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E xpediente SUMÁRIO

EDITORIAL

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Onde o mar se encontra - As semelhanças poéticas entre João Cabral e Sophia de Melo Breyner que inspirou o novo CD de Maria Bethânia

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Meu fêmur não tem 70 cm - Fotógrafa de moda explica como fica sua auto-estima em meio às temporadas fashion

05 Tarantino feminino - Sexo e violência no novo filme do cineasta norte-americano Quentin Tarantino

06 06, 07 e 08 - Especialistas analisam a atualidade do discurso do Papa Bento XVI

09 Na cama com Gilberto Freyre - Livro detalha a importância do sexo na obra do sociólogo

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Bravo! - Como a Praça Roosevelt em São Paulo virou o centro de resistência teatral da capital paulistana

Alexandre Belém

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Sim ou não? - A inusitada moda dos livros de auto-ajuda usando animais como oráculos

O eterno problema do homem é aceitar ou não a existência de Deus. Um conflito que envolve paz e guerra, resmungos e orações, por todos os séculos, amém. Depois da visita do Papa Bento XVI ao Brasil, em meio a debates e discussões, promessas e visitações, o Pernambuco decidiu examinar o assunto e, para tanto, convocou os especialistas Anco Márcio e Maria da Paz Ribeiro Dantas. Divergentes em suas opiniões, centradas em análises exaustivas, ambos procuram enfocar o assunto em ângulos bem diferentes, o que engrandece o debate, tornando-o mais vivo e ainda mais significativo. Anco defende o embate com o divino a partir da modernidade e Maria da Paz examina-o conforme a fé, a caridade e a compaixão. É claro que isso gera um conflito de idéias que leva ao pragmatismo e à transcendência. Este jornal quer, assim, contribuir com um tema cada vez mais polêmico, sobretudo no momento em que, por razões as mais diversas, a existência de Deus é colocada em dúvida e, mais do que em dúvida, questionada ou negada completamente. E mais do que isso, levada à mesa de negócios, quando instituições, as mais diversas, tratam da questão da fé em canais de televisão ou em espetáculos publicitários. É preciso, então, que o leitor se integre ao caderno Saber +, onde participam do Debate o professor Severino Vicente da Silva, alunos da UFPE e paroquianos da Igreja de Casa Forte. O objetivo é abrir este leque de debates para que o leitor se posicione dentro de um assunto que é cada vez mais vasto e mais amplo para todos nós, em todas as suas considerações. Porque é polêmica para se construir a cada instante. A matéria Onde o mar se encontra, de Micheliny Verunschk, publicada na página três, coloca em evidência um nome consagrado em Portugal, mas ainda desconhecido no Brasil: Sônia de Mello Breyner Andresen. Ela aparece com destaque no CD Mar de Sophia, de Maria Bethânia, e ganha dimensão com a aproximação entre ela e João Cabral de Melo Neto, um dos mais destacados poetas brasileiros em qualquer época. Na secção de cinema, Rodrigo Carreiro se mostra surpreso com a nova característica de Tarantino, num filme que se destaca pela alma feminina, com personagens fortes e definitivas. Em todo o ensaio que escreveu para este Pernambuco, procurou investigar as razões que levaram o violento cineasta norte-americano a diálogos tão leves, suaves e delicados. Violento no sentido da trajetória de sua biografia. Adelaide Ivanova está se volta com um ensaio delicioso a respeito da beleza das modelos modernas, dela própria e de sua experiência como fotógrafa. Não é sem motivo que chega a uma conclusão: "De perto, quase todas as modelos, principalmente as novinhas, parecem umas cabritas desprotegidas. Isso ajuda a não me achar tão baixinha, feia, gorda - mesmo sendo uma magrela sem peito". O texto é leve, coloquial, de uma franqueza maravilhosa e inovador. No ano em que são lembrados os 25 anos da morte de Gilberto Freyre, o jornalista Bruno Albertim procura desvendar o Sr. de Apipucos pela abordagem sexual da sua obra e atesta "sensual, aquele Gilberto". A onda de livros de auto-ajuda com cachorros, gatos e demais animais de estimação é tema de um artigo muitíssimo bem-humorado de Fabiana Moraes. O poeta Fábio Andrade enriquece a página de Inéditos com uma poesia que torna ainda mais visível uma geração de escritores que surge no meio universitário, procurando conciliar o acadêmico, o espontâneo e o técnico. Mestre em literatura pela Universidade Federal de Pernambuco, Fábio se revela um autor de ritmo denso, construído pela preocupação com o segredo das palavras e com a intensidade do verso. Boa leitura.

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Inédito - Novíssimos versos do poeta pernambucano Fábio Andrade

Raimundo Carrero rcarrero@cepe.com.br

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “Tribos urbanas - grupos que se reúnem em lugares específicos da cidade”. Você partipará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

EXPEDIENTE GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos PRESIDENTE Flávio Chaves

VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto

DIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão DIRETOR INDUSTRIAL Reginaldo Bezerra Duarte

GESTOR GRÁFICO Júlio Gonçalves

EQUIPE DE PRODUÇÃO Debora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela

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Companhia Editora de Pernambuco -C CEPE Fone: (81) 3217.2500– Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro FAX: (81) 3222.5126 CEP 50100-140

EDITOR Raimundo Carrero

EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani carpeggiani@gmail.com

EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra

SECRETÁRIO GRÁFICO Gilberto Silva

jainecintra@gmail.com

TRATAMENTO DE IMAGEM Daniel Sigal

REVISÃO Gilson Oliveira


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L iteratura As convergências poéticas entre João Cabral e Sofia de Mello Breyner Andresen

Micheliny Verunschk omenageada recentemente no CD Mar de Sophia, de Maria Bethania, um dos nomes mais importantes da poesia portuguesa no século XX, Sophia de Mello Breyner Andresen, estabeleceu um diálogo intenso mas pouco conhecido pelas gerações mais novas de leitores brasileiros com a nossa literatura, especialmente com autores como Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Murilo Mendes e, de forma mais próxima, João Cabral de Melo Neto. A cultura grega, o mar, o labirinto e o mito órfico foram algumas de suas obsessões em poemas caracterizados pela economia de linguagem, por uma devotada preferência pela concisão e pela permanência de uma voz única que perpassa toda a sua obra. A poesia de Sophia, falecida em 2004, reporta a uma intimidade sem lirismo amoroso, inquieta pela observação dos espaços que a cercam e se traduzindo numa poética em que a visualidade se faz presente como elo capaz de restaurar a unidade daquilo que denomina "mundo dividido”, um mundo no qual a aliança entre as coisas e o real foi quebrada. Restaurar essa unidade é o sentido do ofício do poeta, parece afirmar, convicção norteada por uma busca incessante de um ideal clássico de pureza e equilíbrio. O apego ao real e ao mundo das coisas aproxima os rios e mares de Sophia e João Cabral de Melo Neto. De fato, Cabral e Sophia empreenderam leituras mútuas em poemas em que se refaziam, tornando-se, eles mesmos, “objeto” ou “coisa” passível de poesia. Cabral em Elogio da Usina e de Sofia de Melo Andresen, do livro A Educação pela Pedra, diz:

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“Sofia vai de ida e de volta (e a usina);/ Ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima, /E usando apenas (sem turbinas, vácuos)/Algarves de sol por serpentinas./Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal,/ Em cristais (os dela) de luz marinha.” Sophia, por sua vez, escreve a Dedicatória da Segunda Edição do Cristo Cigano a João Cabral de Melo Neto: “João Cabral de Melo Neto / Essa história me contou/Venho agora recontála/Tentando representar/Não apenas o contado/E sua grande estranheza/Mas tentando ver melhor/A peculiar disciplina/De rente e justa agudeza/Que a arte deste poeta/Verdadeira mestra ensina.” “Pois é poeta que traz/À tona o que era latente/Poeta que desoculta/A voz do poema imanente/Nunca erra a direção/De sua exacta insistência/Não diz senão o que quer/Não se enebria em fluência/Mas sua arte não é só/Olhar certo e oficina/E nela como em Cesário/Algo às vezes se alucina” “Pois há nessa tão exacta/Fidelidade à imanência/Secretas luas ferozes/Quebrando sóis em evidência”

