Continente #27

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Van Gogh

O artista como sofredor exemplar

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Ninguém encarnou como Vincent Van Gogh a imagem do gênio incompreendido. Nascido em 30 de março de 1853 – há 150 anos, portanto, passou a dedicar-se ao desenho e à pintura seriamente só aos 27 anos – depois de ter tentado ser vendedor de obras de arte, professor de meninos, balconista de uma livraria e evangelizador de leigos; dez anos depois se suicidou. Deixou ao todo 800 obras, sendo que suas obras-primas mais conhecidas foram pintadas em ritmo frenético – às vezes duas num só dia – durante os dez últimos anos. Anos pontuados pela miséria e por crises de loucura, numa das quais cortou a própria orelha, enviando o pedaço a uma prostituta. Em toda a sua vida produtiva, como artista, foi sustentado pelo seu irmão mais novo, Theo. E só conseguiu vender um único quadro, por um preço irrisório. Dono de sensibilidade agudíssima, alternava crises de irritação, nas quais parecia estar possuído, com gestos de ternura tão extremados quanto: Continente . março, 03

Auto-retrato com Chapéu de Feltro, 1886. Óleo sobre tela, 41 x 32,5cm. Rijksmuseum Van Gogh, Amsterdã

certa vez gastou seus últimos centavos comprando comida para um cão moribundo. Quando se apaixonava, era de tal forma arrebatado, que assustava as mulheres. Como quando pediu a sua prima viúva, Kee Vos, para convencê-la de seu amor, o tempo que suportasse colocando a mão sobre a chama de um lampião. A rejeição, a miséria, a solidão, doenças físicas provocadas pela fome e pelo contato com prostitutas, a própria sensibilidade exacerbada e as crises de alucinação que começaram a atacá-lo, levaram-no a encerrar a vida com um tiro no peito, aos 37 anos. Tomado de desgosto, seu irmão Theo morreu seis meses depois. De todo este sofrimento ficaram algumas das mais luminosas e belas obras de arte da história da humanidade, deixando admiradores sem fim, como o pintor pernambucano Francisco Brennand, que cedeu trechos inéditos de seus Diários, em que tece comentários sobre o gênio holandês.


CAPA 43 » Francisco Brennand “Num velho terraço no bairro das Graças, entre mangueiras, que deixavam filtrar uma luz muito especial, inúmeras vezes o poeta Tomás Seixas insistia que se algum homem de ciências porventura pudesse ser canonizado, este seria Thomas Edison, aquele que fez da noite um dia interminável. Se não discordava, pelo menos, com o mesmo rigor, admitia que entre os santos só caberia mais um: Vincent Van Gogh, o artista como sofredor exemplar. Propriedade Santos Cosme e Damião – 1991 11 de janeiro Resolveu, sem nenhuma indecisão, reencontrar a comovente e quase angelical linguagem das cartas de Vincent Van Gogh ao seu irmão Theo: “Agora consegui guardar o grande retrato do carteiro, e também sua cabeça que te envio anexo. Tudo realizado numa só sessão. Eis aqui o meu forte: em uma só sessão pintar o bom homem, mesmo que toscamente. Se as forças não me faltassem, meu querido irmão, faria sempre assim, beberia com o primeiro que chegasse e o pintaria; não à aquarela e sim a óleo, durante uma sessão à Daumier” (15 de agosto de 1888). 12 de janeiro – sábado Algumas pessoas, e mesmo pintores, costumam fazer pouco (Gauguin, sobretudo) dos gostos de Van Gogh por certos artistas de talento e origem duvidosos. Ele referia-se especialmente às preferências do grande artista por pintores assim chamados de segunda classe, e às vezes até de terceira e quarta classes. Não se apercebem, esses senhores, inclusive Gauguin, que Van Gogh, com a sua extraordinária visão, poderia “ver o tudo em cada coisa”, ir bem mais longe, bem mais no fundo que a percepção de qualquer um deles. Numa carta datada de Londres, janeiro de 1874, Van Gogh enumera uma lista de colegas, citando nada mais nada menos do que cinqüenta e quatro artistas, todos merecedores de sua fraternal admiração. Pelo menos, entre tantos pintores, quinze deles não lhe eram desconhecidos. O restante, bem... o restante deve ser mais ou menos o que Plotino dizia: “Sábio é aquele que sabe ler tudo em todas as coisas, e tudo é tudo”. Fotografia de Vicente Van Gogh, cerca de 1866 (aos 13 anos). Rijksmuseum Van Gogh, Amsterdã

Sorrow, 1882. Litografia, 38,5 x 29cm. Rijksmuseu m Van Gogh, Amsterdã

15 de janeiro Se fosse lido há alguns anos, não teria dado a menor atenção a esse texto de Van Gogh. Alçaria os ombros e logo um certo sorriso lhe afloraria nos lábios. Mas hoje as coisas tomaram outras direções e já era capaz de descobrir, não o oculto, que não interessava, mas exatamente a verdade que sobrenada na superfície das coisas. Leu e releu três vezes e leu também uma quarta vez. Sim, era capaz de compreender. Este fato lhe alegrou. Diz Van Gogh: “C.M. me pergunta se não me agradaria uma jovem que fosse bela, ao que eu lhe disse que me sentiria muito mais à vontade com uma que fosse feia, ou velha, ou pobre, ou desgraçada, pela única razão de supor que, assim, houvesse adquirido inteligência e uma alma pela experiência da vida e de suas comprovadas desgraças”. Nota: C.M. é uma abreviação do nome de um tio de Vincent, chamado Cornelius-Marinus (carta a Theo – Amsterdam, 9 de janeiro de 1878). 26 de janeiro Decididamente Van Gogh não se considerava um paisagista: “Se faço paisagens, haverá sempre dentro delas vestígios de figuras”. 28 de janeiro No começo dos anos oitenta, ele insistiu em procurar um elo entre a extrema liberdade dos desenhos realizados para as esculturas e a sua maneira habitual de interpretar os corpos femininos, quando pintava diante dos modelos. De fato, jamais conseguira sequer aproximar-se dessas “vertigens” de desregramentos que o levavam sem remorsos ao duplo, ao dualismo, ao ambivalente, ao polivalente. Agora, diante de uma simples litografia de Van Gogh, cujo título Sorrow em letras de grande formato, não deixava nenhuma dúvida quanto às suas reais intenções, verificou que o conjunto lhe ocasionava a mais atenciosa reverência, reconhecendo não poder Continente . março, 03


