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E xpediente SUMÁRIO

EDITORIAL

Irritante- Luzilá Gonçalves Ferreira desmonta o relançamento da estréia literária da escritora-popstar Fernanda Young

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Picasso - O que Picasso 04 Compadre ensinou ao pernambucano Cícero Dias Alexandre Belém

Das razões do sabor - Ensaio analisa como o gosto é condicionado pela cultura e por afetos

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Ainda temos medo - Após uma década, o CD OK Computer do Radiohead continua retratando as paranóias da sociedade

09 Tu me acostumbrastes - Como o

mexicano passou a dar as cartas no império de Hollywood

impressora e uma pilha 10 “Computador, de livros - Uma conversa com o editor do Rascunho, Rogério Pereira

11 Se ela quer voar, é porque tem asas, é porque tem asas - Uma olhada pelas inúmeras referências do Cordel do Fogo Encantado

A marca parisiense de Cícero Dias não ficou apenas na euforia artística da agitação francesa. O pernambucano levou para lá o saudável costume nordestino do compadrio. Da amizade no peito guardada a sete chaves e que ninguém - nem nenhum fato novo pode quebrar. Por isso tornou-se compadre de Picasso, chamando-o para apadrinhar a filha. É este, portanto, o enfoque que o Pernambuco dá, nas página quatro e cinco, à homenagem que presta ao pintor brasileiro, no instante em que se comemora o seu centenário. Para tanto procurou o texto requintado de Fernando Monteiro e da jornalista Mariana Oliveira, também críticos de arte, além da competência de Jaíne Cintra, na diagramação renovadora. Um enfoque que foge ao ensaio costumeiro e linear. Na capa, onde a logomarca do jornal apresenta-se flutuante, oferecendo-se não somente como uma simples logomarca, mas compondo a própria diagramação, de forma a provocar o leitor - nada fixo, nada estático, tudo em movimento - um autógrafo de Picasso no bilhete rápido que escreveu a Dias, numa prova da intimidade e da simplicidade que marcaram a amizade entre ambos. Na página três, a análise de Luzilá Gonçalves Ferreira sobre o romance da pop-star Fernanda Young. Mas as surpresas desta edição não param aí: Micheline Verunscki escreve, na página onze, uma interpretação das letras de Cordel de Fogo Encantado, banda que conquista cada vez mais a admiração popular sem perder de vista a qualidade. Sobretudo a literária. Literatura, aliás, que sempre apaixonou o paranaense Rogério Pereira, editor do jornal Rascunho, de Curitiba, um dos publicações mais polêmicas do Brasil. Ele concede, na página dez, entrevista ao editor-executivo Shineider Cappergianni. E tem mais ainda, para o leitor exigente: o especialista Rodrigo Carreiro escreve, na página nove, matéria muito curiosa sobre a mexicanização do cinema americano. Na página oito, Haymone Neto, da banda Mellotrons, repensa o clássico álbum Ok Computer, do Radiohead. Nas páginas seis e sete, uma verdadeira provocação com matéria assinada por Renata Amaral sobre os nossos hábitos alimentares, às vezes com desorganização e indisciplina. Lembrando a inda o conto elaborado de Joana Rozowykwait, na décima segunda página. No encarte Saber +, editado por Marilene Mendes, o jornal lembra a Revolução de 1817, com enfoque na obra de Paulo Santos. Nota: Por equívoco, na edição de fevereiro.2 o Pernambuco grafou a palavra “assessor” com “c”, quando na verdade exigia os dois “ss”.

Boa leitura, Raimundo Carrero rcarrero@cepe.com.br

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Inéditos - Carolina, conto da escritora Joana Rozowykwiat, do coletivo Vacatussa

EXPEDIENTE

GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos

PRESIDENTE Flávio Chaves

EDITOR Raimundo Carrero

SECRETÁRIO GRÁFICO Gilberto Silva

VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto

DIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses

EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani

REVISÃO Gilson Oliveira

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão

DIRETOR INDUSTRIAL Reginaldo Bezerra Duarte

carpeggiani@gmail.com

GESTOR GRÁFICO Sílvio Mafra Circulação mensal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela

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Companhia Editora de Pernambuco -C CEPE Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro CEP 50100-140

EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra EDIÇÃO DE IMAGENS Nélio Chiappetta Fone: (81) 3217.2500– FAX: (81) 3222.5126

EQUIPE DE PRODUÇÃO Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa e Roberto Bandeira


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Irritante Irritante A jovem escritora Fernanda Young na lente da análise literária