SXC/Cortesia

A rede dialogal entre eles se estabelece assim, por meio de poemas (como, aliás, é bem do feitio de Cabral). Em entrevista a poeta dizia se aproximar de Cabral pelo fato de ambos “brincarem com a palavra”, estabelecendo a escrita como lugar de ludicidade: “Eu acho que o melhor momento da escrita do poema é quando as pessoas começam a sentir as palavras moverem-se sozinhas. E a brincarem umas com as outras. Andar a procura da rima, andar a procura do tempo, a procura da consonância” A rede é dada também pelo uso de um vocabulário que gira em torno de escolhas que se comunicam. No poema de Cabral, por exemplo, há o uso de palavras ou expressões como “algarves de sol”, “cristal” e “luz marinha”, próprios do campo semântico de Sophia. No poema dela, a dicção cabralina é imitada pela métrica e também por aquele caráter didático, de lição de poesia que se percebe em Cabral. Converge ainda o sentido de interesse e manipulação das coisas, seja no fazer e refazer dos “cristais” de um, seja na “oficina alucinada” do outro. Ao cruzar essas informações com o contexto histórico-cultural de meados do século XX, que é quando esse encontro começa a ser forjado, supõe-se que há uma escolha compartilhada pela poesia das coisas. Escolha lúcida que parece fazer parte do projeto conceitual e estético dos autores em que se percebe a qualidade do poeta

como inventor do mundo e dos seus sentidos. A força imagética da palavra na (re)construção do mundo é valorizada, priorizada. Eles vão se encontrar também numa confluência de olhares sobre o mundo social e geográfico. Em Cabral, Morte e Vida Severina - Auto de Natal Pernambucano (1954-55) e Paisagem com Figuras são exemplares. Em Sophia, militante da esquerda de seu país, poemas ligados a um olhar político como os que compõem a série “As Grades”, de Livro Sexto (1962), convivem com poemas sobre lugares ou paisagens como “Lagos”, “Tripoli 76” e “Açores”, do livro O Nome das Coisas (1977). No entanto, nenhum rio segue caminho reto para o mar. Cada um segue (ou inventa) seu próprio trajeto. Enquanto Cabral utiliza a evasão do eu-observador, Sophia supõe uma proximidade, um olhar mais íntimo. Em Cabral, por exemplo, dificilmente a primeira pessoa se desvela. No movimento de descrever o mundo, o “eu” não se vai colocar no centro do descrito e embora conheça o objeto por fora e por dentro, o seu olhar jamais se confunde com o que é visto. Para Sophia, tanto a utilização do pronome em primeira pessoa, como o uso do possessivo irão apontar caminhos diversos. Em sua poética, o objeto é tomado como seu. Estabelece-se entre ele e o sujeito lírico um vínculo: ao mesmo tempo em que o objeto representa uma alteridade, pertence ao olhar de quem o vê. Confundem-se os atos de olhar, descrever e possuir. Uma mesma e certa qualidade de desocultação que Sophia de Mello percebe em Cabral, chamará a atenção do poeta para ela e sua obra. A “fidelidade à imanência”, essa qualidade de delírio e deleite que o real, o concreto, a natureza das coisas pode oferecer ao homem está tanto em um quanto no outro. Pode-se dizer até que os poetas se miram em espelhos, se vislumbram nos poemas, não como narcisos, mas como pares. De fato, uma leitura comparada da obra dos dois poetas pode revelar pontos de contato mais profundos. Além da espacialidade, da obsessão pelas coisas, ambos são tocados pelo gosto da exatidão, por metáforas da luminosidade, da arquitetura, da engenharia e pelo equilíbrio e matemática do justo. É emblemática a reflexão de Sophia de Mello acerca da relação entre poesia e realidade: “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo à roda duma coisa. Um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito da verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem.” Com efeito, a utilização das coisas como motivo da poesia, sua observação, criação e recriação eleva-se à primeira potência do ato da composição dos dois poetas. Ambos solicitam às coisas um discurso do real num extremo de construção/apreensão de uma poesia que é, antes de tudo, fruto de um trabalho de arte. São obras que, como diz Sophia, “evoluem”. Mas essa “evolução não deve ser percebida como um julgamento de valor em que o novo ou mais recente são percebidos como “melhores”. Pelo contrário, essa evolução adquire o sentido de work-inprogress, a obra que se constrói e reconstrói no devir. É a partir disso, que o trabalho poético se faz presente. Não basta observar o mundo, é preciso refazê-lo continuamente: apreendê-lo, penetrá-lo, aprisioná-lo e “sair dele como quem lava as mãos”, diz Cabral. É sobre isso que ele fala na conferência Poesia e Composição (1952) a respeito do trabalho de poetas que primam pela poesia como ofício, trabalho com o concreto: “Também o trabalho nesses poetas jamais é ocasional ou repousa sobre a riqueza de momentos melhores e piores. Por isso seu poema raramente é um corte num objeto ou num aspecto particular de um objeto visto pela luz especial de um momento. Durante seu trabalho, o poeta vira seu objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados. E é ainda seu trabalho que vai permitir desligar-se do objeto criado. Este será um organismo acabado, capaz de vida própria. É um filho, com vida independente, e não um membro que se amputa, incompleto e incapaz de viver por si mesmo.” A obra de Cabral e de Sophia de Mello são como esses objetos iluminados, cubos mágicos desafiando o olhar, a percepção, a cognição. São coisas concretas, vivas, independentes. \\

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u sou leonina do dia 16 de agosto (o mesmo de Madonna e Bukovski, ó!). E como toda leonina que se preza, minha gasolina é elogio. Gosto que o povo me olhe, mesmo que seja um olhar atravessado; gosto quando o meu (minuciosamente) armado topetão faz um pescoço virar que nem o de Linda Blair só para ser melhor analisado. Gosto quando pedreiro me chama de gostosa, quando pipoqueiro assovia, ou quando meu namorado diz que eu fico linda na roupa nova. Pois vejam bem, que drama enfrenta uma personalidade como esta, duas vezes por ano, quando suas "colegas de trabalho" são, veja mesmo, Gisele Bündchen ou Daria Werbowy. Quem é que vai prestar atenção em mim, metro e meio, 45 quilos? Pois é. E isso, considerada minha personalidade carente de holofotes, dói. O drama começou em janeiro de 2006, a primeira temporada de moda que fotografei para o site Chic, onde trabalho. Hoje o drama é bem menor, mas ainda existe. Os dias perto do início dos desfiles são totalmente diferentes dos outros. Não que a rotina mude, mas é minha carcaça emocional que começa a engrossar, para que eu consiga passar, ilesa, a todos os testes de auto-confiança. Agora imagine, que despautério: a maioria das meninas com quem convivo nessas duas semanas e que abala minha esquizofrênica auto-estima tem pouco mais da metade da minha idade. Mas, ora ora, meu fêmur não tem 70 cm! O problema é que, quando as vejo, fico um pouco triste - pois como bem falou minha chefa, Gloria Kalil, "se nem a natureza é justa, ao beneficiar, ao seu bel-prazer, algumas poucas com uma beleza como a de Gisele e deixando tantas outras no limbo da estética, como podemos contar com uma vida justa?". Dramático? Não, senhora! Verdadeiro. Beleza física abre portas, janelas e corações - que quem gosta de beleza interna é médico endoscopista, bem diz meu bofe -, seja você modelo ou advogada. Até Vinicius de Moraes, mesmo tendo casado nove vezes com mulheres que só eram lindas por dentro, sabia disso. E o teste de auto-confiança não é só no quesito beleza, não. Deixa eu contar. A primeira foto, primeira mesmo, que fiz numa temporada de moda foi em janeiro de 2006, de uma modelo argentina chamada Romina. Ela só faz campanha grande e desfila para quem importa. Pediram que eu fosse ao camarim X fazer a foto dela, eu fui, me apresentei, pedi a foto e ela posou, toda diva. E eu, além de amiudada por aquela profusão de mulheres lindas, estava nervosa porque nunca tinha feito aquilo: abri o diafragma daqui, fechei o obturador ali, fiz isso, fiz aquilo, e dava tudo errado. Romina continuou lá, bem paciente me esperando acertar, como quem sabe que aquela é sua profissão - posar para fotos até alguém dizer que tá bom. No meio do meu desespero, um fotógrafo nada compreensivo falou perto do meu ouvido: "Se fosse a Gisele, já tinha levantado e te deixado aí". "Bem-vinda", pensei. Bem que vovó tinha dito para eu ter cuidado com o tal "mundo da moda". Faço coro com Dudu Bertholini, estilista da Neon meu amigão, quando ele diz que não sabe onde fica esse mundo da moda e que se alguém souber se tem metrô pra lá, ele quer ir. Mas esse episódio com o fotógrafo eu nunca esqueci. E se todos os protótipos de beleza servem para colocar em cheque a auto-estima, o contato com uma "beleza suprema", aquela que une cobertura e recheio, ao

