dinâmica de trabalho estavam criando uma acomodação. Acomodação que leva o repórter a não contactar nem mesmo as fontes indicadas no release para confirmar as informações repassadas. Acomodação que instrui o profissional a não sair da redação para ir em busca de notícias, a ficar na dependência apenas de e-mails e, quando muito, telefonemas. Numa tentativa de encontrar explicações para esse comportamento, a pesquisa tomou de empréstimo o conceito de “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda para descrever a persona do “jornalista cordial” – uma categoria profissional que se caracteriza pelo não-cumprimento da função social de investigação e fiscalização, que opta por agradar a todos e evitar o conflito, esquivando-se de ir à busca das notícias onde elas realmente acontecem (na rua) e contentando-se em atuar como mero copiador de releases. Seria muito simplista nomear “vilões e mocinhos” na busca pelas causas do uso tão premente de informações oficiais como fonte única na imprensa. O repórter não poderá ser de imediato taxado de desleixado – pois que o profissional mal pago, com excesso de trabalho e prazos a cumprir, sem estímulo para capacitação profissional e, por isso mesmo, insatisfeito no trabalho, talvez não consiga se dedicar à qualidade das informações publicadas no seu jornal. Ao assessor, tampouco, deveria recair a “culpa”, uma vez que, salvo exceções, ele não terá o poder para decidir pelos editores e repórteres o que deverá ser a pauta do dia. Se as sugestões dos assessores viram notícia nos matutinos é porque assim o permitiram os jornalistas que trabalham nos veículos. O assessor, assim, só está fazendo – e competentemente – o seu trabalho. É ao repórter que cabe a responsabilidade pelo texto que escreve e as informações que apura – ou deixa de apurar. A relação assessor versus jornalista “de batente” nunca poderia ser apenas de parceria – o papel do segundo é checar, duvidar, investigar, escrever e melhorar o que escreveu. Se não, está fadado a transformar-se em mero copiador de releases. Complexa e perigosa é a tentativa de vislumbrar soluções imediatas para o problema. Reformulações são necessárias, é certo, mas muito difíceis de serem implementadas a curto prazo, como mais tempo de apuração, investimento em capacitação profissional e (re)valorização da reportagem nos jornais. São medidas indispensáveis, mas que envolvem muito mais do que boa vontade dos profissionais. O grande propósito do meu trabalho é que as considerações a que ele chegou os jornais têm feito uma utilização excessiva de releases, de modo a depender deles para se pautar – sejam levadas ao conhecimento de quem faz parte desse “jogo”: repórteres, editores e assessores. E, claro, há também o público. Único envolvido no imbróglio que ainda permanece desconhecendo a prática. Creditar a informação que vem das assessorias já seyy ria um bom começo. Ao leitor, portanto, que reste ao menos a opção da dúvida.

Alexandre Belém

repórter chega à redação. Não há tempo para ler os jornais. Senta-se ao computador, checa e-mails, acessa o Google. Agora é só apertar a tecla ENTER que a notícia chegará a ele. Da caixa de e-mails, dezenas de press-releases desenharão o que será a pauta do dia. Pronto, agora é só reescrever os mais importantes e, bingo, está pronta a edição do dia seguinte. Amanhã, a rotina se repete. Poderia ser comigo. Poderia ser com qualquer um que, abraçado ao jornalismo, vive no eterno embate entre a redação e a rua, entre a facilidade dos engenhos de busca e a aridez do confronto com o mundo lá fora. Sem falar do relógio, que não pára de correr. A descrição dessa cena fictícia foi realizada com farta dose de exagero. Mas, descontadas as hipérboles narrativas, há vezes em que realidade e ficção podem se misturar e produzir, na vida real, rotinas tão burocráticas quanto a historieta contada no parágrafo de abertura. O tempo, sempre implacável, é senhor e juiz do processo de formação da notícia. E foi para entender as razões, incluindo o “fator-relógio”, que pudessem explicar a mesmice dos temas abordados pelos jornais, os textos semelhantes, o uso abusivo de informações produzidas em assessorias de imprensa, que embarquei no mundo acadêmico, através de dissertação de mestrado batizada de CTRL+C CTRL+V: O “Release nos Jornais” Pernambucanos. Finalizada em 2005 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, está sendo aprofundada e expandida com a minha pesquisa de Doutorado, “Jornalismo Cordial”. O que me levou a pesquisar sobre o assunto tem origem, primordialmente, no fato de eu ter me reconhecido nos dois papéis – do assessor, que tem como principal compromisso mostrar o lado mais positivo de seu assessorado –, e do repórter, que se esquece do compromisso maior com o leitor ao oferecê-lo informações gestadas no interior de empresas, e que são repassadas com o menor teor crítico possível. Dessa forma, se há uma carapuça, ela certamente serviu também a mim. Procurei não usar, assim, a posição de pesquisadora como escudo contra minhas próprias constatações. O foco da pesquisa inicial era chegar a caminhos que comprovassem se o uso de releases (matérias jornalísticas enviadas por assessorias de imprensa aos veículos de comunicação, com objetivo de divulgar fatos que envolvam as organizações assessoradas) nas redações era realmente prática corriqueira e realizada em excesso e, ainda, compreender o porquê desse “hábito”. Ao longo da realização do trabalho, as hipóteses iniciais para o “copia e cola” foram se apresentando – ritmo acelerado de trabalho, quadros funcionais reduzidos, busca e medo do “furo” –, ao passo em que, isoladas, também não se configuravam como única explicação plausível para o que se tentava comprovar. Por que então os jornais têm feito tanto uso de informações oficiais como fonte única de informação? Confesso que, por dois anos, essa foi a cantilena dos meus dias e noites. Os resultados que se apresentaram na catalogação dos releases enviados pela assessoria de imprensa da Universidade Federal de Pernambuco – estudo de caso que escolhi para a dissertação – serviram como exemplo de que se tem utilizado quantidade considerável de material de assessorias de comunicação nas redações, configurando-se como prova – ao menos em relação à amostragem pesquisada – de que as assessorias chegam a conduzir, em algumas edições, a produção jornalística brasileira.

