Pernambuco 42

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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 42 - Distribuição gratuita 1

PERNAMBUCO, MAIO 2009

A incrível indústria dos concursos e prêmios literários  :

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GALERIA

CL ÁU DI A JACOBOV I T Z A fotógrafa Cláudia Jacobovitz tirou essa foto quando participou de uma maratona cujo tema proposto foi O que não se vê nos cartões postais. Já no finalzinho do prazo, a surpresa: “O tempo já estava expirando e resolvi ir ao Morro da Conceição. O sol estava se pondo e essa luz de fim de tarde ‘projetou’ numa parede duas crianças que conversavam. Nada muito pensado, realmente a captura de uma cena criada pela luz da hora...”

C A RTA DO E DI TOR Os prêmios literários tornaram-se uma obsessão no País, sobretudo depois que passaram a representar não só a promoção em massa do nome do autor, mas também (e sobretudo) a possibilidade de ganhar uma pequena fortuna. Não é exagero dizer que, por isso, os intelectuais perderam o sono e os computadores nunca mais tiveram sossego. A matéria é tema de um ensaio de Carolina Leão, que aplica as teorias de Pierre Bourdieu a essa verdadeira “indústria editorial paralela”. O designer e ilustrador Felipe Santos lança um novo olhar sobre a obra do escritor Fernando Monteiro, um dos homenageados do Festival Recifense de Literatura, que começa no dia 16 de agosto. Dono de uma prosa elegante, cheia de sutilezas e jogos de simulação, e autor de uma obra respeitável e representativa, Monteiro marca o ano com sua participação no encontro, prometendo novas polêmicas. Além do mais, já tem pronto para lançamento um novo livro, dessa vez de poemas. Para quem está acostumado com seus romances, aqui vai uma dica: ele também é um poeta grandioso. Surpresa, o leitor chegou para o jantar é o título da coluna de Raimundo Carrero. Nesta edição, o escritor debate a necessidade da

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SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO Adriana Dória Matos surpresa no texto de ficção, pela qual o leitor é fisgado e seduzido. Um dos seus exemplos é o conto Perdoando Deus, de Clarice Lispector. Revela também o processo de composição de várias cenas de um dos seus romances mais discutidos, O amor não tem bons sentimentos. Imperdível é a matéria A arte de denegrir com gargalhadas, assinada por Eduardo Cesar Maia, a respeito da ironia e do deboche de H. L. Mencken, cujo clássico O livro dos Insultos, está sendo relançado pela Companhia das Letras. “Mencken entendia o jornalismo como uma atividade essencialmente de combate e de oposição ao poder constituído”. O jornalista pontificou nos EUA durante muitos anos, cuidando de demolir mitos e lendas daquele país. Quem é do mar não enjoa é o texto de Ana Maria Machado, que revela o processo de criação de Sinais do mar, sua estreia no mundo da poesia, que está sendo lançado, numa belíssima edição, pela Cosac Naify. Forte e corajosa é a entrevista de Nuno Ramos, que faz revelações e também investe na polêmica tanto na área das artes plásticas quanto na literatura, ele que acaba de lançar o livro Ó. Boa leitura e bons ventos em agosto.

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO Governador Eduardo Campos Secretário da Casa Civil Ricardo Leitão COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Menezes CONSELHO EDITORIAL: Mário Hélio (Presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz da Mota Menezes Luís Augusto Reis Luzilá Gonçalves Ferreira

SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO Luiz Arrais EDIÇÃO Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani REDAÇÃO Mariza Pontes e Marco Polo ARTE, FOTOGRAFIA E REVISÃO Artur Ataíde (revisor interino), Flávio Pessoa, Flora Pimentel, Militão Marques, Nélio Câmara e Renata Cadena PRODUÇÃO GRÁFICA Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto Bandeira e Sóstenes Fernandes MARKETING E PUBLICIDADE Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão COMERCIAL E CIRCULAÇÃO Gilberto Silva

PERNAMBUCO é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife CEP: 50100-140 Contatos com a Redação 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br

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DEPOIMENTO REPRODUÇÃO

O amor em meio a tantas palavras graves Dicionário amoroso contesta acordo e revela identidades entre países Raimundo Carrero

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A sombra estava ali, no meio da rua, destacando o menino que andava sem pressa. E ele percebeu que ela andava, que repetia seus gestos e que seria sua companheira, ou inimiga, durante toda a vida. Desafiadora, não adiantava reclamar. Mudava o sol, mudava a lua, mudava o vento, e ela ali, colada ao corpo. Uma condenação. Assim descobri a sombra, a palavra — e não apenas a sombra, esse sentimento brutal — que escolhi para participar do Dicionário amoroso da língua portuguesa, agora chegando às livrarias, numa edição elegante da Casa da Palavra, com capa dura e ilustrações, além de um ímã de geladeira, para fazer o autor se lembrar da sua condenação sempre que precise beber um copo d’água. A organização é de Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá. Essa palavra e muitas outras estão no livro que reúne 35 autores, que escolheram as palavras misteriosas, e elas selam seus nomes para sempre. São autores de quatro continentes — América Latina, Europa, Ásia e África —, das mais diversas tendências e das mais diversas origens. Há palavras tão comuns como Saudade, de Antônio Torres, ou esquisitas como Serendipidade, de Bruna Lombardi. Sim, é ela mesma. Aquela que, com ou sem serendipidade, nem precisa escrever para ser tão bela. Armando Freitas Filho não esquece a palavra fatal e final: Morte. Que é vizinha, parede e meia, de outra palavra sinistra: Guerrilha. Mas por que “amoroso” com tantas palavras comuns, esquisitas e sofisticadas? Porque, nunca esqueçam, todas as palavras se amam, mesmo as que aparentemente são inimigas. Porra se dá com Você? Mas Árvore bem que podia fazer amor com Rosa. Com algum esforço Madrugada se juntaria a Vício, mesmo que Vício não precise de Madrugada. Fogo, por exemplo, é uma palavra solitária, não precisa se juntar a ninguém nem a outra palavra; basta irromper na carne, no sangue, ou na mata. O dicionário foi criado, inventado e publicado por causa de outra solidão (esta, uma palavra inquieta): o Brasil não tem uma política externa para a literatura, e os escritores que se virem. Foi isso o que levou Saramago, Agualusa e Anne Marie-Metellié, editora francesa, a reclamarem contra a falta de apoio ao escritor brasileiro no exterior. Personagens brasileiros estão censurados: não podem falar em outras línguas. Resta a nossa língua circular em muitos países pra lamber a ferida. Não é ferida, é dor mesmo. Ou seja, é preciso que escritores isolados trabalhem para que seus livros — ou suas palavras — cheguem ao mundo, como está sendo feito agora. Para Marcelo Moutinho, apesar das dificuldades, os organizadores acham que “o Dicionário é um flagrante da relação dos escritores com a sua língua”. E ainda mais sedutor, porque os organizadores decidiram não obedecer às regras do novo acordo ortográfico, diz Marcelo, lembrando que “a proposta era a de que o livro ajudasse a destacar a diversidade. Os livros de José Saramago, por exemplo, sempre foram lançados

no Brasil com a grafia original, lusitana, e nem por isso os leitores daqui deixaram de entender o que liam. O acordo, que, vale lembrar, vem enfrentando muita resistência em Portugal, me parece ter um fundo meramente utilitário, mercadológico, e não foi amplamente discutido antes de sua aprovação como deveria”. O organizador assegura que “dentro de suas possibilidades, o Dicionário pode ao menos ajudar a desmistificar a ideia de que as diferenças solapam a compreensão do idioma. Isso é absolutamente falso. As diferenças, quase residuais quando se trata da palavra escrita, são enriquecedoras”. O leitor, então, encontrará um livro extremamente enriquecedor, com textos de autores de Portugal, Angola, Moçambique e Timor Leste; além do Brasil, é claro. Todos com linguagem própria, com a cor local, com a riqueza vocabular. Tudo isso reunido a escritos de excelente qualidade. O time brasileiro de convidados é formado por autores bem conhecidos, como Antonio Torres, Marcelino Freire, Adriana Lisboa, Fabrício Carpinejar e Tatiana Salem Levy, que conquistou, ano passado, o Prêmio São Paulo, na categoria Revelação, com um belo romance. Entre os desconhecidos está um dos organizadores, Jorge Reis-Sá. Na seleção de estrangeiros, autores pouco conhecidos ou desconhecidos no plano nacional (o que contribui para o enriquecimento da literatura brasileira). Por esse desconhecimento, descobre-se logo que as dificuldades são recíprocas e as batalhas, as mesmas. Embora parte da crítica tenha ignorado o surgimento de novos autores brasileiros, Moutinho vê, com agrado, o ressurgimento da vida literária, no Brasil, como as festas e festivais, encontros e congressos, do tipo Fliporto, Flip etc. “A facilidade de publicação e a ampliação das possibilidades de contato, através da internet, de pessoas que escreviam em diferentes cantos do País foram dois fatos que colaboraram nesse processo”. Ou seja, vida literária significa maior intercâmbio entre as pessoas, entre os escritores e críticos, que, pouco a pouco, vão criando um bloco de intelectuais que discutem, amplamente, as questões literárias e os caminhos que podem ser percorridos. O que significa, definitivamente, que palavras se amam, mas são ainda mais amadas pelos leitores. Em qualquer língua. E em qualquer circunstância.

O LIVRO Dicionário amoroso da língua portuguesa Editora Casa das palavras Páginas 134 Preço R$ 49

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PERFIL FLORA PIMENTEL

Com o que está sonhando Dona Severina? As festas, as piscinas e o mundo de luxo de uma grande devota da Caras Fabiana Moraes

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Que lindas as xícaras de porcelana chinesa de Dona Severina. Todas arrumadinhas na caixa, impecáveis. Diferentes dessas que a gente encontra por aí, brancas, volumosas, comuns demais. As de Dona Severina não, são especiais. Trazem o rosto de Adele Bloch-Bauer, a mulher que Gustav Klimt transformou em quadro dourado e, mais tarde, milionário — vendido a 135 milhões de dólares a Ronald S. Lauder, dono da empresa de cosméticos Estée Lauder, como a pintura mais cara do mundo. Dona Severina, há mais de 35 anos vivendo no Alto José Bonifácio, zona norte do Recife, se encontrou com a aristocrata Adele, que morou na distante Viena no início do século passado, com um passe mágico vendido na banca de revista. Foram apresentadas pela Caras, aquela que disponibiliza, através de suas compilações de música clássica e reproduções de obra de arte, um mundo bem distinto, lustroso e arrumado, feito em “papel especial” e “finíssima porcelana”. Bach e Klimt a R$ 7,90, com direito a visita a uma estação de esqui. Mundo mais cheiroso, sem retoques, diferente do cotidiano pouco empolgante da senhora de 72 anos, que vende lotes funerários a prestação. Lugar de exceção, do onírico e da felicidade, cápsula democrática que a ajuda a sair das ladeiras e escadarias direto para a casa florida do casal que celebra 25 anos de união. Prazeroso devaneio. Mas com o que sonha Dona Severina? Para quem a observa de maneira apressada, a resposta é fácil, soma-se dois mais dois. Com piscinas. Com castelos. Com a diversão sem fim. Cercada por caixas que guardam, afetuosamente, suas revistas adquiridas nesses brilhantes dez anos, Dona Severina se impõe e subverte a soma primária. Não quer piscinas. Nem castelos. Diverte-se há uma década, quatro vezes por mês. Na entressafra, vai nos arquivos e busca um dos mais de 500 semanários, onde encontra-se com Ana Maria, Adriane, Luciano, sua querida Sasha (“Eu gosto tanto dela. Nem sei por quê. Acho ela tão bonita”). Além do tesouro de papel, há também os CDs, as Obras de arte mais valiosas do mundo, os faqueiros só compartilhados entre Severina e os Extraordinários, o olhar de Adele impresso na porcelana — fique claro — chinesa. São tão bonitos e bem cuidados, nem parece que vêm grátis na revista.

Na época do jogo de xícaras batizadas com o atestado de bom gosto (falamos de Klimt, ora essa), as Caras eram compradas em dupla. Dona Severina sabia do valor daqueles objetos, não quis guardar a lindeza apenas para si: fez dois jogos, um oferecido como presente de casamento a uma parente. “Ah, pois é, mas ela quebrou, colocou na cozinha, no dia-a-dia”. Faltou, como sugere essa senhora magrinha, que anda quilômetros por dia, a sensibilidade para diferir o utensílio onde despeja-se o café Royal de todas as manhãs do objeto mágico que acaricia, de vez em quando, a imaginação. E nela, perceba-se, não há espaço para Duralex. Ninguém joga aquilo de que tanto gosta assim na pia. Entre uma prestação e outra, aprendeu: perdeu algumas das peças de um faqueiro, pensava como aquela parente. “Agora, não boto mais no uso porque dão fim”. Na Assembléia de Deus – tem um templo bem pertinho de sua casa –, ninguém reclama, isso ficou no passado; tudo o que é religião agora tem seu canto na TV. Em casa, onde mora com filhos e netos, também não há problemas. O negócio é arrumar e ajeitar as caixas, tantas delas cercando a cama de solteiro onde Dona Severina dorme. Dinheiro, quando falta — e falta — também não é empecilho. Em uma banca na Avenida Norte, ela compra fiado, paga quando lhe pagam, e assim vai. Só quer descansar seu olhar em espaços mais bonitos; compartilhar, mesmo que marginalmente, da celebração. Vai folheando, comentando, passeando. Sente-se à parte – “Isso não é para mim”; talvez em algum momento perceba a violência de uma plenitude contínua. Ao mesmo tempo, sabe que essa felicidade sem fim é um bom artigo para fugir da experiência comum, é felicidade que se compra e que nem combina com todo mundo que está ali. A menina do olhão, da novela das oito que se passa na Índia, é um exemplo. Nesse momento, o mundo lustroso é de Dona Severina, que atua como um árbitro, a hostess à beira da piscina. De longe, flutuando, no devaneio, ela olha a festa, sorrindo para os que pertencem ao ambiente, fazendo piada dos que entram sem sua permissão. Assim sonha Dona Severina.