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contrário, só ajuda a recuperar a auto-confiança (a não ser, claro, que você seja uma jararaca invejosa). Eu explico: é tão comum encontrar meninas lindas que não conseguem conversar lê-com-cré. Agora, pense só a satisfação que é para um ego cansado (no caso, o meu), cruzar, no meio da guerra civil que são os camarins de desfile, com uma mulher linda em tudo. A beleza pode, também, tomar outras formas, de modo a se tornar reconfortante e compreensível. Giane Albertoni, uma das modelos mais conhecidas do país, é uma dessas surpresas. De tanto cruzarmos com ela nos backstages e na piscina, nas manhãs livres do Fashion Rio (todo mundo fica hospedado no mesmo hotel), ela acabou virando modelo-amiga. Giane faz a linha gostosona também, que nem Gisele. É alta, loira, tem peitão - e é um monstro. Eu explico de novo: um monstro porque é rara; além de toda essa perfeição estética, ela é uma das meninas mais inteligentes, com um humor-ácido, sem ser grosseiro; faz piada de si mesma, não fica emburrada e é legal com todo mundo. E conversa sobre qualquer besteira que você quiser falar. Pense numa criatura dessas, 1,80m de puro atrevimento, coalhando no sol com a parte de cima do biquíni desamarrada, lendo jornal e falando mal do Lula, beeem alto? Parecia filme, ela fez todo mundo rir! Outra coisa de assustar foi Daria Werbowy, modelo polonesa-canadense que assumiu o posto de top nº 1 do mundo quando Gisele virou übermodel. No Brasil, em janeiro, conversei com ela por uns 10 minutos. E aquilo sim era de meter medo: talvez a mulher mais linda que vi na vida, não só pela cara (que não é perfeita como, por exemplo, a de Albertoni), mas pela sua existência! Daria conversa firme, a voz rouca e baixa, olhando no olho, fuma um cigarro atrás do outro, fez faculdade de artes plásticas, tem tatuagem e, depois de saber que sou chegada numa vodca, terminou nossa conversa dizendo que adora Luksusowa, uma vodca polonesa "baratinha", como ela mesma disse. Não deu para acreditar, né? De perto, quase todas as modelos, principalmente as novinhas, parecem umas cabritas desprotegidas. Isso ajuda a não me achar tão baixinha, feia e gorda - mesmo sendo uma magrela sem peito. "Elas viajam o mundo", meu Goblin auto-destrutivo me lembra. Mas a vida amorosa delas, quando não é impossibilitada pela distância, é um tédio pelo mesmo motivo. Elas ficam longe dos pais e da família, passam metade do ano em aviões e em quartos de hotel - situação que seria bem interpretada por Amy Winehouse ou Maysa, mas difícil de ser digerida por uma menina de 13 anos que mal sabe conjugar o bê-a-bá da vida. Para mim, é difícil ter que, duas vezes por ano, ficar olhando para a cara da Izabel Goulart e me achar uma Zefa. Já para elas, mais amargo ainda deve ser ouvir, arbitrariamente e muitas vezes mais que isso, que não são lindas o suficiente para fazer a campanha da Prada. É um tanto ilógico - e, uma hora, deve cansar. Numa semana de moda, portanto, tão importante quanto minha câmera e minha bombinha de asma é o mp3 player, sempre pronto para tocar Beautiful, de Christina Aguilera, quando eu tô no ápice da crise: "você é linda em todos os detalhes e palavras não vão te abalar". Num instante a histeria passa - mas só até Raquel Zimmermann passar na minha frente. \\


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C inema ncensado como maior renovador do cinema na última década do século XX, Quentin Tarantino já provou diversas vezes que tem talento inesgotável para transformar lixo em ouro. O cineasta norte-americano fez carreira transformando a si mesmo em usina de reciclagem cinematográfica. Seu modo de trabalho consiste em reunir estilhaços variados de cultura pop e criar arte a partir deles. Esta estratégia fica mais uma vez evidente em Prova de morte (Death proof, EUA, 2007). Somente alguém como Tarantino teria o talento necessário para promover um filme de aventura, híbrido de slasher (maluco sai matando gente de formas exóticas) com longa de perseguição de carros, à categoria de clássico instantâneo do cinema contemporâneo. Concebido como homenagem à experiência de freqüentar cinema de bairros nos Estados Unidos da década de 1970, Prova de morte foi lançado por lá como parte integrante de um projeto ousado. Intitulado Grindhouse e recheado com quatro trailers falsos, o filme de Tarantino fazia um combo com outro longa-metragem, do amigo Robert Rodriguez (Planeta terror). O fracasso nas bilheterias, com apenas US$ 24 milhões conquistados, fez a Miramax repensar a estratégia de lançamento das duas obras. Prova de morte chega sozinho ao mercado internacional, expandido com uma dezena de cenas inéditas que tornam a experiência de assisti-lo ainda mais deliciosa. Em entrevistas concedidas para promover o trabalho, Tarantino fez questão de repetir: se dedicou 100% ao filme e o resultado final o deixou orgulhoso. Tais declarações soam como estratégia de defesa contra detratores que, mesmo sem assistir à obra, expressavam asco à idéia de ver um diretor famoso se rebaixando para criar um mero filme de horror dentro de um carro. Bobagem: uma espiada retrospectiva na carreira de Tarantino deixa evidente que o namoro com subgêneros B, considerados pelos críticos como escória cinematográfica, não é novidade para ele. Filme a filme, Tarantino sempre se dedicou trabalhar com material recolhido do depósito de lixo do cinema mais próximo, reciclando-o segundo suas próprias leis e transformando esses detritos em algo original. Foi assim que o diretor reabilitou seguidamente o filme de gângster (Cães de aluguel), a ficção policial barata (Pulp ficcion), o blaxsploitation (Jackie Brown), os faroestes espaguete e as aventuras de artes marciais (Kill Bill). Dentro da filmografia de Tarantino, é provável que Prova de morte tenha parentesco próximo com Jackie Brown, tanto pelo gênero escolhido quanto pela direção de arte, que tem cor, formas e cheiros oriundos dos anos 1970. Prova de morte não seria um legítimo Tarantino caso se limitasse a reproduzir os clichês dos subgêneros escolhidos. O diretor que revolucionou o cinema com Pulp ficcion utiliza as convenções narrativas dos filmes B apenas como ponto de partida, subvertendo-as saudavelmente no decorrer da projeção. Curiosamente, a estrutura narrativa é a mais linear de todos os filmes do diretor, dispensando a já tradicional cronologia fragmentada que caracteriza