Qual é a dúvida? Assessores municiam a imprensa que nem sempre confere ou questiona a informação Adriana Santana

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Carolina Leão

Nesse número, o Pernambuco inicia série que problematiza algumas das áreas mais simbólicas da Região Metropolitana do Recife

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ma cidade não é só feita de projetos acabados: burocracia, racionalidade, funcionalidade e bom senso em nome da ordem urbana. Uma cidade constrói seu pathos também em suas ruínas. Terrenos baldios, construções inacabadas, prédios condenados, monumentos históricos decadentes e mal-assombrados (pelos pés arrastados dos fantasmas ou pelas mãos pesadas da violência). O que não deu certo; o que ficou para trás; tudo aquilo interrompido por força das circunstâncias políticas, culturais ou naturais. O silêncio, o descaso, o desconhecido e desdenhado são marcas da afetividade com a qual cada localidade vai pontuar o processo de reconhecimento dos seus partícipes. Os seus escombros, as suas falhas fazem eco na auto-estima do urbanóide que conta lenda de fantasmas e assombrações para ludibriar a realidade pragmática. Urbanóides que também vêem seus ombros caídos e sua face indiferente frente ao tratamento dado à sua geografia sentimental. A cidade não é a terra prometida. Ela ignora que não existe para sempre. Sua paisagem, sim, será sempre transitória. Inventada conforme as leis dos homens e seu tempo. Mudando sua forma para se adequar aos padrões das tantas atualidades que ainda estão por vir. Transformandose, enfim, nesse devir perene que retorna aos símbolos e tradições da sua constituição histórica para justificar sua identidade cultural. No entanto, sem a crença nessa eternidade não haveria movimento, impulso e expansão – condição pela qual ela é chamada de cidade e não de uma comunidade aldeã ou vila camponesa. Para Baudelaire, refletindo sobre a cidade, o que caracteriza a modernidade é a sua possibilidade de extrair o eterno do transitório. Walter Benjamim, lendo o poeta francês, afirma que nada, no final das contas, está mais destinado ao antigo do que o moderno. A necessidade de reinvenção do moderno o alça a um mito de Sísifo da novidade. E enquanto pedras rolam ladeira abaixo, o novo envelhece rápido demais. Nessa lógica de invenções e reinvenções, está em jogo a autenticidade de uma época. Não apenas a sua aura, seu caráter mítico e simbólico (expresso nos discursos das autoridades e no peito inflado dos que relembram seus feitos heróicos, suas bravuras), mas a assinatura dos homens que a refletiram. A historiografia tem sido a história dos dominantes e com a cidade não é muito diferente. Ficaram para a eternidade, tão cara à institucionalização, seus êxitos e heróis. No Recife, por exemplo, eles estão nos murais e painéis que funcionaram, outrora, como cartão de visita da cidade. Estão, ainda, nas glórias cantadas pela cultural oficial que escolhe seus eleitos à apreciação simbólica, conforme a disposição dos seus homens e do seu tempo. Permaneceram também os monumentos pátrios, as avenidas que deram certo, os projetos saídos do papel e concretizados pela pedra, os ícones que não caíram no esquecimento pelo esforço físico de seus defensores. Uma cidade sempre estará em construção. Essa inevitável instabilidade é confortada pela segurança garantida pela tradição. É a esta que recorremos quando precisamos nos achar, ou nos perder, se quisermos, na cidade. Aqui ou na Europa tão moderna, a tradição não é a feitiçaria da bruxa assombrando a inquisição ou o peso do sangue azul corrompendo a política nacional. A tradição é também as representações que chegaram até a contemporaneidade como bússola de identificação social. A elas, o Recife recorre quando quer reforçar seu imaginário coletivo. Por ela, uma nova identidade social é tecida. O esforço de reconfigurar essa identidade nacional é notório e vem sendo desenvolvido paulatinamente desde o início dos anos 90. Na década anterior, era comum na cidade uma pichação acusatória: Recífilis. A doença moderna que aniquilou ho-