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BASTIDORES DIVULGAÇÃO

Quem é do mar não enjoa

A estreia de uma poeta à procura do seu cenário inicial Ana Maria Machado

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O processo de criação desse livro de poemas, Sinais do mar, foi diferente de tudo o que já fiz. Normalmente, trabalhando com narrativa, eu vou tendo umas ideias meio soltas que vão se juntando, muito antes de o livro surgir. Pode ser um cenário — como no caso da aldeia de pescadores no litoral capixaba, que atravessa cinco séculos de história do Brasil em O Mar nunca transborda. Pode ser uma situação — como imaginar que Capitu existiu de verdade e não apenas na obra de Machado de Assis, e fazer meus personagens contemporâneos encontrarem vestígios dela, como em A Audácia dessa mulher. Podem ser os personagens – como em Canteiros de Saturno, em que eles existiam tão fortes que até fiz seus mapas astrais e tratei de fazer com que eles se relacionassem obedecendo a isso. Podem ser palavras que se atraem — como Alice e Ulisses, que me deram as chaves míticas para o livro de mesmo nome. Enfim, os pontos de partida são variados. Depois, essas ideias vão ficando menos vagas, começam a me invadir por inteiro e preciso começar a escrever sobre elas. Mas só consigo fazer isso quando descubro qual vai ser a estrutura escondida do romance, o esqueleto invisível dele, aquilo que ninguém vê mas eu sei que está rigorosamente ali, sustentando tudo. Cada história tem um esqueleto diferente. Só é possível ser bem contada se eu o respeitar com rigor. Pode ser um movimento pendular, uma espiral, um bordado em ziguezague, e é único para cada caso. Nem sei como descubro qual vai ser. É uma fase meio aflitiva, para mim. Ainda não estou escrevendo, já estou meio possuída por aquele universo ficcional, e fico achando que a fonte secou, dessa vez não vou conseguir expressar, que vai ser impossível contar. De repente, vem um lampejo. Pode levar semanas, meses ou alguns anos para chegar. Mas, quando chega, sei reconhecer. A partir daí, vou em frente. É só trabalhar. Escrevo com disciplina, diariamente, de manhã, e todo dia a narrativa avança um pouco. Depois chega um ponto em que começam a acontecer coincidências. Esbarro em fatos que queria investigar, tropeço em dados que procurava, ouço ou leio justamente aquilo que me faltava e eu nem sabia. Geralmente, a essa altura já estou pela metade do livro. E essas sincronicidades me provam que estou no caminho certo, integrada a algo que não sei o que é, mas fazendo parte de uma criação que me transcende. Aí segue tudo tranquilo, só com muito trabalho e a loucura de viver num mundo paralelo. Até acabar, num ponto em que vai ficando redondinho e sei que se aproxima do fim (que raramente imagino qual era, ao iniciar). Quando termino, deixo descansar. Dois, três meses sem ver. Só então pego de novo, para o trabalho braçal da revisão atenta. Pente fino mesmo. Mas com esse livro de poemas foi tudo diferente. Antes de mais nada, porque eu nem imaginava que estava fazendo um livro. Toda a vida, de vez em quando, eu escrevia um poema. Rarissimamente,

mas escrevia. E guardava. Tenho guardados de cerca de 30 anos. Nunca pensara em publicar. Pouca gente sabia dessas minhas incursões pelo gênero. Publiquei um quando o poeta Cacaso morreu, em homenagem a ele. E, há uns 8 anos, quando a Ruth Rocha foi organizar uma antologia de inéditos, lembrou-se dos meus guardados e pediu alguns. Selecionei uns poucos e ela publicou. Mas, nesse movimento, mexi neles. Isso teve duas consequências. A primeira foi que, publicados, começaram a repercutir entre os leitores e ganharam vida — um deles foi até traduzido e incluído numa coletânea nos Estados Unidos. Começaram a pedir mais. A segunda consequência foi que percebi que muitos deles eram sobre o mesmo tema: o mar. Então eu os separei e deixei sair de onde estavam fechados, numa pasta de cartolina. Passei-os para o computador e volta e meia voltava a eles, retrabalhando-os. Alguns eu achei que não tinham jeito e apaguei. Outros eu fui melhorando. Até que considerei que podiam ser divididos com o leitor. De que idade? Não sei. Uns poemas são mais concretos ou quase humorísticos; referem-se a animais marinhos; poderiam ser apreciados por crianças, mesmo pequenas. Outros, mais abstratos, são cheios de piscadelas ao leitor e alusões culturais nas entrelinhas. Exigem um repertório maior do que aquele que geralmente está ao alcance de quem leu pouco. Mas isso também não faz mal. Ajuda a despertar mistérios. Achei então que valia a pena tentar fazer um livro que não fosse direcionado de modo expresso à criança, mas que também não alijasse o olhar infantil, tão vizinho do olhar poético. Procurei uma editora que me entendesse. Decidimos partir para uma ilustração puramente gráfica, que não ancorasse o livro num único lugar, mas que o deixasse seguir à deriva. Foi assim que nasceu o Sinais do mar. Leitores diversos vão ler coisas distintas nesses versos, eu sei. Mas acho que isso pode ser bom.

O LIVRO Sinais do mar Editora Cosac Naify Páginas 56 Preço R$ 32

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ENTREVISTA

Nuno Ramos

A linguagem como enigma

Convidado do festival literário A letra e a voz, da Prefeitura do Recife, o artista plástico e escritor explica o processo de composição das suas várias áreas de criação DIVULGAÇÃO

Nuno, vamos falar um pouco do teu último livro, Ó. O mote do corpo é um dos temas fundamentais desenvolvidos nele. O que te levou ao corpo?

Acho que pra mim o corpo é uma espécie de primeiro degrau da matéria — uma primeira ordenação dela. Daí que retorne tanto às coisas que escrevo. Na verdade, é a matéria o meu porto poético, e quando me afasto demais dela, sinto que me perdi um pouco. Claro que na literatura esse aspecto fica menos presente, embora procure escrever sentindo o peso de cada vocábulo. O tato, o imediato, a metonímia, a sonoridade da frase, são talvez formas de acesso a esse corpo, tão estranho quanto próximo.

Um amigo, querendo conhecer Ó, pediu para que eu tentasse lhe dar uma ideia do que era o livro. Eu respondi: “imagine uma mistura de Montaigne com Lautréamont”. Como você chegou a essa mistura de ficção, ensaio, poesia, crônica? Quais foram as tuas leituras mais fecundas?

Entrevista a Cristhiano Aguiar O leitor do Pernambuco conhece o ditado: “Vaso ruim não quebra”. Quando dizemos isso, queremos compartilhar uma sabedoria sobre quem são as pessoas e as consequências, boas ou más, do que elas fazem. Pois bem: vamos apresentar nosso entrevistado. Nascido em 1960, o paulista Nuno Ramos é um dos principais nomes da arte contemporânea brasileira. Com formação em filosofia pela USP, trabalhou como editor das revistas literárias Almanaque 80 e Kataloki. Em 1983, começa a pintar e funda o Ateliê 7. A partir daí, desenvolve uma sólida e prestigiada carreira de artista plástico, com prêmios, exposições internacionais e boa aceitação de público e crítica. Sua obra, influenciada pelo neo-expressionismo alemão, pela arte povera e por artistas como Joseph Beuys, tem no trabalho Vaso ruim (você pode acessar este trabalho aqui: http://www.itaucultural.org.br) um bom resumo de algumas das suas características: o uso quase obsceno dos mais diversos materiais (a vaselina, o pó, o detrito, o mármore, o gesso, o metal, o acúmulo); o gesto de transformar em arte aquilo

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que se corrói; a tentativa de juntar o inconciliável. Como o leitor pode ver, principalmente nas suas pinturas e esculturas, Nuno é o anti-oleiro: suas mãos se contentam com a obra ainda molhada, confundida. Com o barro semelhante a uma flor desmanchada. Se Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas, fosse crítico de arte, ele diria que Nuno Ramos é um artista muito misturado. Isso está presente não apenas nas suas pinturas, esculturas e instalações: ele também trabalha com audiovisual, fez a cenografia de espetáculos de Arnaldo Antunes, já compôs sambas e recentemente vem se destacando na literatura. Seu novo livro, Ó (Iluminuras, 2008), está entre os 50 finalistas do prêmio Portugal Telecom deste ano. Misturando ficção, ensaio, poesia e crônica, os textos de Ó nos levam a pensar que talvez seja a palavra o chão fundador das poéticas deste artista. A conversa a seguir é só uma mostra do encontro que o artista terá com o público pernambucano durante o 7º Festival Recifense de Literatura, entre os dias 16 e 23 de agosto. Para o Pernambuco, o artista falou um pouco, do seu trabalho, da importância do corpo na cultura atual e sobre gostar, ou não, de arte contemporânea.

Tenho uma “cultura” muito confusa e mal formada e nesse sentido não consigo responder com clareza à sua pergunta. Na verdade, acho que em relação à minha adolescência, em que lia muito, procurei “me livrar” da vontade de adquirir cultura para me concentrar na coisa mais imediata do meu trabalho. Hoje, sinto que gostaria de ler de novo. De todo modo, acho que alguma coisa do Montaigne, que tinha lido na universidade, reforçado pelo entusiasmo ensaístico norte-americano do Emerson, pode oferecer uma origem autêntica do Ó. Lautréamont, como Zaratustra, sempre me meteu medo, nunca consegui ler inteiro, nem por muito tempo — além do quê, não consigo deixar de achar aquilo um pouquinho

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Uma metáfora, por exemplo, levada ao pé da letra, quase sempre dá uma ótima ideia para uma escultura

Você transita muito bem entre as diferentes linguagens, principalmente a literatura e as artes visuais. Como você escolhe quais inquietações serão expressas por cada uma delas? Existem coisas, por exemplo, que são melhor ditas pela literatura do que pelas artes visuais, e vice-versa?

Cada linguagem tem seu enigma e é na dificuldade de reduzir uma à outra que está a graça de relacioná-las. Meu esforço é não baratear esse encontro, não transformar uma das partes em pretexto da outra. Gosto de pensar não no que pode ser melhor expresso por uma das linguagens, mas numa região de passagem entre as duas. O título de um trabalho é um caso óbvio, mas há muitas outras possibilidades. Uma metáfora, por exemplo, levada ao pé da letra, quase sempre dá uma ótima ideia para uma escultura. A arte de Nuno Ramos trafega por várias técnicas, desafiando conceitos de escultura, como no caso da obra Ouro Negro (à direita).

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Li em um ensaio de Rodrigo Naves que um dado fundamental na tua poética consiste no esforço de reunir coisas e materiais cuja convivência se mostra estranha e áspera. Você, aliás, acabou de confirmar isso ao responder à penúltima pergunta. Em Ó, também é possível perceber essa característica.

reconstituir todos os detalhes que levaram um criminoso a cometer um crime, acabaríamos por justificá-lo: “mesmo o pior assassino, visto de muito perto, torna-se um homem comum”. O texto também afirma que a própria instituição judiciária estimula o crime: a proibição incita a transgressão, como já salientava Bataille. No entanto, defender essas ideias não implica subestimar a responsabilidade individual? O mal e a crueldade não são uma escolha?

Acho que sempre trabalho de início com uma hipótese de alergia e incompatibilidade entre as partes — o trabalho propriamente dito será a tentativa de unificação disso tudo. Isso se dá tanto no plano da matéria, dos materiais que uso — plástico, espelho, veludo, vidro etc. – quanto no das linguagens e registros culturais. No fundo, acho que meu trabalho é a tentativa de conectar o que estava isolado — para isso, é preciso desindividuar um pouco cada termo, abri-lo ao seu vizinho imediato, roçar um no outro. Daí uma certa atração pelo amorfo, ou uma fragilidade de forma, que quase tudo o que eu faço apresenta.

Com certeza. Também pensei nisso. Acho especialmente que o Brasil precisa de uma responsabilização mais desencantada e sem choro de seus agentes. Por isso, acho que não escrevi aquilo como uma ideia prática, mas como um limite poético, que seria absurdo “aplicar” diretamente à vida. Mas posso dizer que nunca acompanhei por jornais, nem assisti em filme, à execução de um condenado sem torcer profunda e completamente por sua absolvição. Não estou defendendo a impunidade, apenas lembrando que a vida punida é maior, muito maior, do que a cadeia de acontecimentos que levou ao crime e à punição.

Uma das ideias mais interessantes desenvolvidas em Ó se encontra a partir da página 81. A voz do narrador afirma que, se pudéssemos DIVULGAÇÃO

kitsch. Mas, no fundo, o sopro da frase longa, a vontade de fazer a frase durar, de colocar vírgulas e mais vírgulas, e o esforço de relacionar coisas distantes e ímpares, que está no meu trabalho plástico e também no Ó, acho que vem mesmo é do Proust, a prosa mais bonita que já li.

Você tem o privilégio, ou o aperreio, de ter seu trabalho lido por críticos de literatura e críticos de artes visuais. Que diferenças você percebe na abordagem que cada um realiza?

O privilégio, não o aperreio. Para mim, o contato com críticos de artes plásticas (você citou o Rodrigo, mas há o Alberto Tassinari, o Lorenzzo Mammì, o Ronaldo Brito, o Paulo Venâncio, e ainda muitos outros) foi constitutivo e decisivo para o que haja de rico no que eu faço. Isso é uma especificidade da crítica de artes plásticas, que a literária

Não acho difícil falar mal da arte contemporânea, mas acho difícil falar mal do Richard Serra, do Matthew Barney

parece ter perdido — o contato efetivo e rico com o seu objeto. No caso da literária, que começo a conhecer melhor, acho que há um esforço de reconstituição de um elo partido. A produção literária brasileira, um pouco como o cinema (e a arquitetura), revém, renasce, reafirma seus valores depois de uma época de ouro. Esses dois tempos não se fazem presentes na produção plástica, que, além de mais recente, manteve sua energia guardada, sem circulação. Para bem e para mal, artistas verdadeiramente geniais como Volpi ou como Goeldi começam a ter seu tamanho, sua dilatação cultural aferida. Há uma potência guardada aí que ninguém sabe bem onde vai dar — um pouco como se Manuel Bandeira fosse um poeta quase inédito.

Muitos acusam a crítica, principalmente a crítica de artes visuais, de apenas legitimar os trabalhos dos artistas. O que você acha?

Acho que a crítica desempenhou por muito tempo um papel ambivalente, de crítica e de recepção da obra a um só tempo. Como se o lugar da obra fosse o texto do crítico, dada a inexistência de museus e do mercado de arte e das coleções. Hoje, os museus e o mercado e as coleções existem, desenvolveram-se, em especial no eixo Rio-São Paulo, e a crítica perdeu esse vínculo placentário com as obras. De todo modo, é bom lembrar que essa crítica foi sempre bastante feroz, que se dava entre os próprios artistas também, e que havia uma “tensão assassina” no ar, impensável hoje em dia, própria das vanguardas e dos grupos de esquerda.