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O polêmico diretor norte-americano retorna à sua obsessão sobre garotas e muito sangue saltitando nas telas Rodrigo Carreiro

todos os trabalhos anteriores dele. A história é estruturada em dois blocos semelhantes, separados por um intervalo de 14 meses. Por duas vezes, a câmera de Tarantino acompanha um dia de leseira na vida de um quarteto de garotas, mostrando em seguida o encontro delas com um serial killer que mata usando um carro. Aliás, as duas incríveis seqüências nos automóveis põem Prova de morte na seleta lista de filmes com grau máximo de realismo em cenas do gênero. É material à altura de Operação França, Mad max e Viver e morrer em Los Angeles. É muito bom perceber, também, como Tarantino vem se tornando uma dos melhores cronistas da alma feminina entre os cineastas contemporâneos. Se nos primeiros filmes dele os diálogos entre personagens eram nitidamente masculinos, aos poucos isso foi mudando. Este é o terceiro filme seguido, se considerarmos os dois volumes de Kill Bill como um só longa, em que os protagonistas são mulheres. As garotas aqui conversam, agem e sentem como fêmeas, embora o ponto de vista do filme em si seja bem macho, como provam os enquadramentos que valorizam partes do corpo feminino tipicamente fetiches para o diretor (pés e bundas). Durante as maravilhosamente vívidas seqüências de bate-papo, Tarantino registra com muita fluência e espontaneidade o tipo de conversa descontraída que só rola entre mulheres. São momentos deliciosos, maravilhosos bate-papos cheios de descontração, que capta o senso agudo de amizade e companheirismo só possível de ver entre garotas. Papo de homem, diga-se de passagem, é algo que Tarantino já havia resgatado antes com a mesma perfeição (Cães de aluguel, Pulp fiction). Estreando como diretor de fotografia, o cineasta ainda nos brinda com uma linda tomada de dez minutos ininterruptos, sem cortes, com a câmera acompanhando uma das conversas entre as meninas, em torno de uma mesa de bar. É o tipo de cena que a gente assiste com um sorriso largo na boca - se aquela conversa demorasse mais uma hora, a platéia assistiria a tudo maravilhada, sem achar enfadonho. O papo é jovem, vívido, colorido, maravilhosamente real, travado entre gente de carne e osso, gente que exala uma enorme vontade de viver e aproveitar a vida. É material perfeito para cinéfilos comprovarem, mais uma vez, que não existe cineasta tão bom neste planeta para escrever e filmar diálogos. A trilha sonora (Jack Nietzche, Pino Donnagio, Ennio Morricone) amplifica ainda mais a experiência vibrante da platéia, cobrindo tudo com um verniz pop que é cara de Tarantino. Embora você provavelmente já tenha lido por aí que o protagonista de Prova de morte é um assassino serial chamado Mike Dublê (Kurt Russell), a verdade é que o maníaco, dono de um carro com ferragens reforçadas usado para matar meninas bonitas, tem pouco tempo de tela. A alma deste filme é feminina, e o único personagem macho com falas - além do próprio Tarantino, numa ponta curta e bem-humorada - só aparece para estragar o prazer genuíno de ver as garotas tendo aquele tipo de diversão extravagante que só as mulheres conseguem ter. Nada que um final inesperado, ousado e muito cool não possa resolver, numa cena que homenageia com sadismo nostalgicamente perfeito o cinema de ação B dos anos 1970. Nesta toada, Prova de morte chega ao fim e você já está louco para revê-lo. Há melhor sinal do que isso? \\


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C apa enhuma instituição sobrevive 20 séculos sem que algumas regras morais e éticas, fundamentadas em sólidas bases filosóficas, não sejam intransigentemente defendidas e, principalmente, que mereçam ou inspirem confiança a um determinado número de pessoas. Os regimes políticos, as doutrinas filosóficas e as instituições são suplantados pelo processo histórico quando seus defensores e seguidores já não acreditam em seus preceitos. Foi assim com as tantas ditaduras erigidas ao longo do Século XX (de direita ou de esquerda), com alguns sistemas filosóficos (a exemplo do Positivismo e, até certo ponto, do Marxismo), e com as instituições que viram seus objetivos serem superados por novos paradigmas (quem se lembra dos templos positivistas?). Como a mais antiga instituição Ocidental, a Igreja Católica Apostólica Romana não somente subjugou o seu primeiro obstáculo - o Império Romano -, e com ele toda uma concepção de mundo, como terminou por moldar toda a cultura e a sociedade Ocidental ou ocidentalizada. Erigida em cima de um sistema filosófico que concebe o corpo e o espírito como uma "circunferência perfeita, abarcável com a vista, uma totalidade" (Georg Lukács), as bases cosmológicas que fundamentaram a Igreja se assentavam em uma estrutura mental pouco flexível. Inflexibilidade essa que historiadores como Hans Ulrich Gumbrecht localizam no fato desse sistema teológico defender que cada experiência humana era passível de uma única interpretação (daí os estudos hermenêuticos e a crítica ao "realismo da essência"). Logo, tal teologia não encerrava em seus princípios uma estrutura temporal e, conseqüentemente, não tinha meios de incorporar as transformações sociais, econômicas e culturais que por ventura fossem se apresentando na sociedade. São esses dois princípios que, de uma forma ou de outra, irão pautar os embates teológicos e filosóficos da Igreja ao longo da sua existência. Enquanto o mundo parecia uma "circunferência perfeita, abarcável com a vista, uma totalidade", a Igreja praticamente só teve que dar solução às arestas teológicas que surgiram ao longo da Idade Média. No entanto, como dissemos, por não encerrar em seus princípios uma estrutura temporal, os preceitos doutrinais da Igreja começam a claudicar quando, entre os séculos XII e XIII, novos ventos começam a soprar no continente europeu. Esses novos ventos vão fincando as bases daquilo que conhecemos hoje como Modernidade - a chamada "subjetividade moderna". Modernidade que, como bem definiu Octavio Paz, "se inicia quando a consciência da oposição entre Deus e o Ser, a razão e a revelação, se mostra de fato insolúvel". Razão que também "aspira à unidade, mas, diferentemente da divindade, não repousa nela nem se identifica com ela". Nas artes, os artistas deixam de ser meros instrumentos de Deus para se colocarem como sujeitos da sua obra. É assim que Giotto insere a perspectiva na monótona arte dos ícones religiosos e o poeta Dante Alighieri, fundando as bases da literatura moderna, se inscreve como autor de uma obra onde o sujeito lírico nomeia a si próprio e a sua amada. No campo jurídico, a interpretação única para cada experiência é agora colocada em suspensão. Faz-se necessário ouvir o máximo de testemunhas, fazer uso da perícia criminal, para se chegar a um veredicto. Nasce aí a idéia de indivíduo - tão perseguida pela burguesia - e tem início a crise da nobreza feudal. Crise que vai forjando as bases para a centralização do Estado, num processo de tensão entre os que defendem o poder régio, centralizador, e os partidários dessa autonomia senhorial. Consolida-se também, como desdobramento das novidades advindas do campo jurídico, a idéia de Purgatório. Agora não mais como um conceito impreciso (Santo Agostinho, Gregório o Grande, Bernard de Clairvaux), mas como algo substantivo que designa um lugar que se situa entre O Paraíso e o Inferno. A Modernidade é, dessa forma, antes uma ferramenta da Razão orientadora (alimentada principalmente pela descoberta de Aristóteles no século XII) para repensar os princípios da cosmologia cristã do que um simples valor em si. Com a Razão moderna, vemos nascer o conceito de indivíduo e, posteriormente, no século XVIII, o de cidadão - substituindo o de súdito - e os preceitos do Estado laico. A história da Igreja e, por sua vez, do Ocidente nos últimos oito séculos pode ser traçada como a tentativa de solucionar o eterno embate colocado por Santo Agostinho entre a civitas terrena e a civitas caelestis. Ou seja, entre, de um lado, a imutável verdade das Escrituras e a promessa de um mundo restituído a uma "circunferência perfeita, abarcável com a vista, uma totalidade" e, de outro, a tentadora "miscibilidade" das sociedades que, por meio da Razão orientadora, preferem construir a sua própria "circunferência". Mas não uma "circunferência perfeita", e sim a que persegue a heterogeneidade: das idéias, das liberdades individuais, do inesperado no campo da linguagem estética, da construção do Estado laico e do direito como base da sua organização, e, principalmente, a que busca a soberania dos povos. É assim, lembraria mais uma vez Octavio Paz, que a prática da penitência vai, pouco a pouco, sendo substituída pelo trabalho, a graça divina pelo progresso, e a religião vai cedendo à política. As palavras enunciadas pelo papa Bento XVI desde o início do seu papado (e que pouco se diferenciam das que vinham sendo ditas, nos últimos anos, pelo seu antecessor), dividindo os cristãos e os não-cristãos que habitam sociedades laicas, apenas reiteram e perseguem a verdade de quem é herdeiro de uma concepção de mundo em que o terreno e o divino são partes de uma totalidade insolúvel. É sabido que na sociedade laica a fé transformou-se apenas numa angustiante tentação religiosa; tentação esta que tem que dividir sua verdade com outras tentações (não raras vezes efêmeras) que vêm sendo oferecidas pela Modernidade. Bento XVI é o corolário da melhor tradição de uma Igreja que desde o século XII tenta encontrar um meio termo entre a "circunferência perfeita, abarcável com a vista, uma totalidade", de que nos fala o Lukács hegeliano, e uma sociedade que vê na heterogeneidade oferecida pela Razão orientadora seu lugar. Se o discurso do Papa é reacionário (e não apenas conservador, como muitos gostam de afirmar), ele também é tentador para mulheres e homens que vivenciam o mundo moderno e contemporâneo. Pois é como se no seu discurso, ou através dele, a humanidade pudesse encontrar a unidade dentro de um mundo cada vez mais fragmentado. Daí a dupla tentação vivenciada por homens e mulheres: a religiosa e a da Modernidade. Temos nostalgia (nostalgia esta que nasceu com os românticos) de um mundo que conciliava o corpo e a alma, dando-nos o conforto da segurança. Ao mesmo tempo, não queremos abrir mão da nossa conquistada individualidade, do nosso direito de decidir sobre o que é melhor para nós, da difícil construção cotidiana que é a de assegurar os direitos democráticos. Se a Igreja sobreviveu aos últimos dois mil anos, em particular à Razão orientadora da "subjetividade moderna", foi porque homens e mulheres nunca deixaram de acreditar em seus princípios morais e éticos e, principalmente, continuam encontrando neles respostas para sua eterna crise espiritual; crise que se verticaliza ante as adversidades da contemporaneidade e os novos paradigmas que a cada dia se apresentam. Quando nos espantamos com a pregação do sucessor de Pedro condenando todos os "ismos" que são filhos da Modernidade, esquecemos que o longo conflito da Igreja com o mundo moderno e, particularmente, ao longo de todo século XIX, com os ideais advindos da Revolução Francesa, encontrou seu epicentro com o decreto Lamentabili e a encíclica Pascendi, ambas de 1907, publi-

