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Fotos: Alexandre BelĂŠm

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E xpediente SUMÁRIO

EDITORIAL

Segundas maldições - Por que os críticos de rock implicam tanto com os segundos álbuns das bandas?

O que Gabriel Garcia Márquez e Joaquim Cardozo têm em comum? E o Democratas com o PSOL? Ou o Partido Humanista da Solidariedade - PHS - com o PR? Em princípio, coisa alguma. Apenas siglas, e siglas, e siglas. Mas, vendo bem, as coisas não são assim. Incrível: as distâncias os une. No conteúdo ou na forma, na paixão pela vida, pela literatura, pela política.

Sou artista, quero o meu crachá - Estudo analisa as credenciais dos artistas plásticos

Por isso o Pernambuco trata da desarrumação estrutural do princípio do século a partir de matéria exemplar de Schneider Carpeggiani, que joga para o alto a pergunta incômoda: a literatura é a tribuna ideal para o debate político? Daí a aproximação do escritor colombiano com o pernambucano Joaquim Cardozo, poeta cuja principal qualidade se apóia na forma. Garcia Márquez diz sim; Cardozo responde, não.

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O que não é arte, não se discute Artigo questiona legitimação dos críticos literários

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Passo seguinte, pergunta-se por que tanta movimentação de siglas nos partidos políticos brasileiros, abrindo espaço para inquietações? Mesmo sem uma reforma política rigorosa, os partidos estão mudando de nomes, de siglas, embora o conteúdo continue o mesmo. Ou seja, muda a forma, mas não o conteúdo. E se não muda o conteúdo, a forma seria apenas uma preocupante maquiagem?

da solidão - Os 40 anos do clás06 Asicogeografia Cem anos de solidão e da sua política macondista

08 A descoberta dos mundos - Samarone Lima

comenta sua oficina literária para jovens carentes Divulgação

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Em recente foto publicada em muitos jornais do mundo inteiro, o Prêmio Nobel de Literatura venezuelano aparece justo ao lado de Fidel Castro, com o presidente cubano vivendo o seu emblemático outono político. Nada daquele homem ousado, de ombros largos e olhos de fera, pronto para o combate. Não é um velho decadente - nada disso. É apenas um cidadão cuja agonia dobrou os ombros. Mas a foto insiste em colocar o dilema eterno em debate. Assim, Fidel seria a imagem outonal de um mundo político que, a princípio, estaria em desordem na estrutura? Ou significa apenas aquela mudança de pele a que somos submetidos ao passar das gerações? Sem espanto, sem perplexidade, sem dor. A literatura e a política caminham juntas, mesmo com as diferenças e as aproximações. O assunto se desdobra desde o corpo do Pernambuco até o caderno Saber + Debate que é editado por Marilene Mendes e Mariza Pontes, e onde o estudante ainda encontrará perguntas sobre a obra de Joaquim Cardozo, que caem no vestibular da UPE. Tema para debate e discussão.

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Um passarinho me contou - O site Post Secret traz a intimidade triste e engraçada dos internautas em formato de postais

11 x + y - 2xy= televisão - Como a televisão colo2

ca em xeque o debate entre público e privado no Brasil

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Gol? - Conto inédito de Nelson de Oliveira

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores a partir do próximo número. Escreva dez linhas sobre “Trabalho e Escravidão no Brasil”, para debater com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

Daí vem depois a bela matéria de Samarone Lima abordando a “Descoberta dos Mundos”, através do fascínio da literatura, em diagramação criadora de Jaíne Cintra, e que completa a missão libertadora da literatura, entre meninas e meninos. Quer briga? Leia a matéria de Artur A. de Ataíde sobre o crítico literário. E é gol? Claro que é gol. Basta ler o conto de Nélson de Oliveira, que fecha o caderno do jornal. A beleza, porém,não acaba aqui: basta acompanhar, página a página, os cartões postais que conduzem à matéria de Renata Amaral, completa e resplandecente, num toque de criação da diagramadora. Sem esquecer as inovações, o Pernambuco traz no Saber + a coluna de José Cláudio, em sua série sobre o Amazonas, com uma crônica que enfeitiça, lembrando, sobretudo, a figura mágica de Hermilo Borba Filho. O editorial decidiu pelo encarte porque José Cláudio aparece em página dupla, e possibilita, entre outras coisas, a companhia polêmica de escritores consagrados no Saber + além da certeza de ser lido com facilidade e paixão. Raimundo Carrero rcarrero@cepe.com.br

EXPEDIENTE

GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão

PRESIDENTE Flávio Chaves

EDITOR Raimundo Carrero

SECRETÁRIO GRÁFICO Gilberto Silva

DIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses

EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani

REVISÃO Gilson Oliveira

carpeggiani@gmail.com

DIRETOR INDUSTRIAL Reginaldo Bezerra Duarte GESTOR GRÁFICO Sílvio Mafra

EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra jainecintra@gmail.com

EDIÇÃO DE IMAGENS Sebastião Corrêa Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela

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Companhia Editora de Pernambuco -C CEPE Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro CEP 50100-140

Fone: (81) 3217.2500– FAX: (81) 3222.5126

EQUIPE DE PRODUÇÃO Debora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Vivian Pires


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M úsica itágoras foi um filósofo grego que viveu em algum intervalo entre os anos 580 e 496 antes de Cristo. Ele não deixou nada escrito e pouco se sabe sobre a sua vida. Dizia que o princípio de todas as coisas do universo estava nos números, e chegou a esta conclusão ouvindo música - mais precisamente, a relação entre os sons tocados por um instrumento popular daquela época, a lira de quatro cordas. Para aquele pensador de Samos e seus seguidores, o Um era a unidade primordial, a totalidade das coisas visíveis e invisíveis - e não o dois, o três ou o vinte e sete. De acordo com o inventor do teorema mais famoso de todos os tempos, o mundo se explica pela oposição entre os números ímpares e os pares. O problema todo estava nesses últimos, que representavam o indeterminado, o divisível, o imperfeito. A escola pitagórica foi muito influente à época, mas foi rapidamente superada pelo pensamento de Heráclito. Aos poucos, a partir do final da década de 50 do século XX, quando jovens começaram a vestir jaquetas de couro, andar de moto, mexer a pelve e esculpir topetes de brilhantina no cabelo, o pensamento de Pitágoras foi retomado por uma nova classe emergente: os críticos de rock. Sim, porque só recorrendo a Pitágoras é que os críticos conseguiram explicar a Maldição do Segundo Álbum, um mal que afeta várias gerações de artistas de rock desde os primórdios do gênero. Nada mais parece justificar a dificuldade das bandas com o número dois. Já foi dito que as causas seriam as pressões das gravadoras e da mídia, a imaturidade dos artistas, ou mesmo que o problema está em quem ouve. Nada disso me convence, a não ser a explicação pitagórica de que o dois, como número par, é a imperfeição, e é necessário para manter o equilíbrio das coisas. A relação entre o primeiro e o segundo álbum é semelhante à do alto para com o baixo ou da claridade, para com a escuridão, e assim por diante. O caso emblemático desta Maldição ocorreu em 1994 - não por acaso, um ano par - quando o Stone Roses, uma das bandas mais influentes dos últimos 20 anos, lançou Second Coming (algo como “segunda chegada”), um disco que não só era o segundo como se orgulhava disso. Menos de dois anos depois, a banda acabou, deixando milhares de fãs órfãos nos cinco continentes. O Stone Roses surgiu em meados dos anos 80 em Manchester, Inglaterra, e em 1989 lançou um daqueles álbuns que não cansam de aparecer nas listas de dez melhores discos pop já lançados. A obra leva o mesmo nome da banda, e foi lançada por um selo independente sem expressão na época, o Silverstone. Pouco tempo depois do seu lançamento, o quarteto mancuniano estava tocando no Top Of The Pops e encabeçando as paradas de sucesso inglesas com um som que remetia tanto ao rock dos anos 60 quanto à então-recente cultura da dance music. Eles então assinaram com uma grande gravadora, a Geffen, e levaram longos cinco anos para fazer um segundo álbum. Quando todos os holofotes estavam sobre a banda, eles colocam no mercado Second Coming. O disco foi um fiasco completo. A crítica o recebeu com desprezo; o público, com frieza. Ao invés dos refrões inspirados de antes, a banda assume um som que mais parece um pastiche do Led Zeppelin. Após uma apresentação desastrosa no festival de Reading, o Stone Roses acabou. Seus integrantes seguiram carreiras solo medíocres, ou se juntaram a outros grupos. Estava eternizada a Maldição do Segundo Álbum. Desde então, o segundo disco passou a ser uma espécie de prova dos nove das bandas de rock. E elas continuam a falhar sistematicamente. Nos tempos recentes, várias bandas foram tomadas de assalto pela maldição pitagórica. Grupos que fizeram discos de estréia brilhantes, chamando a atenção da mídia musical pelo frescor e pela originalidade, têm lançado álbuns que não conseguem ultrapassar a barreira do ordinário. É o caso do Bloc Party, que em 2005 surgiu com o elogiado Silent Alarm, onde juntava letras irônicas de cunho político a uma seção rítmica musculosa e guitarras angulares. No segundo álbum, A Weekend In The City, lançado em fevereiro passado, a fonte de idéias dos músicos se esgotou e a ironia com cunho político virou panfleto. O mesmo aconteceu com tantas outras, recentemente, como Maxïmo Park, que transformou seu som despretensioso e inteligente num roquinhogoma-de-mascar, e Strokes, que parece seguir o mesmo caminho de trevas do Stone Roses. A Maldição do Segundo Álbum está no universo, e enquanto as bandas não aprenderem a tirar proveito dela, vão continuar tropeçando. E pode ser para o bem delas. Que venham os terceiros. !!