C rítica

Irritante

Luzilá Gonçalves Ferreira

Irritante

a apresentação do livro avisa-se ao leitor " Prepare-se para rir e chorar ao mesmo tempo." E afirma que ele está diante de uma narrativa que tem efeito refrescante. Pois eu acho que me enganei de livro. Não encontrei nada disso nesse Vergonha dos pés, editado em 1996 e reeditado, não sei por que razão, no ano passado. A autora, Fernanda Young, é roteirista de televisão e de filmes, jornalista, daí, imagino, o apoio da mídia, internet, imprensa. Na apresentação do livro avisa-se ao leitor " Prepare-se para rir e chorar ao mesmo tempo." E afirma que ele está diante de uma narMas nem todo mundo se deixa rativa que tem efeito refrescante. Pois eu acho que me enganei de livro. Não encontrei nada disso nesse " Vergonha dos pés", editalevar pelo que dizem certos meios de do em 1996 e reeditado, não sei por que razão, no ano passado. A autora, Fernanda Young, é roteirista de televisão e de filmes, jorinformação. Em artigo no jornal nalista, daí, imagino, o apoio da mídia, internet, imprensa. Rascunho, editado em Curitiba, Paulo Mas nem todo mundo se deixa levar pelo que dizem certos meios de informação. Em artigo no jornal Rascunho, editado em Polzonoff Jr. aponta a jovem autora Curitiba, Paulo Polzonoff Jr. aponta a jovem autora como personificação da "decadência da literatura urbana e feminina no Brasil". como personificação da "decadência Devagar com o andor, meu caro Paulo. Tem muita escritora lançando no mercado obras onde a gente encontra uma voz forte, um da literatura urbana e feminina no trabalho sério com a escrita, uma visão crítica ou fraterna de mundo, uma re-criação do real, de modo a causar em nós uma espéBrasil". Devagar com o andor, meu caro cie de bem-estar, um impacto, aquele espanto diante de algo acrescentado ao mundo e que nos deu prazer. Nem vou citar os Paulo. Tem muita escritora lançando últimos livros de Marina Colasanti, de Adélia Prado, autoras consagradas e onde a gente sempre encontra alimento, como o no mercado obras onde a gente exigia André Gide de um bom livro. Citaria apenas os nomes de Letícia Malard, Cíntia Moscovich e Paula Glenadel, exemplos encontra uma voz forte, um trabalho da vivacidade, seriedade, criatividade, do que escrevem as mulheres brasileiras nos últimos meses, no romance e na poesia. sério com a escrita, uma visão crítica Normalmente só escrevo sobre livros que, de algum modo, me surpreenderam, me tornaram feliz pelo menos no tempo ou fraterna de mundo, uma re-criação de uma leitura, com aquela alegria de que falam Borges e rico Veríssimo diante de um texto literário. Mas os redatores deste do real, de modo a causar em nós Suplemento me pediram para escrever algo sobre esse romance de Fernanda Young, com quem não me interessa comprar uma briga, uma espécie de bem-estar, um mesmo porque é alguém que investiu sua vida na literatura e afins, o que só pode suscitar nossa simpatia, num país onde somos relimpacto, aquele espanto diante de ativamente poucos a cuidar dessas coisas. algo acrescentado ao mundo e que Um romance se estrutura por um fio condutor, personagens bem delineados, a recriação coerente de um espaço, um tempo, nos deu prazer. Nem vou citar os últimesmo imaginários. A impressão que se tem aqui é que a autora não sabe para onde vai e para lá quer levar o leitor. Uma pena. É mos livros de Marina Colasanti, de verdade que a própria autora confessa, no primeiro capítulo do livro, que é difícil narrar uma personagem tão extrema quanto Ana. Adélia Prado, autoras consagradas e Mas o desafio de qualquer romance é esse mesmo: narrar personagens extremos. Verdade também que, sob os desajeitamentos um onde a gente sempre encontra alimentanto ingênuos, vez em quando se sente a possível existência de um autor - como na carta que Ana, a personagem feminina, escreve to, como o exigia André Gide de um a Jaime no final do romance. Espero que nos romances posteriores Fernanda tenha podido se livrar do lugar comum, da banalidade bom livro. Citaria apenas os nomes de de imagens, da tolice de certas frases, de comparações que buscam ser originais mas que nada indicam além do mau gosto. Falar Letícia Malard, Cíntia Moscovich e da alma de quem se decepcionou com o amor como de "uma blusa de seda furada por um broche" é de matar. Como é tola a aproxPaula Glenadel, exemplos da vivaciimação da imagem de um grande amor a "um boneco suspenso por fios de náilon.". De Ana bêbada escreve a autora: "A cabeça dela dade, seriedade, criatividade, do que girava, acelerada, em círculos de raciocínios negativos". Uff! E nem falo dos cacófatos, tropeços de estilo a que não se dá hoje muita escrevem as mulheres brasileiras nos importância, mas que têm seu peso, e incomodam o leitor exigente. Aqui abundam expressões como " ela tinha", ou " como ela", últimos meses, no romance e na poetraços a evitar, e para os quais chamavam atenção nossas professoras, nos distantes tempos em que a " escola era risonha e franca". sia. Há tanto belo livro por aí afora aguardando e merecendo uma reedição. Mas talvez seus autores não sejam tão "midiáticos" quanNormalmente só escrevo sobre to a romancista desse Vergonha dos pés. Aliás, não entendi bem a relação do título, do capítulo em que se fala dos pés e o resto do livros que, de algum modo, me surromance. Enfim...Um romance se estrutura por um fio condutor, personagens bem delineados, a recriação coerente de um espaço, preenderam, me tornaram feliz pelo um tempo, mesmo imaginários. A impressão que se tem aqui é que a autora não sabe para onde vai e para lá quer levar o leitor. menos no tempo de uma leitura, com Uma pena. É verdade que a própria autora confessa, no primeiro capítulo do livro, que é difícil narrar uma personagem tão extrema aquela alegria de que falam Borges e quanto Ana. Mas o desafio de qualquer romance é esse mesmo: narrar personagens extremos. Verdade também que, sob os Érico Veríssimo diante de um texto desajeitamentos um tanto ingênuos, vez em quando se sente a possível existência de um autor - como na carta que Ana, a personliterário. Mas os redatores deste agem feminina, escreve a Jaime no final do romance. Espero que nos romances posteriores Fernanda tenha podido se livrar do lugar Suplemento me pediram para escrever comum, da banalidade de imagens, da tolice de certas frases, de comparações que buscam ser originais mas que nada indicam além algo sobre esse romance de Fernanda do mau gosto. Falar da alma de quem se decepcionou com o amor como de "uma blusa de seda furada por um broche" é de matar. Young, com quem não me interessa Como é tola a aproximação da imagem de um grande amor a "um boneco suspenso por fios de náilon.". De Ana bêbada escreve a comprar uma briga, mesmo porque é autora: "A cabeça dela girava, acelerada, em círculos de raciocínios negativos". Uff! E nem falo dos cacófatos, tropeços de estilo a que alguém que investiu sua vida na literanão se dá hoje muita importância, mas que têm seu peso, e incomodam o leitor exigente. Aqui abundam expressões como " ela tinha", tura e afins, o que só pode suscitar ou " como ela", traços a evitar, e para os quais chamavam atenção nossas professoras, nos distantes tempos em que a " escola era nossa simpatia, num país onde somos risonha e franca". relativamente poucos a cuidar dessas Há tanto belo livro por aí afora aguardando e merecendo uma reedição. Mas talvez seus autores não sejam tão "midiáticos" quancoisas. to a romancista desse Vergonha dos pés. Aliás, não entendi bem a relação do título, do capítulo em que se fala dos pés e o resto do Um romance se estrutura por um romance. Enfim...Um romance se estrutura por um fio condutor, personagens bem delineados, a recriação coerente de um espaço, fio condutor, personagens bem delineum tempo, mesmo imaginários. A impressão que se tem aqui é que a autora não sabe para onde vai e para lá quer levar o leitor. ados, a recriação coerente de um Uma pena. É verdade que a própria autora confessa, no primeiro capítulo do livro, que é difícil narrar uma personagem tão extrema espaço, um tempo, mesmo imaginários. A impressão que se tem aqui é que a autora não sabe para onde vai e para lá quer levar o leitor. Uma pena. É verdade que a própria autora confessa, no primeiro capítulo do livro, que é difícil narrar uma personagem tão extrema quanto Ana. Mas o desafio de qualquer romance é esse mesmo: narrar personagens extremos. Verdade também que, sob os desajeitamentos um tanto ingênuos, vez em quando se sente a possível existência de um autor - como na carta que Ana, a personagem feminina, escreve a Jaime no final do romance. Espero que nos romances posteriores Fernanda tenha podido se livrar do lugar comum, da banalidade de imagens, da tolice de certas frases, de comparações que buscam ser originais mas que nada indicam além do mau gosto. Falar da alma de quem se decepcionou com o amor como de "uma blusa de seda furada por um broche" é de matar. Como é tola a aproximação da imagem de um grande amor a "um boneco suspenso por fios de náilon.". De Ana bêbada escreve a autora: "A cabeça dela girava, acelerada, em círculos de raciocínios negativos". Uff! E nem falo dos cacófatos, tropeços de estilo a que não se dá hoje muita importância, mas que têm seu peso, e incomodam o leitor exigente. Aqui abundam expressões como " ela tinha", ou " como ela", traços a evitar, e para os quais chamavam atenção nossas professoras, nos distantes tempos em que a " escola era risonha e franca". Há tanto belo livro por aí afora aguardando e merecendo uma reedição. Mas talvez seus autores não sejam tão "midiáticos" quanto a romancista desse Vergonha dos pés. Aliás, não entendi bem a relação do título, do capítulo em que se fala dos pés e o resto do romance. Enfim... !!

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C apa Fernando Monteiro ícero Dias e Pablo Picasso foram mais do que amigos com interesses afins, de admiração e amizade elevada ao compadrio. Os dois se conheceram em 1937, quando o pernambucano de Escada procurava alcançar, em Paris, os degraus mais altos do gosto moderno firmado pela chamada ‘’Escola de Paris’’ Logo ao chegar à capital francesa, o ainda jovem Cícero (tinha 30 anos) acusaria, de imediato, o impacto de Guernica, o vigoroso painel - que viria a se tornar mundialmente conhecido - no qual Picasso faz a denúncia da brutalidade da guerra em geral e, em particular, do bombardeio massivo de uma cidade tomada como alvo de treinamento das forças aéreas fascistas. Recém-chegado do Brasil bucólico, Dias pôde contemplar a grande obra ainda no atelier do catalão que ele havia encontrado, primeiro, no ambiente dos cafés parisienses daquela época, freqüentados por artistas e boêmios que participavam de um momento único, de revelação e descobertas cuja intensidade nós hoje mal podemos imaginar, nestes tempos de diluição e pouco talento autêntico. Tudo leva a crer numa afinidade, desde logo, pessoal e de temperamento, fraterna e artística, entre os dois pintores. Em 1938, Cícero teria o prazer de receber Picasso como um dos mais ilustres visitantes da sua mostra (a primeira) na galeria Jeanne Castel. O já consagrado Pablo deixou consignada a admiração das ‘’cores tropicais’’do colega ‘’pintor e poeta’’. E o que Cícero ficaria devendo à ‘’escola’’ informal que foi, para ele, privar da amizade com o gênio espanhol (e com Matisse também), pode ser perfeitamente constatado em algumas obras pintadas pelo brasileiro já no começo dos anos quarenta: ‘’Mulher Sentada com Espelho’’ ‘’Mulher na Praia’’etc. Na concepção desses quadros, nas pinceladas e, sobretudo, nas cores, sente-se as claras marcas do que Paris começava a, digamos, arrematar no espírito do artista cuja originalidade, no entanto, já se anunciara desde 1928 - com o painel de 15 metros mergulhados em alumbramentos que é o magnífico Eu vi o mundo, ele começava no Recife. A influência do mestre espanhol permitiria a entrada do surreal de mistura com