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cadas por Pio X. Documentos que se insurgem contra todas as formas de modernismo - tidas como heresias - e afirmavam que "inimigos da Igreja é o que de fato são: dizer que são piores inimigos não está longe da verdade... seus golpes são mais certeiros porque eles sabem onde atingi-la". Perseguindo essa "verdade", o pontificado de Pio X passou a adotar o seguinte lema: "Restaurar todas as coisas em Cristo". Para ele, "O papa é absolutamente incapaz de separar as coisas da fé da política". Logo, como "o chefe e o primeiro magistrado da sociedade cristã”, ele deve "confutar e repelir os princípios da filosofia moderna e da lei civil que possam levar o curso dos negócios humanos a uma direção não permitida pelas restrições da lei eterna". Bento XVI é rebento desse preceito. Lembremo-nos que o Juramento Antimodernista, instituído por Pio X, obrigatório para todos que ingressassem na vida religiosa, esteve em vigor até os anos 60 do século passado. Se o atual Papa é um dos filhos do Concílio Vaticano 2° (1962-1965), que tentou conciliar a Igreja com os benefícios trazidos pela Modernidade, também é verdade que ele nunca esqueceu seu juramento Antimodernista. O grande dilema colocado pela Igreja e pelo atual papado é o dilema que vem perseguindo a humanidade Ocidental ou ocidentalizada desde o Século XII: o de conciliar o Evangelho, filtrado e normatizado por uma Instituição milenar (com todos seus dogmas, condenações e restrições à vida laica) com as conquistas civis que a Razão orientadora construiu nesses últimos oito séculos. Quanto maior for a crise da Modernidade e os seus desafios, maior será o embate e os discursos em confrontos. Se a Igreja, em sua posição reacionária, nos oferece a experiência do passado como solução para os problemas do presente, somos também tentados, para não dizer condenados, a acreditar que podemos encontrar o equilíbrio entre a civitas terrena e a civitas caelestis pela cultivo da dúvida. Como bem colocou Leonardo Boff, "aqueles que não têm dúvidas não são abertos ao diálogo nem são capazes de aprender com os outros". Bento XVI e sua Igreja, diferente de João XXIII, não conhecem a dúvida. Daí o teólogo e intelectual alemão ter sido definido por um jornal siciliano como "o mais amado e o mais temido". Por fim, podemos concluir dizendo que, de maneira contraditória, o fundamentalismo religioso (cristão ou islâmico) que vem encampando o mundo nas últimas décadas, condena a Modernidade e seus frutos fazendo uso de determinados meios (a mídia e a tecnologia) que só existem porque em algum momento do Século XII alguns homens decidiram começar a pensar o mundo por categorias distintas das que eles tinham sido formados. São contradições que nem a mais milenar das instituições foi poupada.

O discurso do Papa Bento XVI enfrenta a batalha de manter a tradição da Igreja Católica diante dos “ismos” próprios da modernidade Anco Márcio Tenório Vieira