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Haymone Neto

Entenda as conspirações que derrubam os segundos álbuns das bandas mais badaladas do pop e o que a teoria de um certo pré-socrático têm a ver com isso

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Alexandre Belém

A rtes plásticas

que faz de alguém um artista plástico? A pergunta entra na questão da legitimação, tema que virou ensaio de nome sugestivo: Crachá - Aspectos da Legitimação do Artista. Produzido pela estudante de artes plásticas Clarissa Diniz para o 46º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, o trabalho foi realizado durante um ano, por meio de consultas a jornais e periódicos locais publicados entre 1970 e 2000, e entrevistas com críticos, jornalistas, galeristas, curadores e artistas de Recife e Olinda. Falar sobre legitimação é assunto recorrente em conversas entre todos os que fazem parte do chamado sistema de arte (artistas, curadores, instituições, crítica). Porém uma auto-reflexão é, por vezes, deixada de lado, pois suscita questionamento e autocrítica, tanto por parte dos que estão inseridos no sistema como pelos que estão à margem. Surge aí, de acordo com Clarissa, uma questão anterior à legitimação artística, mas inteiramente ligada a ela: existe uma “segregação social”, que seleciona uns em detrimento de outros? A resposta é não, ao menos para a autora, que prefere falar em discrepância entre membros de um mesmo sistema, que vêm não de condutas propositais, mas derivam das dinâmicas sociais (quase sempre injustas) da arte e da sociedade em geral. A explicação de Clarissa busca respaldo em coisas tão díspares quanto a economia, a biologia e o amor. De um lado, a teoria econômica do capital social promove segurança, confiança e reciprocidade por meio da interação social. Do mesmo lado, o biólogo Humberto Maturana, a quem a autora recorre, defende que as interações sociais só acontecem enquanto há amor. Segundo ele, sem amor, não existe sociabilidade. “Um trabalho flui muito mais facilmente quando realizado com pessoas com quem existe identificação e confiança, tanto profissional quanto pessoal”. Confiança que cresce a cada contato, gerando uma espécie de seleção natural por parte do sistema de arte, inserindo alguns e deixando outros de lado. Os marginais, porém, se são legitimados de alguma forma (e Clarissa acredita que sempre são), cedo ou tarde farão parte do sistema. Sim, pois se o artista não é mais visto como um gênio, uma figura distante do público, como foi em épocas renascentistas, é porque percebeu, mesmo inconscientemente, que a arte não poderia estar distante do contexto social, pois faz parte dele. “Paulo Bruscki, por exemplo, ainda se diz um artista marginal, apesar de legitimado pelas instituições, através das quais lançou catálogo recentemente. Pelo público ou pelo mercado, no entanto, ele só foi legitimado em 2006, quando vendeu seu primeiro quadro.” Daí a necessidade natural, orgânica, inerente ao ser humano, de buscar legitimação. Clarissa identificou oito formas (autolegitimação, a legitimação pelos pares, pelas instituições, pelo mercado, pelos especialistas, pelo público, pelo ensino e pela mídia). Para encontrá-las, a autora (não autolegitimada como artista, mas integrante de grupo coletivo de artes plásticas, o Branco do Olho - o que lhe dá legitimação pelos pares -, onde é responsável pelos textos críticos) optou por não se ater a nenhuma linha teórica específica, que lhe deu a liberdade necessária para deixar o trabalho completamente identificável com a realidade local. Não são simples definições das legitimações, mas análises de cada uma delas, devidamente conectadas. Ler é entender, de forma descomplicada, como funciona o sistema de arte. A classificação pode parecer objetiva demais. Mas a autora explica que suas definições nunca serão definitivas, em vista da possibilidade de mudança a que estão naturalmente sujeitas. “As mudanças ocorrem de acordo com os sistemas sociais, sendo perfeitamente possível usá-las como parâmetro para entender outras legitimações possíveis, mas universalizar seria uma atitude muito reducionista, já que criei as categorias a partir de algo muito específico, os 30 anos de artes plásticas em Recife e Olinda. É provável que, em séculos, sejam alteradas. Principalmente se pensarmos no Renascimento, quando então não existiam”. Mudam as legitimações dentro de si mesmas, mudam também as formas pelas quais determinado artista é legitimado. “Quando o assunto é legitimação, nada é redundante, tudo é enfático. Se um artista expõe cinco vezes em um mesmo museu ou galeria, não deveria suscitar reações como “de novo esse artista aqui?!”, mas sim que ele é bom cinco vezes. Se estão sempre escrevendo livros sobre artistas já consagrados, quer dizer que há necessidade de renovação dessa legitimação”. !!