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Encontrei Cícero Dias, o brasileiro, na casa de Pablo Picasso, o espanhol. E era Paris que lhes conservava a luz, a razão de ser: a luz do Brasil, a luz da Espanha, a exuberância, o rigor. Paul Éluard

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o abstrato nas telas ’’parisienses’’ de Cícero: novas cores aparecem na sua paleta e, num sinal imediato, vermelhos e amarelos ’’ritam’’por sobre a luminosidade trazida da pátria. O autor de Guernica era, naturalmente, muito mal visto pelos nazistas que se regiam pelo repúdio de Adolf Hitler - aquarelista medíocre, na juventude - à’’moderna arte degenerada’’etc, e a ligação dos dois artistas atingiu o patamar do sentimento de solidariedade em torno da arte livre e renovada. Ao ser preso e despachado para Baden-Baden, pelos alemães, em 1941, o ainda desconhecido Cícero Dias ganharia um desenho de presente do amigo e pintor célebre que as forças de ocupação não ousavam incomodar, naquela altura. Levado para um campo de concentração (onde também se achava confinado o diplomata João Guimarães Rosa), Cícero é posto em liberdade em troca de alguns alemães presos no longínquo Brasil, e opta por se abrigar no Portugal neutro. E quando inaugura exposição em Lisboa, um retrato seu é enviado, de Paris, com a assinatura que se tornaria o fetiche principal da arte moderna. Picasso tem saudades do brésilien de Pernambuco, e escreve (no livro O prazer agarrado pela cauda):’’a presença de Dias em Paris é necessária’’ Parecendo querer cumprir com tal vaticínio, Cícero irá se casar com a francesa Raymonde e fixar residência na ‘’capital das luzes’’, pelo resto da vida. Picasso vem a ser também padrinho de Sylvia - única filha do casal Dias - e, para fugir do assédio dos importunos, o espanhol manterá arranjado com o amigo brasileiro que um número de telefone seu (e que somente Pablo usa) figure como de propriedade de Cícero, durante anos, na lista de endereços, segundo se lê no livro Cícero Dias - Uma vida pela pintura (Simões de Assis Galeria de Arte, 2001). E sem a intervenção pessoal deste, o seminal Guernica dificilmente teria vindo abrilhantar a inauguração da segunda Bienal de São Paulo, no final de 1953. Foi, portanto, uma amizade verdadeira, dos tempos em que elas eram ricas de trocas generosas, e podiam existir, sim, entre dois talentos seguros. !!


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Mariana Oliveira s modernistas brasileiros tinham um olho no país e outro em Paris. E não era por menos. Não se pode pensar a arte brasileira de princípios do século 20 sem voltar-se para a movimentação artística que tomava conta da Europa: o Cubismo de Pablo Picasso e o Fauvismo de Henri Matisse, na França; o Construtivismo de Tatlin e o Suprematismo de Malevich, na Rússia; o Futurismo na Itália, o Surrealismo, o Dada... Apesar da variedade de correntes e idéias, as vanguardas artísticas do século 20 tinham em comum o desejo de quebrar paradigmas. Eram contra o academicismo, as escolas tradicionais de belas artes e as regras dos salões oficiais. Foi em busca de novidades no campo da arte que, no final do século 19, muitos artistas brasileiros migraram para a capital francesa, lapidando uma formação artística mais completa, mais inovadora, mais moderna, que pudesse tirar a arte brasileira do provincianismo. Quem chegou ali se surpreendeu, em 1906, com a tela A alegria de Viver, de Henri Matisse, que foi recusada no Salão Oficial de Paris, sendo exibida no Salão dos Recusados. Em 1907, ano do nascimento do pernambucano Cícero Dias, Picasso finalizava o quadro Les Demoiselles D'Avignon, que é tido como a obra fundadora do Cubismo. Em 1917, foi a vez do “enfant terrible” Marcel Duchamp apresentar a sua Fonte, um urinário de louça com a assinatura R. Mutt, que entrava para a História da Arte como um ready-made. Não havia dúvidas: o centro cultural mundial era Paris. Intelectuais, escritores, pintores e escultores reuniram-se na cidade, criando uma atmosfera revolucionária e liberal, favorável à reflexão. Os primeiros anos do século 20 foram tão marcantes na cidade luz que o escritor americano Ernest Hemingway escreveu o livro Paris é uma festa para contar suas aventuras juvenis na cidade. Gertrude Stein, Paul Éluard, Pablo Picasso, Henri Matisse, Fernand Léger, Blaise Cendrars eram alguns dos nomes que circulavam por lá. Boa parte dos artistas modernos brasileiros bebeu da fonte parisiense, conhecida como a Escola de Paris. Conviveram ali, num primeiro momento, Villa-Lobos, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Sérgio Milliet, cuja aproximação com Léger, Bracusi e Cendrars foi essencial na formação dessa primeira geração modernista. Anita Malfati passou o ano de 1913 estudando em Paris, pouco depois, em 1917, expôs suas obras no Brasil, incitando a ira de Monteiro Lobato. Entre 1920 e 1950, o universo artístico brasileiro foi intensamente refrescado pelas propostas da Escola de Paris. Segundo a crítica de arte Aracy Amaral, a influência francesa no Brasil culminou com modernismo dos anos 20. Em 1929, Candido Portinari ganhava a bolsa de estudos estrangeiros e partia para Europa. Em 1937, perseguido pelo Estado Novo, foi o momento do pernambucano Cícero Dias que desembarcou em Paris, onde criou raízes e tornou-se, talvez, o maior pintor modernista brasileiro. De Pernambuco também passaram temporadas em Paris os pintores Vicente do Rego Monteiro, que permaneceu por um longo período, e Lula Cardoso Ayres, que passou apenas um ano, já que seu irmão não se acostumara com o clima parisiense. Conta-se, inclusive, que Vicente do Rego Monteiro trocou pelo menos 11 obras - hoje no acervo do MAMAM - por passagens para a capital francesa com a Prefeitura do Recife. Em 1930, Rego Monteiro trouxe para o Brasil, leia-se Recife, Rio de janeiro e São Paulo, uma exposição com obras dos principais representantes da Escola de Paris, entre eles Picasso, Braque, Léger e Miró. As obras foram expostas no Teatro de Santa Isabel e não contaram, digamos, com a empolgação do público local. Se Rego Monteiro trouxe a Escola de Paris, Cícero Dias trouxe a Guernica. É curioso perceber que entre esses dois mestres pernambucanos, talvez aqueles que melhor conseguiram estabelecer o diálogo entre o regional com as tendências modernistas, que viveram em Paris, em períodos similares, não tenham vínculos próximos de relação. Ao que parece, havia na verdade certa animosidade entre eles, causada por posições políticas opostas. Hoje, não há nada equivalente a Paris dos primeiros anos do século 20. Os artistas contemporâneos têm possibilidades maiores de entrar em contato com as novidades que estão surgindo no mundo da arte através da internet e dos muitos meios de comunicação. Além disso, não há mais um centro hegemônico. As fronteiras entre o centro e a periferia estão borradas. De toda forma, ao olhar para trás, fica certa nostalgia. Histórias de uma cidade que pulsava pela agitação cultural. Uma Paris fundamental na formação dos melhores artistas brasileiros do período, que ajudou o desenvolvimento de trabalhos como o de Cícero Dias, cuja obra, com maestria, consegue ser cosmopolita e, ao mesmo tempo, eminentemente pernambucana. Afinal: “Eu vi o mundo e ele começava no Recife”. !!