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O Papa busca mostrar aos fiéis que as verdades da fé não estão tão longe assim daquelas enunciadas pela “razão” zelo em mostrar que o divino e as respectivas verdades (da fé ) têm a ver com a razão e não se restringem ao nível da intuição motivou o papa Bento XVI a proferir na Universidade de Ratisbona, Alemanha, no ano passado, a palestra "Fé, razão e universidade".Nessa ocasião, referiu-se de passagem à jihad (guerra santa) do Islamismo. Não diretamente, mas citando o diálogo que o imperador bizantino Manoel II manteve com um persa erudito, no ano de 1391, em torno da relação Cristianismo versus Islã. A citação visava tão somente pinçar o trecho da conversa, onde o imperador afirmava que não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. (O texto da palestra pode ser conferido no site Zenit, relativo ao dia 12 de setembro de 2006). Gostaria de me estender mais na referência a essa palestra, cujo título foi citado acima; no momento, detenho-me na encíclica Deus caritas est - a primeira de Bento XVI -, excelente ilustração daquele pronunciamento que ele apresenta como "aula"; e o é de fato aula de filosofia. Quanto à encíclica, eis a relação que nela vejo com o texto da palestra: o cuidado de refletir, de argumentar para colocar as coisas ao nível do circunstancial, sabendo que não se dirige a um público abstrato, mas a pessoas concretas, com sensibilidades particulares, diversas na maneira de sentir e interpretar o que lêem ou escutam; o que me pareceu um cuidado: como se o Pastor se esforçasse em limpar o caminho, aplainá-lo para facilitar a compreensão..Assim é que, sobre o duplo mandamento que resume todos os dez da antiga lei, o Papa extrai duas indagações. A primeira: é realmente possível amar a Deus, mesmo sem o ver? E a outra: o amor pode ser mandado ? Contra o duplo mandamento do amor, existe uma dupla objeção que se faz sentir nestas perguntas: ninguém jamais viu a Deus - como poderemos amá-lo ? Mais: o amor não pode ser mandado; é, em definitivo, um sentimento que pode existir ou não, mas não pode ser criado pela vontade. A escritura parece dar o seu aval à primeira objeção quando afirma: "Se alguém disser: eu amo a Deus, mas odiar a seu irmão, a quem vê, como pode amar Deus, a quem não vê ? " (I Jo.4,20). Percebe-se, nas entrelinhas desta carta-encíclica, um desejo, que parece brotar daquele composto, chamado por Jomard Muniz de Britto de "reflexão emotiva", ainda na década de 1960, quando comentou, em livro, o percurso do modernismo à bossa nova. Reflexão emotiva é o conceito que agora me ocorreu para definir esse misto de razão e emoção percebido entrelinhas. Esse cuidado ao lidar com determinados ângulos da fé, que a tornam (às vezes por descuido quanto à clareza da linguagem que a transmite) uma realidade distanciada da inteligibilidade e, conseqüentemente, para o agir humano. Não se trata de banir o mistério, condição da transcendência; mas antes, de contornar as imprecisões do pensamento quando se fala de Deus. Imprecisões essas que foram, muitas vezes, fonte de mal entendidos. Para Bento XVI, o mal entendido - por exemplo, quando se diz que o cristianismo é inimigo de eros - estaria em absolutizar a atração física; como se amar se restringisse a uma performance externa, corporal. Fazendo pender a balança para um único lado, embota-se o outro, ou seja, a dimensão espiritual da pessoa - que tanto no cristianismo como no budismo, transcende o ego. É toda uma argumentação racional que o Papa desenvolve para mostrar que: No fundo, o amor é uma realidade única, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. Fundamentado filosoficamente em sua argumentação, Bento XVI demonstra um profundo conhecimento da epistemologia contemporânea e da conseqüente ruptura entre crer e pensar; ruptura que está na base do ateísmo dos nossos dias, desde a gênese da modernidade. Num dos momentos de sua análise sobre o conceito de amor - como a Bíblia o vê mostra que houve distorções, e que estas foram muitas vezes radicalizadas, chegando a se encarar alma e corpo como antípodas um do outro: "Se se quisesse levar ao extremo essa antítese, a essência do cristianismo terminaria desarticulada das relações básicas e vitais da existência humana e constituiria um mundo independente, considerado admirável talvez, mas decididamente separado do conjunto da existência humana" Aos olhos do Papa, é muito claro e transparente o sentido da mensagem evangélica, centrada no ágape, e aonde ela deve levar: não a uma ideologia, ou mesmo a um projeto de humanização das estruturas sociais ou estatais. Este seria, sem dúvida, um grande projeto, mas ainda aquém do que a Igreja se propõe como realização interna e projeção externa: "Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, dessa forma, o rumo decisivo". Eis a essência da utopia, da qual Bento XVI deseja revestir o ícone coletivo do cristianismo, a Igreja: aquecer de compaixão o frio e desesperançado mundo de hoje - projeto que, não fosse a fé, dir-se-ia: quixotesco. Sintomático dessa utopia é que ele distinga o verdadeiro cerne da questão, visando não somente quem é beneficiado pelo dom (não importa se material ou imaterial), mas quem o faz. Um Estado que queira prover tudo e tudo açambarque torna-se, no fim das contas, uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o ser humano sofredor todo ser humano - tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. É o mesmo que dizer com Paulo apóstolo: "Se eu distribuir todos os meus bens, mas não tiver o amor, isso de nada me serve" (I Cor. 3,13). Retomando o conceito de pólos complementares, cabe aplicá-lo ao pensamento de Bento XVI. Na verdade, ele demanda uma prática; ou melhor, deve englobar uma práxis, uma prática, uma ação. É no final de Deus caritas est que Bento XVI resume e lança internacionalmente seu anti-apocalíptico - e utópico - projeto: "Viver o amor e, desse modo, fazer entrar a luz de Deus no mundo". \\

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Livro póstumo do sociólogo dará mais subsídios para estabelecer paralelos entre o sexo na obra e na vida do intelectual Bruno Albertim ilberto Freyre era muito bom de cama. E de cozinha, de quintais, de igrejas, terreiros, ruas e salões. No grande ensaio explicativo da formação do Brasil que é Casa grande & senzala, o sociólogo dá a mesma importância à economia baseada no tripé monocultura açucareira, escravidão e patriarcalismo aos intercursos carnais de sua população, os esportes de alcova, matos e becos fundamentais para a construção do caráter e da população nacionais. Como Jorge Amado, Gilberto era, antes de tudo, um sensual. "O sexo é fundamental em sua obra", lembra o historiador Gustavo Tuna, um dos coordenadores do relançamento de seus títulos pela Global Editora. Quem já percorreu o clássico, sabe. Por aquelas páginas, passeiam senhores dispondo de escravas, algumas ainda impúberes, negras iniciando brancos mancebos, europeus e índios em livre exercício de pederastia, estudantes fazendo troca-troca nos primeiros colégios internos do Recife, zoofilias e até o tamanho dos órgãos sexuais dos maridos de jovens aristocratas. Nada lhe escapou à caneta. Durante muito tempo, não foi um livro para ser lido em público. Da mesma forma que À mesa com Gilberto Freyre (Editora Senac) revelou o comensal, o entusiasta gourmet por trás do intelectual pioneiro em usar ingredientes e modos de cozinha para a explicar a sociedade nordestina, um título inédito, previsto para lançamento no segundo semestre, trará novas doses da intimidade do homem que desconhecia fronteiras entre público e privado na argamassa do grande projeto colonial português em que redundou o Brasil. "Os inéditos foram encontrados nos arquivos da Fundação Joaquim Nabuco", diz o editor. Escrito em primeiríssima pessoa, De menino a homem é o diário íntimo de Gilberto a partir dos 30 anos de idade. Fará a continuação de Tempo morto e outros tempos, relatos de sua meninice. "Não é um livro de confissões de Gilberto sobre sua vida sexual. Mas traz algumas", diz ele. Além de comentar sua experiência com uma "loirinha germanicamente loira", decepcionante diante da morenice das brasileiras que sempre lhe entusiasmou, Gilberto conta também do intercurso com um rapaz na Alemanha e de uma experiência sensorial e erótica com uma septuagenária. Ao voltar dos estudos nos EUA, Freyre chocava os colegas do Recife de 1930 quando mostrava entusiasmo pelas morenas nativas, em detrimento do padrão europeu de beleza. No fim da vida, suspirava por Sônia Braga. "Por uma questão de política da editora, não podemos antecipar muito do conteúdo antes do lançamento", desvia Tuna. . As confissões, aliás, que não chocarão por ineditismo. Numa entrevista antológica para a revista Playboy por ocasião de seus oitenta anos, G.F. fez um amplo balanço de como gastou os hormônios nas décadas pregressas. Disse que, quando menino em Pernambuco, os colegas o iniciaram "no conhecimento de um orifício em bananeira, como substituto do sexo de mulher, para a prática de masturbação", emendando que "além dessa masturbação na bananeira", foi apresentado a uma ruminante. "Experimentei o contato pecaminoso com uma vaca!", contou, entre risos. Pouco preso à moral mais ordinária, não deixou de confessar a troca de suores com outro homem. "Tive umas poucas e pálidas experiências homossexuais, já adulto. Não satisfatórias, porque nenhuma delas fez de mim um homossexual", disse ele, autor de um longo ensaio sobre a preferência nacional pela bunda, um gosto que se implanta já no século 16. Controverso como todo grande intelectual, Freyre conviveu com militares e artistas, aristocratas e populares. "Gilberto Freyre sempre foi um homem muito aberto", observa Tuna. Patriarcal, criou a família sob suas asas no casarão de Apipucos ao lado da fiel companheira,