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Carol Botelho

Pesquisa debate as qualidades e referências necessárias para que alguém seja considerado artista plástico

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L iteratura Divulgação

Artur A. de Ataíde

Quem estaria autorizado a dizer se tal ou qual obra constitui um exemplo de resposta eficiente à cultura de uma época?

ara muitas das pessoas que, a nossa volta, diariamente, levam adiante os mais variados afazeres, a expressão “crítico literário” não deve dizer, provavelmente, muita coisa. Para alguns, absolutamente nada. Talvez nomeie, para outros, alguma função extinta, exercida por alguém frustrado que publicava, há algo em torno de meio século, opiniões próprias como veredictos irrevogáveis sobre tal ou qual obra. Já outros, mais próximos ao círculo em que, porventura, ainda possam subsistir críticos, sabem que se trata de alguém que estudou seu assunto na universidade; que se dedica a entender como certos textos, ditos literários, se relacionam entre si e com a sociedade em seus mais variados aspectos; e que discute, incansavelmente, as bases do pensamento por ele mesmo produzido. Essa descrição, na verdade, nos põe diante do teórico da literatura. A indistinção entre ele e o crítico, inclusive, tornou-se algo comum, conforme podem dar testemunho expressões como”crítica universitária”. Diante da abstração indispensável à sua atividade, e da indistinção entre ele e o crítico, nada mais previsível que o desinteresse sobre o que seja a crítica, e justamente da parte daqueles,’’que levam adiante, diariamente, os mais variados afazeres”. Teoria vs. prática - Alguns teóricos, apesar de sua contribuição inegável para o pensamento sobre literatura, parecem ter incorrido em algumas reduções hoje inaceitáveis. Uma delas foi o uso do pensamento de Nietzsche para fundamentar suas”desconstruções”, através das quais teriam demonstrado o quanto pode haver de enganador e autoritário sob valores centrais da cultura ocidental. De fato, a argumentação desenvolvida por Nietzsche em A genealogia da moral, por exemplo, busca dar conta de como os conceitos de Bem e Mal, no decorrer da história, teriam se constituído a partir de contingências meramente culturais, sendo, portanto, realidades terrenas, nada divinas. Esse desmonte de valores, no entanto, compreende apenas metade do que há de mais característico no legado de Nietzsche; a outra metade se deixa representar, por exemplo, pela exaltação dos valores do corpo, do prazer, do orgulho, da dança e da caça, e por aforismos como aquele, segundo o qual grande autor é o que escreve”com o sangue”. É uma força de convicção inconciliável com a apatia desconstrucionista. E é essa outra metade do pensamento de Nietzsche que, salvo engano, tem mais a dizer aos tempos de hoje - e, principalmente, sobre a pertinência que a crítica literária ainda pode ter. Seja ou não a cultura, apenas, ou em grande parte, um aglomerado de”simulacros”, uma coisa é certa: tais ficções, as pequenas e grandes verdades do nosso cotidiano, revestem-se duma espécie prática de verdade na medida em que agimos; é por essas ficções que sofremos, é através delas que damos forma a desejos, é

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sobre o chão comum que oferecem que podemos dialogar. Não sabemos”a Verdade”, mas vivemos as nossas verdades - ao levar adiante os nossos afazeres. Por isso a condição”pós-Nietzsche”, na verdade, faz da vivência em sociedade um paradoxo: por um lado, sem o mínimo de convicção não nos moveríamos, e morreria a história; por outro, sabemos que nossas convicções se apóiam em bases não de todo confiáveis, e que precisamos de uma auto-crítica constante. A literatura, por sua vez, não poderia extrair sua matéria-prima de outro lugar: o mesmo repertório de verdades provisórias. Cabe à literatura descobrir quais nervos, no corpo sempre exausto da cultura em movimento, ainda respondem a estímulos, ou mesmo elaborar, a partir de não se sabem quais despojos, alguma nova cura, ou algum novo veneno. Mesmo a anestesia proposta pelo pós-modernismo só pode constituir-se dessa maneira. A leitura, portanto, de um bom texto literário, em última análise, é sempre um confronto com algo que, de tudo o que culturalmente nos cerca, pode inaugurar ainda uma nova busca - ilusória ou não, como todas as outras. O convite de Faustino - Mas quem é, finalmente, que estaria autorizado a dizer se tal ou qual obra constitui, de fato, um exemplo de resposta eficiente à cultura de uma época? É verdade que a teoria possa aclarar, através de conceitos relativamente estáveis, muitos aspectos do que seja a literatura, mas esse é um dos que vão continuar dependendo, sempre, dos sujeitos que, agora, no tempo presente, vivem a cultura. Enquanto a questão essencial da teoria é”o que é a literatura?”, a questão aqui é tentar captar”o que queremos hoje da literatura?”. E assim se define o papel do crítico literário: olhar para a literatura não como objeto do saber, mas, sim, como um fenômeno da cultura, da cultura à sua volta. Mas, nem por isso, poderá se fazer passar por dono desta: cultura alguma tem dono. Mário Faustino, por exemplo, foi uma grande autoridade em poesia: isso não significa que tinha as respostas para tudo, ou que suas opiniões eram veredictos. A sua intimidade com a poesia, na verdade, e com os instrumentos oferecidos pela teoria, obrigavam-no somente a falar dela com a clareza que muitos outros não podiam ter, e esse é o particular que fez de sua página de jornal não um tribunal que distribuía sentenças, mas o lugar a partir do qual, com bons argumentos, participava de uma grande discussão. A regra do jogo não era, vale lembrar, simplesmente a”Razão”, mas a sua versão algo distendida, como que para incluir as razoabilidades específicas da época. A essa sala, por fim, estavam convidados todos os contemporâneos, cada qual munido das convicções que os movessem, como a caminho de qualquer afazer diário. !!

O que não é arte, não se discute


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Preencha sua cidade política

Schneider Carpeggiani

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foto foi tirada em 12 de março de 2007. A imprensa, no entanto, só conseguiu divulgá-la mais de uma semana depois. Com um imenso jardim ao fundo, vemos Gabriel García Márquez de braços cruzados, sorridente, de óculos escuros, ao lado de Fidel Castro sorumbático, cabeça baixa. Pela primeira vez desde que saiu do poder para se submeter a uma cirurgia de emergência no intestino, em julho de 2006, o ditador cubano aparecia fora do hospital. Ao final do encontro, o escritor colombiano explicou para a imprensa que seu amigo e companheiro político de décadas estaria “melhor que muita gente imaginava”. A imagem de García Márquez procurando reiterar a saúde de um Fidel visivelmente debilitado, assim como a permanência do programa político e ideológico do ditador, era semelhante às páginas de um livro antigo sendo reescritas diante dos nossos olhos. Mais uma vez. Era O outono do patriarca em forma de corriqueira notícia de jornal. O sorriso emblemático de García Márquez diante de Fidel parecia o de um criador confiante na imanência da força da sua criatura. Da sua obra. Para Stendhal, a política na literatura é um assunto/palavra que empaca a narrativa, atropela a atenção do leitor. A pedra no meio do caminho. Narrador dos mais ágeis, García Márquez faz essa pedra rolar pelo texto menos como um teórico que um grande contador de histórias. Assim seu O outono do patriarca pode ser lido como um poemão sobre o poder como tragédia, e não apenas como a caricatura de um ditador, de todos os ditadores - passado e fantasma comum ao continente latino-americano. A criação mais emblemática do engajamento político de García Márquez foi Macondo, cidade fictícia que persegue os principais títulos do escritor, desde sua estréia com O enterro do diabo, passando por seu best-seller maior, Cem anos de solidão. O romance completa quatro décadas em 2007, ano de tantas datas redondas que deve estar deixando um tremendo supersticioso do quilate de “Gabo” de cabelos arrepiados - são quarenta anos de Cem anos de solidão; oitenta de nascimento; vinte e cinco do Prêmio Nobel; e sessenta do seu primeiro conto publicado. A literatura hispano-americana tem por tradição grandes obras nacionalistas, que buscam fincar a identidade própria das suas várias nações. Com Macondo, no entanto, García Márquez segue pelo caminho oposto: cria uma cidade que são todas as cidades, todos os países latino-americanos, com o sonho utópico que o texto conte e resgate (e salve?) a história de submissão política e social do continente. Os colonizadores espanhóis chegaram ao Novo Mundo com a vista turva pelo desejo de encontrar um paraíso perdido. Os primeiros textos relatando as terras descobertas são repletos de expressões como “não sei como contar”, “nunca havia visto algo parecido”. As palavras falham, o feitiço do exótico engole qualquer tentativa de objetividade.