Muitas vezes, ouço reclamações tais como: “nada de interessante é

feito na literatura e arte contemporâneas”; “eu não entendo arte contemporânea”; “os escritores e artistas hoje estão perdidos em jogos de linguagem e só falam de seus umbigos”. Essas afirmações são apocalípticas, ou escritores e artistas contemporâneos estão realmente perdendo sua relevância?

Não acho difícil falar mal da arte contemporânea, mas acho difícil falar mal do Richard Serra,do Matthew Barney, do Olafur, do Orozco, do Kapoor etc. – ou do Paulo Pasta, do Cildo Meirelles, do Eduardo Sued. São todos ótimos artistas, batalhando o trabalho deles. No fundo, acho que acontece um pouco o seguinte: a verdadeira morte da arte, em qualquer época, é essa coisa difícil de definir chamada Arte Ruim. O Louvre, que é um museu extensivo, tem alguns salões, especialmente do século 18, desanimadores. Os caravaggescos são uma espécie de praga barroca, disseminados por diversos países. Hoje em dia, estamos vivendo uma institucionalização da arte muito violenta, a mais violenta da história, e a quantidade de arte média em exposição é enorme — daí que tudo pareça semelhante e óbvio. Mas arte vem de alguém, de uma visão única, “irrepetível”, e quando a gente tem acesso a essa visão (numa exposição individual de fôlego, por exemplo) acho que o jogo volta a ficar empolgante. Não sei se estamos num momento tão forte quanto foi o modernismo clássico (provavelmente não), mas há muita arte boa sendo feita. Quanto à segunda parte da pergunta: o umbigo do trabalho de arte coincide sempre com o do espectador, ou então alguma coisa deu errado. Às vezes o trabalho é que é besta. Mas às vezes o espectador é que é chato. A ver.

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FLAVIO PESSOA

Raimundo

CARRERO Surpresa, o leitor chegou para o jantar Todos nós somos ingênuos e esperamos sempre o susto agradável do texto

Marco Polo

MERCADO EDITORIAL

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A surpresa não é mais aquela. Que é que se faz com ela? O que foi feito dela, então? Esquece, vamos direto ao assunto. A surpresa passou a ser um elemento secundário, ou quase secundário, na literatura de ficção, desde que o romance, por exemplo, encontrou um lugar específico e privilegiado no campo da arte, a partir de Flaubert. Porque não há dúvida: o escritor francês dividiu muito bem a missão ficcional. Até Madame Bovary, digamos, era apenas um lugar de diversão, de leitura emocional, para arrepiar e chorar. E só. Transformada em objeto de amor intelectual, mesmo que Madame Bovary tenha sido uma leitura popular, a surpresa, quem diria?, viveu para a glória do texto, da arquitetura da palavra, para as sutilezas narrativas. Escondida no “antienredo”, no “antissuspense”. Isso quer dizer que passava quase despercebida, sem necessidade daquele arranque estrutural que sacudia o leitor para territórios nunca dantes navegados. Tem mais a ver com mágica sutil, do que com coelhos arrancados da cartola, com orelhas, rabo e tudo. Mas não foi completamente dispensada. O escritor sempre percebeu que precisa trazer o leitor para junto da emoção. Sem dúvida. Depois de Flaubert, porém, vieram as vanguardas, os experimentalismos, os desconstrutores todos e os demais. A surpresa passou a fazer parte do jogo das palavras, da montagem das frases, das sequências narrativas. Guimarães Rosa, por exemplo, alcançou resultados espetaculares. Como naquela frase construída através de crases e verbos para mostrar a ansiedade e a tensão de Dão-Lalalão, e a surpresa de não encontrar amantes de Soropita. O leitor, portanto, deve estar preparado para a estrutura frasal e não para o corte narrativo, que caracteriza a surpresa convencional. É assim:

“Chegava a casa, abriu a porteira, chegava à casa, subiu o terraço, chegou em casa”. Podemos observar, assim, que há, no interior da frase, no andamento, na montagem, uma sensação de expectativa, de medo, de inquietação, sem que essas palavras apareçam em lugar algum. O personagem avança, e avança, está chegando em casa: a surpresa — mesmo a que ele já espera — pode acontecer, mas nada é dito diretamente. É narrada com sutileza; não se mostra, não se apresenta. Não diz. Cabe ao leitor senti-la. E é muito. É demais. É tudo o que o escritor espera, como quem vai tirar um fantasma da cartola. Está aí a diferença entre a surpresa, digamos, explosiva, que sacode o leitor, e a surpresa sutil, fruto do jogo de palavras, de sentimentos, de expectativas. Em A arte da ficção (tradução de Guilherme da Silva Braga, L&PM), David Lodge escreve uma poética da surpresa muito esclarecedora:

De repente, a mãe de Deus, carinhosa com o mundo e com a vida, encontra um rato ruivo e asqueroso na calçada “Como em um show pirotécnico, um pavio vai queimando aos poucos e, por fim, desencadeia uma sequência de explosões espetaculares. O leitor precisa receber informações suficientes para que a surpresa seja convincente quando revelada, mas não o bastante a ponto de conseguir prever o que virá a seguir. Thackeray sonega informação, mas sem trapacear”.

ORIGINAL

INICIATIVA

MERCADO

Estação Liberdade lança clássicos franceses

Editora lança nova coleção dedicada a autores esquecidos e inéditos do Nordeste

Minorias sexuais têm editoras especializadas

A Estação Liberdade está lançando uma série de clássicos franceses. É o caso de Zola, com O paraíso das damas, que se passa numa loja de departamentos (precursora dos shoppings); de Balzac, com Tratados da vida moderna, artigos sobre gastronomia e moda; e de Flaubert, com Bouvard e Pecuchet, romance tão original que, segundo Barthes, permanece “uma obra de vanguarda”.

A Escrituras Editora, de São Paulo, está criando a coleção Letras do Nordeste, sob a coordenação do poeta cearense Floriano Martins. A coleção dará prioridade a edições críticas de obras expressivas que se encontrem fora de catálogo, como Um ramo para Luíza, de José Condé, e também ao lançamento de novos títulos especialmente preparados para o projeto, como material disperso na imprensa

e em antologias, ou inéditos em mãos de familiares do escritor. Cada livro terá um estudo introdutório e contextualizador, o texto em si e uma cronologia comentada sobre a vida e a obra do autor. A tiragem será de três mil exemplares por título, a serem distribuídos pelas Bibliotecas Públicas de todos os estados do Nordeste, além de serem comercializados convecionalmente.

Enquanto nos EUA e Europa há congressos anuais de editores de livros para gays, no Brasil esse mercado apenas começa. A Edições GLS é a pioneira. Mais recentemente foi lançada a Transviatta, também exclusiva. Entre as grandes editoras, a Siciliana e a Record têm nos selos Mandarim e Contraluz, respectivamente, publicações de cunho homossexual.

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No entanto, é preciso ressaltar que o romance moderno, por isso mesmo, tanto pode conviver com as questões puras de surpresa, para provocar sempre o leitor, como é possível tê-la escondida na tensão narrativa, a exemplo do que é feito por Guimarães Rosa. Lembro, também, que no início de A feira das vaidades, de Thackerey, há uma cena de surpresa quando uma aluna, rejeitada durante o curso, joga um dicionário nos pés da professora. É claro, uma surpresa simples e previsível, mas, no caminho da aprendizagem, é essencial. Mas não se pode esquecer os exercícios. Sempre: exercícios, exercícios, exercícios. Escrevendo e apagando. É sempre bom fazer exercícios, mesmo que os despreze depois. Não importa, literatura é trabalho sempre. Incansável. Clarice Lispector consegue dar um toque de pavor e fragilidade à surpresa em Perdoando Deus, de um modo inusitado e inquietante:

Não é bom isso? Fica bem claro e explica tanto o exemplo sutil de Guimarães, no específico campo da linguagem, quanto no plano do espetacular, capaz de provocar a inquietação do leitor. A tristeza ou a alegria. A euforia ou o azedume. De minha parte, sempre gostei de surpresas, desde que elas viessem no interior do texto, exigindo o máximo do leitor; exigindo, por exemplo, atenção redobrada na movimentação dos personagens, o que encontro, com clareza, em As sementes do sol, quando Davino, o pai, acompanha, envolvido em sutilezas, a cena em que Agamenon, por assim dizer, estupra Mariana, e não pode fazer nada; ou em O amor não tem bons sentimentos, quando Matheus imita o suicídio do pai, ou suposto pai, Ernesto. O cuidado todo é este: não trapacear. Nunca trapacear. Fazer o leitor acreditar, sinceramente, no que está acontecendo:

“Um menino vestido de velho, chapéu e guarda-chuva, terno escuro e gravata antiga. Compreendi a gargalhada do homem, fiquei com raiva. Tive vontade de voltar gritando eu sou meu pai, filho da puta, você não está vendo que sou meu pai?, vim buscar meu filho que anda abandonado pelo mundo. Triturava a raiva nos dentes — e com piedade de mim mesmo. Calça coronha, subi as escadas e parei diante do espelho,

eu mesmo morrendo de rir, o paletó quase estourava nos ombros e o chapéu não entrava na testa. O cabo do guarda-chuva repousava no pulso. Ia tirar a roupa quando decidi viver a loucura do meu pai. Coisa esquisita ter pai. Nunca pensei que fosse possível ter pai e mãe. Sentei-me na cadeira de balanço do terraço. A noite vencia o cansaço da tarde. E o meu cansaço — há tão pouco tempo ali e já exausto. Coloquei o guarda-chuva no céu da boca, uma arma. Imitei o exato gesto do polegar apertando o gatilho. Foi um susto. A explosão do tiro jogou minha cabeça para trás, bateu forte no espaldar da madeira. Dor, muita dor, parece que subi uns cinco centímetros do assento, o gosto de sangue esvaía-se na boca. Ri — esse pequeno riso de comoção e medo. O que me deixou preocupado foi a sensação da morte chegando pelas minhas mãos. Ou pelo meu dedo no gatilho”. O texto todo procura levar o leitor a viver a emoção de Matheus, sentindo, surpreendentemente, a dor de um tiro que, na verdade, não existe. E, ainda assim, sem trapacear. Vivendo a carga de sentimentos do personagem, sozinho num sobrado recifense, com muitos quartos, portas e janelas.

“Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem qualquer prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe... E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo, eu estava eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito”. É aconselhável voltar ao livro Legião Estrangeira, ler e reler. Leitura sempre é muito. E se surpreender a cada nova leitura. Como se fosse a única e a múltipla. Leitura de escritor — ou de aprendiz de escritor — passa por três estágios. 1. Leitura somente com os olhos, irresponsavelmente; 2. Leitura contemplativa e de olhos fechados, como quem traz as palavras para o sangue; 3. Leitura com a mente, técnica, procurando descobrir as artimanhas e as armadilhas do escritor. E o grande escritor precisa surpreender o leitor mesmo nas releituras. Vejam que Clarice preparou a surpresa tornando-se carinhosa e, de uma certa forma, divina, por assim dizer. Criou um efeito de ternura e afeto, para só depois levar o terrível ao leitor. É sempre assim? Não, o escritor deve ter liberdade para criar as suas próprias técnicas. Sempre. Técnica não é camisa de força. É matéria de estudo. Mas não esqueça de ler poemas. Um prosador lê sempre os grandes poetas. Porque eles são surpreendentes. Com certeza.

PERFIL

TENDÊNCIA

O lado socialista de Euclides da Cunha

Mercado do livro de bolso se consolida no Brasil abrindo opções para o público

Ao encerrar o colóquio sobre Euclides da Cunha, o presidente da ABL, Cícero Sandroni, lembrou o viés progressista do autor de Os Sertões, que defendeu a emancipação da mulher (com direito de votar e ser votada), o divórcio, a jornada de trabalho de oito horas e a substituição das Forças Armadas pelo povo armado, em texto redigido em 1899 e publicado em 1º de maio de 1901, no jornal O Proletário.

Para Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM, a fama dos livros de bolso até quatro décadas atrás era a de edições de terceira categoria. Criada em 1974, a editora gaúcha passou cinco anos investindo exclusivamente no formato pocket até ter um primeiro retorno financeiro. Em 2007 já computava 650 títulos, com oito milhões de livros vendidos e obras que vão

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das HQs aos dicionários. Em 2005 a Companhia das Letras criou a Companhia de Bolso, já com mais de 500 mil livros vendidos. Mais recentemente a Record lançou a BestBolso, coleção no mesmo formato. Por fim a Objetiva comprou 75% da Martin Claret, entrando na disputa do já consolidado mercado de pocket book brasileiro, abrindo opções de bons livros por preços bem mais baratos.