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Cultura, afeto e encontros no

Renata Amaral Por que, afinal, comemos? Ao lado da óbvia resposta sobre a ingestão dos nutrientes necessários à vida, repousam muitos outros pontos que elevam a alimentação de tema periférico ao status de assunto essencial na contemporaneidade. A gastronomia está na moda, mas será que paramos para pensar nos motivos pelos quais ela se faz cada vez mais presente em nosso cotidiano? Ou simplesmente seguimos nos alimentando, sem nos dar conta de tudo que esse simples ato envolve? Ou sabemos, ainda que instintivamente, que cultura, afeto, encontro e arte fazem parte do prato nosso de cada dia? “Muito antes de optar pela cidadania brasileira, aos 18 anos, já vinha devorando o Brasil na forma da cocada, da goiabada, do arroz com feijão, do bife acebolado, tudo tão nosso”, conta a socióloga e psicóloga húngara Anna Verônica Mautner, em uma das histórias do recém-lançado livro Céu da boca: lembranças de refeições da infância. Antropofagicamente, como ela mesma diz, a menina estrangeira ia assimilando nosso país pela boca. Por outro lado, o exílio nem sempre é deglutido com a desenvoltura da pequena húngara que chegou ao Brasil ainda criança e fez do país sua pátria. Há pessoas que vivem em países estrangeiros e sempre acabam voltando à ”comida de casa”. Festa de brasileiro no exterior é sinônimo de feijoada e brigadeiro, quase sempre adaptados - a contragosto, cabe mencionar - com os ingredientes disponíveis no local. A identidade com uns é também, afinal, a diferenciação em relação a outros, e a alimentação é uma das formas de reafirmar essa condição. A seleção dos alimentos é culturalmente condicionada - comemos aquilo que é considerado usual, ou mesmo lícito, em determinada sociedade. A simples menção de que se comem cães ou gafanhotos em certos países asiáticos faz os brasileiros torcerem o nariz, a despeito de pratos não menos exóticos, como tanajuras, constarem no cardápio nacional. A sensação de pertencimento a um local, assim, passa pela boca.

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As receitas, inclusive, se encaixam na noção de patrimônio cultural imaterial, segundo designado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Trata-se de um conjunto de conhecimentos, práticas e representações considerados por grupos como parte de sua herança cultural, transmitida de geração a geração para promover um senso de identidade e continuidade. No Brasil, o acarajé, tradicional quitute baiano que consiste em bolos de feijão fradinho fritos em óleo de dendê com camarão seco e pimenta, foi certificado como patrimônio cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2004. No ano passado, foi a vez de a tapioca ser tombada como patrimônio cultural imaterial pela Prefeitura de Olinda e pelo Conselho de Preservação do Sítio Histórico. O objetivo da ação é cuidar da preservação da iguaria, considerada a partir de agora como peça essencial da memória da cidade. A sociabilidade é outro ponto que nos leva à comida. O filósofo grego Plutarco costumava dizer que não nos sentamos à mesa para comer, mas para comer juntos. Claro que a festa sensorial que uma bela refeição provoca é, por si só, motivo suficiente para estimular a alimentação, mas são os encontros que ocorrem nas horas de comer que dão um sabor a mais ao cotidiano. Além dos almoços e jantares familiares em casa, cada vez mais escassos devido aos desencontros de horários, boa parte das atividades sociais se dá em torno da mesa, que se torna local de trocas afetivas ou profissionais. Ao espaço de agregação, mais uma vez, contrapõe-se o espaço de segregação, seja de quem não é considerado como membro daquele grupo, seja daqueles excluídos socialmente, num contexto mais amplo. A alimentação passou a ser preocupação recorrente dos historiadores da vida privada, que se ocupam de refazer os caminhos das sociedades não pelos grandes acontecimentos, mas pelo que acontece no dia-a-dia das pessoas comuns.


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prato nosso de cada dia

À pergunta ”Qual o seu prato favorito?”, quem ousaria pensar em uma criação de um grande restaurante? Aqui, está em jogo algo que vai muito além da combinação harmoniosa de sabores e aromas - é aquele ingrediente secreto que só existe na comida de casa (leia-se aqui, geralmente, casa dos pais ou dos avós) e que chegou a ser descoberto por uma antiga peça publicitária, mas que definitivamente não se compra em pacotinhos: amor. Na eterna mania de criar rótulos, os meios de comunicação de massa vêm chamando de confort food aquele tipo de comida cujos segredos moram em cadernos de receitas de páginas já amareladas pelo tempo. Mais doce e apropriada é a denominação da cronista Nina Horta, que cunhou a expressão comida de alma para todo alimento que desce carinhosamente pela garganta, de preferência feito para se comer de colher e recendendo a infância, como arroz doce, pudim de leite e purê de batata. Basta levar o talher à boca para encher os olhos com memórias. Às vezes, só o cheiro da panela no fogão basta. Apreciação estética é uma definição ainda pouco aplicada à alimentação, mas que deve também ser lembrada. O francês Antonin Carême, primeiro cozinheiro a se tornar famoso em toda a Europa, servia a nobreza no século XIX e garantia que as belas-artes eram cinco: a pintura, a escultura, a poesia, a música e a arquitetura, cujo ramo principal era a pâtisserie. A frase tem jeito de piada ao colocar a doçaria como área da arquitetura, mas ele não estava para brincadeira quando preparava suas sobremesas, monumentais em todas as acepções da palavra. Os cinco sentidos são despertados quando degustamos algo especial e não é por acaso que alguns grandes chefs são considerados verdadeiros artistas ou mesmo gênios. Quando se sabe que a alimentação é uma das áreas em que as pessoas são mais conservadoras e presas a seus hábitos, o valor da gastronomia como criação parece ainda maior, pois é preciso abrir-se para o novo, acatar experiências nunca antes sentidas, deixar preconceitos de lado. No livro que leva o sugestivo título de A razão gulosa, o filósofo francês Michel Onfray avisa que é preciso confiar nas impressões e ouvir o corpo para adentrar no campo da gastronomia. “Trata-se de sermos sinceros com a emoção culinária e, por-

G astronomia tanto, com nós mesmos; buscar sem necessariamente encontrar, de interrogar o prato ou o vinho, de deixar primeiro agir o nariz e a boca, de aceitar a emoção, e depois decodificar, classificar, isto é, praticar tal qual um amador de pintura ou de música em sua área e com os sentidos apropriados. Trata-se, enfim, de fazer emergir os sentido”, afirma. Não por acaso, o filósofo defende que a crítica gastronômica seja tratada, sim, como crítica de arte, pois a estimulação sensorial da degustação seria similar à experimentada na fruição de outras artes. Ao contrário do que preconizavam obras de ficção científica de décadas atrás, o futuro da alimentação não estava em cápsulas repletas de nutrientes e zeradas de sabor. Não poderia ser de outra forma, pois ingerimos alimentos por muitos motivos além da mera sobrevivência. Continuamos comendo e não pensamos em largar esse hábito tão cedo - e hoje é justamente a volta da simplicidade e a redescoberta do poder dos bons ingredientes que têm imperado. No gorduroso rastro da fast food, eis que surge como contraponto a slow food, que nada mais prega do que o prazer de se reunir à mesa calmamente para experimentar produtos naturais, de preferência plantados próximos à região do consumidor. Por mais utópico ou ingênuo que possa parecer, esse movimento não deixa de ser uma bandeira na contramão da industrialização, em que alimentos frescos são substituídos por outros tão processados que mal conseguimos identificar. Permitir que se sinta o gosto de cada elemento no prato - em vez do uso de técnicas mirabolantes que reinou em outras fases da alta gastronomia - também é o que pretendem, cada um à sua maneira, boa parte dos grandes chefs atuais. A cozinha molecular ou fusion food, cujo nome mais conhecido é o espanhol Ferrán Adriá, levou as panelas para o laboratório para transformar os alimentos, explorando todas as suas possibilidades. O resultado são ingredientes conhecidos em formas nunca antes vistas, com direito a espumas, extratos, concentrados e explosões na boca. Desconstruir para reconstruir. Se a cozinha é mesmo arte, pode-se dizer que eles são artistas de vanguarda, cujas influências começam a se espalhar pelo mundo. A criatividade de cada chef é festejada como nunca, mas quem reina de verdade é a comida. Como deve ser. !!