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Macondo é também assim descrita logo nas primeiras linhas de Cem anos de solidão - “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nomes, e para mencioná-las era preciso desenhá-las com os dedos” A cidade ao longo do romance é construída, saqueada e destruída inúmeras vezes, assim como a própria América Latina. Assim como Macondo retoma a origem da América Latina, a cidade resgata os anos de formação do autor. No primeiro volume da sua autobiografia, Viver para contar, García Márquez relata seu primeiro encontro com a palavra Macondo. O livro começa com o enunciado “Minha mãe pediu que fosse com ela vender a casa”. A casa só poderia ser uma: a dos avós maternos, em Aracataca, onde viveu até os oito anos, território de lembranças e fantasmas que forraram Cem Anos de Solidão. Durante a viagem de trem para a venda da casa, com a mãe agarrada a um rosário de três voltas, uma parada na frente da única fazenda com bananeira do caminho, que tinha seu nome escrito no portal, trazia a inscrição Macondo. De acordo com o escritor, ele nunca a ouviu da boca de ninguém ou ao menos perguntou a quem quer que fosse seu significado -”Já a tinha usado em três livros como nome de um povoado imaginário, quando soube, numa enciclopédia, que é uma árvore do trópico parecida à paineira, que não produz flores nem frutos, e cuja madeira esponjosa serve para fazer canoas e esculpir utensílios de cozinha.” Macondo é também tradicional jogo de azar colombiano, que fisga o destino de jogadores nada cautelosos. Cem anos de solidão foi escrito por García Márquez durante um longo transe de quase dois anos, com o autor trancafiado em casa, e com sua mulher tendo que tomar conta de todas as pendências financeiras da família. A feitura do livro, como o autor explicou na longa entrevista presente no livro Cheiro de goiaba, foi”feliz”, mas com longos momentos de tensão. O autor chorava durante horas quando precisa matar seus personagens, que tomavam emprestadas características da sua família. O momento de maior tensão foi quando García Márquez precisou colocar o ponto final na sua obra. Encerrado o romance, e com sua mulher fora de casa para resolver um problema doméstico qualquer, ele correu para encontrar um outro texto para escrever. Subterfúgio para se salvar da solidão que começava. PS: No dia 22 de junho de 2006, a terra natal de Gabriel García Márquez viveu uma situação típica dos livros do escritor. Para ampliar o turismo local, o prefeito resolveu mudar o nome de Aracataca para Macondo, homenagem ao principal talento”aracataquense”. Na véspera da votação, ao perceber que sua idéia não estava pegando, o político subiu no teto de um carro repleto de autofalantes e fez ele mesmo a propaganda de sua”causa”. Resultado? A proposta acabou vencida por abstenção. !!


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Com sua exótica Macondo, Gabriel García Márquez recriou a história das lutas políticas da América Latina, assim como retomou sua própria autobiografia Brigam palavras e idéias Uma longa guerra de idéias, sem vencidos nem vencedores, mas exaustiva. A literatura é mesmo o campo propício para o debate político? Ou melhor: é no romance, no cinema, ou nas artes plásticas, por exemplo, que se definem os caminhos de um povo? Asseguro que o primeiro compromisso do escritor é com a estética, a beleza, a técnica. Insistindo no óbvio: sem artesanato não há obra de arte. Depois, seja feito o que for preciso. Vem de Gabriel Garcia Márquez a afirmação: “Os bons romances devem ser uma transposição poética da realidade e o destino imediato da humanidade é o socialismo”. Caso se defina que o romance - neste caso - é objeto de manifestações políticas ou diversionais - tendência que se revela mais contundente nos últimos anos - então os escritores de histórias policiais têm razão: basta um bom enredo e disputa de sexos para se escrever um livro exemplar. Ou para se realizar um bom filme. E não é assim. Absolutamente. Aos romancistas policiais falta o artesanato, e aos estetas exige-se o conteúdo. Uma advertência grave: conteúdo não é uma simples menção ao comportamento humano. Conteúdo, na obra de arte, é a defesa de idéias e ideologias. É o caso de A náusea, de Jean-Paul Sartre, cuja finalidade é expor, na ficção, as bases do existencialismo, ou na Trilogia da liberdade - A idade da razão, Sursis e Com a morte na alma - onde política e filosofia se entrecruzam. Assim: nesta trilogia Sartre defende suas idéias e com isso pretende mobilizar os leitores. Basta ler a advertência da editora: “Romance que analisa os problemas políticos e sociais do homem, A idade da razão, 1º volume da trilogia Os Caminhos da liberdade, lançou na prática a chamada literatura engajada”. Engajada em quê? Engajada na luta política. Mas, antes de tudo, é escrito seguindo a estética tradicional do romance, para não fugir à luta. No Brasil, dois romances são claramente políticos, embora não a rigor engajados: Quarup e Bar esperança, de Antônio Callado. O primeiro é tão forte no seu compromisso com a realidade, que Franklin de Oliveira alerta: “É capaz de alterar fisicamente os leitores”. O segundo mostra em que sentido os ideais políticos podem se perder nas mesas de bares, entre aqueles antes chamados de festivos. Sem esquecer, é claro, o revolucionário Zero, de Ignácio Loyola Brandão. Pleno de conteúdo e de forma. O embate entre romance e conteúdo, romance e forma, basicamente começa com Gustave Flaubert, nos meados do século XIX. De tempos em tempos parece uma luta exausta e finda. E recomeça, sempre recomeça. Em cartas a amantes e amigos, Flaubert reivindica o direito de escrever um romance sobre nada. Ou seja, um romance que não esteja atrelado a idéias, a conteúdos, a ideologias, mas ligado apenas às questões internas da estrutura ficcional. Essa postura foi retomada mais tarde, de forma acadêmica, pelo Formalismo Russo. Nada devia vir de fora, tudo estava na intimidade da obra literária: os ritmos, as palavras definitivas, a montagem das cenas e dos cenários, dos diálogos, num sistema de coerência absoluta. Defendia-se a idéia de uma estética própria da arte literária, afastada mesmo da estética clássica e tradicional. Com a tomada do poder russo pelos comunistas, a guerra estava apenas começando: rejeitava-se o formalismo para que fosse proclamado o império do conteúdo. A literatura serviria para mobilizar as massas e não para agradar os estetas, nem para o prazer imóvel da burguesia. E hoje? Na proclamação da crítica, devemos nos preocupar com o prazer. Sem formas ou conteúdos, mas festejand o o bacanal das palavras.!! Raimundo Carrero

