Capibaribe mesmo rio: outra gente - Prefácio

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Progresso e recorrência às margens do Capibaribe Cremilda Medina1

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o acumular memórias, mais se torna oportuna a citação da metáfora do geólogo Stephen Jay Gould que deu o título a um de seus mais importantes livros – Seta do tempo, ciclo do tempo (São Paulo, Companhia das Letras, 1987). A conjugação da linha do progresso e a espiral da recorrência se aplicam ao livro reportagem de Elaine Ortiz e Fabíola Perez Corrêa Capibaribe – Mesmo rio: outra gente. Quando li o texto, ao participar da banca examinadora do trabalho de conclusão do curso de Jornalismo na Universidade Mackenzie, fiquei de imediato impressionada com o lastro histórico e sóciocultural que as autoras recuperaram ao partir da obra de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina, para revisitarem o percurso geográfico e as personagens desse clássico da literatura brasileira. No voo do tempo, lembrei 1966, quando professora da Escola Normal de Camaquã, no Rio Grande do Sul, trouxe o poema para a sala de aula e, a exemplo do Tuca de São Paulo, que ganhara no Festival de Nancy, na França, a premiação máxima com a en1

Jornalista, pesquisadora e professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, é autora de 14 livros e organizou 50 coletâneas de livros reportagem (Série São Paulo de Perfil, ensaios de epistemologia (Série Novo Pacto da Ciência) e de pesquisa multidisciplinar (Série Foro Permanente de Reflexão sobre a América Latina). Publicou em 2012, seu mais recente título que reúne memórias da trajetória profissional e acadêmica, Casas da Viagem, de bem com a vida ou afetos do mundo (edição da autora). Em 2008, saiu pela Summus Editorial, a mais recente obra de reflexão acadêmica: Ciência e Jornalismo, da herança positivista ao diálogo dos afetos.


2 | Elaine Ortiz e Fabíola Perez Corrêa

cenação musicada por Chico Buarque, decidimos apresentar nossa modesta versão teatral em um encontro gaúcho de normalistas em 1967. Vivia-se em atmosfera de repressão da ditadura militar de 1964, mas o imaginário da geração 1960, no Sul, persistia sintonizado na miséria do Nordeste, aspirando à revolução social. O poema de João Cabral nos oferecia um espelho simbólico ímpar para denunciar as coisas de não e lutar pelas coisas de sim. Ao mesmo tempo, trabalhava em Porto Alegre na antiga Revista do Globo, responsável por duas páginas intituladas Literatura Hoje, um espaço que reunia a produção literária contemporânea. Os ficcionistas brasileiros, assim como os poetas, teciam a arte da resistência. A solidariedade com as regiões mais pobres se revelava nas obras literárias da época. Com essas reminiscências, minha prévia impressão sobre o trabalho de Elaine e Fabíola girava em torno da fixação do mural legado por João Cabral. Qual não foi minha surpresa ao me deparar com a visita, ainda que guiada pela trajetória épica do poema, marcada pela originalidade das autoras, ao narrarem a cada movimento da viagem a cena cotidiana, agora alimentada, sim, por esperanças que tornaram mais digna a vida severina. A atual versão das jornalistas confirma o encantamento que desfrutei ao ler o livro reportagem do exame de qualificação profissional. As jovens repórteres apresentavam então virtudes que se semeiam na universidade quanto à responsabilidade social, às técnicas de fidelidade ao Outro e à estética de uma narrativa sensível ao humano ser. Poderiam as autoras assumir o poema e fazer dele um monobloco ideológico, ao passar pelo interior de Pernambuco com o olhar contaminado de pré-julgamentos. Mas não. O que se constata é o compromisso com a realidade contemporânea, captada pela curiosidade de repórter aberto ao diálogo social. Para isso se percebem técnicas fundamentais para um jornalismo de autor: a observação sutil do ambiente e dos protagonistas ao longo do curso do Capibaribe, cidades e vilas, até o Recife e seu encontro com o mar;


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a recuperação de informações sobre os contextos nordestinos e a relação destes com o panorama nacional, as políticas públicas e as iniciativas do pequeno e grande empreendedor da iniciativa privada; as histórias dos viventes locais, seu jeito de ser, seu jeito de falar; diagnósticos e prognósticos da situação social, atravessados, por fim, pelo sentimento positivo das autoras que interrogam em lugar de afirmar – quem são os novos severinos? João Cabral, se aqui estivesse, aprovaria o tom interrogativo de Elaine e Fabíola e principalmente a honestidade das jornalistas ao desenhar com constância as contradições da seta do tempo e do ciclo do tempo. João Cabral gostaria também do estilo que cruza seu poema com a estética da viagem jornalística e dos encontros com velhos novos severinos. E não se trata do formalismo para brilhar como pseudo-literatura, mas a narrativa que nasce da reportagem. Esta convida o leitor à comunhão poética: Foi possível conhecer os novos severinos, que ainda não podem abandonar esta adjetivação, porque continuam carregando as marcas daquela vida, mas que merecem ter reconhecidos seus esforços de caminhar com as possibilidades que lhes foram abertas. E ainda que no rosto os sinais atribuam muito mais idade do que de fato tenham, preferem continuar em suas terras, convivendo com os prazeres próprios de seus cotidianos. Na recorrência do tempo, assim como nos anos 1960, os brasileiros do Sul voltavam sua atenção para o Nordeste, duas jornalistas do século 21 cumpriram o mesmo desejo e saíram de São Paulo, com o poema de Cabral no coração e o radar de fina percepção voltado para a sintonia com outra gente que povoa hoje as margens do Capibaribe. Partiram de ônibus, junto com os migrantes que retornam de São Paulo à terra natal – fenômeno cada vez mais frequente – e buscaram as nascentes do rio. Os habitantes de cidades de Toritama, Santa Cruz do Capibaribe, Jataúba, Poção, Carpina, Lagoa do Itaenga, Salgadinho, Limoeiro, Recife, Camaragibe, São Lourença da Mata, como dizem as autoras, confiaram e dividiram


suas histórias e, principalmente, permitiram que partilhassem seu cotidiano. A cada etapa da viagem, um fragmento de Morte e vida severina enlaça a leitura jornalística do presente que virá a seguir com a leitura atemporal da poética de João Cabral de Melo Neto. A convite de Elaine Ortiz e Fabíola Perez, o leitor de Capibaribe – Mesmo rio: outra gente por certo se sentirá cúmplice da aventura de desbravamento em terras nordestinas, narrada por meio da experiência solidária das autoras deste livro.


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