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Após dez anos de lançado o CD OK Computer do Radiohead ainda aponta as angústias do homem contemporâneo Haymone Neto eitgeist. Meu dicionário Langenscheidt de bolso diz que isto significa “espírito da época”. Se fosse possível definir em uma única palavra o OK Computer, álbum da banda inglesa Radiohead lançado há dez anos, seria esta. Nenhuma banda ou artista pop conseguiu traduzir tão bem o espírito dos anos 90 quanto aquele quinteto de Oxford, que, com este disco, atingiu o estrelato global. Traduzir o sentimento de um determinado momento histórico parece ser uma característica comum aos álbuns clássicos do rock, e é a sua presença em forma de letra e música que coloca OK Computer neste panteão. O Zeitgeist do fim dos anos 60 estava no Revolver (1967), dos Beatles, quando John Lennon cantava “desligue sua mente, relaxe e flutue pela correnteza” no auge do flower power. Ou quando o Clash chamava a juventude dos subúrbios de todo o mundo a atender ao chamado de Londres e declarar guerra ao establishment em London Calling (1979), no começo da Era Thatcher. E também quando Thom Yorke, tentando descansar da sua paranóia urbana, pede ao vizinho que, por favor, pare com o barulho, antes de ameaçar fuzilá-lo no paredão. Era junho de 1997 quando o Radiohead lançou OK Computer, o álbum de rock mais influente, mais comentado, mais discutido, mais importante e um dos mais ouvidos daquela década, mas podia ser 2007. Quase dez anos depois de chegar às lojas, é difícil aceitar que um disco ainda soe tão contemporâneo. Esta atualidade, contudo - característica das grandes obras de arte - demonstra também o tamanho do estrago causado pela obra-prima do quinteto de Oxford, Inglaterra: há dez anos a música pop não nos traz um trabalho comparável em termos de sucesso de crítica e público. Depois dele, os anos 90 não seriam os mesmos. Nem o rock. Tampouco a banda. Poucos meses após seu lançamento, OK Computer já figurava nas incansáveis listas de melhores discos de todos os tempos elaboradas pela imprensa internacional, ao lado de medalhões como Beatles, Beach Boys e David Bowie. Imitadores de toda espécie surgiram, emulando o vocal em falsete de Thom Yorke e o ataque agressivo à guitarra de Jonny Greenwood. Eles estão por aí até hoje, estampados nas capas das revistas de música mais badaladas e vendendo milhões de discos, enquanto o Radiohead zarpou em busca de novos oceanos musicais. O som que a banda desenvolveu não mais a ela pertenceria. OK Computer foi inovador em todos os aspectos: nas composições, na abordagem e incorporação de novos instrumentos, na produção do então desconhecido Nigel Godrich, nos temas das letras e até no projeto gráfico de Stanley Downwood - uma colagem esquizofrênica de fotografias, mapas, placas, desenhos feitos à mão, logomarcas, textos e palavras em esperanto. Talvez tudo isso já tivesse sido feito, mas a mágica do OK Computer está justamente no balanço perfeito de todos esses elementos naquele momento. Que parece durar até hoje. O álbum começa com um acidente de carro. As notas tocadas no violoncelo, acompanhadas pelas cordas graves da guitarra e seguidas da bateria sincopada, anunciam a freada súbita, o cantar dos pneus, o grito, o descontrole do veículo girando no ar e sendo destruído pelo impacto com o asfalto. Nós fechamos os olhos e, por um instante, tudo parece ter terminado: escuridão. Mas o ar ainda atravessa os pulmões; o coração, acelerado, continua a bater, e então os olhos voltam a se abrir: nascemos de novo. “Estou surpreso de ter sobrevivido/Um airbag salvou minha vida”, canta Thom Yorke. Em seguida, um violão dedilhado nos leva ao quarto de um cidadão aparentemente comum, que tenta em vão pegar no sono, mas é perturbado por vozes que ecoam em sua cabeça - dos amigos, dos colegas de trabalho, dos parentes, dos transeuntes, dos rapazes sentados no balcão do bar. Ele dorme. No sonho, sob um riff caótico de guitarra, segura o presidente da empresa pela gola com uma mão, e o facão com a outra. “Você não lembra do meu nome?/Aposto que sim!”, ameaça. Toca o despertador, a guitarra dá lugar a um coral: suado, com o coração em disparada, nosso herói acorda. É mais um dia de trabalho. Com sua estrutura esquizofrênica, suas explosões e subseqüentes calmarias e seus mais de 6 minutos (até hoje, a música mais longa da banda), esta é Paranoid Android, carro chefe do OK Computer e primeira música de trabalho do álbum - talvez por ser a mais emblemática. Depois disso, nós ainda passamos por decepções, somos presos pela polícia do carma, trancafiados num porão escuro, ignorando o chamado do chefe de Estado, assistimos ao comício de um político corrupto, e respiramos um pouco de monóxido de carbono. Mas, como num filme de Tarantino, antes do final do álbum, bem na última faixa, o Radiohead nos leva para o momento anterior ao acidente. A mil pés por segundo, um passageiro questiona: para onde diabos estamos indo? Antes de gritar, em desespero: devagar, idiota! É o fim. O mundo pode ter mudado substancialmente desde então, com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e a ameaça cada vez mais próxima das conseqüências do efeito estufa. O zeitgeist pode não ser exatamente o mesmo. Mas nós ainda estamos com medo. E ninguém, na música, captou tão bem este espírito e soube transformar isto em sons e palavras quanto o Radiohead. !!

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or tradição, o anúncio dos nomes dos candidatos ao Oscar é feito em Los Angeles (EUA), em uma cerimônia discreta que acontece durante alguma madrugada de janeiro, todos os anos. O presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, instituição que oferece a estatueta mais famosa do cinema internacional, é o encarregado do anúncio, e o faz sempre acompanhado de algum ator famoso, invariavelmente norte-americano. No dia 23 de janeiro passado, curiosamente, esta tradição foi quebrada. Ao lado do veterano Sid Gaines, estava a atriz mexicana Salma Hayek. No momento, muita gente percebeu que a presença da estrela latina naquela cerimônia não era gratuita. Hayek estava ali para sinalizar uma forte tendência contemporânea à latinização em Hollywood. Uma olhada rápida na lista de indicados ao prêmio deixa este fenômeno flagrante. Sozinho, o México abocanhou dezesseis indicações a troféus importantes, inclusive melhor diretor (Alejandro González Iñárritu). Não demorou mais do que algumas horas para que críticos de cinema em todo o mundo fizessem as contas e analisassem a razão da presença de Salma Hayek - se o Oscar 2007 fosse entregue a um país, esta nação seria o México. Como sempre acontece nos intrincados bastidores da indústria cinematográfica, porém, este cenário é bem mais complexo do que se pode supor em uma análise apressada. A blitzkrieg latina (não apenas mexicana) em Hollywood é fato concreto, mas deve ser vista apenas como a ponta de um iceberg cultural que merece uma análise mais cuidadosa. Para começar, uma invasão estrangeira em Hollywood não significa, de forma alguma, novidade. A indústria do cinema nos Estados Unidos sempre foi parcialmente dominada por estrangeiros, desde as origens, que remontam às primeiras décadas do século XX. No período de ouro de Hollywood (os anos 1930 e 40), quando os fundamentos da linguagem cinematográfica moderna estavam sendo criados, os grandes estúdios receberam, de braços abertos, um enorme lote de cineastas europeus talentosos, quase todos fugindo dos horrores provocados pela ascensão do nazismo. A lista é longa, e inclui os austríacos Billy Wilder, Otto Preminger e Fred Zinnemann, além dos alemães Fritz Lang, Josef von Sternberg, Erich Von Stroheim, F.W. Murnau e Ernst Lubitsch, e do dinamarquês Douglas Sirk. Mais recentemente, outra “invasão estrangeira” de destaque em Hollywood ocorreu a partir do final da década de 1970, quando profissionais egressos do Leste europeu passaram a dominar a área da fotografia em Hollywood. Mestres da luz como Vilmos Szigmond (Um Estranho no Ninho), Laslo Kovacs (Sem