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mens do povo, fidalgos e artistas como Toulouse-Lautrec e Gauguin, na virada do XIX, era tomada como fonte de inspiração da decadência urbana pela qual passava a cidade em seus índices de atraso econômico. Nada de pornografia e erotismo. A cidade se infectava de sujeira. Em 94, virou moda proferir que Recife era a quarta pior cidade de mundo para se viver. O conceito de um centro que ninguém sabe qual é, o Institut Population Crisis Commitee, em Washington, legitimou uma pesquisa científica que virou refrão pop pela voz do mangue boy Chico Science. Não muito depois, Recife virou a Mauricéia. Um frenesi tomou conta da cidade que redescobriu seu talento para a modernidade e o cosmopolitismo com a invasão holandesa – praticamente um clichê do imaginário coletivo. A revitalização do Bairro do Recife acontece nessa época. Os casarios do antigo reduto boêmio e marginal ganharam matizes da moda com a reformulação da área urbana em torno da zona portuária. O Marco Zero da história foi o ponto de partida para a investida numa cidade antenada com o mercado globalizado. A região em torno do Porto do Recife, onde a capital pernambucana se formou como empório comercial e onde, na virada do século XX, desembarcavam companhias de teatro, produtos da moda francesa e artigos de consumo para a abastada aristocracia rural do Estado, ganhou ares cosmopolitas com a pintura de seus antigos casarões. Enquanto a classe média consumia o novo Bairro do Recife, os antigos moradores do Marco Zero, em sua maioria prostitutas e biscates, são destituídos do seu ambiente de trabalho para dar às hierarquias sociais diversão e lazer no bom tom da burguesia recifense. Hoje, o local parece até um navio fantasma de “velhas novidades”. Nem a tradicional marginália dá mais o ar de sua graça. Não faz tanto tempo assim que esse processo começou a mostrar suas contradições. Atualmente, toda a gestão urbana percorre uma questão pouco aprofundada ou discutida pelos intelectuais e artistas que tanto aparecem na TV abrindo os braços para amar essa cidade escorregadia. Verticalização, revitalização e intervenções urbanas mexem não apenas com o imaginário coletivo, o afeto compartilhado pela comunidade, como também perpassa fundamentos democráticos da interação social. Muitas civilizações chegaram ao nosso conhecimento através de suas ruínas. O tempo e o poder dos homens aniquilaram sua memória. Sobraram os restos para a nossa imaginação. A modernidade, além de criativa, é reflexiva e não deveria permitir que o esquecimento se abatesse sobre a pedra, desgastasse-a e a tornasse apenas um entrave para o crescimento social. Nesse novo milênio, com essa nova cara e coração da cidade, a pergunta é capciosa: ela está preparada para a sua novidade? É notório o investimento na confecção de uma nova cara para a identidade cultural do Recife. Pensando nesse esforço físico e simbólico, algumas questões fundamentais das cidades modernas serão abordadas nestas matérias que refletem sobre o ser recifense na contemporaneidade. Problemas como os contrastes urbanos ou reflexões sobre a verticalização e a modernização da cidade, bem como do imaginário que a compõe, serão discutidos. Nestas duas matérias, procurei centralizar a discussão nos limites que definem a nossa modernidade. O bairro de São José, por exemplo, é curinga retórico na recuperação de uma tradição histórica que perde sua intensidade com o descaso dispensado ao seu funcionamento. Já o bairro de Santo Amaro carrega os índices de uma periferia deslocada. Antes de querer explicar os fenômenos urbanos do Recife, os textos procuram trazer perguntas com as quais possa se pensar numa cidade real, com os símbolos e lendas que percorrem toda a yy identidade cultural.


C apa Venha da zona sul até São José e se questione como aquelas duas “torres” vão mudar a personalidade do histórico bairro

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uas estranhas. Parecem até aqueles monumentos gigantes feitos para durar apenas uma temporada festiva. Objetos decorativos que interferem momentaneamente na paisagem da cidade; que chegam até a nos surpreender ao serem expostos, mas para ao qual logo nos perguntamos: quando é mesmo que eles vão ser desmontados? Deslocadas, elas, no entanto, não estão a serviço do imaginário popular; não serão desarmadas quando o carnaval acabar. Outro imaginário, o da modernização, escala o arranha-céu das “torres” do Cais de Santa Rita. Erguido no coração da cidade, o conjunto arquitetônico, que atualmente está com suas obras paradas por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, deveria ter sua discussão pontuada pela relação mantida com seu abrigo administrativo, o bairro de São José. Farto de lendas, histórias e bravuras, São José, no entanto, parece a encarnação contemporânea de Filemo e Báucia – a pedra no sapato da modernidade, doida para chutar os índices de arcaísmo de sua história. No quarto ato de Fausto, o sábio homem que vendeu sua alma a Mefisto não hesita em acabar com o resto que sobrou do seu velho mundo tradicional mesmo que isso signifique eliminar a si mesmo. Entediado, o Fausto de Goethe resolve empreender a sua última e grande batalha para varrer do mapa o universo místico ao qual pertencia. Doutor Fausto clama o espírito das trevas e em parceria com as forças ocultas de sua própria psique resolve afastar do seu progresso social um casal de velhinhos simpáticos. Filemo e Báucia com sua porçãozinha de terra, onde cultivam flores e tomam conta de uma capela, representam o último resquício da vida social que a modernidade faústica precisaria afastar. Para Marshall Berman, em “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, o drama goethiano refere-se à tragédia do desenvolvimento e Mefisto resumiria a figura do capitalista impessoal doido varrido pelo lucro e com ar de desdém para os ditames da geografia sentimental. São vários os Filemos e Báucias que atravessam o caminho rumo à modernização. Numerosos são, ainda, os exemplos de como, indiscriminadamente, o empreendimento urbano levou adiante o seu projeto progressista eliminando os entraves indesejados do velho mundo. Há exatos 35 anos, o bairro de São José já vivia seus dias de Filemo e Báucia. Em 1973, era finalmente posto em prática, após anos de protesto de intelectuais e várias obras paradas, o projeto do prefeito Augusto Lucena que nos anos de chumbo da ditadura Médici empreendeu uma reformulação da área histórica, cujo resultado pode ser visto atualmente na problemática avenida Dantas Barreto. Apoiado na autoridade do contraditório Gilberto Freyre, que afirmou

ser a Igreja de Nossa Senhora dos Martírios, construída por escravos, algo sem muito valor, Lucena comandou a ação que tinha por objetivo modernizar a cidade – o que deveria ser feito eliminando os entraves do velho mundo, incluindo casarios coloniais e monumentos religiosos como a igreja supracitada. A avenida se transformaria numa passarela para o fetiche da burguesia local: o automóvel. Hoje, o fetiche da burguesia local, que não se mistura (e não deverá se misturar caso ocorra uma revitalização imobiliária nessa área), são os espigões high-tech. Faça um teste. Venha da zona sul da cidade e olhe para aqueles monumentos modernos. Depois, repita a experiência bem próxima aos edifícios. Experimente mais ainda. (A cidade também é experiência cognitiva. Ao andarmos por ela, nos preocupamos, enfim, em olhar em direção ao nosso caminho ou abaixamos a face para driblar os seus obstáculos). Vá até o mercado de São José, passeie pelas ruas orientais do bairro, com seu ethos de mascate, e olhe para cima. Despiste o cheiro azedo das ruas abandonadas, os ambulantes vendendo piratarias e kitsch ou os lojistas anunciando as promoções dos atacadões que lotam suas simpáticas, mas opressoras, ruelas. Esqueça o gosto burguês que outrora construiu seu imaginário pelos pátios e sobrados, que hoje, descaracterizados, caem aos pedaços. O tragicômico é que esses dois oponentes acabam se encontrando: eles são ruínas. São José é um bairro mitológico. Dono de um dos maiores acervos históricos da cultura pernambucana (com monumentos religiosos e militares como a Basílica da Penha e o Forte das Cinco Pontas – que ninguém visita nem vê como turismo ou cultura), ele fez o Recife como uma pequena vila de pescadores ocupada intensivamente pelos batavos quando a cidade ainda era subordinada à aristocracia olindense. Com os projetos urbanísticos do príncipe Maurício, o ponto comercial do antigo Largo da Ribeira do Peixe intensificou essa característica tão típica de seu funcionamento: a “mélange” que marca as feiras livres em qualquer parte do mundo. É um bairro histriônico. Aliás, a maior parte das lendas coletadas por Gilberto Freyre em seu livro “Assombrações do Recife velho”, foram retiradas de causos de São José. Almas penadas furiosas e histéricas. O que, no entanto, assusta nessa fartura de tradição e história em sua contemporaneidade não são os personagens mortos que surgem para cobrar satisfações dos seus algozes. O bairro todo é um fantasma silencioso. É o imaginário exigindo suas rezas pela sua antiguidade e amedrontando os novos mefistos que ousam transgredir o cativeiro yy do simbólico.