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dona Madalena Freyre. Deu também suas puladas de cerca. "Mas com autorização dela, quando viajei sem ela para a África e o Oriente, numa ausência de meses", contemporizou. À homossexualidade, Freyre reservou, aliás, algumas passagens significativas em sua produção intelectual. Depois de apontar a instituição do baito, espécie de maçonaria de tribos indígenas onde homens davam-se uns aos outros, ele escreveu que "entre os ameríndios se praticava a pederastia sem ser por escassez ou privação de mulher". E que os europeus "ao se depararem com a moral sexual indígena e com a deformação dos primeiros anos da colonização, encontram aqui bom espaço para a sodomia e a pederastia". Também não deixou de constatar erotismo entre as brancas e suas mucamas. "Nos banhos em que as iaiás mais lânguidas deixavam orientalmente que as mãos das mucamas não só as despissem e vestissem, despenteassem e penteassem, como lhes esfregassem o corpo, o ensaboassem (...) é que, talvez juntassem, menos inconscientemente do que os prazeres do cafuné, aproximações de luxúria lésbica", escreveu, em Sobrados e mocambos. Vaidoso confesso, em De menino a homem Gilberto também comenta de como se valeu do prestígio internacional de Casa grande & senzala no exterior para debelar as críticas e ataques dentro do Brasil. Uma das acusações foi de que o livro era depravado. Ensaístico, o escritor conclui que "Não há escravidão sem devassidão", lembrando que os portugueses precisaram efetivamente manter-se super-excitados para dar conta do Brasil. Côncavas ou convexas, negras e índias eram fundamentais no projeto colonizador. "O grande problema da colonização portuguesa do Brasil - o de gente - fez que entre nós se atenuassem escrúpulos contra irregularidades de moral ou conduta sexual", diz, lembrando que as famílias de formação católica no Brasil quase sempre tiveram chefes polígamos. "A casa-grande sempre foi um antro de devassidão." Dentro dessa sanha procriadora que incentivou a todos comer, até o tamanho do pênis dos candidatos a marido de uma jovem sinhazinha era critério de aprovação, não por ela, principal beneficiária, mas pelo seu pai, senhor de engenho. "A impressão de que os órgãos sexuais muito desenvolvidos nos homens indicam superior capacidade procriadora regulou também casamentos aristocráticos." G.F. não despreza a contribuição africana, ou indígena, na construção da sexualidade mestiça brasileira. Mas diz que a grande gula do brasileiro por mulher, desde cedo acentuada pelo clima tropical capaz de triplicar a lubricidade, é herança bem portuguesa. E do tempo dos alfonsinhos. "Entre a raça africana, é maior a moderação sexual do que entre os europeus. É uma sexualidade, a dos negros africanos, que para excitar-se precisa de estímulos picantes. Danças afrodisíacas, cultos fálicos... Enquanto que no civilizado o apetite sexual de ordinário se excita sem grandes provocações", diz. O português seria, original, um safado. "O erotismo grosso, plebeu, domina em Portugal todas as classes", diz, acrescendo: "A mesma coisa no Brasil, onde esse erotismo lusitano só fez encontrar ambiente propício nas condições lúbricas de colonização". Renato Russo era, pois, exceção à regra. Sexo verbal faz e muito o nosso estilo. "A maior delícia do brasileiro é conversar safadeza", conclui Gilberto. Nossa história não tem apenas o suor dTe colonizadores. Está molhada de outras secreções. Um grande sensual, aquele Gilberto. \\

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T eatro praça tem nome de presidente americano, já viveu seu período de esplendor e decadência. Encravada no centro de São Paulo, a Praça Roosevelt assumiu o papel de espaço de resistência cultural. Nos tempos áureos, serviu de morada para gente como a apresentadora Marília Gabriela e o escritor Ignácio de Loyola Brandão. Definhou com o controle do tráfico e os efeitos das obras do Minhocão, e aquele pedaço mal-iluminado de passeio público do centro para a zona leste desafiava os mais corajosos a passar por perto. Em 2000, o grupo Os Satyros ousou instalar sua sede na área. Sete anos depois, o cenário é completamente diferente. Sem agredir os habitantes locais - travestis e prostitutas - a companhia, que nasceu em Curitiba, alavancou a mudança da cara daquele espaço paulistano. Ali estão instalados vários teatros, entre eles o Studio 184, o do Ator e dos Parlapatões e as duas casas dos Satyros, muitos bares freqüentados por artistas, jornalistas, estudantes, gente alternativa ou até família demais. Atualmente é também conhecida como Off Off Broadway, Calçada dos Teatros e Praça da Fama e conta com o respaldo da classe artística. Mas além de reverter uma praça decadente em local de convivência artística, a trupe trabalha com uma linha de investigação apoiada na liberdade estética que dá margem a todo tipo de experimentação. Ao completar sete anos naquele espaço, a companhia de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez faz homenagem a seus moradores, a transformação do pedaço e marca mais pontos na consolidação do lugar como um dos points culturais mais badalados da capital paulista. O projeto E se fez a Praça Roosevelt em 7 dias aglutina sete espetáculos, cada um com um dia da semana, conduzidos por artistas convidados, entre eles os dramaturgos Mário Bortolotto (também na direção), Mário Viana, Alberto Guzik, Marici Salomão, João Silvério Trevisan, Sérgio Roveri e Jarbas Capusso Filho. E dos encenadores Alexandre Reinecke, Luiz Valcazaras, Fernanda Dumbra, Antonio Cadengue, Sérgio Ferrara, Marcos Loureiro. O programa finaliza a trilogia iniciada em 2004 com a peça Transex, seguida do sucesso A vida na Praça Roosevelt, de 2005 (que participou do Festival Recife do Teatro Nacional em 2006). E se fez a Praça Roosevelt em 7 dias fica em cartaz até 30 de junho. Mais uma vez, o grupo expõe como o teatro é necessário e sua força de subverter sentidos. Os sete espetáculos estão impregnados da intervenção urbanística, sentimental, política e cênica empreendidas pelo grupo teatral. Numa delas destaca-se o glamour dos anos 60 e aparição poderosa da cantora Elis Regina. Nessa Sexta-feira: A noite do aquário é de revelações. A ação se passa no início dos anos 60, quando mãe e filhos expõem segredos e a matriarca lembra de uma viagem que fez a São Paulo em busca do marido desaparecido e assistiu ao show de uma desconhecida Elis Regina, na Praça Roosevelt. Sérgio Roveri assina o texto e Sérgio Ferrara, a direção. Sobem ao palco os atores Clara Carvalho, Chico Carvalho e Germano Pereira.

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Todas as sete encenações têm ligações reais ou imaginárias com história e a população da praça. Ou com sua fase de recuperação. "Cadê os dourados, as cadeiras vermelhas, as cortinas de veludo?", pergunta incrédula a manicure Sueli, da comédia Segunda-Feira: o Amor do Sim, do dramaturgo Mário Viana, dirigida por Alexandre Reinecke. Sua indagação está em sintonia com o Teatro dos Satyros Um, onde o espetáculo está em cartaz, um espaço com 86 metros quadrados, que comporta até 80 espectadores. Eles ficam mais coladinhos uns aos outros, muito próximos ao ator em cena no monólogo Quinta-feira: Hoje é dia do Amor. Com texto de João Silvério Trevisan e direção do pernambucano Antonio Cadengue, a encenação é o maior sucesso dessa temporada dos Satyros. Talvez atraído pelo belo corpo nu do ator Gustavo Haddad, o público se aglomera em frente do teatro antes da s 18h. Lotação esgotada toda quinta-feira. No santuário que se abre aos olhos sedentos da platéia - com belos painéis de Paulo Sayeg - um homem nu, a maior parte do tempo de joelhos, acorrentado a uma cruz, debate-se com seus fantasmas e dialoga com um master que nunca aparece. Ele é um michê de luxo e vive uma experiência sadomasoquista. O protagonista fala de sua vida, evoca textos bíblicos, manifesta o desejo de tornar um santo da dor. Nessa celebração da Quinta Feira Santa a radicalidade vem do discurso que se espalha pelo corpo do intérprete e atinge o espectador no centro de sua emoção. Deixa estilhaços. Quem pensava que esse amor articulado por Trevisan, Cadengue e Haddad é algo cor de rosa, o trio conduz para um mergulho mais fundo e arma um soco para atingir a platéia, que sai doída da apresentação. Os gritos de dor ecoam pela pequena sala, reverberam na memória de cada um, na inútil tentativa de superar o sofrimento. A iconografia criada a partir do imaginário guei convoca ao palco a imagem emblemática da figura de São Sebastião flechado. Desnudo, o protagonista exige também que o espectador deponha a máscara, mesmo que no íntimo sozinho com seus pensamentos, como dá pra vislumbrar pelas caras circunspectas à saída do teatro. O ritual é duro, com suas referências litúrgicas e a frenética música eletrônica. Como já ressaltou o diretor Antonio Cadengue "tudo na peça se amalgama numa ambigüidade que perpassa a interpretação, a trilha sonora e a cenografia, a partir da temática que mescla sagrado e profano, dor e prazer, amor e morte". Nesse jogo de fantasias e disfarces, crueldades do desejo, de desamparo e das aparentes contradições vêm os entendimentos político da ação da peça que toca em questões profundas de uma sociedade que estigmatiza minorias e as empurra para a clandestinidade de uma identidade plena. \\