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PERFIL

A arte de denegrir com gargalhadas

Contra o senso comum, H. L. Mencken exercia seu ceticismo militante

REPRODUÇÃO

Eduardo Cesar Maia

Antes que pudéssemos contar com os hoje já comuns “sebos virtuais”, alguns livros, apesar de não tão velhos e nem tão raros, viravam objeto de verdadeiras caçadas pelo simples fato de estarem esgotados na editora. É o caso de O livro dos insultos, uma compilação de textos do polêmico jornalista norteamericano Henry Louis Mencken (1880-1956), organizada por Ruy Castro e fora de catálogo há mais de 20 anos. Agora, para os admiradores do “sábio de Baltimore”, uma boa nova: a Companhia das Letras reeditou a obra numa edição bem cuidada e que, de quebra, além do prefácio do próprio Ruy Castro, traz um texto de Paulo Francis sobre “o mais poderoso cidadão privado na América” daqueles tempos, como o definiu Walter Lippmann, do New York Times. Neto de imigrantes alemães e filho do dono de uma fábrica de charutos, Mencken se interessa pela literatura a partir da leitura de Mark Twain, escritor e também jornalista, de quem herda o humor irônico e o espírito libertário — Huckleberry Finn foi seu livro preferido durante toda a vida. Iniciou a carreira como foca no jornal Baltimore Morning Herald, em 1899, e posteriormente foi contratado pelo Baltimore Sun, em 1906. Sua verve de crítico cultural começou a ser destilada na revista The Smart Set, em 1908. Em 1924, já consagrado e com algum dinheiro, Mencken pode fundar uma publicação própria, o magazine The American Mercury, que teve sua primeira edição circulando no mesmo ano, e, em pouco tempo, começou a ser distribuída com sucesso em todos os Estados Unidos. Entre seus amigos íntimos — os quais nem sempre escapavam de seu sarcasmo —, estavam importantes artistas e escritores da época, como George Jean Nathan, Theodore Dreiser, F. Scott Fitzgerald e Alfred Knopf. Mencken entendia o jornalismo como uma atividade essencialmente de combate e de oposição ao poder constituído. Suas únicas crenças inamovíveis eram a defesa da liberdade de consciência e a preservação dos direitos civis dos indivíduos contra a

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força do estado e contra a “tirania da maioria”. Ficou célebre uma anotação em seu diário no dia da morte de um presidente americano: “Foi o primeiro americano a penetrar nas profundezas da estupidez do vulgo. Nunca cometeu o erro de superestimar a inteligência da multidão”. Referia-se assim a Franklin Delano Roosevelt, único presidente eleito por quatro vezes na história americana. Sua capacidade de falar mal dos outros não tinha limites: desmoralizou políticos e acadêmicos, humilhou seus pares jornalistas inúmeras vezes; vilipendiou judeus, puritanos, católicos, filósofos; menosprezou os negros e ao mesmo tempo combateu a Ku Klux Klan e o fundamentalismo cristão. Afirmava que sempre odiara os pastores protestantes, mas começava a compadecer-se deles tão logo conhecia suas mulheres... Enfim, não poupava ninguém. Um de seus alvos preferidos era o que ele chamava de boobsie, o homem médio americano, deslumbrado, cheio de superstições, ignorâncias e medos — o Homer Simpson da época. POLEMISTA A fama de polemista e “elitista preconceituoso” é rigorosamente merecida, mas o destaque unilateral dessa faceta acaba distorcendo seu perfil e diminuindo a amplitude de seu pensamento. De fato, Mencken foi o jornalista mais mordaz e influente de seu tempo, mas também foi crítico literário, tradutor, editor e lexicógrafo — autor do monumental The american language, obra filológica em que mostrava que o inglês falado na América se diferenciava cada vez mais do britânico e adquiria identidade e dinâmica próprias. O homem foi ao mesmo tempo retrato e antítese do espírito americano: livre-pensador, mas que nutria um profundo desprezo pelas massas e pelo sistema democrático, pois desconfiava do bom-senso e da inteligência das maiorias. Disse certa vez que a democracia era “a arte e a ciência de administrar o circo a partir da jaula dos macacos”. Detestava os

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O principal conhecimento que se adquire lendo livros é que poucos deles merecem ser lidos. A fé pode ser definida como uma crença ilógica na ocorrência do improvável. A consciência é uma voz interior que nos adverte de que alguém pode estar olhando. O amor é a ilusão de que uma mulher difere da outra. Quanto mais esperto é o político, em mais coisas ele acredita — e menos acredita em qualquer delas.

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Incrível como meu ódio aos protestantes desaparece quase por completo quando sou apresentado a suas mulheres. Digam o que quiserem sobre os Dez Mandamentos, devemos nos dar por felizes por eles não passarem de dez.

militantes e sua única bandeira era o ceticismo, ou melhor, a capacidade que o indivíduo tem de não acreditar, de não seguir a manada, de pensar por si mesmo. Era um adepto do princípio “Hay gobierno? Soy contra!”, e acreditava que todo homem decente deveria se envergonhar do governo sob o qual vive. Como Nietzsche, na Alemanha, e Ortega y Gasset, na Espanha, Mencken combateu ferozmente o democratismo, a crença de que a maioria — por ser maioria — estava necessariamente certa. O jornalista conhecia muito bem a obra de Nietzsche e foi um dos seus primeiros tradutores para o inglês. Pode-se dizer que Mencken reconhece no pensador alemão uma personalidade de intelecto e temperamento semelhantes aos seus: alguém que não se rebaixava a ídolos — fossem religiosos, ideológicos ou românticos. O que dá unidade à visão crítica desse intelectual sui generis é a sempre presente desconfiança em relação ao homem e suas supostas grandes capacidades e dotes. Para Mencken, as principais características da espécie humana são a preguiça, a vaidade sem propósito, o espírito de rebanho e, a mais destacada entre todas, a covardia. Sem exceções, do gari ao mais pomposo acadêmico de Harvard, a cretinice uniria em comunhão sagrada esse animal que se coloca na hierarquia natural como o ápice da criação. Durante os anos 1920, ele se destacou como crítico cultural e literário implacável. Jogava com valores: construía e destruía méritos e reputações, e não perdoava os renomados e famosos. Os jovens literatos ansiavam por sua apreciação, que podia ser o começo — ou o fim precoce — de suas pretensões artísticas. Edmund Wilson o chamou de “crítico impressionista”, por seu personalismo, e acusou-o de não ter consistência por não obedecer a normas maiores, exteriores a seu próprio juízo e sentimento. Mas reconheceu que Mencken, por um lado, e T. S. Eliot, por outro, fizeram a cabeça dos jovens literatos americanos de sua época. O filósofo espanhol Fer-

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nando Savater enfatizou que a condição de autodidata deixou várias brechas na formação intelectual de Mencken, mas isso era perfeitamente compensado pelo seu virtuosismo retórico e pelo estilo contundente de seus escritos. Em 1948, H. L. Mencken foi vítima de uma trombose cerebral, da qual nunca se recuperou completamente. Manteve-se ainda consciente, mas era incapaz de ler e de escrever e caiu numa inevitável depressão. Um dos mais brilhantes — e, com certeza, o mais polêmico — jornalistas americanos faleceu em 1956, convicto de que seu corpo apodreceria na terra e nada restaria dele, neste ou em outro mundo. Mesmo em seus dias finais, ao contrário de muitos arrependidos de última hora, Mencken continuou afirmando a falta de sentido que cerca a existência do homem — e zombando disso. Mencken produziu — e continua produzindo — inumeráveis seguidores no jornalismo, inclusive no Brasil, mas certamente nenhum deles ainda conseguiu igualá-lo em brilho, ousadia e no poder de sacudir as pessoas, retirando-as da tranquilidade e do conforto do senso comum por meio de textos tão desconcertantes. A reedição de O livro dos insultos é uma oportunidade para que velhos admiradores e novos leitores brasileiros entrem em contato com alguns dos melhores textos e reconheçam seu legado: a lição de que ninguém merece ser tão reverenciado a ponto de não podermos rir dele.

O LIVRO O livro dos insultos Editora Companhia das Letras Páginas 264 Preço R$ 51

O julgamento do macaco Um personagem assumidamente inspirado em H. L. Mencken foi levado ao cinema pelo diretor Stanley Kramer, no filme Herdarás o vento (Inherit the Wind), de 1960. A obra, baseada num episódio real, ocorrido em 1925, que ficou conhecido como Caso Scopes ou O julgamento do macaco, relata o processo jurídico contra um professor de segundo grau, interpretado por Fredric March, que cometeu o “pecado” de ensinar darwinismo a seus alunos, numa cidade (Dayton, no Tennessee) onde as leis estaduais, influenciadas pelo fundamentalismo cristão, não admitiam teorias científicas que concorressem com a explicação bíblica — o criacionismo. O estilo sarcástico e libertário de Mencken é homenageado na figura de E. K. Hornbeck, interpretado por Gene Kelly, um jornalista do Baltimore evening sun que se empenha em defender os direitos do réu — bancando inclusive os honorários do advogado de defesa —, com o intuito maior de provocar os religiosos do que propriamente para salvar a pele do professor. Não obstante as semelhanças entre a ficção e a realidade, a obra foi adaptada livremente e não teve a intenção de documentar a história. Alguns críticos enxergaram no teor crítico do filme um alerta contra o mal que o macarthismo estava causando na liberdade de expressão e de pensamento. Outro destaque da adaptação cinematográfica é o elenco, que contou com atores como Spencer Tracy, Fredric March e o próprio Gene Kelly. O filme concorreu a quatro Oscars e permanece atual e instigante, mesmo porque os fervorosos debates entre criacionistas e darwinistas ainda ocorrem em tribunais, na imprensa e nas escolas americanas.

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CAPA RODRIGO SOTERO

Concurseiros e premiólatras, deem um passo à frente

Ensaio analisa como os prêmios e concursos literários resignificaram a indústria editorial Carolina Leão

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Perder-se na imponência dos números é uma característica marcante da indústria moderna. Milhares de homens e mulheres trabalhando longas diárias em ritmo veloz para oferecer ao mercado produtos populares, com consumidores transformados em estatísticas de consumo. Diz-se que o início de tudo foi em 1914, quando Henry Ford institui a jornada de trabalho de oito horas e a recompensa de cinco dólares para trabalhadores de uma montadora de Michigan. A indústria, no sentido do esforço em massa, já existia antes. Hordas de escravos judeus carregando pedras para a moradia dos faraós no Egito primitivo são alguns dos primeiros registros da matéria-prima, seja da força de trabalho ou do material de construção arquitetônico, produzida em larga escala. Foi Henry Ford, no entanto, que racionalizou a indústria ao especializá-la e distinguir suas diversas etapas, como a gerência, o controle e a execução das relações hierárquicas. “O que havia de especial em Henry Ford era a sua visão, o seu reconhecimento explícito, de que produção em massa significava consumo em massa, um novo sistema de trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia; em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, moderna e populista”, aponta o geógrafo David Harvey. O fordismo, e sua simbologia, está por trás de outra indústria: a indústria cultural adorniana, conceituada como metáfora para a “exploração” da arte como entretenimento pelos meios de comunicação de massa. Se comparada ao cinema e à música popular, a literatura, a mais elitista das musas, manteve certo prestígio com os adornianos, com a ajuda dos quais o imaginário acerca da indústria se estabeleceu como a sétima besta fera do apocalipse. Longe da exaustão alienante e do consumo frenético que marcaram a disseminação do cinema e da música popular americana, a literatura se impôs como distinção, ainda que estivesse inserida na lógica de um mercado de

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Regina Zilberman

O prêmio é o valor de uma obra

ELZA FIÚZA/ABR

Dos Medici renascentistas aos Matarazzos modernistas, do Rei Sol, que abrigou a trupe de Molière em seu Château de Versailles, ao patronato do Estado. A arte sempre esteve vinculada ao poder oficial. Na cultura contemporânea, no entanto, foram as artes tradicionais, sobretudo literatura, teatro e música clássica, que passaram a contar com o apoio do mecenato para sobreviver como instituições. No Brasil, a relação com os padrinhos e beneméritos se mostrou conflituosa desde que foi estabelecida uma indústria de bens simbólicos, durante as diversas modernizações do século 20. A cultura popular, por exemplo, tem sido alvo de discussão pelo eterno paternalismo e populismo das iniciativas envolvidas em sua legitimação. Os prêmios e concursos também não escapam dessa tendência ao conferir aos novatos, sobretudo, premiações sem investimento a médio e longo prazo. Regina Zilberman, curadora do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura, do Rio Grande do Sul, descreve o processo de curadoria de uma premiação.

A senhora acredita que há uma popularização dos prêmios literários atualmente?

Prêmios literários vêm sendo um caminho importante para um escritor alcançar visibilidade regional ou local. A popularização deles não é de hoje: o concurso de contos do Paraná data dos anos 1970; o concurso de contos Josué Guimarães, no Rio Grande do Sul, nasceu nos anos 1980, e assim por diante. E concursos com premiação alta aconteceram nos anos 1980 e 1990, com o patrocínio da Nestlé, que primeiramente privilegiou obras inéditas (anos 1980), e depois, obras publicadas (anos 1990). Contudo, estamos presenciando um fenômeno novo: ao lado de prêmios, digamos, clássicos (Jabuti, da Câmara Brasileiro do Livro, ou prêmio da APCA, entre outros), temos prêmios avultados em dinheiro, abrigados por empresas particulares ou por governos estaduais.

bens culturais. Distinção que obteve, diga-se, pelo tempo que demanda a imersão na leitura, cujos códigos determinam um conhecimento linguístico mais aprofundado e um comprometimento temporal e logístico mais sistemático. Os primeiros best-sellers não demoraram para provar que ficção e poesia também integravam uma espécie de fordismo literário, passível de se transformar em indústria com a invenção dos tipos móveis, por Gutenberg, no século 15. Narrativas de sucesso mercadológico e massivo provocaram uma verdadeira revolução no processo de apreensão da literatura, no seu consumo popular e na transmissão de conhecimento relativo a esse campo. Mais uma vez a técnica e a tecnologia se colocam como formadores de uma nova sensibilidade reproduzida pela associação entre história literária e história imagética, com as adaptações cinematográficas dos fenômenos editoriais. Estabelecido desde o século 19, o mercado editorial, com a modernização da impressão e o barateamento da produção, mostra um novo movimento, provocado, entre outros fatores, pela prática de socialização de uma geração de escritores que, conectada pelas redes de relacionamento, obtém do ambiente virtual o espaço de divulgação de suas ideias. Cada vez mais, os limites que definiam a indústria literária se tornam obsoletos, quiçá o próprio conceito de uma indústria literária no mundo contemporâneo. Pela web, os concursos literários divulgados em portais e redes sociais como o Orkut se revelam atualmente como uma indústria complementar à editorial tradicional. A partir de sites e guias na internet, o escritor se conecta à página oficial de todos os concursos e prêmios literários do Brasil, conhecendo seus regulamentos e exigências. E os números são, de fato, industriais. Ano passado, foram mais de dois mil inscritos para o Prêmio Jabuti, cuja taxa de inscrição na edição de 2009 foi estipulada em R$ 165. Faça os cálculos. Durante a década de 1990,

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Os best-sellers só vieram comprovar que a poesia e a ficção integravam uma espécie de fordismo literário o máximo de inscritos que essa premiação obteve foi em 1995, com 1700 trabalhos. Sites como o Guia dos concursos literários mostram que a maior parte das capitais brasileiras investe em concursos literários para divulgar novos autores. Poesia, conto e ficção são os gêneros de maior ocorrência, e as “agências” de fomento à premiação podem ser variadas: escolas, revistas, universidades, associações de bairro, órgãos oficiais municipais. Muitos autores são atraídos pela gratificação financeira, outros querem apenas ser conhecidos ou reconhecidos no seu cenário local. Na comunidade Concursos literários, do Orkut, com quase seis mil membros, o perfil heterogêneo dos membros indica a popularização do concurso. Autores jovens; profissionais de áreas de trabalho diversas que arriscam suas linhas à aprovação popular; donas de casa que conquistaram premiações universitárias no passado e tentam exaustivamente emplacar uma nova obra. Premiólatras e concurseiros obstinados

Por que cada vez mais os escritores recorrem aos prêmios para serem divulgados?