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C apa Por que Santo Amaro, coitado, é a periferia para além do geográfico?

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anto Amaro é o primo pobre do não muito abastado Centro do Recife. É feito aquele parente que incluímos em nosso rol de visitas por afetos institucionais. Também pudera. Melancólicas, suas ruas guardam o cheiro das flores do cemitério, pelo qual muita gente passa ressabiada temendo a morte seguir os passos dos homens vivos. Enquanto o núcleo primitivo da cidade, São José, Santo Antônio e Boa Vista, reforça o prestígio da tradição a ser recuperada como simbologia, Santo Amaro, que também possui as suas contribuições para o imaginário da cidade, intensifica o seu estigma de uma periferia curiosa. Recife contou com um tipo de ocupação e povoamento distinto do resto do Brasil. No Nordeste, principalmente, o núcleo de uma cidade, o que poderíamos chamar hoje de centro, não era a cidade como a concebemos atualmente. A economia açucareira foi responsável pela política centralizadora da Casa Grande, geralmente construída próxima às plantações de cana-de-açúcar e em regiões distantes dos centros comerciais, onde funcionavam os empórios e os armazéns, por exemplo. A cidade era um local de passagem. Por ela, passavam os filhos da aristocracia canavieira a fim de comprar novidades para o abastecimento da vida diária nos engenhos. Nestes, aconteciam os desfiles de roupas novas, exibidas nas festas populares ou nos cultos religiosos. No Recife, no entanto, a cidade não ficou restrita a essa categoria de uma periferia cultural. A rapidez de sua urbanização durante a ocupação holandesa fez com que ela se impusesse como centro cosmopolita e disputasse a cobiça das elites pernambucanas na escolha de sua moradia. No entanto, essa incipiente modernização não garantiu uma racionalização pragmática da cidade. O efeito dessa seleção urbanística foi, entre outros, a exposição de uma linha tênue que perpassa os limites entre as antagônicas zonas rurais e urbanas. Na periferia da Região Metropolitana do Recife, o rural está presente nas horticulturas domésticas e nas carroças movidas pela força de cavalos mancos. Está, ainda, na economia informal das laranjas vendidas a preços módicos e na intimidade da porta escancarada cara a cara para os vizinhos. Está, sobretudo, nos índices de um espaço que se opõe ao moderno pela precariedade de sua infra-estrutura. É esta periferia que ganha força na contemporaneidade com o elogio populista de intelectuais e artistas da classe média, cuja atuação destaca a criação de novos códigos estéticos e estilísticos nesses cinturões de pobreza. Santo Amaro, porém, não está na fronteira entre o rural e o urbano que caracteriza geograficamente as regiões periféricas do Brasil; nem se insere na dinâmica cotidiana de seus vizinhos Boa Vista, centro da cidade, ou Bairro do Recife, fetiche histórico. Bairro de construções horizontais, Santo Amaro não ostenta sobrados e casarios charmosos que entraram para a história como registro cultural. Atualmente, é manchete de jornal pela alto de índice de criminalidade pela qual é conhecida uma das comunidades mais pobres do Recife. Obtuso, Santo Amaro é estigmatizado pelos dois cemitérios municipais abrigados pelo