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C rônica

Pedro disse logo nas primeiras aulas que não era muito chegado a livro. Achava aquele negócio de ficar um tempo quieto, com um livro nas mãos, quase uma perda de tempo. “Quando começava a ler, batia uma preguiça, dava sono, eu não seguia”, diz. O Herivelton, que é discipulário da Igreja Batista, lia a Bíblia e quase nada mais. “Tentei algumas vezes pegar outro livro e me submeter, mas não conseguia”. Com Aldemir, a coisa era mais complicada. “Eu tinha um descaso geral, passava batido. Lia por ler. Não tinha essa relação que vivo hoje com os livros, feito marido e mulher”. Pedro Henrique, dezoito anos, é morador do bairro de Tejipió. Atualmente está terminando de ler o volume II de Mitologia grega, de Junito de Souza Brandão, um calhamaço de mais de 300 páginas. O volume I ele devorou em três semanas. Já leu também Olga, de Fernando Morais, As aventuras de Robinson Crusoé e está terminando O mais longo dos dias, de Cornelius Ryan. Recentemente descobriu uma biblioteca do avô, meio abandonada, e começou a resgatar livros para sua casa. Está montando sua própria biblioteca. Herivelton dos Santos Oliveira, vinte anos, mora nos Coelhos, está lendo Contos Brasileiros, volume III, daquela famosa coleção Para gostar de ler. Nos últimos meses, aprendeu a dividir a Bíblia com outros livros. Já leu Futebol ao sol e à sombra, do uruguaio Eduardo Galeano, e se atreveu a mergulhar no mundo do Graciliano Ramos, com Vidas secas. “Quando chegava na sala de aula, os colegas falavam entusiasmados do que estavam lendo. Como eu não lia, ficava todo por fora”, lembra. “Me influenciou ver ao meu redor todo mundo lendo”, lembra. Aldemir Félix, que gosta de ser chamado de Suco, o que vive uma relação de “marido e mulher” com os livros, tem dezenove anos e mora em Brasília Teimosa. Depois de ler Pablo Neruda, descobriu que as coisas que tinha na poesia, e não conseguia colocar para fora, se chamava poesia. “Comecei a escrever, a vomitar palavras. Tive crise de verme de palavras, diarréia de palavras. Está virando uma doença psicológica”, diz, com o exagero dos poetas. Antes de dormir, escreve no celular, e no dia seguinte, passa para o papel. Atualmente, organiza os poemas para um livro, intitulado Poemas sujos para corações limpos. Quando fui chamado para ser o educador da Oficina da Palavra, resolvi apostar todas as fichas em Literatura. Queria fazer um trabalho que despertasse não só o interesse, mas a paixão pelos livros. A escola estava inaugurando, e os oitenta jovens eram os primeiros a fazer parte do projeto. O primeiro problema: não tínhamos uma biblioteca, muito menos bibliotecas

no entorno, já que a Kabum! fica no Bairro do Recife. Conseguimos articular a vinda do projeto Bibliosesc, uma biblioteca dentro de um caminhão-baú, que visita escolas e comunidades. Foram locados, até março deste ano, mais de duzentos e cinqüenta livros. De Pequenos prazeres; mais de quatrocentas maneiras de você agradar a si mesma, a cem escovadas antes de ir para a

São três histórias que chamam a atenção, entre os oitenta jovens que freqüentam a Escola Kabum!, de Arte e Tecnologia, um projeto da Oi Futuro, realizado pela ONG Auçuba, desde maio do ano passado. Três jovens que não liam, ou liam muito pouco (geralmente por obrigação da escola), não davam importância aos livros, e agora estão mergulhados neste universo. Esse caminho da Literatura que, como todos sabem, é uma paixão sem volta. Escrevo este texto, portanto, para compartilhar uma paixão. Eu, que leio e escrevo há muitos anos, estou agora, com meus quase quarenta anos, encarregado de transmitir não propriamente um conhecimento, mas uma paixão. Sou o educador da Oficina da Palavra, uma das disciplinas oferecidas pela Kabum! Não venho trazer segredos milagrosos ou propostas pedagógicas, apenas compartilhar. Com alguma sorte, refletir sobre os projetos sociais que são desenvolvidos aos montes, em nosso País, e conseguem deixar de fora os livros como fonte essencial para a construção do caráter, de inspiração para a alma, em tempos cada vez mais ásperos. “Do que é que tu gosta?” - Não adianta chegar para jovens com a lista dos livros do Vestibular. Iracema, A moreninha, Memórias póstumas de Brás Cubas, Memórias de um sargento de milícias, para você que lê o Suplemento cultural, pode ser bacana e animador, mas para quem ainda não entrou na floresta dos livros, é um saco, algo que dá sono, preguiça, dor de cabeça. A melhor coisa a fazer, para abrir caminhos, é descobrir o que os jovens gostam. Descobri que Pedro adorava coisas relacionadas à Segunda Guerra. Fui à minha biblioteca, encontrei O relatório de Buncheald, uma descrição detalhada de um campo de concentração, com aquelas fotos tenebrosas. O livro é um tijolo. Pedro, o mesmo cama. De O alquimista, a Amar, verbo intransitivo, chegando a Freud para principiantes. Uma regra norteia todo o trabalho, que vai até outubro deste ano: “Não gostou, devolva imediatamente”. Leitura, para quem não entrou nesta terra semeada, deve ser com prazer, com alegria, deve ser fonte de vida, não de obrigação.

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Aos poucos, trouxe muitos livros de minha biblioteca, e fui alugando aos jovens, sempre pensando no tipo de livro que cairia bem para cada pessoa. Suco, por exemplo, tem tudo a ver com o universo de Charles Bukowsky. Ele adorou. A porta de entrada de Pedro foi um calhamaço sobre campos de concentração nazistas. Cássio, que não é muito de ler e não me parecia

Texto de Maria Gabriela Alves Lima

O

Vivo voando porque não sei caminhar entre as pessoas, eu nem sei caminhar! Quando criança pensava que ao subir no coletivo, deveríamos comunicar ao motorista nosso destino, ou seja, alguém nos levaria com segurança ao destino. Agora sei que andar em um coletivo só é mais interessante porque na maioria das vezes todos estão quietos... Penso que escolher as linhas da calçada ou o meio - fio seja a forma mais fácil de fugir do tormento que me causa o barulho do mundo. Fico a sorrir, é um sorriso de mim para mim. Canto canções e nesse momento os meus lábios têm palavras de quem quer ficar só. Compreendo que a única coisa que sei fazer é ler. São leituras feitas com tato, o olhar e os lábios. Sinto que isso me faz bem, mas me deixa, na maioria das vezes, sem querer conversar. Em alguns momentos, quando estou só ou acompanhada, me fecho e fico impenetrável, com os olhos presos, porque no momento do fechamento, perco as chaves dentro de mim. Quando as encontro, volto ao que poderia vir a ser normal. Talvez alguma coisa tenha me deixado impenetrável quando criança, e não encontrei as chaves, me deixando trancada.

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C rônica

Escritor e jornalista explica a saga de ensinar jovens de periferia a importância da literatura Samarone Lima que achava leitura perda de tempo, ficou com os olhos brilhando. Levou para casa e simplesmente devorou o livro. “Na página 10, 15 de qualquer livro, eu deixava pra lá”, conta.. “Hoje, quando tenho tempo, fico lendo”. Depois de um silêncio, ele explica o que sente. “Parece que estou dentro da história”. Depois do Relatório, ele se agarrou com Olga, e sem nenhuma preguiça, leu inteiro. Herivelton, que gosta de futebol, gostou das pequenas histórias de Eduardo Galeano. Quando algum jornalista ou escritor ía à escola, conversar com os jovens, prestava sempre muita atenção. “Essas visitas do pessoal da área ajudaram muito. Eles contando a paixão pelos livros, dá vontade de ler. Isso me ajudou muito a escrever e até compor”, diz. Ele toca violão e faz suas músicas. “Hoje, procuro tempo para me dedicar a isso”. O caso de Suco chega a ser intrigante. Com ar e postura rebelde, no início ficava arredio. Quando pegou Pablo Neruda, levou um choque poético. Como tem um jeito muito irreverente e contestador, catei da minha biblioteca A imprensa livre de Fausto Wolff, e O homem e seu algoz, livro de contos. Suco literalmente teve um surto literário. Num desses domingos, estava lendo Fausto Wolff, quando sua namorada o interrompeu. “Estás me traindo com os livros”, disse ela. Suco estava há quatro horas ininterruptas lendo, extasiado. Deu um belo carão na namorada, que o estava atrapalhando, e só terminou depois de seis horas de leitura. “Fui vencido pela fome”, diz. Hoje, a namorada já não estranha sua quietude. Projetos literários - Os não-leitores começam a colocar no papel suas idéias. Outro dia, Suco assistiu a um documentário sobre Poetas marginais do Recife, do jornalista Pedro Saldanha, e ficou atacado de inspiração. Na parada de ônibus, quis anotar uma idéia, mas o ônibus chegou. “Me deu uma idéia, eu quis escrever, mas estava sem caneta. Fiquei todo agoniado. Uma mulher ao lado me perguntou: 'Filho, você está se sentindo bem?'. Eu