Destino) e Janusz Kaminski (A Lista de Schindler), se estabeleceram nos EUA neste período. De fato, a lista de diretores e técnicos estrangeiros que migraram para Hollywood é gigantesca. Via de regra, quando um diretor se destaca fazendo bons trabalhos em casa, não demora muito a ir filmar em Hollywood, seduzido pelos orçamentos generosos e condições técnicas insuperáveis. Grandes autores, como o italiano Michelangelo Antonioni e o alemão Wim Wenders, sempre fizeram este caminho. Em todos os exemplos citados, há uma semelhança: gênios ou “apenas” técnicos de talento, todos receberam reconhecimento internacional, mas nenhum conseguiu impor a Hollywood sua própria maneira de trabalhar, incluindo uma visão de mundo nãoamericana. Pense bem: existe algum exemplo de cineasta não-americano capaz de trabalhar livremente, nos intestinos da indústria cinematográfica, fazendo gran-

A influência latina no cinema americano não é de hoje des filmes e apresentando neles exatamente aquilo que deseja, sem a interferência de exe-cutivos vigilantes? Pouco provável. Hollywood está sofrendo com a queda de público nas salas de cinema desde o ano 2000, e vem sendo acusada de incompetência no combate à pirataria. Porém, no que trata de proteger a essência da ideologia do sonho americano, a fábrica de sonhos continua impecavelmente eficiente. Por mais incendiárias e iconoclastas que algumas obras possam parecer na superfície, elas nunca ameaçam o legendário “american way”, sempre intacto nas entrelinhas de cada filme. Estrangeiros sempre foram e sempre serão bem-vindos nos Estados Unidos, tanto em Hollywood quanto em qualquer outra área de interesse profissional. Se forem profissionais dedicados e talentosos, tanto melhor. Os recém-chegados, contudo, se integram à indústria do cinema como operários em uma linha de montagem. Chegam, trabalham, fazem bons filmes (ou ótimos, ou péssimos). Muitos ficam milionários e famosos. Mas olhe o quadro de uma escala maior e verá que diretores ou profissionais do cinema, em qualquer nível hierárquico, nunca interferem nas engrenagens na fábrica de sonhos. A ideologia do sonho americano continua lá. O raciocínio nos traz de volta à latinização de

Hollywood. As dezesseis indicações do México foram conquistadas por três filmes que, aparentemente, nada têm em comum: a ficção distópica Filhos do Amanhã, de Alfonso Cuarón; o melodrama Babel, de Alejandro González Iñárritu; e a mistura de cinema fantástico e filme de guerra O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro. Três filmes interessantes, feitos por diretores jovens, talentosos e nascidos no México. O elo de ligação mais importante entre os três está nas notas de produção - nenhum foi feito no México (à exceção de um pequeno trecho de Babel). Cuarón filmou e ambientou seu filme na Inglaterra. Del Toro foi à Espanha para conseguir financiamento e atores. Iñárritu, que montou uma ambiciosa e lacrimosa teia de eventos conectados em várias partes do mundo, teve o astro norte-americano Brad Pitt como produtor executivo. Nenhum destes filmes é sobre o México ou sobre o povo latino. A visão de mundo dos três é parecida - o olhar de um liberal morador de metrópole dos EUA. Um olhar globalizado (e, portanto, americano) de esquerda. Além disso, a invasão latina não começou realmente em 2007. A chegada dos brasileiros Fernando Meirelles e Walter Salles para filmar por lá, há alguns anos, exemplifica perfeitamente como os grandes estúdios absorvem o talento estrangeiro. Ambos receberam ofertas de trabalho após se destacarem com filmes nacionais de força (Meirelles com Cidade de Deus, Salles com Central do Brasil). Tiveram bons atores e orçamentos decentes para realizar filmes interessantes (respectivamente, O Jardineiro Fiel e Água Negra). Interessantes, mas sem alma brasileira. Obviamente, não se pode desprezar o fato de que a influência latina é culturalmente crescente nos Estados Unidos, sobretudo na costa oeste - a Califórnia, como todos sabem, era território chicano no século XIX, e por lá existem mais emissoras de rádio transmitidas em espanhol do que em inglês. É de supor que o sucesso dos profissionais mexicanos em Hollywood (poderíamos citar, além dos três diretores e de Salma Hayek, também os nomes dos diretores de fotografia Guillermo Navarro e Emmanuel Lubezki, e mais um punhado de nomes ascendentes em posições secundárias) tenha relação com isto. Daí a imaginar o cenário hiper-otimista que alguns já discutem, a suposta invasão latina, vai larga distância. Não se discute que Cuarón, del Toro, Salles, Meirelles e outros são competentes e podem continuar fazendo filmes maravilhosos nos Estados Unidos. Talento, todos têm de sobra. Mas, lá, eles jamais poderão criar um Cidade de Deus, um Central do Brasil, um E Sua Mãe Também. !!

Rodrigo Carrero

De como chicanos e latinos estão reformulando a técnica e a sensibilidade hollywoodiana

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Schneider Carpeggiani

“Computador, impressora e uma pilha de livros”

Rogério Pereira, editor do Rascunho, comenta o polêmico jornal literário curitibano

á sete anos, o jornal curitibano Rascunho vem colocando de cabeça para baixo a crítica literária do País: A cada mês a publicação não poupa acidez quando necessária - num território que tradicionalmente é cheio de polidez e “não-me-toques”. Escrever é dar a cara a tapa, o papel impresso passa a idéia de um “sem volta” que a maioria dos autores brasileiros parece não querer aceitar. O inferno são os outros, ou uma resenha negativa no Rascunho, como muita gente já aprendeu. Nesta entrevista para o Pernambuco, o editor Rogério Pereira comenta sua delicada decisão em não aceitar o esquemão da grande imprensa literária do país, discute o que seria esse danado de jornalismo cultural e lembra por que ousa “fugir das panelinhas literárias, das amizades com segundas intenções, dos grupinhos que infestam a literatura brasileira”.