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bairro, que em sua atualidade revela o outro lado da tristeza social: a favelização. Santo Amaro, coitado, é a periferia para além do geográfico. A ambigüidade da sua condição fronteiriça não é a localização espacial; ainda que sua ocupação tenha sido, de fato, feita “ao redor do centro”, o que caracterizaria a sua definição como periferia. Santo Amaro é a periferia de uma modernização urbanística mais recente: a iniciada a partir dos anos 40 no Brasil com o alargamento de ruas e avenidas e construções verticais que prezam a valorização do modo de vida capitalista. As passarelas de automóveis são frutos dessa mentalidade. E não é menos verdade que as favelas se associam a esse espírito do progresso. Erguidas em torno de áreas ociosas ou desocupadas, as favelas do Recife, e as favelas de Santo Amaro, parecem querer beliscar uma fatia dessa modernidade na proximidade com a qual se instalam nessas regiões altamente urbanizadas. É a miséria que avança até os Shoppings ou são estes que se adiantam nesse jogo de contrastes? Embora tenha sido reduto holandês, o bairro surgido no final do século XVII conservou aspectos da cultura ibérica em seu comportamento tristonho. Na Cruz do Patrão, que diz a lenda ser o local mais mal assombrado da cidade, almas de escravos penam no monumento construído no século XIX como referência para as embarcações que chegavam ao Porto do Recife. A construção é uma coluna de alvenaria sem maiores refinamentos e sinalizava a “desova” de negros escravos mortos nas viagens. Sua simbologia, porém, vai além dos artefatos arquitetônicos. No início do século XX, o local, situado às margens do Beberibe, era usado como ponto de encontro das celebrações dos cultos afrobrasileiros. Hoje, pertence à zona chamada Bairro do Recife e vai e vem ganha um projeto de revitalização histórica que nunca saiu do papel. Ligado ao Bairro do Recife pela Ponte Limoeiro, Santo Amaro é entrecortado pelo Rio Beberibe – rio sem glamour, sem festas poéticas. E como sofre da rejeição urbana. Tem que more em Santo Amaro mas estique o endereço até caber na Boa Vista ou no Espinheiro! Cortado por duas avenidas seminais para o funcionamento da cidade, a Avenida Norte e a Cruz Cabugá, o bairro, no entanto, não acompanhou a verticalização das áreas adjacentes. Ao sul, Santo Amaro é entrecortado de simpáticas casas de porta e janela baixas que seguem até às margens do Capibaribe. Ao centro, estão dispostos alguns centros comerciais e poucos edifícios residenciais. Duas redes de comunicação têm sua sede em suas cercanias. Ao norte, Santo Amaro parece uma vila operária, com suas casas miúdas, dispostas em série com as mesmas características visuais. Há os que não se abalam com a violência e ousam tirar de casa a velha cadeira de balanço, fincando-a na calçada sombreada por árvores fartas e anciãs. Na brecha da janela, avisos de que ali vendem-se Avon, Natura ou mesmo uma boa meia hora de búzios ou outro jogo de adivinhação. Uma periferia atípica para a normatização das periferias hoje. yy


N ostalgia?

O Almanaque anos 90 volta a colocar em questão o fetiche do passado Paulo Marcondes Ferreira Soares

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ez por outra, e agora cada vez mais sistematicamente, o que não nos falta é a oportunidade de ofertas no mercado cultural, de um tipo de produto cujo invólucro promete um misto de prazer e “agradável” estado de melancolia. São produtos que nos convidam a revivescer, ancorados num vertiginoso saudosismo, instantes de “lembranças e curiosidades” de um momento qualquer no passado. São produtos voltados a uma segmentação em voga, crescente em mercados midiáticos como os da música, dos impressos e da TV entre outros: os chamados revivals. No momento, chegou-me às mãos o “Almanaque Anos 90”, de Silvio Essinger, publicado pela Agir (2008). Já num breve manuseio desta publicação, veio-me a idéia de como a história e a memória (individual e coletiva) podem ser banalizadas e subsumidas num universo midiático que transforma seus simulacros na centralidade do existir de toda uma comunidade, de toda uma geração, bem como, de seus projetos, de seus sonhos. Tudo é estamparia, tudo goza da mesma importância e valor cultural, tudo é posto como ingrediente de uma indigesta geléia dos tempos que não voltam mais. A começar pelo mau gosto da capa, que faz uma simulação da capa do disco Nevermind, do Nirvana, acusado de anti-semitismo por colocar um bebê circuncidado mergulhado numa piscina à cata de um dólar – aqui convertido em um real e sem a exposição do sexo do bebê. Enfim, tudo é posto no grande saco de gatos do fetichismo da mercadoria, só que em formato retrô. Comerciais de iogurte, chocolate, cerveja entre outros, levam o leitor numa viagem ao mundo encantado de uma época que deve deixar saudades. Época de uma feliz ingenuidade, que o Almanaque nos conforta nos transportando a todos a uma idade mental de oito anos. Certo, não há o que se exigir muito de um almanaque. Como bem o põe o Aurélio, em uma de suas definições deste tipo de publicação: “1. Diz-se de cultura, saber, conhecimento, imperfeitos, precários, superficiais.” Em seu estilo fait divers, o Almanaque nos apresenta o que teria sido a constelação dos elementos mais emblemáticos de uma década. Ali encontramos curiosos fragmentos que versam sobre música, televisão, cinema, mídia, tecnologia, comportamento e esportes. Postos lado a lado, em grau de importância, nós somos lembrados de quão significativos nos foram na década o avanço informático dos novos PCs, mas, também, a notícia em “Caras” da paternidade de Michael Jackson e de Luciano Szafir.

Desenho animado, quadrinhos, jogos eletrônicos, programas de TV, filmes, músicas – tudo são relíquias de um mesmo bazar. Do mais controverso ou outsider à garapa mais adocicada, tudo se veste com a aura da saudade. Recentemente, enquanto procurava um livro numa grande livraria do Recife, percebi que quatro garotas de estilo universitário cantarolavam jingles de comerciais ou músicas-tema de filmes hollywoodianos e de bandas de rock e pop dos 90. Entre risadas e certo frisson, comentavam namoros com colegas de escola ou as brigas travadas com o irmão em disputas pelos jogos eletrônicos. O volume das vozes me levou a compartilhar daquele mar de confissões. A um olhar mais atento para o que estava acontecendo, percebi que o que animava a roda era não mais que o “Almanaque anos 90”, recémlançado. Em seguida, as garotas se foram, sem levar o curioso produto de suas recordações. Pus-me, então, a pensar na magia disso tudo. Na forma passadista daquele tipo de encantamento. E aventei que o que estava em jogo ali dizia respeito a algo como uma espécie de agenda oculta, através da qual pudéssemos cifrar a seguinte mensagem: frente à imensa avalanche de informações e sinais a que estamos atualmente expostos, nada melhor que um pé no freio e uma marcha à ré – como se esse fosse o único recurso possível ao bom discernimento diante da completa indiferença das coisas e da conseqüente letargia a que a maioria tem sido levada a viver, segundo o velho estribilho do “recordar é viver”. Num mundo de utopias mortas, em que o sonho parece ser um ato de imprudência ou de inutilidade, e em que as mercadorias são a forma mais bem acabada de distinção e de reconhecimento do estar na vida e do participar do seu tempo, a tendência é que a maioria projete no futuro as garantias de consumo do presente, permanentemente ameaçadas seja pela volatilidade das coisas, seja pela vulnerabilidade do corpo, situação de instabilidade esta capaz de gerar estados coletivos de ansiedade e angústia. Ante um futuro incerto e um presente sombrio, boa parte de nós se volta para um passado qualquer, ainda que extremamente recente, ou que a memória alcance, e o transforma em referência de um estado de coisas mais feliz, mais “ingênuo”, em que todos eram inocentes. Ou seja, não estavam às voltas com a dura realidade que é a de compor o quadro social de nosso materialismo de consumo. Diante dessa situação, sujeitos vão desesperadamente afirmar o dia de ontem como necessariamente melhor do que o de hoje. Trata-se, inclusive, num relance narcísico, de um procedimento que finda por acatar como próprio da ingenuidade de uma geração ou de uma época, gostar de um tipo de “lixo” midiático que, embora tais sujeitos assim o reconheçam no presente, o dissimulam sob o lema do sempre “vale a pena ver de novo”. Em boa medida, é isso o que o “Almanaque Anos 90” nos apresenta, uma total relativização de valores culturais e estéticos, em favor de um completo nivelamento de coisas postas como expressão das marcas de uma possível “década plugada”. yy