A melhor divulgação para um escritor é a recepção do público em feiras do livro, livrarias, encontros universitários etc. Mas os prêmios têm colaborado, e muito, para dar visibilidade a autores, sejam os já bastante prestigiados pela mídia (Chico Buarque de Holanda, por exemplo), sejam os que têm uma obra importante, mas que se tornam mais conhecidos graças aos prêmios recebidos.

Como são a curadoria e o processo de análise numa premiação?

Os organizadores do prêmio, sejam seus patrocinadores ou entidades culturais, costumam escolher um núcleo inicial, que gerenciará a premiação, indicando a modalidade de ação. Atualmente, é bastante usual a valorização do voto de um júri inicial, formado por um grande número de intelectuais, profissionais das letras, professores, escritores etc., que indicam voluntariamente os melhores títulos do gênero a ser premiado. Depois, um júri menor detém-se sobre as obras que somaram maior número de indicações, até chegar a um grupo de finalistas de onde se elege o vencedor. Prêmios como Zaffari & Bourbon e Portugal Telecom operam dessa maneira, que oportuniza uma indicação ampla e democrática, a partir da qual a escolha se afina, a partir de uma discussão do júri final.

Como fica a divulgação massiva do escritor após a premiação? As editoras deixaram de ser tão importantes?

Os patrocinadores dos prêmios, públicos ou privados, têm interesse em divulgar os vencedores – sejam os finalistas, seja o ganhador dos prêmios maiores – porque a qualidade da obra desses repercute sobre a legitimidade do prêmio. No caso do prêmio Zaffari & Bourbon de Romance, premiar um Chico Buarque, em 2005, ou um Mia Couto, em 2007, significa que a empresa valorizou obras decisivas das literaturas em língua portuguesa, valorizando-se ao mesmo tempo. O mesmo pode ser dito do Prêmio Portugal Telecom ou do Prêmio São Paulo, quando os ganhadores são romancistas do porte de Gonçalo M. Tavares ou Cristóvão Tezza. Contudo, as editoras não deixam de divulgar as obras desses vencedores, pois elas atraem a atenção do público leitor, vendendo mais, logo, gerando lucro.

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CAPA de vários quilates. Autores sem muita manha para as firulas das alianças literárias. Gente que procura dar continuidade à profissionalização da literatura encontra no concurso a catapulta para a visibilidade, e as facilidades de produção de edições financiadas pelo próprio autor rompem com as práticas tradicionais de publicidade. Os concursos mais disputados permitem a inscrição pelo próprio escritor, sem a necessidade de a editora intermediar o processo de submissão de uma obra ao júri crítico. Embora esteja longe de abalar a estrutura mercadológica das grandes empresas editoriais, como ocorreu com as gravadoras em relação à difusão do MP3, a hegemonia de uma prática burguesa de comercialização dos livros começa a ser desafiada por essa descentralização mercadológica. Irrompe, aí, a aura democrática e populista do fordismo. Prática definidora, inclusive, para a própria concepção de um campo literário cuja autonomização como

Os concursos mais concorridos permitem a inscrição pelo próprio escritor, sem necessidade de editora um espaço social específico, segundo o sociólogo Pierre Bourdieu no seminal As regras da Arte, remonta à época do Renascimento, quando artistas e intelectuais começaram a se desvincular da autoridade da Igreja. O século 19, no entanto, acelerou o movimento em direção à autonomia com a criação de uma indústria de bens culturais, surgida, primeiramente, em torno das editoras literárias e, paralelamente, como feito da burguesia, que vai instituir o caráter mercantil da obra

RODRIGO SOTERO

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de arte. Os bens simbólicos passam a ser vistos não somente como portadores de significação estética e cultural, mas também segundo a amplitude de sua circulação pública, permitida agora pela instalação de um mercado de arte. É o momento no qual se instaura a ressignificação da arte, com a cisão entre a produção erudita e a produção da indústria cultural. Enquanto a produção erudita se destina à produção de bens simbólicos dirigidos a um público específico de “apreciadores” culturais, a da indústria cultural caracteriza-se por ter um público consumidor de bens culturais, uma massa homogênea. É aí, primeiro nos salões literários promovidos pela alta burguesia européia, que encontramos o estabelecimento da moral do “agrega valor” atribuído ao investimento em cultura, que marca, sobretudo, o mecenato privado dos concursos mais opulentos financeiramente. MADAME BOVARY C’EST MOI Gustave Flaubert, um dos que estiveram no centro da discussão nos salões burgueses parisienses no século 19, proferiu: “Quando não nos dirigimos à multidão, é justo que a multidão não nos pague. É economia política. Acha-se que o escritor, porque não recebe pensões dos grandes, é muito mais livre, muito mais nobre. Toda a sua nobreza consiste em ser o igual de um vendeiro. Sustento esse axioma com a cabeça na guilhotina. Nós somos operários de luxo; ora, ninguém é bastante rico para nos pagar”. O mal estar do autor de Madame Bovary ilustra bem a ambivalência do campo literário, um espaço que tem as suas regras próprias de jogo social e cuja dinâmica é pontuada também pela crença romântica de que a arte pela arte dignifica o artista em sua essência criadora. Vestir a camisa para entrar no jogo do campo literário consiste, porém, em ser burocrata: orientar-se segundo as normas que o definem em sua estreita vinculação com o campo de poder, na forma da aliança e do contato político com jornalistas e críticos de arte, por exemplo. O concurso foge a essa regra, quando rompe com a personalização, abrindo-se à inscrição massiva pela qual um texto original será analisado por um júri previamente selecionado. Por outro lado, as premiações oficiais da iniciativa pública e privada, a exemplo de premiações grandiosas (financeiramente) como o Prêmio da Cidade de São Paulo, o Prêmio Passo Fundo e o Portugal Telecom, que chegam a somar juntos meio milhão de reais em premiação, além do menos opulento, mas tradicional, Jabuti, conferem a consagração aos estabelecidos, ratificando sua distinção, sua legitimação. Simbolização utilizada por toda editora que se preze em sua apresentação gráfica, cujo título de escritor premiado apresenta a obra em toda sua honraria. A excelência literária, seja pela estilística ou pela originalidade da abordagem, nos remete a um dos fetiches fundamentais da modernidade, que é a noção de autoralidade — o conceito de uma obra única e original. No entanto, nunca é demais voltar a Walter Benjamim. Na época da originalidade produzida em série, ainda podemos falar de um autor?

Entre o uísque e o lítio DIVULGAÇÃO

O pernambucano Walther Moreira dos Santos coleciona títulos e elogios amplamente divulgados em seu site oficial (www. walthermoreirasantos. blogspot.com). Apesar da farta memorabilia, ele ainda pode ser considerado um jovem escritor, segundo a lógica bourdieusiana. Para o sociólogo francês, os jovens representam, por desafiarem as convenções, a vanguarda de um campo artístico em oposição aos artistas estabelecidos que acumularam conhecimento político, simbolismo e passaportes sociais suficientes para permanecer institucionalizados em seu espaço de atuação. Em seu site oficial,Walther, que mora em Vitória de Santo Antão (Zona da Mata pernambucana), lista os prêmios mais significativos de sua carreira literária, iniciada profissionalmente em 2000 com o livro Dentro da chuva amarela, e não deixa de ironizar o seu desconhecimento popular. “São 13 livros publicados e outros tantos ilustrados, mais de 60 prêmios, três peças teatrais montadas e você nunca ouviu falar de mim?”, descreve em sua apresentação. Walther diz que parou de contar os prêmios ganhos quando chegou à casa dos 80. “O Prêmio, per se, não significa nada, pois há livros medíocres que são premiados — mais importante que o prêmio é a comissão julgadora que o outorga, pois jurados medíocres tendem a escolher obras medíocres”, opina o escritor, que foi condecorado com o título de melhor novela de 2001 pelo prêmio Xérox do Brasil, com o livro Ao longo da curva do rio, cuja comissão julgadora fora liderada pelo prestigiado crítico literário Fábio Lucas. Avesso a badalações e eventos sociais, Walther está mais para o romantismo de Baudelaire, que negou os salões parisienses e se tornou maldito entre os burgueses, do que para o pragmático Flaubert, embora faça questão de ressaltar que o que vale mesmo numa premiação é o dinheiro. “Vou ser sincero, senhores, para mim o que vale mesmo é o dinheiro”, a frase é de José Saramago, quando do recebimento do Prêmio Nobel. “Assino embaixo; não participo de prêmios literários que não remunerem; aliás, ‘prêmio’ sem dinheiro não é prêmio, é propaganda enganosa; ou então não se utilize esta palavra e sim ‘Troféu Cidade dos Cafundós’, ‘Certificado Editora Vagabundex’, ou coisa parecida”. A cada volume inscrito, Walther mantém a mesma rotina. Coloca o livro no correio e vai correr no parque. O celular passa a maior parte do tempo desligado. Ao ser perguntado sobre a frustração de não ganhar um prêmio, o autor dispara: “Tomo 75 miligramas de Nortriptilina, mais 70 miligramas de carbonato de lítio e uma dose de uísque, todas as noites. Nunca fico deprimido”. No dia do anúncio de sua condecoração mais importante, tomou os mesmos comprimidos, a mesma dose de uísque e correu no parque uma hora. Walther tergiversa quando o assunto é a vaidade e cita Mário Quintana: “A modéstia é a vaidade escondida atrás da porta”. Sua imensa lista de críticas, seus jornais digitalizados e a própria disposição em participar de tantas premiações são suficientes para ilustrar essa tentadora senhora.

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OPINIÃO RENATA CADENA

Por diversão, acidente e patrocínio

Escritora explica a importância do incentivo para a criação literária Simone Campos

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Em O mestre e Margarita, de Mikhail Bulgakov, um dos meus livros preferidos, a associação estatal de escritores (Massolit) é uma pocilga de talentos malcurados que passam mais tempo com tramoias e enchendo a cara do que propriamente escrevendo algo que preste. Bulgakov escreveu essa obra excelente por vingança e despeito — sentimentos não precisamente bonitos ou feios. Como escrevia o que bem entendia, Bulgakov não conseguiu publicar mais nada no regime estalinista e ficou inédito por décadas. Compreende-se porque eu tivesse tantas ressalvas (vamos colocar assim) em ser financiada pelo governo. Mas decidi tentar o edital da Petrobras e olha aí: livro novo na praça. E um livro do qual me orgulho. A diferença entre os escritores fuleiros da Massolit e eu é que, mesmo financiada pelo Estado, eu pude escrever o que bem entendi. Talvez porque a literatura perdeu relevância “com a ascensão abrutalhada e fascinante da narrativa audiovisual no último século”, hoje possamos escrever o que quisermos: “ninguém está olhando” (como bem disse o Pelizzari no Failbetter, www.wunderblogs.com/ failbetter). Meus contos foram acontecendo por diversão e acidente, mas saíram Brasil prelo afora. Minha descoberta resumida: não estar do lado de ninguém é impossível, mas trair todo mundo não o é – o mel da agente dupla. Massacrei fundações em Tabu (que lembra o caso do Simonal), esculachei o funcionalismo em Herói, fraudei concursos públicos em Wifi, entrei na pele de um psicopata em Tão bonito que dói, fiz advogados serem os mocinhos em Segundo andar e fui publicada sem alterarem uma vírgula. Não estamos mais em 1930. Eu realmente não preciso fazer isso — não consta do contrato que eu precise escrever um texto laudatório aos patrocinadores, e é exatamente por isso que senti vontade de escrevê-lo. A Petrobras e o Estado viraram meus BFGs (Big Friendly Giants), meus Pêssegos Gigantes. Me tiraram da minha vida chata, atribulada de estágios, cursos e frilas e malfadadas tentativas de passar em concursos para os quais eu queria muito não passar, e me proporcionaram uma vida em que eu podia simplesmente escrever quando me desse na telha. Se eu quisesse passar o dia lendo, ou viajar à Europa, era pesquisa. Se eu quisesse sacolejar os meus neurônios com dança do ventre ou ginástica, OK — os resultados literários é que contariam. Como o planeta-computador do Guia do Mochileiro das Galáxias que deveria dar a resposta para a grande questão fundamental, minha vida virou um grande instrumento (ou melhor, laboratório) para a obra. Investir em atividades paralelas pode frutificar, por um motivo ou por outro, num breakthrough literário. Se eu dissesse que fiz análise e isso me ajudou a escrever o livro, ninguém ia rir. Mas vai ter gente guinchando quando ler isto: a dança do ventre ajudou. Ajudou, por exemplo, a perceber que não devo ter medo de mostrar como sou boa — na dança e na literatura. Dançando, percebi: eu não me entregava tanto à dança por medo de ser notada, e provavelmente me continha literariamente também. Afinal, quando você é notada, pode atrair gente chata. Mas a dança do ventre também me fez ver que os benefícios — o brilho no olhar, por exemplo — suplantam os malefícios, e que os chatos acabam sendo o seu próprio castigo. Quando me dei conta disso, o poder foi despertado. A melhora na qualidade da dança foi

impressionante. Afinal, se você dança, é porque já está buscando ser notado. Não é legal fazer pela metade. Já que vai se expor, faça o melhor possível. Aplicado à literatura, isso significou escrever sem tanto hermetismo. Afinal, se você publica, é porque já está buscando ser notado. Não é legal fazer pela metade: exponha-se o melhor possível e valorize o dinheiro que seu leitor (mesmo que seja sua mãe) e seu editor (mesmo que seja você) investiram em você. Outra coisa aparentemente “malversativa” que fiz: viajei à Europa. Tive que economizar bastante e ficar em hostels. Visitei vários locais que inspiraram livros que eu adorava, conheci gente, fiz trilhas e pensei bastante. Parei em cibercafés e escrevi. Cheguei à conclusão de que a literatura do Brasil oferece possibilidades bem maiores que a de lá, basta explorar – e saí de machete na mão à procura do Eldorado. UM CERTO FETICHE Nesse ano, anotei cuidadosamente as ideias que tive enquanto usava o sistema de transporte público da minha e de outras cidades em caderninhos da União, da Tilibra e da Paperblanks com canetas Lakubo (isto não é um publieditorial, acreditem). Não sei bem por que o caderninho certo e a caneta certa são importantes. Talvez seja fetiche. Talvez a forma influencie o conteúdo. Talvez eu tenha sentido a responsabilidade que aquele conforto sensorial adquirido às custas do erário implicava, e tenha decidido me aplicar — detendo-me dois minutos em orelhões e outras democráticas superfícies para anotar a imagem ou lembrança que me vinha à cabeça, em vez de esperar até chegar em casa e esquecê-la, como eu sempre fazia. E aconteceu algo de curioso com esse processo todo: esbocei outro romance, terminei um projeto antigo (um roteiro de quadrinhos) e comecei a escrever um folhetim online com tema nerd (bastante inspirado em Bulgakov, por sinal). Se ninguém dá valor ao que a pessoa escreve, por mais esforçada que seja, ela vai acabar desistindo. Se o escritor não publicou só para ter assunto a puxar com os frequentadores mais atraentes da livraria, fica sentindo falta do reconhecimento – seja ele financeiro, moral ou simbólico. Como escritor é um bicho muito enjoado, é preciso dar reconhecimento a ele em doses medidíssimas, ou senão ele também para de escrever, cansado do assédio... mas digressiono. Em suma: hoje o financiamento estatal poderia dar um belo estímulo ao escritor esforçado desde que não haja qualquer tipo de commissariat restringindo o tema ou o tratamento – ah, é pop demais; é sociológico de menos; obviamente não podemos admitir uma coisa dessas... Claro, também é preciso conter os que não levam literatura a sério e só enxergam nos editais de criação literária mais uma opção para se dar bem às custas do governo... Me pareceu boa a medida da Petrobras de exigir dos candidatos à mamata que já tenham um livro publicado e expliquem o projeto do novo (além de apresentar uma parte dele). Sim, porque é uma mamata — a Mãe-Pátria está sendo efetivamente sugada. Mas só é maracutaia se o bebê mamar e não crescer. Aliás, o sentido da palavra “fomento” é esse.