empolgado com minhas sugestões, voltou sorrindo e mostrando Caça aos turistas, do norte-americano Carl Hiaassen. “Li todinho. É muito bom”, comentou. O livro tem umas tresentas páginas. É um daqueles romances divertidos para o sujeito ler e ficar rindo sozinho dentro do ônibus. Agora Cássio está com o Mário Quintana em casa. Vamos ver.

Por último, chegou uma verba da escola para montarmos nossa própria biblioteca. Já compramos três lotes de livros, que foram catalogados e disponibilizados. Eles também dão suas sugestões. Tive que me render ao Paulo Coelho, Código da Vinci e o famoso Harry Potter. Eu quero é que eles leiam, não precisa começar com um Euclides da Cunha.

disse para ela que estava com diarréia”, conta. Chegou à Kabum! com dor de cabeça. “É que a idéia ficou espremida”, diz. Lívia Damares é um dos poucos casos de jovens que chegaram à escola com uma carga boa de leitura. Tem 18 anos, mora na Bomba do Hemetério, e já tentou Vestibular para Letras duas vezes, sem sucesso. Quando teve sua primeira paixão adolescente, escrevia cartas para o amado, buscava nos dicionários palavras bonitas, para encantar. “Escrevia muito para ele, mas nunca mandei”. Nos momentos tristes, Lívia também sempre escrevia. Na escola, uma professora de Literatura “fazia um auê” em torno dos livros, e ela começou a freqüentar a biblioteca. Depois, começou a freqüentar o Sesc Casa Amarela, que tem uma boa biblioteca, e os livros foram para sua casa, mesmo que apenas por uns dias. Lembra com paixão o primeiro livro que a emocionou: A marca de uma lágrima. Estava com 11 anos e chorou muito. Hoje, Lívia sente uma diferença. Descobriu a importância da poesia. Antes, ela acha que “escrevia bobagens da minha cabeça”. Consegue agora fazer uma ponte do que lê com os contos, crônicas, poemas que tem em mente. Fala coisas já cheias de estilos, como “está sendo uma mudança muito grande na minha visão literária”. A mudança maior, no entanto, está relacionada com o ato de escrever. “Antes, eu só escrevia quando estava triste. Agora, sempre tenho um papel e uma caneta à mão”. Suco diz que seu mergulho no mundo da poesia, não tem nada de modinha ou paixão efêmera. “Quando eu escrevo, sinto liberdade. O homem só é livre quando escreve e passa a dizer o que sente. Não tem mais patrão, chefe, nada. Tem liberdade e independência”. Enquanto enche cadernos de poesias, coisas que estavam acumuladas em sua cabeça há algum tempo, Suco filosofa. “Ninguém pode mandar em sua leitura. É a independência de si próprio. A pessoa ganha asas para voar. Quando escrevo, quebro a lei da gravidade”, diz. Nada melhor que um poeta recém-nascido. !!

A primeira meia-hora das aulas é somente para atualização das fichas individuais que criei. Cada um olha sua ficha, diz se terminou o livro que levou na semana anterior, se está gostando, se pretende levar outro. Vou acompanhando, com a ajuda do meu monitor, Ailton Peste, do Alto José do Pinho. O grande sucesso do momento é Cabeça de porco, do M.V.Bill, e Abusado, do Caco Barcelos.

Outro dia, a Anna Cecília devolveu Vidas secas, do Graciliano Ramos. Perguntei se ela tinha gostado e lido todo. Pedi para que ela resumisse a história para os colegas. Ela fez um relato detalhado da história, falou com ternura da cachorra Baleia. Quando terminou de falar sobre o livro, havia um interesse geral por ele. Alguém pediu emprestado na hora. !!

Poema de Aldemir Félix

Ei! Viram? Deus tirou uma foto minha e por causa de seu flash faltou luz na casa da vizinha.

Alexandre Belém

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I nternet

Fotos: Reprodução

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Site proporciona que internautas revelem seus segredos mais íntimos

A.

está largando o emprego hoje porque acha a vida curta demais para perder tempo sendo infeliz. B. finge saber francês porque a garota em que está interessado fala essa língua. C. disse para sua ex-namorada deprimida que não se importaria se ela pulasse da ponte - e foi o que ela fez. D. ama o marido porque ele foi o único homem que não a tratou com violência em toda a sua vida. Quando E. era uma garota de 11 anos, fez xixi na boca do seu irmão porque ele a irritou e nunca teve oportunidade de pedir desculpas pelo ato. Até hoje, culpa-se por essa memória da infância. F. jura que até vegetarianos, como ela, pensam em carne de vez em quando. G. acha que todos os seus problemas evaporariam se ela não fosse gorda. H. não dá a minima para reciclagem - e nem pretende passar a ligar para isso. I. deixa poemas entre as páginas dos livros que pega emprestados na biblioteca. J., funcionário da rede de cafeterias Starbucks, serve café descafeínado para os clientes que são grossos com ele. Os nomes verdadeiros das pessoas acima não foram “trocados para preservar a identidade dos entrevistados”, mas por um motivo mais prosaico: os donos dos segredos contados são realmente ilustres desconhecidos. Ilustres, sim, porque suas histórias estão no blog eleito como o melhor de 2007 na sétima edição do Weblog Awards, um tipo de Oscar dos blogs da Internet com votação pública. O PostSecret (www.postsecret.com) virou um dos mais populares graças à sua mistura de voyeurismo - aquele desejo incontrolável de saber dados obscuros da vida alheia, mesmo que seja de alguém que nunca se viu antes - e identificação. Quem, afinal, não tem uma confissão a fazer? Os cartões coloridos enviados por internautas suprem essas duas necessidades ao mesmo tempo. A história do blog é daquelas que só a Internet pode tornar possível. Tudo começou em 2004, quando o pequeno empresário americano Frank Warren criou um projeto de arte colaborativa que resultaria numa exposição em Germantown, sua cidade natal, no estado de Maryland. Para isso, distribuiu aleatoriamente 3 mil cartões postais em branco, com seu endereço no verso, e pediu que as pessoas contassem suas maiores confidências, sem se identificar. Recebeu cem respostas, produziu a exposição e teve