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SXC/Cortesia

a medida da saudade


M úsica

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enho a ligueira impressão de que é mais difícil esquecer amores vividos à beira-mar. Há um sem-fim de clichês – das águas às escrituras efêmeras da areia, passando pelo pôr-do-sol e pelo barulho das ondas - que parecem soar como gavetas fechadas, lembranças ou algo parecido. Assim como gavetas que se abrem e fecham, marés enchem e vazam. E enquanto tudo soa aparentemente mais sedutor em abrir gavetas (procurar, ir em busca, tocar o passado), é sempre necessário – e talvez mais difícil - fechá-las. A maré também: enche, durruba, corrói, causa erosão. Mas precisa da vazante. De ver o que ficou, sobrou. É talvez neste ponto – o de ver o que sobrou – que eu lembre de tudo isso ao ouvir o novo álbum de Adriana Calcanhotto, “Maré”. À primeira vista, me vem a idéia da “ré” do mar, fazendo develar a areia, algo aparentemente submerso, não à-vista. A “ré” do mar me evoca o movimento de fechar a gaveta – a minha gaveta - e de colocar o passado à deriva. O CD de Calcanhotto soa encenar uma linguagem “de ré”: um formato de ré, uma canção de ré. Um álbum enxuto – são 34 minutos (“se eu pensasse mais sobre ele, diminuiria ainda mais”, disse a cantora) – na contramão dos excessos, das canções multi-instrumentadas, usando a voz mínima, o essencial. Canções na contramão: cantadas de uma só vez, sem refrões que são entoados até o final, poucas repetições, a expressão mais simples. Podemos pensar, inclusive, que temos uma trilogia “de ré”. Ao lançar o novo álbum, Calcanhotto disse que se tratava de uma trilogia sobre o mar iniciada em “Maritmo” (1998), seguida deste “Maré”, mas que, surpreendentemente, pode não ter fim. E então, o mar “de ré” se apresenta. Curioso que uma cantora gaúcha como Adriana Calcanhotto – nascida e criada longe do litoral - veja o mar com tanto afinco. Em seu álbum “Maritmo”, ela já encenava observar o mar como linguagem musical e poética. Lembro particularmente da canção que desvela um passeio pela orla do Rio de Janeiro com uma inspiração claramente cinematográfica (“No Posto Nove/ A onda revolta/ Devolve o surfista”), num daqueles planos “invertidos” de Júlio Bressane. Ali, Calcanhotto parecia atestar que o mar de ré, o plano em que Bressane devolve os seus personagens aos cenários originais, são matrizes da volta, do retorno. Aparentemente, o mar de “Maritmo” é maremoto. Agora, em “Maré”, tem-se maresia. Vento, calmaria, algo de ordinário que sobra. E canções em tons abolerados. Como a raivosa letra de “Três”, de Marina Lima e Antônio Cícero, que vira, nas mãos de Calcanhotto, um suave ir e vir de frases de efeito. Ou em “Porto Alegre (Nos Braços de Calipso)”, em melodia malemolente, com a imagem de alguém que não se quer deixar seduzir pelo canto das sereias. Talvez, o mar “de ré” fale do antes. Do momento em que as coisas deixam de ser urgentes. E algo parecido com isso - o momento em que as coisas deixam de ser urgentes - me aconteceu. Chega a hora de dizer que acabou. Que não dá mais. E é difícil porque significa fechar a gaveta, sabe? Ou fazer com que a maré vaze. E, hesitante entre manter aquilo que eu chamava de “relacionamento” ou me abrir a ou-

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Os movimentos do mar de Adriana Calcanhotto no seu novo CD, Maré Thiago Soares

tros mares, outras ondas, outras praias, atestei: “você me leva ao aeroporto?”. Fomos de táxi, passeando pela orla, pela avenida, a vida rolando. Tinha a ligeira impresão de que, enquanto aquele mar que eu observava da janela do táxi enchia, minha maré vazava. E tudo parecia se mostrar: a areia, as pedras corroídas, a erosão de duas pessoas que parecem estar juntas por conveniência. Encostou a mão na minha, roçou a perna, tocou a cabeça no meu ombro. Gestos de uma maré cheia, de praia lotada, verão à pino. Em mim, era inverno. E lembrei daquela música da Calcanhotto que dizia que “o destino sempre me quis só” e que, olhando para aquele cenário que eu deixava para trás, eu precisava voltar a ser “um barco embriagado ao mar”. O trajeto foi longo até o aeroporto. Ao sairmos da orla, passei a mão na sua cabeça, o último toque, as frases silenciosas, o vento apenas. Cheiro de maresia e ressaca. Não lembro muito bem o que eu disse, acho que nem fui claro. Mas devem ter aparecido palavras como “acabou”, “não dá mais”, “adeus”. Nem quis olhar para um rosto estupefato que se apresentava em minha frente. Acho que eu baixei os olhos, mirei o chão e entrei no aeroporto. Não sei ao certo se chorei, tenho a impressão que não. Não saberia precisar um motivo para aquele fim. Talvez muitas coisas, pequenas, ínfimas, se acumulando. E um desejo pelo frescor de um mar revolto. Agora, anos depois de tudo isso, me pego indagando junto a Calcanhotto: “por onde será que você me esquece?”. Tenho dificuldade de esquecer amores à beira-mar, já disse. Talvez porque, justamente, na maré vazante, na ré de tudo, a gente lembre do que veio antes. É engraçado. Não lembro mais de você no meu dia-a-dia. Vivo sem qualquer referência sua. Mas há momentos em que, de repente, minha lembrança me aciona uma sobra sua. Um resto seu. Algo que vive submerso, mas que, basta um mar “de ré” para que eu veja. yy - E, me desculpa, eu vejo.