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ACADEMIA REPRODUÇÃO

igualmente desafiante grupo de questionamentos. O que eu achei fascinante é como estes dois autores parecem focar em ideias bem semelhantes acerca da sexualidade e da alienação ou desafeto, muito embora suas abordagens sejam bem diferentes”. As obras analisadas são Stella Manhattan e Autumm Leaves, de Silviano, e Bem Longe de Mariembad e Onde andará Dulce Veiga?, de Abreu. Sem ataques diretos à homofobia, seus personagens sequer se identificam como gays. Suas atitudes, na análise de Posso, “indicam uma tensão curiosa entre a nomenclatura da sexualidade ou do sexo e as formas de ser sexual, revelando a força do termo homossexual para dar a ele um lugar coerente dentro da ordem cultural, enquanto, ao mesmo tempo, expressam descontentamento por ter a preferência erótica vinculada a uma determinada classificação”. Se isso produz uma literatura desafiante, do ponto de vista dos direitos gays coloca-se como um problema alarmante a grande relutância para “sair do armário”. Posso analisa que Santiago e Abreu trabalham com a disjunção entre desejo, que pode ser desejo entre pessoas ou por pessoas do mesmo sexo, e a ideia de identidade. “Suas personagens supõem que buscar integração em uma ordem social, ou opor-se a ela, significa seguir as regras da sociedade. Assim, ao contrário, eles tentam desconstruir categorias e oposições. Nesse sentido, eles são relevantes para aqueles que procuram desfazer os valores da sociedade hegemônica, porque desconstroem a lógica binária do Estado e da Igreja e realçam muitas das ambiguidades e paradoxos inerentes à cultura de massa. Uma consequência desse processo, ironicamente, é que ele também termina embaçando a homossexualidade e a heterossexualidade como categorias significativas identitárias. Isso, evidentemente, não está de acordo com a agenda da política gay convencional”. O professor aponta correspondências entre a literatura homoerótica feita no Brasil e a de alguns autores latino-americanos e europeus, como André Gide, Jean Genet, Fernando Pessoa, E. M. Forster, e estabelece relações de Caio Fernando Abreu e Santiago com obras anteriores escritas na América Latina que considera inovadoras, como Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, ou compostas de fortes elementos homoeróticos, como O ateneu, de Raul Pompéia, e O cortiço, de Aluísio de Azevedo.

O desejo em tempos de exílio Literatura gay brasileira é tema de pesquisador inglês Mariza Pontes

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Obras de Silviano Santiago e de Caio Fernando Abreu serviram de argumento para a tese de doutorado do inglês Karl Posso, PhD em Literatura Brasileira e professor de Literatura e Cultura Latino-americana na Universidade de Manchester (Inglaterra). Artimanhas da sedução — Homossexualidade e exílio, publicado em 2003 pela Universidade de Oxford, ganha agora edição nacional pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O autor defende que as obras dos dois escritores brasileiros se afastam das políticas de militância gay, comuns nas décadas de 1970 e 1980, quando era exacerbada a repressão aos homossexuais com aval da ditadura (ponto em comum da maioria dos países latino-americanos) e da Igreja. Em vez disso, os textos se voltam a narrativas sedutoras e sofridas, que têm o desterro como pano de fundo e salvação derradeira contra o preconceito da sociedade da época. “Mais que escolher um tema e depois encontrar autores que seriam úteis para mim, eu descobri autores que me interessavam e que tinham como um dos principais temas a homossexualidade. Eu tinha lido muito sobre estudos de gênero e teorias homo, denominadas queer, de forma que terminei pensando em juntar esses autores brasileiros e as teorias”, explicou o autor, em entrevista ao Pernambuco. Foi principalmente o romance Stella Manhatan, de Silviano Santiago, que motivou Karl Posso a utilizar os elementos estéticos e políticos propostos por esse autor e por Caio Fernando Abreu. “Eles são escritores patentemente diferentes: Santiago, como acadêmico, é evidentemente consciente das ramificações filosóficas do que escreve; ele conhece pelo avesso as tradições da literatura, que cita e desconstrói; Abreu é menos acadêmico, mas nas narrativas, faz um uso criativo da cultura de massa dos anos 1970 e 1980 para nos presentear com um

A obra La poupée (ao lado), de Hans Bellmer, é analisada em paralelo ao romance Stella Manhattan

CULTURA DE CONFISSÃO Posso identifica uma armadilha na forma como os autores atuais criam/recriam a temática homossexual em suas histórias, segundo as quais, independentemente de o personagem sentir-se feliz, sempre permanece a convicção de que a homossexualidade é uma desvantagem. “O homossexual rotula a si mesmo de gay — isso é sintomático da chamada cultura de confissão — e então aprende a viver com essa carga enquanto se regozija com a tolerância dos outros; a permissão deve sempre ser dada para a integração com a sociedade. Para muitos escritores recentes, o desejo e o gênero apenas funcionam dentro da redoma heterossexual da negação, identificação e melancolia; eles não exploram vieses pelos quais corpos possam se relacionar de modos diferentes. Essa posição liberal anglo-americana já produziu muitas obras de ficção cujo valor tende a ser de natureza muito mais política ou documental do que literária”. Karl Posso é também autor de um livro sobre a poetisa argentina Alejandra Pizarnik. Publicou artigos sobre João Gilberto Noll, Julio Cortázar, Reinaldo Arenas, Henri Bergson, Gilles Deleuze e Félix Guattari, além de textos de viagem ambientados no Brasil. Atualmente escreve sobre a estética na obra do argentino Manuel Puig, adaptando-a para o cinema, interessado principalmente na ficção que ele produziu quando morava no Rio de Janeiro, nos anos 1980.

O LIVRO Artimanhas da sedução – homossexualidade e exílio Editora Editora UFMG Páginas 293 Preço R$ 63

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DESCANSE EM PAZ RENATA CADENA

Memórias do cálice sagrado de uma punk

A leitura secreta de As brumas de Avalon num Brasil entre Sarney e Smiths Danielle Romani

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Brasil, segundo semestre de 1986. O país fervia. Bandas como Legião Urbana, The Cure, Titãs, Ira!, Os inocentes, The Smiths, As mercenárias e Plebe Rude, entre tantas outras, “bombavam” no cenário musical, fazendo a cabeça de milhões de jovens, levando-os à loucura e à ilusão de que o futuro não seria mais como era antigamente, como cantava Renato Russo. Setembro/outubro de 1986. Meses marcantes, repletos de novidades, quando a ilusão criada pelo plano Cruzado, decretado há pouco pelo então presidente José Sarney – que congelava preços e prometia crescimento econômico – levou cidadãos comuns, e, principalmente, aguerridas donas-decasa, a acreditarem que agora, ali, era o momento! Estávamos, pensavam muitos, no rumo certo. Enfim havíamos encontrado uma direção. Aquele foi, de fato, um ano histórico, especial, pós-ditadura, pós-repressão, pré-diretas já! A liberdade se insinuava. A nação experimentava o prazer de ser governada por um presidente civil – mesmo que eleito por voto indireto.Um país onde já se podia dizer o que se pensava, fazer o que se queria e degustar o que aparecia. Sem medo de que os militares batessem à sua porta. O Brasil e a São Paulo de então eram uma festa! Ainda mais quando se tinha 25 anos, e se vivia no agitado bairro da Bela Vista, cercado por boates e casas da moda – a maioria darks e punks –, teatros, cinemas, discussões políticas e artísticas. E muitas, acreditem, oportunidades profissionais geradas pelo então milagroso Plano Cruzado, que transformara, num passe de mágica, inflação em deflação. Foi nesse cenário que ouvi falar pela primeira vez do recém-lançado As brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. Com meus cabelos curtíssimos (de dia, penteados comportadamente, para encarar o ambiente de trabalho; à noite, moldados com gel, para assumir um estilo “moicano”), à primeira

vista torci o nariz para o best-seller comentado por dez entre dez resenhistas de revistas e jornais. Éramos tão jovens, e selvagens... Alguns, confesso, bem mais selvagens e seletivos do que eu. Pois minha repulsa pelo best-seller, quando fui instigada por uma amiga que o lera – rapidamente se transformou em compulsão: simplesmente devorei, um atrás do outro, os quatro volumes escritos pela autora. A despeito de não assumir publicamente para meus amigos “modernosos” que havia me encantado pela obra – pois isso não era coisa que se falasse abertamente em uma turma onde todos estavam descobrindo Samuel Beckett, Jean Genet e Sex Pistols – cheguei ao ponto de sair de casa de madrugada – à época, pelo menos duas livrarias da Bela Vista mantinham suas portas abertas 24 horas – para comprar o tomo seguinte da coleção. Lia o livro no ônibus, nas salas de espera das entrevistas que faria, no banheiro, no quarto, almoçando, onde quer que estivesse. Em menos de duas semanas devorei os quatro exemplares de As brumas de Avalon. Por quê? Por muitos motivos. Em primeiro lugar, pelo fascínio nutrido, até hoje, pelo lendário Rei Arthur, o Santo Graal e sua espada, Excalibur. Mas principalmente pela linha feminista/feminina adotada pela autora. Ao contrário de tudo que tinha sido produzido, até então, em torno dos cavaleiros da Távola Redonda, o livro centrava-se nas mulheres e em seus sentimentos, nos seus poderes místicos, nas suas emoções, e não apenas nas guerras e batalhas em defesa do cálice sagrado. Estávamos no comando de uma das lendas mais fascinantes da humanidade! Personagens como Igraine (mãe de Morgana), Guinevere, mas principalmente a grande sacerdotisa Viviane e, óbvio, a própria fada Morgana (que nessa versão é boa), me envolveram completamente desde o primeiro volume, A Senhora do Lago, até o último, O Prisioneiro da Árvore. Lembro que, mesmo naqueles hipnóticos dias, jamais considerei o livro bem escrito... Mas o que importava isso? Estilo, neste caso, era apenas um detalhe, pois a trama “grudou” com tamanha força, que mesmo me deparando com parágrafos de gosto duvidoso, nada me desviava da paixão súbita pela história envolvente criada por Marion. Duas décadas passadas, reflito: será que releria o livro? Acredito que não... Já tentei ler outros da autora e não consegui ir além das primeiras páginas. Outro fator abalou meu interesse pelo trabalho: descobrir que todos, absolutamente todos os fatos narrados eram pura invenção! Á época, ainda não totalmente informada sobre a natureza dos best-sellers históricos – que de históricos, hoje se sabe, não têm nada! – acreditava que a trama devia se basear em algum episódio real, alguma descoberta arqueológica... Mera ilusão: atualmente sei que quase tudo sobre o rei e seus cavaleiros é especulação... Independentemente da frustração com os demais trabalhos da autora, e da sua total imprecisão histórica, considero As brumas... uma leitura que trouxe encantamento, prazer e diversão. Ela cumpriu sua função. Mas dificilmente, repito, nutriria hoje por ela igual interesse. O mesmo digo das bandas de rock que encantaram minhas noites e dias paulistanos, que deflagraram meu lado “transgressor”: quase todos se aposentaram, romperam ou viraram senhores de meia-idade (como eu!), cuja rebeldia é tão palpável quanto as brumas do livro aqui abordado. Do Plano Cruzado, então, não gosto nem de ouvir falar: pagamos durante anos a conta provocada pelo delírio sarneysista que, como todos sabem, acabou em recessão, milhares de demissões, moratória e hiperinflação.

ONDE ENCONTRAR? Não é nenhum mistério do Cálice Sagrado que a saga de Marion Zimmer Bradley continua entre nós, graças à sua reputação de ótima literatura B. Lançada pela Imago, a obra custa R$ 44.