l

Renata Amara

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então a idéia de criar o site para manter vivo o projeto, que se espalhou por meio do boca a boca, como costuma acontecer com segredos mal guardados. Arrependimentos, esperanças, fatos engraçados, fantasias, crenças, medos e desejos fazem parte do material enviado, geralmente incluindo fotos, colagens ou ilustrações para chamar a atenção do organizador e ser selecionado. Warren recebe hoje cerca de 1 mil cartões por semana, de vários países, e já contabiliza mais de 100 mil no total. Cada participante pode mandar quantos quiser, desde que esteja ciente da cessão dos direitos autorais para o dono do site, visto por 3 milhões de pessoas por mês. A cada domingo, novos segredos vão ao ar. O número foi mais do que suficiente para resultar em três livros de histórias inéditas: “PostSecret: Extraordinary Confessions from Ordinary Lives” (2005), “My Secret: A PostSecret Book” (2006) e “The Secret Lives of Men and Women: A PostSecret Book” (2007). O segundo freqüentou, durante semanas, a lista dos mais vendidos do jornal Los Angeles Times. Não por acaso, o PostSecret é hoje o maior blog livre de anúncios da web. “Olá, meu nome é Frank e eu coleciono segredos”, diz o perfil de Frank Warren na loja Amazon. Apesar de ter formato de blog, em que geralmente comentários fazem parte do show, o PostSecret possui baixa interatividade direta. Às vezes, o organizador publica observações de outros leitores - que recebe por e-mail - para deteminado cartão. Tudo sempre anônimo, sem qualquer indicação de nome ou contato de quem escreveu, mas sem deixar de cumprir a função principal de empatia e compreensão para gente como K., que comeu a barra de chocolate que ficou presa na máquina de doces. Enquanto L. se sente um refém das decisões que tomou na vida, M. voltou a acreditar em Deus e N. pode garantir que nada cura mais um coração partido do que ver o ex-namorado com um péssimo corte de cabelo. O. tem mais medo de envelhecer do que de morrer. P. ainda odeia a turma de 1977 da escola. Q. acha que tem câncer mas tem medo de se examinar para confirmar o diagnóstico. Não importa quão bobo ou sério seja o segredo aqui - o que conta é poder livrar-se dele, expô-lo ao mundo e, dessa catarse, receber de volta absolvição e esperança. !!


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v digital no ano passado. TV pública este ano. IpTV no ano que vem? Não importa a nomenclatura, tampouco a data em que elas chegam à mesa de jantar da sociedade brasileira a partir da pauta da hora. Importante, na verdade, é saber como as famílias prostradas frente ao Brasil do Big Brother perceberão a televisão como algo além de uma extensão de seu próprio corpo social. Em poucas décadas, a TV no Brasil se transformou em um anexo fisiológico do telespectador padrão, particularmente no que se refere àquela parte do cérebro que atua no modo de construir a realidade e, por tabela, da idéia em senso comum do que é a identidade nacional. Discutir TV dessa maneira é antes de tudo um exercício de automutilação. É um processo de autópsia dos cyborgs em que nos tornamos. O fato é que, ao contrário de outros adendos tecnológicos como o celular, o radinho de pilha ou o aparelho de mp3, a televisão, por enquanto, é um corpo estático que costuma se sentir no ambiente domiciliar, justamente aquele em que se pressupõe uma esfera íntima de relacionamentos. É nesse ambiente familiar onde o brasileiro recebe as informações do que ele é dentro desse conjunto maior que é a sociedade. Esse é um processo natural, de tal forma que quando surge o debate sobre TV pública no Brasil, costuma-se criar uma coerente argumentação crítica de que a diferença entre “público” e “privado”, ao menos na ponta de baixo do processo, é tão irrelevante quanto o sexo dos anjos. Se os relacionamentos íntimos do ambiente domiciliar, dada à sobrecarga de informações captadas por dia, se confundem com os relacionamentos virtuais de uma única nacionalidade, não é de se estranhar que a indistinção entre “público” e “privado” seja tão latente. Em livro publicado há cinco anos, portanto ainda distante do debate sobre novas tecnologias de transmissão, Luiz Costa Pereira Júnior reuniu uma série de textos sobre televisão publicados no Estado de São Paulo em determinado período, e chegou a escrever na apresentação do mesmo que “a televisão entrou na corrente sanguínea do brasileiro. Ele passa, em média, quase quatro horas diárias com os olhos vidrados na televisão. Faz sentido. A TV não exige mobilidade (só controle remoto), nem alfabetização e é hipnótica. É de supor que essa nação de telespectadores já esteja calejada o suficiente para desconfiar da própria dependência dessa indústria via satélite”. Cinco anos depois do lançamento de A vida com a TV: o poder da televisão no cotidiano, os debates que surgem em função da pauta de governo sobre TV pública mostram que, ao contrário do que o otimista Pereira Júnior imaginava, a nação é tudo menos “calejada” quanto à sua subordinação diante da televisão. As pessoas continuam assistindo ao Big Brother, o Rio de Janeiro ainda são os olhos do país, os jogos da seleção brasileira seguem como o raro momento de orgulho e reunião nacional e a TV

pública, bem... anda como pode sem o dinheiro dos anunciantes que modificam os extratos bancários da sociedade inteira. Debater TV é, portanto, debater sobre como o país se vê e, muitas vezes, como ele só existe porque a televisão o legitima. Costuma-se começar essa discussão com dois pontos de partida que se cruzam: tecnologia e conteúdo. Neste último tópico entraria naturalmente o exame da construção social da realidade, enquanto que no primeiro ponto, o da tecnologia, surgiriam questões meramente técnicas cuja maior parte da população só presta atenção para saber se essas mudanças custarão ao seu bolso. É preciso inverter a ordem dessas associações. Se partirmos do pressuposto de McLuhan de que “o meio é a mensagem”, tecnologia é conteúdo e conteúdo, claro, só existe com tecnologia. O modo como as pessoas irão assistir TV daqui por diante pode sim, finalmente, criar uma dissonância na bem regida composição da indústria televisiva “privada” de reflexão sobre ela mesma. E o instrumento estranho a essa orquestra não pode ser outro se não a tecnologia. Se na mudança de paradigma do rádio para a TV os emissores de mensagens permaneceram os mesmos, da TV para a internet existe ainda uma angústia quanto ao poder dos conglomerados que controlam hoje a comunicação. E a angústia se dá porque, mesmo sendo essas grandes empresas as mais lidas, vistas e ouvidas no ambiente web, elas estão muito mais vulneráveis ao humor de seus receptores pelo simples fato de que eles podem tomar controle da situação. A tensão só não é maior porque a maior parte das pessoas que hoje visita a internet, bem como a maior parte dos brasileiros que assiste à televisão, não têm idéia desse poder. É nesse espaço de suspensão e dúvida que os mais afoitos devem agir, mesmo sem saber onde concentrar esforços. O You Tube e, em pouco tempo, o Joost (tecnologia de emissão de imagens via troca de arquivos entre usuários da internet), não deixam de ser laboratórios para a relação que as pessoas irão criar a partir de agora com a televisão. O IpTV (transmissão de dado via o Ip usado hoje na internet e não mais via satélite) e a facilidade de produção de vídeo também colaboram para que as coisas entrem “fora da ordem”. É provável que o Big Brother continue rendendo audiência, que o Rio de Janeiro siga espelhando todas as esferas sociais brasileiras e que a voz de Galvão Bueno invoque cada vez mais a identidade coesa de Brasil. Mas é provável também que, com a maior facilidade de produção e transmissão de imagens, a idéia de uma TV pública esteja mais próxima de uma idéia de construção social, do que de uma concessão feita ao país por caridade. E para que isso aconteça, é necessário extrair de nossas “correntes sanguíneas” televisivas mais razão do que sangue.!!