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e 1968 é o ano que não acaba (como sugeriu Zuenir Ventura), os anos que o precederam e o seguiram prepararam as sociedades dos países latino-americanos para a abertura política, que só viria na década de 1980. Abaixo da linha do Equador vivíamos, como ainda se diz hoje em dia, “anos de chumbo” e nada parecia apontar que a situação poderia melhorar. Na verdade, era difícil saber que iria piorar – e que a repressão militar chegaria ao ponto de fechar o Congresso Nacional e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão, coisa que ocorreu no dia 13 de dezembro daquele ano, por meio do Ato Institucional Nº 5. Aliás, o resultado da plataforma legal do regime militar (decretos, cassações, proibições) e em particular do AI 5, foi a paralisação quase completa do movimento popular de denúncia, resistência e reivindicação, restando praticamente uma única forma de oposição: a clandestina e que se pautava pelo choque frontal com o aparato da repressão. Era difícil acreditar que já estava em gestação (ou apropriação) um marco teórico que alimentaria, entretanto, uma renovação das forças de esquerda em todo o continente. Ao lado desse novo marco teórico, as forças de resistência ao regime militar também desenvolveram novas orientações políticas. A confluência desses dois fatores – um marco teórico renovado e formas alternativas de articulação política – resultaram em novas visões das relações entre cultura e política. Ou seja, os ventos de maio foram a evidência de um amplo e global processo de renovação político-cultural do comportamento. Estavam sendo colocados em questão a idéia de que a classe operária era o sujeito privilegiado da história, o determinismo econômico, o papel das vanguardas e sua relação com as massas, o modelo de revolução, o papel do Estado e da sociedade civil. A maneira como isso se refletiu concretamente no continente sul-americano teve uma forma particular. O AI-5 representou não somente o despudor da ditadura no Brasil. Em grande parte foi a senha de que a luta armada levaria à derrota. Os anos seguintes mostraram que a resistência da esquerda contra os regimes autoritários no Brasil e noutros países sul-americanos iria se concentrar no retorno à democracia e não no confronto direto com o aparato bélico verde-oliva – as formas anteriores de luta e os princípios teóricos passaram por uma redefinição ao ponto de que a idéia de reconquista do regime democrático tenha substituído a perspectiva de revolução. Como é de se imaginar, muitos elementos colaboraram para que essa guinada acontecesse – entre eles o AI-5. Mas também a diferenciação e complexificação das sociedades sul-americanas exigiam formas mais adequadas de exercício da política – de onde a crítica às formas tradicionais de caracterização dos sujeitos políticos, do papel do Estado e a própria concepção da política foram revisados pelos setores progressistas. Um espectro rondava o espectro do marxismo. Se o ano de 1968 representou no Brasil o acirramento da repressão militar, representou também “a descoberta de que na política há algo mais que o Estado” como escreveu Francisco Weffort, porque a resistência à repressão e à perseguição política passaram a acontecer não nos partidos políticos ou no sistema judicial, ou mesmo nos sindicatos. Mas por intermédio das associações de bairro, amigos, familiares, da Igreja Católica. Para isso, havia a necessidade do reforço da sociedade civil, de se re-pensar a própria noção de política e sua relação com a cultura. Não é por acaso que a década de 1960 e especialmente o ano de 1968 expressem um novo contexto cultural: o que estava sendo colocado em jogo eram os antagonismos entre diferentes projetos políticos, articulados por atores sociais que não se encaixavam nas lentes do pensamento da esquerda marxista tradicional. Desses conflitos entre diferentes projetos políticos foi moldado um novo contexto político a partir da década de 1970. Um exemplo disso é que foi em 1968 que se realizou a Conferência de Medellin do episcopado sul-americano que criticou duramente a violência institucionalizada, centrou-se nas questões de libertação e da injustiça social – o endereço da crítica eram os regimes militares no continente sul-americano. Pouco depois o teólogo belga Comblin publica “Teologia da revolução” (1970) e, em 1971, o teólogo Gustavo Gutierrez publica “Teologia da libertação”. Eram os setores da Igreja Católica se organizando, inclusive teoricamente, pra criticar o regime e entender o seu tempo. Para outros pensadores de esquerda, a leitura do cientista político Antonio Gramsci forneceu os elementos necessários (mas não suficientes) para entender as formas de política colocadas em prática. A apropriação do pensamento do pensador italiano foi combinada a uma ênfase na diversidade e na flexibilidade, o que levou à combinação, no Brasil, de suas análises com a obra de Michel Foucault, Cornelius Castoriadis, Agnes Heller, Jürgen Habermas, Norberto Bobbio e Hanna Arendt. As transformações de ordem econômica (com a crise que se instalou a partir de 1970 associada ao modelo de estado de Bem-Estar Social), cultural e política e a renovação do debate teórico até a década de 1970 reorganizaram as categorias predominantes de análise e entendimento das sociedades. A definição da sociedade em termos do trabalho e da produção já não eram suficientes. E o ano de 1968 foi fundamental para se perceber isso. É como se 1970 começasse dois anos antes, como naquela música de Chico Buarque, em que o amante se dá o prazer de chegar à sua amada mil dias antes de lhe conhecer. A imagem, um tanto florida, sublima o doloroso processo de mudança da sociedade e as dificuldades para entendê-la – presentes, aliás, até hoje. Intensificação do processo de racionalização técnica, a centralidade do conhecimento e o crescimento das classes altamente especializadas, aumento do consumo e do setor de serviços formam esse contexto no qual se confirma o deslocamento de antagonismos para outros campos da vida social que não o trabalho. Mas em maio de 1968 ninguém parecia muito preocupado ou em condições de realizar reflexões sobre o arsenal teórico necessário para entender essas relações novas. Na Europa, a greve geral na França, a invasão das fábricas, os bloqueios das rodovias nas zonas rurais, o fechamento da Bolsa de Valores, a suspensão dos trens e metrôs e os acontecimentos da Primavera de Praga indicavam que estaria em suspensão também o mundo conhecido até então – e era preciso fazer alguma coisa. A América Latina era a própria terra em transe. De um lado o endurecimento do regime no Brasil, e em seguida no Chile, Argentina, Uruguai. Do outro, a explosão cultural que envolvia novos padrões familiares, a manifestações identitárias variadas, as críticas às metanarrativas (que deu novos contornos à idéia moderna de desencantamento), e, claro, todo o universo do pop. A América Latina era a própria terra em trânsito entre as negações de um regime que se fechava e as possibilidades de muitos mundos que se abriam. yy Saber+