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RESENHA

Ninguém se salva da tal vaidade

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A “calculada” briga de egos envolvendo Newton e Leibniz Renato Lima

A vaidade é algo muito presente entre os intelectuais. Fazer parte de academias, ver o nome citado nos jornais, receber distinções – são várias as formas de cultuar esse sentimento. E não são apenas aqueles de méritos duvidosos que esperam colher em vida uma imortalidade que talvez os seus trabalhos não assegurem. Não; até os mais imortais no conhecimento, verdadeiros gênios, podem sucumbir ao mal da vaidade. Isso é o que mostra o livro A guerra do cálculo – Newton, Leibniz e o maior embate matemático de todos os tempos, de Jason Sócrates Bardi. A obra retrata uma das maiores guerras intelectuais da história. De um lado do ringue, o Sir Isaac Newton, tão importante que a física clássica leva o seu nome. Do outro, Gottfried Wilhelm Leibniz, de conhecimento tão vasto que vai da filosofia e da teologia à matemática. Essas duas mentes poderiam ter sido grandes colaboradoras, inclusive participavam da mesma sociedade científica (a Royal Society, de Londres), mas acabaram optando pelo caminho da peleja. Newton nasceu em 1642, em uma pequena cidade na Inglaterra e longe do sangue nobre. Aliás, foi o primeiro da sua família a assinar o próprio nome. Mas aos 12 anos começou a estudar latim e ficou hospedado na casa de um boticário, o que lhe despertou o interesse pela mistura de produtos químicos (vindo depois a torná-lo alquimista). Posteriormente, foi aluno e professor de Cambridge. Leibniz, nascido em 1646, em Leipzig, com oito anos estava lendo os clássicos latinos da coleção do pai, como Cícero, Plínio, Sêneca e Platão. Quatro anos mais tarde já entendia bem de latim e um pouco de grego, além de fazer versos. Formado em direito, entendia quase nada de matemática, até partir para uma temporada em Paris. Lá, em quatro anos, saiu da matemática básica até a posição de um dos melhores dessa ciência. PROBLEMA ALÉM DA GEOMETRIA E o que estava em disputa? O cálculo diferencial, o maior avanço matemático desde os tempos da Grécia antiga e que permite resolver com facilidade diversos problemas geométricos. Esse instrumento foi de fato desenvolvido pela primeira vez por Newton, mas com um nome complexo, chamado de fluxões e fluentes, e uma notação obscura. Pior ainda, Newton não publicou o seu achado, porque já tinha brigado algum tempo antes com o famoso cientista Robert Hooke e ficou com receio de sofrer novas repreensões públicas. Hooke questionou os resultados obtidos por Newton em experimentos sobre ótica, alegando que já havia feito as mesmas experiências e que as conclusões de Newton estavam erradas. Atacado pelo mais prestigioso intelectual da época, Newton ficou recluso em Cambridge, guardando para si, durante muito tempo, os seus estudos. Além disso, o grande incêndio de Londres (1666) dificultou os negócios das editoras inglesas, fazendo com que o trabalho acadêmico de um cientista desacreditado dificilmente fosse publicado. Newton chegou ao cálculo no período em que teve que sair de Cambridge – por causa da epidemia de peste – para a casa de sua família, entre 1665 e 1667. Lá fez diversos experimentos, inclusive o de enfiar uma agulha no olho até o osso para modificar a sua retina. No meio desses diversos experimentos, que depois iriam ser sistematizados, estava o cálculo. E só os amigos mais próximos de Newton, com quem ele se correspondia, sabiam do assunto. E alguns desses

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amigos também trocaram cartas com Leibniz – o que depois seria usado como acusação. Leibniz era polímata, tinha interesse por tudo quanto era conhecimento. E sua mente privilegiada conseguiu não apenas igualar-se à dos maiores da matemática, mas unificar os avanços do seu tempo já disponíveis e criar o cálculo numa notação mais simples e útil. A sua versão do cálculo diferencial foi desenvolvida em 1675 e publicada em dois trabalhos nos anos de 1684 e 1686. Só quase duas décadas após a publicação dos trabalhos de Leibniz, amigos de Newton começaram a questionar a autoria do cálculo. Houve até um suposto amante de Newton, Fatio de Duillier, que entrou na briga, acusando Leibniz de plágio. Inicialmente, Leibniz fez pouco caso do assunto – tinha a certeza de que era o inventor, já que Newton nunca arrogou esse título para si antes. Mas as acusações cresceram e se dividiam em duas linhas: uma alegava que Newton havia inventado o cálculo antes, só não havia publicado. A outra era de que Leibniz teve acesso a correspondências de Newton e foi um plagiador astuto, modificando algumas coisas para parecer ideia sua. Em sua defesa, o alemão fazia resenhas anôminas de livros seus com elogios como “o eminente matemático Leibniz” e acusações a Newton, além de solicitar a outros matemáticos que escrevessem em sua defesa. Já o inglês manipulou comissões de investigação para que determinassem que Leibniz era o usurpador da história. Quando a guerra do cálculo explodiu, Newton já era considerado o mais brilhante cientista, autor da teoria da gravitação universal e novo presidente da Royal Society. Por sinal, instituição de onde saiu um relatório louvando Newton e criticando Leibniz. A disputa podia ser entre dois homens, mas envolveu questões do Estado: qual país estava mais à frente no campo das ciências? Não foi à toa que embaixadores e religiosos tentaram mediar um acordo, sem sucesso. “Newton era uma potente mistura de brilho intelectual e vaidade, e iria mais tarde rejeitar a ideia de que alguém como Leibniz pudesse fazer as mesmas coisas que ele fizera nesses seus primeiros anos”, escreve o autor. Nem quando Leibniz morreu, em 1716, Newton sossegou. A Royal Society (da qual Leibniz era ainda membro) nem registrou a sua morte e Newton mandou reimprimir um livro com acusações ao alemão. Parece que a vaidade é uma grandeza astronômica – por sinal, área que Newton dominava.

Wilhelm Leibniz (à esquerda) foi acusado de plagiar o cálculo diferencial. Acima, carta de Leibniz com anotações de sua pesquisa.

O LIVRO A guerra do cálculo Editora Record Páginas 298 Preço R$ 40

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Eleonora Castelar

INÉDITOS

PERNAMBUCO, AGOSTO 2009

SOBRE O AUTOR Eleonora Castelar é escritora e já participou de várias antologias nacionais, como Contos de oficina.

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Peça rústica

Se um dia eu contasse como vim parar entre estas paredes, aposto que ninguém iria acreditar. Estou numa loja de peças de arte, luminárias, louças, tapetes de couro. Pode-se dizer que nos últimos tempos mudei um bocado. Tudo uma questão de massa muscular. A mim não se aplica a proporção divina ou a razão áurea, nada dessas coisas de que se ocupavam os artistas clássicos. Falta-me a harmonia das linhas do corpo e até a vontade de me sentir vivo. É um erro, eu sei, porque até nos fósseis pulsa ainda um resto do sopro vital. Tudo começou com a moça do sótão. A que aparecia por detrás do vidro, atirando uma peça de roupa no ar. Girava, escondia-se no véu da cortina e depois sorria colada à parede, os braços em cruz. Nessa hora olhava, eu tenho certeza, olhava para mim. Não passava disso. Achei que quisesse só se divertir ou me provocar. Gostava do sol e quase nadava nos raios vertidos pela clarabóia. Na chuva de luz nunca a vi mexer um músculo do rosto. Nem piscava, eu acho. Às vezes falava com alguém na casa. Ou era comigo? Com o passar do tempo, vi que estava nua de qualquer luxúria. Ria pelo quarto como quem não sabe que uso se faz de um corpo de mulher. Já ouvi dizer que os porões abrigam as sombras da alma e os sótãos existem para fazer sonhar. Com que sonha a moça? Juro que não sei. Eu sonho com ela, coisas, fantasias dessas que falamos em mesa de bar. Uma tarde a pele apareceu molhada, os cabelos soltos, a roupa marcando as curvas perfeitas. Deve ter saído na hora da chuva, misturado a pele ao cheiro dos lírios e das mangas-rosa, amarrado os pulsos com fios de hera, franja de jambeiro ou sabe Deus que flor. Quebrou-se o encanto. Alguém a ajudava a remover folhas, a tirar a blusa e secar o corpo, uma mulher grisalha que a seguir me viu. O resto foi rápido. As bocas em fúria, a moça chorando, cortinas fechadas. Já naquela noite, os três me esperaram na esquina de casa. O de sangue-frio dirigia o carro. O das tatuagens me torceu os braços e me atirou no banco. O da cicatriz apontou a arma à altura da fronte. Já os vira antes, moravam no bairro e negociavam pelos arredores. O que vendiam mesmo? Antes que eu lembrasse um redemoinho de estrelas azuis voa em espiral dentro da cabeça, depois se dissolve em brasas miúdas cor de violeta. Uma coisa fria corre pela cara e a asa escamosa de algum anjo avesso me empurra num charco de lama gelada. Eu ainda brigava para abrir os olhos e morder o ar. Mas um homem sabe quando chega a hora de aceitar a sorte. Parei de lutar quando o do revólver gritou para os outros, Um tiro é muito pouco para este canalha.Toca pro curtume. E os irmãos da cega criada no sótão, deixaram que o sol me curtisse a pele, fizeram desenhos de traços rupestres, depois me venderam à dona da loja de decoração.

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Bruno Piffardini

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PERNAMBUCO, AGOSTO 2009

SOBRE O AUTOR Bruno Piffardini é escritor, graduado em Letras pela UFPE, especializado em Crítica e Teoria Literária, e integra o Nós Pós.

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Coração de Deus

Tive três alentos em minha vida, no total: uma máquina de escrever que roubei de meu melhor amigo na rua Sabará e que é um peso que terei de suportar toda minha vida (não de consciência, a bicha é que pesa pacas); um cavalo chamado Martelo em Lajedo e que até hoje se agalopa em cada passo que dou, na grama ou no asfalto raso; e todos os amanheceres chuvosos da minha vida. Três alentos e decepções de monte, minha jóia. Essas entram pelos pulmões a cada gole de ar que se respira. Quer se sentir livre delas? Mete a cara nágua. Cada vez que levantar pra respirar, você só terá tempo de pensar “ainda estou vivo”. De um fôlego. Acho que é isso que tenho feito esse tempo todo, nesses três anos. Entendendo que ainda tô vivo nesse mundo de meu Deus, e que nunca vou entender mais nada disso aqui. As colinas verdes e as vaquinhas pastando não precisam ser mais entendidas que uma avalanche de carros num túnel tomado de bandidos, não é mesmo? Tudo está aí, e nada está aí, e eu só estou. Gosto dessa sua mania de recortar bonequinhos de papel, cada um com um coraçãozinho pintado em chamas. Gosto tanto quanto de ver o lençol subindo e descendo com sua respiração, e a lua entrando através dessa persiana. Talvez um dia cada bonequinho ganhe vida e se pergunte mil vezes mil perguntas, e eu gostaria de estar ao seu lado ensinando-os que não há nada a ensinar. Ou não. Não sei se gostaria. Deixe-os viver achando que devam preencher com alguma tinta o branco de seus corpinhos. Todo dia eu lavo a cara e o corpo, tentando me limpar de cada linha que o dia escreveu em mim. Não sou bloco de anotações nem pra mim, e acho que a única falha que eu ainda tenho é a de sujar papel barato com tinta ruim, ou surrando com casacos de cavalo as teclas duma máquina de escrever roubada, usando essa linguagem prisão medíocre que não sabe nem sequer falar seu próprio nome sozinha. Silêncio total seria a consumação da minha santidade. É isso que você tenta me dizer, minha jóia?, com seus bonequinhos? Que pra minha existência é o bastante ser um vazio sem palavras emoldurando um coração em chamas? Que seria melhor eu me atirar no olho vazio do mundo cru, guardando minhas palavras para mim? Quando eu me libertar da prisão da linguagem, estarei livre no vento, serei chuva, serei a grama a pedra a merda do cavalo o ferro dos cascos do cavalo os dentes a crina a nobreza definitiva do cavalo que tange as tempestades contra as colinas e as dunas e que canta numa música bem alta a total definição de Deus em cada molécula da desrazão e serei eu mesmo parte definitiva desse Deus mudo desse Deus mouco desse Deus que está desse Deus abençoado em sacrossanta ignorância desse Deus que escapa ileso intacto e imaculado da torpeza de instituições e fundos bancários desse Deus que não está na ordem do homem-bomba nem do teto desabando nem dos massacres nem da mercantilização de seu corpo inexistente na televisão? Vou sair daqui em três dias. De manhã, debaixo de chuva. Você nunca mais ouvirá falar de mim, até porque eu me apagarei de você em questão de minutos. Vou subir aquele monte, me abraçarei à árvore que com certeza estará lá, e ficarei no mais completo silêncio. Enterrarei a máquina de escrever. Vou me tornar a árvore, o som do córrego, o respirar das pedras. Vou seguir a sua lição e esquecer as lições. Vou me livrar das grades da linguagem e serei um eu liberto de identidade, serei eu mesmo um pequeno deus ignorante. E então, quando seus bonequinhos entrarem em chamas, minha jóia, você não saberá que eu estou liberto, pois eu estarei com eles.

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Ana Maria Pereira

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SOBRE A AUTORA Ana Maria Pereira é integrante do grupo literário Nós Pós; seu texto Farinha faz parte da trilogia de contos Farofa.

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Farinha

(Da trilogia de contos “Farofa”) Construção chumbo grosso. Sobe cimento, desce entulho. Mistura, mistura, mistura. Quanto mais trator escava mais terra tem pra cavar. E Reginaldo Xavier não é homem de perder serviço. Não relaxa depois do almoço, diz que pra ele tem isso não. Gosta de mostrar serviço pronto, forma de manter-se na ativa. Já passa dos 60, hoje só se vê homem moço nessa área: - Homem velho tem mais é que se aposentar! Brincam os outros. Reginaldo Xavier faz que não liga, faz que aguenta mais do que pode, faz de conta que não é velho. Construção é luta de boxe, envelhece cinco a cada ano. É sol e é poeira. Reginaldo Xavier ainda acha que mulher se tem que conquistar, como não se acha velho, gosta das de vinte ou trinta. Gosta mesmo de Jakeline da Conceição. Passa mal quando ela rebola na frente do canteiro de obra, na frente dos outros machos e ele diz: - É minha! - Ela, fogosa, faz pose como se tirasse foto, depois passa. Era só pra atiçar, água na boca deles. Jakeline da Conceição espera Reginaldo Xavier com uma calcinha preta que ele ainda suado gosta de rasgar. Não usa sutiã, peito pequeno. Calcinha no chão, short sujo de terra, camisa aberta, o pêlo dele, o gozo dela e ele, não gozou. Reginaldo Xavier nunca broxou antes. Pensa que não é possível, ela não vai entender, ele não entende. Pensa pela primeira vez que ficou velho. Um homem entende outro. Pode ser o primo, família pode, amigo tira onda melhor não dar cabimento. Ia ter vergonha mesmo então, melhor o primo. Na construção de Sydclei Xavier a argamassa é outra. Cimento pesado, fuligem grossa, poeira fina, pó! Vende, consome, oferece. Reginaldo Xavier nunca provou. Nuca foi dessas coisas, já nem fumava há uns 10 anos, nunca topou droga pesada. Sabia do primo, toda favela sabia, mas família é família, criado junto, quase irmão. Reginaldo Xavier quase vermelho, sorriso amarelo, passa a mão no boné surrado, leva o boné ao colo, amassa o boné: - Broxei primo, e agora? Sidcley oferece um gole da cerveja quase quente que tomava antes do almoço. Reginaldo aceita e também aceita o Viagra que o primo usa quando se sente impotente: - Eu nunca falho primo, pode confiar! Uma carreira ou duas? Farinha da boa pra botar cavalo pra brigar. Farinha da fina, pro pirão não engrossar. Farinha da braba pra levantar defunto. Farinha todo dia, pra saia curta da neguinha não enfartar o velho. Super Reginaldo Xavier, o homem. E a noitada é longa. Jakeline da Conceição chega em casa ás cinco da manhã, sem chave, pula o muro, quase sem força depois de tentar acalmar a instigação do namorado. Ele, volta pra casa feliz por ser homem, desce a ladeira e no primeiro beco cai duro de infarto fulminante.