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PERNAMBUCO - Nestes sete anos de existência, que diferencial o Rascunho trouxe para a crítica literária brasileira? ROGÉRIO PEREIRA - Nunca tive a pretensão de, com o Rascunho, revolucionar a crítica literária no Brasil. O jornal nasceu de uma brincadeira quase juvenil e de uma inquietação - um certo enfado com os rumos da maioria dos cadernos literários. Não podemos esquecer que a literatura é, há um bom tempo, tratada com desdém pela grande imprensa (o surgimento de algumas revistas especializadas tem ajudado a melhorar um pouco este quadro). Praticamente todos os cadernos literários dos jornalões são deficitários economicamente. Por isso, boa parte deles não paga pelas colaborações. Isso também acontece no Rascunho, mas é um veículo independente, sem um grande grupo de comunicação a bancá-lo. Esta situação, me parece, fragilizou em demasia a crítica literária nos jornais. Na maioria dos casos, virou um quintal para amigos se afagarem mutuamente, com num churrasco de fim de semana. Se se levar em consideração a imensa maioria das resenhas publicadas nos jornais brasileiros, a literatura brasileira atual está repleta de gênios, de obras-primas em cada esquina. É amigo falando de amigo quase o tempo todo. Ou então inimigo destruindo inimigo. Basta um olhar mais atento para perceber como são ocupadas as trincheiras. Quando o Rascunho nasceu, eu expliquei que o jornal seria um amplo palco para discussões, publicando as mais diversas opiniões. Isso se mantém até hoje. É claro que muitos amigos afagaram amigos no Rascunho e muitos inimigos destruíram o opositor nas páginas do jornal. Há sete anos editando o jornal, sei muito bem como as coisas funcionam, mas tento o tempo todo colocar a casa em ordem. Acho que tenho conseguido. Se o Rascunho fez algo pela crítica literária brasileira, ouso dizer que foi tentar fugir das panelinhas literárias, das amizades com segundas intenções, dos grupinhos que infestam a literatura brasileira. Muitas vezes, conseguimos; outras tantas, naufragamos. PERNAMBUCO - Em várias edições do Rascunho há “lembretes” reclamando da falta de anunciantes. Com

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essa dificuldade, como o jornal tem conseguido manter sua qualidade? E por que você acha que é tão difícil o Rascunho atrair anunciantes? ROGÉRIO PEREIRA - O Rascunho só sobrevive se tiver dinheiro. Isso é óbvio. Muitas vezes, tirei dinheiro do bolso para bancar o jornal. Sempre valeu a pena. Mesmo com todas as dificuldades, hoje é relativamente fácil manter a qualidade do Rascunho: os colaboradores espalhados por todo o país acreditam muito no projeto. Ninguém ganha um centavo sequer para escrever no Rascunho, mas aceitam com entusiasmo as pautas que sugiro e participam ativamente das discussões sobre os rumos do jornal. Eu sou o único com dedicação exclusiva ao jornal. Faço praticamente tudo: edito, diagramo, corro atrás dos anunciantes e cuido das assinaturas. Portanto, é um jornal com baixíssimo custo operacional. Mas não o teríamos se não fosse o empenho dos cerca de 30 colaboradores a cada edição. Toda a arrecadação mensal (anúncios + assinaturas) é utilizada na manutenção do projeto. Mas também tocamos alguns projetos paralelos que ajudam na sobrevivência do jornal, como a Oficina de Criação Literária Rascunho, com José Castello, e o Projeto Paiol Literário. A dificuldade de o Rascunho conseguir verbas publicitárias é igual à dos cadernos literários dos grandes jornais. Os anunciantes, simplesmente, não estão interessados. A literatura não é levada a sério pelo chamado mercado publicitário. É preciso ter uma tiragem monstruosa para um retorno satisfatório para o anunciante. O Rascunho tem 5 mil exemplares, com cerca de 10 mil leitores na versão papel. Contando o nosso site (www.rascunho.com.br), chegamos a uns 20 mil leitores/mês. Para um jornal independente, acredito ser uma façanha, mas o mercado publicitário não nos vê assim. Entre o Rascunho e a Folha de S. Paulo, por exemplo, uma editora vai optar por um veículo que venda o seu produto/livro. No entanto, em 2006, o Rascunho contou com excelentes anunciantes: Itaipu, CPFL, Caixa Econômica Federal, Editora da Unicamp, Sesi, Fundação Cultural de Curitiba. Nada desprezível para um jornal que, além da marca, do prestígio e dos inimigos, tem em seu patrimônio um computador, uma impressora e uma pilha de livros. PERNAMBUCO - O Rascunho já travou inúmeras polêmicas, como em relação a Sebastião Uchoa Leite ou com João Gilberto Noll. Como você avalia a dificuldade do escritor brasileiro em receber críticas? ROGÉRIO PEREIRA - O brasileiro não gosta de crítica. O escritor brasileiro não sabe lidar com a crítica negativa. Desmancha-se feito um boneco de neve na praia. Mas há boas exceções. Acho que, em geral, os escritores estão muito mal acostumados com as benesses do cunhadismo, todo mundo falando bem de todo mundo, por pior que seja o livro. Como muitos dos resenhistas dos jornais são também escritores, eles normalmente não escrevem críticas negativas, que eu considero muito importantes, com o receio do contra-ataque mortal quando lançar o seu livro. É uma estratégia muito pensada e simples: “eu falo bem do livro do sicrano e o sicra-

no fala bem do meu livro”. É ridículo. No Rascunho, acontece de muitos escritores mandarem críticas de seus livros, escritas por amigos. É um absurdo. Eu, obviamente, evito publicar. Todos que estão no barco do Rascunho sabem que mesmo sendo colaboradores do jornal podem receber críticas negativas a seus livros. Isso já aconteceu muitas vezes. Quem não gostar que pule do barco. Também temos uma questão que me parece central em relação a esta discussão: há poucos críticos puros escrevendo nos jornais. A maioria é escritor que escreve resenha. Ou jornalista com ambição literária. Dá para contar nos dedos os críticos (aqueles que se dedicam somente à crítica) com atividade permanente nos jornais. PERNAMBUCO - Toda cidade tem seus mitos literários, seus fantasmas. No caso de Curitiba, dois são bem ostensivos - Leminski, Dalton Trevisan. Como O Rascunho lida com esses “mitos”/”fantasmas”? ROGÉRIO PEREIRA - Não nos preocupamos com “mitos” e “fantasmas”. Estamos preocupados com uma ampla discussão sobre literatura. No caso do Dalton, ele já recebeu críticas negativas e positivas no Rascunho; o Leminski já levou alguns “sopapos”, mas com alguma educação. A iconoclastia foi muito cultuada no início do Rascunho. Hoje, as coisas se tornaram mais brandas. Mas o jornal continua com olhar crítico afiado, mas sem nunca perder a ternura. PERNAMBUCO - Nos últimos anos, temos visto surgir inúmeros cursos e debates sobre o que seria jornalismo cultural. Daí, tiramos duas questões: O que seria jornalismo cultural? E mais importante: Qual sua avaliação dos cursos de jornalismo cultural que você já teve contato? ROGÉRIO PEREIRA - Não sou a pessoa mais adequada para responder esta questão. Há algum tempo, abandonei o jornalismo diário, deixei o cargo de chefe de redação da Gazeta do Povo (principal jornal do Paraná) para me dedicar exclusivamente ao Rascunho. Não acredito neste tipo de jornal impresso diário feito hoje em dia. Pouca coisa se salva. Sou contra o diploma para jornalista. Há muitas universidades de comunicação com um bando de professores que não tem nem idéia da profissão. Portanto, tenho me mantido distante de qualquer tipo de debates e cursos sobre jornalismo cultural. Não posso avaliar as especializações e cursos de jornalismo cultural. Não me interesso por isso. Agora, o que é jornalismo cultural? Tenho certeza de que o bom jornalismo cultural passa muito longe deste feito atualmente na maioria dos jornais e revistas espalhados pelo Brasil. Jornalismo cultural deve ser pautado por amplas discussões, discussões abertas, sem preconceitos ou amizades. O bom texto deve ser sempre prioridade. O que vemos hoje é a redução gradual dos espaços, o encolhimento dos textos, o fim dos espaços para discussão. Veja em que a Editora Abril transformou a revista Bravo! Mas esta discussão tomaria muito mais tempo e teria infinitos caminhos a serem tomados. !!