1 968

Lição de geografia Como a América Latina se posicionou diante daquele ano que nunca acabou Luiz Carlos Pinto

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C MYK

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são envoltos pelo vermelho

Amarelo magenta = para você nunca mais me esquecer

O artista plástico Cildo Meireles conseguiu, através de sua obra-ambiente Desvio para o vermelho (1967-1984), levar o espectador para dentro da cor. Objetos em diferentes tonalidades de púrpura formavam um ambiente visto, entre outras exposições, na Bienal de São Paulo de 1998, quando a antropofagia e o canibalismo cultural eram a temática. Desvio..., de fato, engolia o público, este uma peça a mais dentro daquela casa onde até a água que jorrava da pia era rubra. Referência à Ditadura Militar? Foi o que os críticos, de cara, pensaram. Mas Cildo jogou água fria: sua obra foi criada mais por questões cromáticas do que políticas. O artista, no entanto, reconheceu o grito que vinha da criação: o vermelho, mais uma vez, falara mais alto. E ele dizia o que cada um queria ouvir. Na China, antes do sangue - de gente e de passarinhos derramados a mando de Mao, o vermelho tinha uma conotação que se resumia à vida, à alegria e mesmo à suavidade. Casas com portas pintadas de púrpura sempre atraíram fortuna e até hoje protegem aqueles que nelas vivem. As noivas ainda vestemse com a cor para atrair felicidade aos seus casamentos. Dizem que tais costumes vêm da pré-história, quando eles descobriram que corria sangue dentro das veias humanas. Era a cor da pura representação da vida, devendo, assim, ser continuamente celebrada. É doloroso e triste imaginar que, séculos depois, milhares de pardais mortos pelas ruas eram exatamente a representação contrária de tal celebração. De fato, a política, em todos os momentos onde vestiu e falou com tons vermelhos, provocou reações ora raivosas, cruéis, ora belas e apaixonadas. Nunca pouco polêmicas. Na última vez em que tentou tornar-se em uma instituição quase mundial, há exatos 40 anos, o rubro tingiu tantas camisetas quanto bandeiras em locais tão díspares como Pernambuco, São Paulo, Paris, Vietnã e Praga. Padres, professores, estudantes e artistas, se “perigosos”, eram chamados de vermelhos. Era o momento de decidir o tom central da vida a ser levada. Mas a cor foi retaliada: não casava tão bem com as casas repletas dos eletrodomésticos divididos em 12 prestações. E até hoje, salvo em uma porta, parede, bandeira, camiseta - e, felizmente, no sangue -, continua yy sendo assim

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ensaio revela os inú-

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Fabiana Moraes

meros discursos que

ode-se esperar qualquer coisa do vermelho, menos o tédio. Nunca sono, indulgência ou chinelos confortáveis. É cor daqueles que entenderam o óbvio: sempre há algo errado. Mas a festa não precisa acabar. “Sabe por que eu pintei meu cabelo? Para ninguém nunca mais me esquecer”, diz a personagem ruiva e histérica que se relaciona com um matador de aluguel em Anjos Caídos, de Wong Kar-wai. Profundo conhecedor do vermelho, Valentino sempre se emocionou com o que os panos tingidos desta cor tinham para lhe dizer. Assim, ouvindo tecidos, criava séries de carmins em todas as suas coleções. Chanel, a criadora francesa que namorou um oficial nazista em plena Segunda Guerra, nunca empregou completamente a cor nas roupas que idealizou, mas a sua obsessão pelo vermelho perfeito era conhecida. Parece que ela encontrou a cor que a fazia perder o sono, mantendo-a em deleite para os olhos de poucos: pintou a tonalidade no espaço restrito de seu apartamento na Rue Cambon, 31. Só aqueles que apreciavam a alma contraditoriamente vermelha de Coco podiam observar a matiz respousando em uma parede. Cor do debate fácil, da briga de boteco intelectual, ela também representa a difícil tonalidade que nunca será a simples mistura de magenta e amarelo. Vestiu o exército que Trotsky criou para defender as Repúblicas Socialistas Soviéticas e iluminou, a partir de uma luz pendurada no meio do salão, puteiros ao redor do mundo. Os que usavam chinelos confortáveis ficaram assombrados: alguns com com a marcha política dos homens vestindo uma cor só; outros, sozinhos na cama, com a imagem do que estaria acontecendo dentro de um quarto avermelhado e tão distante.

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