A cena da Praça Roosevelt, em São Paulo, completa 7 anos de resistência teatral Ivana Moura

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Cachorros, gatos pingüins e mais uma série de animais viraram os novos oráculos afetivos da indústria editorial Fabiana Moraes

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ertos fenômenos comportamentais têm o poder de nos fazer sentir completamente inadequados no mundo. Verdadeiros intrusos. Bicões, até. Usar aqueles prendedores parecidos com piranhas nos cabelos, por exemplo. Nunca consegui. Também nunca na vida tive a iniciativa de viajar, tirar dezenas de fotos, colocá-las em um álbum e levá-las para meus colegas de trabalho. Ou discutir os 7 tipos de docinhos e 9 de salgados mais interessantes para encomendar para o aniversário de meu filho. Para aumentar ainda mais o meu sentimento de pária social, me deparo com Marley & eu: vida e amor ao lado do pior cão do mundo, escrito por John Grogan. "O livro mais vendido nos Estados Unidos", informa a propaganda acima das dezenas de exemplares. Olhei em volta e vi que estava cercada por uma espécie de arca de Noé literária: Quem mexeu no meu queijo?, livro onde dois ratinhos e dois duendes vivem em um labirinto em busca de um metafórico queijo; Um dia daqueles, com fotos de animais e mensagens para tornar seu dia melhor; Como os pingüins me ensinaram a entender Deus, esse um caso à parte. Todos best-sellers. Todos com o poder de tocar o coração das pessoas e mostrar a elas o caminho da verdade. Deve ser muito cinismo da minha parte não enxergar a beleza de Marley. Os bichinhos estão aí salvando o mundo e eu preocupada com a quantidade de calorias dos empanados da Perdigão. Podemos torcer o nariz para esse lucrativo nicho da auto-ajuda - na qual a "ajuda", aliás, vem na verdade dos bichinhos peludos -, mas o fato é que uma enorme quantidade de pessoas vem buscando paz de espírito em diálogos como: "Você não vai para o labirinto de novo, não é? Por que simplesmente não espera que coloquem o Queijo ali de volta? (...) - Você não entende. Eu também não queria aceitar esse fato, mas agora percebo que O Velho Queijo nunca reaparecerá. É hora de procurar o Novo Queijo". Um dos sites do livro citado (não é preciso repetir o nome, está claro) atesta: tratase de uma metáfora para o que se deseja na vida, seja um bom emprego, um relacionamento amoroso, dinheiro. "É uma leitura rápida, mas suas idéias permanecerão por toda a vida". Sabedoria de longa duração vendida em papel couchê a menos de R$ 30? Eu também quero. O labrador Marley também provoca ondas quentinhas de amor no coração, um piedoso desejo de ser alguém melhor, a necessária clareza para olhar a vida com mais afeto. Marley é a versão em auto-ajuda para O campeão, o filme que fez todo mundo chorar. O cachorro, segundo o próprio dono, era uma peste. Bagunçava a casa, comia

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jóias e invadia propriedades alheias. Mas sua bondade fez brotar o doce que existia no coração de uma família. A Disney, se não comprou ainda esse enredo, está dando o cochilo do milênio. O livro conta com frases como "Meu Deus - ela disse. - Acho que nunca vi algo tão lindinho em toda a minha vida.". Mas quem leu e deu seu depoimento nos sites que vendem a publicação está simplesmente passado. "Emocionante", "imprescindível" e "tocante", são algumas das palavras usadas pelos fãs de Grogan para se referir à obra. A fé que depositamos nos bichinhos significa que deixamos de colocar a mão no fogo pelas amizades humanas, parece ser. Quem precisa de Lair Ribeiro quando se tem uma ninhada de cães labradores, fofíssimos? Não queremos conselhos, e sim afeto.Um afeto puro, sem filtros e senões, um amor que só um cão - ou pingüim, ou gato, ou girafa - poderá nos dar. Se publicações como Um dia daqueles já se tornaram um clássico entre a auto-ajuda bichana, obras como Um pavão na terra dos pingüins e Como os pingüins me ajudaram a entender Deus nos mostram que há sim o bichinho da hora nesse tipo de literatura. Imagino o diálogo: "Gente ,comprei um livro novo de auto-ajuda que é o máximo, mostra como a paciência dos camelos e a fleuma das baleias azuis podem ser adquiridas por nós." "Camelos? Baleias? Ih, isso é tão 99. Você precisa mesmo é entender os pingüins". Um pavão na terra... é uma "fábula contemporânea" que aborda a vida corporativa. O livro "traz novos insights para um assunto importante: a diversidade da força de trabalho". Já Como os pingüins... traz Donald Miller, ao que parece bem famoso entre os adeptos de um empurrãozinho emocional, tem diversos ensaios espirituais e engraçados. Na verdade, os pingüins não importam muito nessa publicação cheia de algumas pequenas safadezas (tem até cenoura sexy por aqui). Imagino que muita gente vá comprar de cara o livro de Miller para só depois entender que não tem queijo nenhum ali por dentro. Não há sugestões e metáforas. Pânico? Que nada: o caro leitor que se deleita com Marley e seus amiguinhos sempre encontra seu conforto, seu cantinho, nos afazeres mais prosaicos da vida. Logo, estará feliz fazendo correlações ente docinhos e salgados. Ou levando o álbum das férias para o trabalho. Usando novas piranhas no cabelo, até. Fascinada, apenas olho me certifico: eu nunca conseguirei entrar nessa festa. Até porque o único bichinho que realmente me emociona é a barata. \\

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Fábio Andrade

Lugar Despedir-se da multidão fundar o corpo não importa se a voz é verdade feita de núcleos imprevisíveis como a chuva. Neste tempo de homens triturados cultivar a luz acender as palavras depurar o veneno em mim.

Pernambuco_ Jun 07 12 Afastando as estrelas Enfrenta a manhã Para que ela te revele Os ossos partidos do amor No rosto que o vento desfez A força oculta das formas permanentes Abandona o que mutilado te pesa Contigo apenas a memória Girassol que se alucina Na solidão da luz.

O rio morto Anos a fio um rio alongando seus fios de cabelo negro os dias peixes sob o sol soluçando o rio do rio se lançando no céu de estanho

Rodin Para Cristhiano Aguiar O bronze atrai na percussão do tempo o olhar de quem sentiu precário conforto do eterno abraço infinito das estátuas.

peixes os dias saltando da longa barba do rio negro se alonga terras e quintais o rio pondo noite adentro os ovos de seu curso e súbito míngua e estanca num charco que não canta.

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