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RESENHAS IMAGENS: DIVULGAÇÃO

No romance A estrada, Cormac McCarthy recria de forma apavorante o mito do apocalipse Schneider Carpeggiani

A estrada ganhou versão para o cinema (acima), com estreia prevista para outubro nos Estados Unidos

NOTAS DE RODAPÉ

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lançado no Brasil e já adaptado para o cinema pelo novato John Hillcoat. A estrada “começa” pela metade. Entramos no livro com o enredo em andamento: o cenário é um mundo já em frangalhos, sem comida, sem cidades, onde as regras de antes não fazem mais sentido. Houve uma espécie de apocalipse em algum momento recente, mas nada é explicado. A ausência de respostas não inquieta, não suscita novas perguntas nos sobreviventes. A grande sacada do autor foi transferir todas as possíveis inquietações para os leitores - somos nós (e só nós) que ficamos nos perguntando “por quê?” durante a leitura. Lembrar-se do que passou não faz muito sentido aqui. O passado é cada vez mais remoto, porque as regras que regiam os afetos deixaram de existir. Quase não

existe mais afeto. Em meio a tantos zumbis rastejantes que povoam a Terra, pai e filho são os únicos sobreviventes que parecem ter noção do que está acontecendo — mas em nenhum momento eles questionam o que aconteceu ou por que aconteceu. É a lógica kafkiana do insólito como norma em jogo no romance. McCarthy parece saber que os medos nascem na infância e nos perseguem pelo resto da vida. Assim, o tom de A estrada é quase o de uma fabula, com seus personagens reduzidos ao básico (eles são apenas o pai, o filho, “aquele homem ali na frente”; não há nomes, porque tudo agora é funcional, sem adornos). Nesse “era uma vez” para adultos, é onipresente a sensação de que a moral da história vai emergir a qualquer momento e resgatar os dois personagens (como nas fábulas). Mas esse

ESPECIAL FESTIVAL 01

ESPECIAL FESTIVAL 02

Evento recifense dedicado à literatura conta com novidades na estrutura de sua programação

Novos títulos são destaque no evento

O 7º Festival Recifense de Literatura – A Letra e a Voz tem novo formato este ano, com apenas dois ou três palestrantes por mesa e tempo maior de exposição. Na rodada de debates A Letra e a Voz do Escritor, nomes como Cristóvão Tezza conversam com o público. O festival será aberto oficialmente no Dia do Poeta Recifense (16/07), no Teatro de Santa Isabel, mas a festa começa

antes, com a Recitata (12 a 14/07), no Pátio de São Pedro, em que os poetas podem se inscrever para recitar. O júri é formado na hora, a partir da escolha do público. Até o dia 22/07, em vários locais, haverá seminários, leitura e apresentação de cordéis, recitais, sessões de cinema e lançamentos, além de uma feira de livros com cerca de 60 estandes, na Praça do Arsenal.

Entre os lançamentos programados para o Festival, estão: Vi uma foto de Anna Akhmátova, de Fernando Monteiro; a Coletânea Ladjane Bandeira de poesia; Construções identitárias na obra de João Ubaldo, de Rita Olivieti-Godet; a revista Eita nº 2; A preparação do escritor, de Raimundo Carrero; A nobre arte do palhaço, de Márcio Libar; e A casa encantada, de Lenilde Freitas.

momento nunca chega, e (pior) é como se ele não tivesse importância. Enquanto esperamos em vão, os dois protagonistas seguem andando sem destino certo e com uma só razão para persistir: o pai precisa manter o filho vivo. Um dos últimos grandes apocalipses da literatura contemporânea foi O ensaio sobre a cegueira. Com esse livro, Saramago ergueu uma teia complexa de tipos humanos para ressaltar a moral de um mundo que enxergava sem ver. Mas em McCarthy a destruição foi ainda mais radical. Não existe mais uma moral salvadora, ou bem e mal, a que se agarrar, restou apenas a estrada ali na frente.

FICÇÃO A estrada Autor: Cormac McCarthy Editora: Alfaguara Páginas: 234 Preço: R$ 36,90

LUCIANA OURIQUE/DIVULGAÇÃO

Pela estrada afora, eles vão bem sozinhos

Lobo Antunes costuma dizer que não é grande leitor de prosa. “Romances e contos envelhecem muito rápido, eles seguem qualquer modismo. A poesia é bem mais resistente ao tempo” — é sua justificativa. Por isso a minha curiosidade em ler o norte-americano Cormac McCarthy, desde quando o português declarou que esse era seu ficcionista contemporâneo favorito, durante a última Flip. A literatura de McCarthy está sempre ligada a algum mal-estar. Seu romance Onde os fracos não têm vez foi o suporte para o filme homônimo dos irmãos Cohen, que souberam aproveitar no roteiro a sábia lição do autor — a de que silêncio e dúvida são infalíveis na hora de revirar o estômago da plateia. Esses dois elementos retornam ainda mais elaborados em A estrada, seu último romance

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A CEPE – Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO DE ORIGINAIS PELO CONSELHO EDITORIAL 1. Todos os originais de livros submetidos à CEPE são analisados pelo seu Conselho Editorial, que delibera a partir dos seguintes critérios: • Contribuição relevante para Pernambuco; • Adequação à missão institucional da CEPE e sintonia com a sua linha editorial, que privilegia obras inéditas, escritas ou traduzidas para o português; que tenham relevância para a cultura pernambucana, nordestina e brasileira, nos seguintes campos do conhecimento humano: científico, técnico, literário e artístico. 2. Para obter a aprovação com vistas à publicação pela CEPE, as obras devem preencher os seguintes requisitos de qualidade: • De estilo (correção, clareza, coerência, rigor, coesão e propriedade). • De conteúdo (nível apropriado de aprofundamento dos temas, evidência de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação e elaboração, originalidade da abordagem).

Os limites da razão FILOSOFIA Tratado da natureza humana Autor: David Hume Editora: UNESP Páginas: 760 Preço: R$ 90

O reconhecimento público e a conquista do respeito de seus pares demoraram a acontecer na carreira filosófica do escocês David Hume. Nascido em 1711, na cidade de Edimburgo, Hume publicou sua primeira obra, o hoje célebre Tratado da natureza humana, em 1737, aos 27 anos. Considerado por especialistas seu mais importante trabalho, o Tratado, para seu desencanto, não teve qualquer repercussão quando publicado. No entanto, esse trabalho de juventude já traz essencialmente os tópicos sobre os quais irá refletir por toda a vida: a defesa do empirismo, o combate

Honestidade emotiva

à metafísica, a crítica ao princípio de causalidade e, enfim, a investigação dos limites da razão humana. A radicalidade desse pensador, que leva aos extremos lógicos a tradição empirista de Bacon, Locke e Berkeley, faz de sua teoria um ponto de inflexão na história da filosofia. Ele concluiu que a razão – e, portanto, a filosofia – encontra-se inevitavelmente limitada por sua fonte: a capacidade intelectual dos homens. O Tratado propõe-se a dissecar a própria natureza do entendimento humano, como ponto de partida para qualquer forma de conhecimento. O ceticismo epistemológico de Hume influenciou profundamente o pensamento de Emmanuel Kant, que admitiu ter sido “despertado de seu sono dogmático” pela obra do escocês. (Eduardo Cesar Maia)

QUADRINHOS Retalhos Autor: Craig Thompson Editora: Quadrinhos na Cia. Páginas: 582 Preço: R$ 49

Um dos primeiros títulos da recém-criada Quadrinhos na Cia., Retalhos teve uma recepção calorosa à época do seu lançamento nos Estados Unidos, em 2003. Vencedor de dois Eisner, principal honraria para histórias em quadrinhos, a graphic novel é um típico relato autobiográfico, apresentando, por sua subjetividade, um leve tom ficcional. Em Retalhos, Craig Thompson decide contar sua infância e juventude a partir de três temas: a relação com o irmão mais novo, Phil; o forte contato com a religião cristã; e a paixão adolescente por Raina. A história

intercala memórias e, no seu próprio desenvolvimento, revela o quão contaminadas pela idealização do passado as palavras e ilustrações de um autor podem ser. Além disso, o traço é preciso e, quando necessário, sai de uma mera simplicidade funcional, acrescentando novos significados ao texto. Ao se passar pelas quase 600 páginas da obra, fica claro que o motivo de escrever e desenhar um enredo como o de Retalhos é a necessidade de exorcizar os demônios e humanizar os deuses do passado. Termina cabendo ao leitor, por fim, analisar se a interpretação da narrativa é distorcida e exagerada ou não – e esse exercício é um dos grandes méritos da obra. De um jeito ou de outro, não há como negar a beleza da (até ingênua) honestidade emotiva de Retalhos. (Diogo Guedes)

3. O Conselho Editorial não analisa: • Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos à correção do autor. • Livros individuais ou coletivos na condição de projeto. Os textos devem ser entregues com o seu conteúdo pronto, acabado, sem acréscimos nem rasuras. 4. Serão imediatamente desconsiderados e rejeitados originais que atentem contra as declarações de direitos humanos e congêneres, as leis e os dispositivos morais e éticos, nomeadamente os casos de: • Violação dos direitos políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais; • Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência e desrespeito a crianças, idosos, bem como os preconceitos de raça, religião, gênero etc. 5. O Conselho não recebe dissertações ou teses em estado bruto (devem ser feitas as reformulações necessárias de modo a reduzir o excesso de tecnicismos típicos do trabalho acadêmico). 6. As obras, inclusive as coletivas, devem estar corretamente padronizadas e revisadas, de modo a permitir a leitura crítica e análise final da obra. 7. O autor deve enviar à CEPE cópia impressa dos originais em quatro vias. 8. Não são recebidos originais em CD, disquete, e-mail ou qualquer outro formato eletrônico. 9. O comprovante de envio dos originais pelos Correios (AR – Aviso de Recebimento) valerá como protocolo de entrega. 10. Em caso de entrega dos originais na sede da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, o portador deverá se dirigir à secretaria da Presidência, onde assinará o protocolo.

ESPECIAL FESTIVAL 03

Ciclo de palestras discute novas propostas midiáticas e produtivas para o livro Designers e nomes ligados ao segmento editorial estão de olho na rodada de debates O Livro Desmaterializado, que será realizada nos dias 17 e 18, no auditório da Livraria Cultura. O tema é a nova cara do livro e sua relação com outras mídias, como a música, o vídeo etc., e com a internet. No primeiro dia, são discutidos a Poesia Funcional, com participação de Heloisa Buarque de Holanda,

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Fred Zeroquatro (ao lado, em primeiro plano) e Mabuse, e O Livro Deslocado, com Paulo Bruscky, Michel Melamed e Adriana Dória Matos; no segundo dia, a discussão é sobre Autoria Coletiva e Direito Autoral, com Cida Pedrosa, Caio Mariano e André Dib, e sobre A Criação e a Distribuição do Novo Produto, com Diogo Todé, Elaine Ramos (da Cosac Naify-SP) e Nicole Cosh.

11. Todos os originais são de responsabilidade exclusiva do autor. O Conselho não se ocupa de eventuais perdas ou danos no trajeto de encaminhamento nem devolve os originais recebidos. Companhia Editora de Pernambuco Rua Coelho Leite, 530 – CEP: 50100-140 Santo Amaro – Recife – PE. Informações adicionais pelo telefone: (81) 3183-2708

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UM NOVO OLHAR

A cabeça no fundo do entulho, de Fernando Monteiro, por Felipe Santos

(...) Dormira sozinho na cidade atmosfera imediatamente sensual e acordara para tratar de interesses no valor de alguns milhões de dólares. Insinuava-me para aquela cliente (já), jovem ‘apetitosa’. (...) mas a tristeza romana e também sua alegria um tanto fúnebre (sempre) impelindo-me para não ficar só, procurar um corpo, uma cabeça sem certeza de beleza, ignorante dela (mas bela, ou quase bela).

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Acho que já li umas cem vezes Aspades, ETs, etc., de Fernando Monteiro. E toda vez que tenho a oportunidade de conversar com o autor, acabo repetindo essa mesma história. Talvez eu tenha a ilusão de que ele venha a me explicar as lacunas que me acompanham em relação ao enredo (se bem que são essas faltas que me fazem voltar à leitura ad infinitum). Gosto em especial da descrição que o romance traz daquilo em que consiste uma noite no aeroporto. A artificial noite vivida/perdida dentro de um aeroporto. Quando surgiu a ideia de usar um dos seus livros para Um novo olhar deste mês (aproveitando a homenagem do festival A letra e a voz pelos seus 60 anos), meu impulso inicial (claro) foi sugerir algum trecho de Aspades. No entanto, mês passado, comecei a reler A cabeça no fundo do entulho e pronto: fiquei obcecado com a ladainha irônica (e até um pouco inocente) daquele narrador perdido numa Roma decadente, de hotéis sujos e de miragens em forma de mulher. Aspades ficou para depois! O ilustrador Felipe Santos resolveu entrar no clima das imprecisões e das pistas falsas que fomentam a literatura de Fernando Monteiro: “Não traduzi o conto em imagem ao pé da letra, até por que ele possibilita um sem-fim de interpretações, tudo é vago, misterioso... Para fazer esse trabalho, tomei até a decisão de ler o livro só até a metade, porque não queria saber como terminava. Queria continuar na dúvida, assim como o personagem principal, Átila. “É muito forte a ideia que o autor passa, da sensação de se chegar solteiro numa cidade como Roma, com aqueles quartos de hotel fantasmagóricos. Fiquei viajando numa parte em que ele insiste em tomar a personagem Sandrine em sua fantasia, sem nem saber nada dela, como a gente sempre faz”, explicou. (Schneider Carpeggiani)

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