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Bateu na trave, era só o que faltava, o pênalti bateu na trave, a onda sentada atrás do gol ergueu-se mas não rugiu, segurou o grito com os dentes, sessenta mil cabeças resmungando, vociferando, engasgadas com a trave atravessada na garganta, depois a bola subiu mais ou menos cinco metros e desceu nas mãos do goleiro, parece até que vive no mundo da lua presta atenção no que você está fazendo seu animal, escutei o Zagalo gritar pra mim, presta atenção, mundo da lua, o diabo, final do primeiro tempo e tudo ainda zero a zero, quando vi os pontas escapando cada um pra um lado recuei pra dar cobertura, a bola cruzou o meio de campo, ricocheteou na coxa do Amaral, na cabeça do centroavante deles, resvalou dançou rolou rasteira por entre as pernas do Dicão e morreu no meu pé direito, não dei três passos e já tava caído com o tornozelo em frangalhos, a bola lá na frente, o quarto-zagueiro adiantado enchendo o pé e mandando a redonda pra dentro da nossa área, cabeceia daqui cabeceia de lá o sol e o suor nos olhos, a torcida esfregando bandeiras no meu rosto, exigindo que eu ficasse em pé e fizesse alguma coisa, fazer o quê meu Deus se o juiz consultou o relógio e levou o apito à boca do jeito que só podia significar:”Todo mundo pro vestiário”?, na fila indiana rumo ao túnel o Amaral encostou em mim e disse, vamos virar essa merda, eu gesticulei que sim, aproveitei que o chuveiro tava aberto e resolvi refrescar a moringa, entrei inteiro embaixo da água fria e morri por três minutos, quando saí era outro Rodrigo, mais puro, menos desgastado com a torcida que não parava de xingar nossas oito faltas, os treze passes malfeitos e é claro o pênalti que eu bati na trave, na saída do vestiário os repórteres tentaram me pegar, passei reto, ordens superiores, dez minutos atrás o Zagalo me torrando o saco, fica esperto Rodrigo senão você volta pro banco, não precisava isso, ameaça pra quê?, eu me sentia muito bem, renovado, pronto para recuperar o tempo perdido e a penca de bola fora, a galera ia ver só, mal soou o apito parti pra cima do meia-direita deles, roubei a pelota na manha, dois pra cá dois pra lá, lancei para o Zico que já entrava na grande área, a multidão vibrou com o passe perfeito, o zagueiro travou o Zico por trás e a bola rolou limpa na minha direção, vi o Altair se jogar pra cima do lateral só pra me deixar livre, não titubeei nem pedi pra falar com o gerente, enfiei o pé e o tiro saiu certeiro, no ângulo, o goleirão ainda tentou mas quem disse que viu alguma coisa?, o balaço atravessou a rede, sobrevoou a torcida uniformizada, as câmeras de tevê, tirou tinta do mastro no topo do estádio e desapareceu do outro lado, não deu nem pra comemorar o gol, o sol bem nas nossas fuças, Zico e Altair protegeram os olhos com a mão e procuraram nos arredores, Tonico já chegou reclamando, cacete que merda, mais de vinte alpendres na rua e foi cair justo no do Onofre, fiquei puto da vida porque o Zagalo ia me comer a alma, andamos desanimados até a esquina, o asfalto derretido fritando a sola dos pés, ninguém se animava a pular a mureta, atravessar o jardim e pegar a bola que tinha caído quase em frente à porta, o Zico sentou embaixo da paineira em flor, o Altair e o Tonico tiraram a camisa porque o calor tava de

Gol?

matar e deitaram na calçada, deitaram bem rente ao muro pra aproveitar a sombra, eu sentei no meio fio e enfiei a cabeça entre os joelhos, o resto do pessoal foi chegando aos poucos, ninguém tava nem um pouco a fim de tocar a campainha, bater palma, pedir a bola de volta, esse velho é pior que joelhada no saco o Dicão disse, todo mundo tava de acordo que quem chutou a bola no alpendre do velho é que tinha que ir até lá buscar, eu não tirei a cabeça do buraco em que havia me escondido, que sinuca, daí a pouco o sino da igreja bateria seis horas e eu é claro que teria que voltar pra casa, pegar a bicicleta e ir esperar minha irmã na saída da escola, a maldita bola tinha que me aprontar essa, Zagalo deu dois tapinhas nas minhas costas e me mandou ir logo buscar a pelota porque ainda tinha muito tempo de jogo pela frente, eu não tive coragem de fazer corpo mole, cocei a barriga e fui, diferente das outras vezes o portão tava aberto, andei o mais quieto possível, peguei a bola que tava embaixo do banco de madeira bem ao lado da porta, quando já tava saindo de mansinho, batata, a porta se abriu e o velhote apareceu, quem é?, que foi?, parei no meio do caminho puto da vida porque toda vez que a bola caía nesse maldito alpendre era sempre a mesma história, sou eu seu Onofre, respondi tentando disfarçar o mau humor, Rodrigo, é você?, que foi que houve?, a bola, eu disse mostrando a bola, ah a bola, ele gemeu endireitando os óculos engordurados de tanto que ele os ajeitava segurando as lentes com as digitais meladas, a bola, vocês estão jogando?, estamos, mas já está quase no fim, ele escancarou a porta e trouxe seu corpão preto pra perto de mim, é?, e quem tá ganhando?, olhou por cima do meu ombro à procura dos outros moleques, por enquanto tá um a zero pra gente, passou por mim serelepe, um a zero, muito bom, muito bom, gol de quem?, fui no seu encalço, gol meu, seu? que maravilha, passei por ele e pelo portão aberto, a bola embaixo do braço e a cara de”que é que eu posso fazer?” quando o Dicão pôs as mãos na cintura, o velhote no meu encalço, ué cadê as traves? não tô vendo nada aqui onde é que vocês estão jogando?, Zagalo pegou a bola de mim e foi andando em direção à esquina, hein? onde é que vocês estão jogando?, logo ali em frente à farmácia, eu respondi, a turma toda já tava voltando pra lá, eu seguia logo atrás, seu Onofre colado em mim, tentamos recomeçar a partida duas vezes mas houve certa confusão, deu bobeira geral, tinha gente querendo anular meu gol dizendo que o chute tinha sido alto demais, o forrobodó tava armado porque ninguém se lembrava mais do que é que tinha acontecido antes da bola sumir, quando finalmente ficou acertado que o jogo tava um a zero pro nosso time nós recomeçamos, o estádio mais uma vez se encheu de torcedores e as câmeras de tevê voltaram a transmitir o clássico pra todo o país, seu Onofre não largou do nosso pé, no início ficou meio de escanteio, do lado da lata de óleo que servia de trave, quando a partida começou a pegar fogo seu Onofre arriscou meter o bico numa bola sem dono que sobrou na sua frente, o Zico fez cara feia mas ninguém disse nada, quem é que ia ser filho da mãe de falar um desaforo que fosse ao seu Onofre?, o tempo escapava por entre as pernas e o time adversário queria mesmo era empatar o jogo e levar a disputa pra prorrogação, o calor tava cada vez pior e seu Onofre andava de lá pra cá, rindo feito criança, entrevado até o último fio de cabelo e louco pra que um passe errado acabasse novamente nos seus pés, a gente tomava cuidado pra não deixar que isso acontecesse mas já sabendo de antemão que era só questão de tempo, logo logo o velhote estaria aí na lateral direita, bufando feito porco, ou lá no meio do campo, passando mal mas feliz por fazer papel de bobo no meio da meninada.

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I néditos

Nelson de Oliveira

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