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A nálise

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uando surgiu há exatos 10 anos agregando expressões artísticas numa per- grupo pernambucano em muito se assemelham, o que torna a sua inclusão formance teatral, o Cordel do Fogo Encantado reinventou a roda dos anti- no disco uma atitude conceitual, uma assumida crença na morte do autor gos gregos (especialmente os que se dedicavam aos ritos órficos) para quem a poe- individual e na premissa de que todo texto é fruto de uma criação coletiva. As sia era assumida em total corporalidade e o poeta, sacerdote ou xamã, oferecia aos alusões que a música faz a Ana C. são biobibliográficas. Surgem, primeiro no mortais a escuta da voz dos deuses. Nesse sentido, a junção ritualistica entre teatro, título do livro da poeta carioca, depois no dado biográfico (seu suicídio) e, música e poesia que o grupo pernambucano realiza, e que tanto encanta o públi- finalmente, no intertexto propriamente dito: co, obedece a uma tradição cultural do Ocidente que conta alguns milhares de anos. Nada de novo debaixo do sol, dirão alguns. No entanto, ao optar pelo camPela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem inho da poesia, o grupo traça uma rota ou um círculo em torno de si mesmo. medir as conseqüências (...) Delimita seu espaço, define sua identidade e identificações, apresenta seu daimon. O acento marcadamente sertanejo das composições do primeiro disco, Cordel (Mocidade Independente - Ana Cristina Cesar) do Fogo Encantado, denota um Nordeste rico em sonoridades, atento à natureza e seus ciclos, filho de uma saudade nostálgica de um antigo mundo de aedos A inclusão de um outro autor, Italo Calvino, e seu O Barão nas Árvores, segue o cantadores, de lamentos mouros, de um batuque viril misto de índio e de mesmo percurso conceitual. Nas Lições Americanas, em capítulo dedicado à multiafricano. Um Nordeste arquetípico e oscilante entre a realidade e a invenção. Um plicidade, Calvino fala de uma literatura enciclopédica, "rede de conexões entre os discurso construído dessa forma fatos, entre as pessoas, entre as coisas do não poderia fugir do sotaque acenmundo". Uma escritura que quanto mais tuado, visto que é ele que o legitise afasta do self do autor mais se Micheliny Verunschk ma. Assim, do nome do grupo à enriquece, preconizando uma poética do última faixa, o poema Ai se Sesse, inventário. No caso dessa música, em parde Zé da Luz, há um estabelecimenticular, é explicitada a verve "cordelista" do to contundente de identidade que grupo, a partir do anúncio da história a ser se repetirá nos trabalhos posterinarrada: ores, O Circo do Palhaço sem Futuro e Transfiguração. Contarei a história do barão Para construir essa identidade, Que comia na mesa com seu pai um dos recursos utilizados é a interEra herdeiro primeiro dos currais textualidade que, feroz e minuciosaMas gritou no jantar,não quero nada mente, corta e costura referências Nesse dia subiu num grande galho poéticas. No primeiro disco,ele Nunca mais o barão pisou na terra. mesmo um grande textema, essas citações vão da poesia popular à (Sobre as Folhas - ou O Barão nas obra de Harriet Beecher Stowe, A Árvores/ Cordel do Fogo Encantado) Cabana do Pai Tomás, passando por fragmentos de cartas e discursos de Quem conta um conto acrescenta, ou personagens históricos como corta, um ponto. E o Cordel do Fogo Antonio Conselheiro e Lampião. Não Encantado segue mencionando livros a por acaso, o livro de Stowe e o disco mancheia, propondo transfigurações de são entrecortados por orações, com leitura. Advertindo, porém, que suas transo diferencial de que na saga de pai figurações são pontos de vista ou, antes, Tomás a dicção é cristã por excelênleituras particulares.O uso do disjuntivo cia e em Cordel do Fogo Encantado, "ou" como alternativa a quase todos os a Salve Rainha, litania católica, se títulos das músicas indica uma abertura a agrega a pontos de umbanda e invointerpretações várias. O recorte está dado, cações indígenas. Em O Circo do mas ele não é único, é o que parece dizer. Palhaço sem Futuro, o recorte é mais Evidentemente, Transfiguração exige um contido e se sobressaem os alinhavos feitos com o Livro do Genêsis (em Os Anjos leitor/ouvinte ideal que, municiado de um conhecimento de mundo literário e extraCaídos), Os Três Mal-Amados, da obra de João Cabral de Melo Neto, Os Sertões, de literário, possa perceber sua polifonia e dele se tornar co-autor. Obviamente, este Euclides da Cunha, e a Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa. não é um pré-requisito para a fruição do disco. Entretanto, nenhuma fruição será Em Transfiguração, tudo muda, literalmente, de figura e o leque de completa se não for devidamente contextualizada, sentida e, mais que isso tudo, referências é ampliado passando de Manoel Filó (Tlank), representante da poe- conquistada. sia popular nordestina, à Jack Kerouac (Na Estrada - ou quando encontrei Além dos títulos e autores já listados, podemos enumerar ainda João Cabral ( MorDean pela primeira vez). Tlank, onomatopéia do bater de uma porta, é te e Vida Stanley) e Euclides da Cunha (Pedra e Bala - ou Os Sertões), circularmente emblemático no que representa de abertura, passagem e, claro, conclusão. repetidos, Graciliano Ramos (Aqui - ou Memórias do Carcére), Nietzche (O sinal Funciona também como um aviso de que o grupo não se prende a fórmulas, ficou verde - ou Além do bem e do mal), Bertolt Brecht (Joana do Arco - ou nem mesmo às bem-sucedidas dos trabalhos anteriores. O disco é elaborado Agitprop) , Patrick Ravignant (Louco de Deus - ou Perto de Você) Alberto da Cunha sob a prática de uma "cleptomania estilística", expressão de Armando Freitas Melo (Canto dos Emigrantes). Entre outros. Porque aquele leitor meticuloso enconFilho ao definir a poética de Ana Cristina Cesar, autora citada na música Ela trará também referências no interior de algumas letras se se ocupar do avesso da disse assim (ou A Teus Pés). Os métodos de trabalho da poeta carioca e do costura. Fica o convite (ou desafio). !!

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I néditos

Carolina

Ela corre dentro de um labirinto, e não sua. Porque as meninas perfeitinhas não têm defeitos e fazem o mundo parecer ainda menos certo. Passa por enormes muralhas de mármore, pelas quais não sobem as heras, nem passeiam as lagartixas. Não deixa pegadas, nem vestígios, pois não quer ser compreendida. Só espera que ninguém a magoe, nem antecipe seu destino. Pouco importa se não irá a lugar algum, anda em círculos há pelo menos dois segundos. Perdeu a noção do tempo, mas sabe que está atrasada. Sempre. É feliz porque tem todas as encruzilhadas do mundo para descobrir e um cidade inteira de novidades pela frente. Precisa tomar decisões a cada instante e sorri seus dentes de lua. Escolhe a saída errada e acha bom, vai tentar de novo e de novo, até dar vontade de dormir. Dobra à direita e continua, cruzando universos de areia e pedra. Nenhum cheiro ou ruído, mas todas as possibilidades de futuro. Não tropeça, nem esbarra. Não olha para trás, nem para o céu. Tem os pés no chão e o olho apontado para frente. No seu encalço, as sombras de seus medos e pessoas de estimação. Então pisa numa armadilha e escorre para dentro de uma toca. O percurso é turbulento e inebriante, até cair num tapete fofo de nuvens imaginadas. Passa, em vão, a mão na frente dos olhos e não enxerga nada. Está calma e determinada a tatear o vento e prosseguir. Sente o cheiro da marcela que costuma habitar o interior de seu travesseiro. De repente, um aconchego de braço forte a envolve, impedindo a correria e o descontentamento. Sente seu corpo apertado contra o dele e nem imagina quem seja ele. Mas não tem vontade de gritar, parece ter sido muda a vida inteira. E agora está metade flutuando, metade sendo sugada. Por fora, levita. Do outro lado, aconteceu de ter ficado vazia. Voar é negócio para poucos. Coloca os pés para fora do lençol e decide não sonhar mais esta noite.

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Joana Rozowykwiat

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