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Café Terrace à Noite, 1888. Óleo sobre tela, 81 x 65,5cm. Rijksmuseum Kröller-Müller, Otterlo

deixar de pensar na prodigiosa visão expressiva desse desenho um tanto canhestro, na sua excessiva linearidade simplificada (talvez propositada). Acontece que Van Gogh conseguira, na sua dolorosa gravura, uma força tamanha de expressão plástica, que dificilmente em toda arte moderna poder-se-ia encontrar algo semelhante. Embora à primeira vista não passasse de um desenho que beirava o sentimentalismo de algumas ilustrações de caráter duvidoso, próprias para magazines (envolvendo o seu título redundante), mas que, no entanto, ultrapassando aquela consentida voluptuosidade de todo e qualquer nu, chegava aos arcanos da ofendida dignidade humana. Vincent conhecia o origem daquela prostituta vinda das ruas, dando-lhe abrigo e a mão protetora; depois a fizera pousar despida com a sua desgraçada e friorenta aparência. Sem qualquer reserva, o resultado desse insólito trabalho, duramente conseguido, ultrapassava todos aqueles que antes e depois dele tentaram representar as dores do mundo, mesmo Picasso com seu magistral Guernica; mesmo Goya representando os Horrores da Guerra; inclusive até Rembrandt do último período quando os seus trabalhos foram feitos quase sempre “sob o peso de uma dor permanente”. Num dos desenhos preparatórios para essa litografia, há uma observação que Van Gogh aproveitou de Michelet: “Como é que pode existir na terra uma mulher que seja sozinha e abandonada?” 30 de janeiro de 1991 Van Gogh: “Em um certo sentido, estou muito contente de não haver aprendido a pintar.”

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13 e 14 de fevereiro Durante quatro horas ininterruptas pintou uma paisagem, tentando conservar a palheta com cores as mais claras possíveis. No fim da tarde, ao ver a tela, disse com os seus botões: “Nada acrescentou ao meu trabalho, nem tampouco suprimiu...” Ainda não seria neste momento que batizaria a paisagem de Mosaico em Cores Claras. Continua a releitura do seu Van Gogh, e, como sempre, surge do espesso bosque de sua ignorância (jamais ouvira falar nos nomes desses aquarelistas citados tão ardorosamente pelo mestre) uma plêiade de cavalheiros misteriosos: Pinwell, Walker Herkomer e o belga Meunier. Era gratificante quando descobria um nome conhecido: “Havia escutado falar de Libermann...” diz Van Gogh. Apesar da exigüidade da informação, ele não tinha dúvida de que se tratava do pintor alemão Max Libermann, filho de uma influente família berlinense, amigo de Anton Mauve, a quem tanto Van Gogh se refere. Recordava que em meados dos anos quarenta, o seu amigo Ariano Suassuna foi a primeira pessoa a descobri-lo e admirá-lo como pintor. Juntos se extasiaram com a nobre e bela matéria colorida de Libermann. Comovia-o nas cartas de Vincent, sobretudo o seu tom, apaixonada sinceridade, mesmo quando se referia apenas aos materiais de trabalho. Às vezes o espírito do artista era tão forte – embora jamais tenha sido essa sua intenção – que os seus textos se confundiam com aquilo que chamam de boa literatura. “(...) As árvores eram soberbas; quase diria que havia um drama em cada uma delas. E, apesar de tudo, o conjunto da paisagem era sempre mais belo do


CAPA 45 »

que as árvores, atormentadas, consideradas cada uma, intrinsecamente – sobretudo porque o momento era tal -, pequenas e absurdas copas que tomavam um aspecto estranho, molhadas pela chuva e tangidas pelo vento. Esta imagem me fez ver de que maneira também um homem, de aspecto e atitudes absurdas, ou cheio de caprichosas excentricidades, bastasse tão somente que se sentisse tocado por uma dor verdadeira, ou que lhe atingisse uma desgraça, para transformar-se, de pronto, numa figura dramática de um extraordinário caráter”. 6 de março Ele estava refletindo, depois de ter folheado algumas reproduções de Van Gogh, no fascínio irresistível que tinha esse holandês em representar as coisas sólidas. Um seu amigo de São Paulo, professor Flávio Mota, além de ser um dos pioneiros e colaboradores para a fundação do MASP, seria por vocação um pintor nato, não fossem seus compromissos na Escola de Arquitetura de São Paulo. Costumava observar que A Cadeira com Cachimbo, de Van Gogh, além de ser uma contundente obra-prima de pintura, deveria ser utilizada didaticamente como estudo obrigatório para todos aqueles que desejassem aprender a pintar. “Prodigiosamente sólida e bem pintada”, repetia inúmeras vezes, o bom amigo Flávio. Foi a sua vez de lembrar, igualmente, o quanto essa cadeira influenciou os Picassos dos anos da guerra, até a sua ida ao mediterrâneo quando esse mestre, “com mulher nova”, dedicou-se à alegria de viver. Ele não podia esquecer também a admirável Cadeira de Gauguin, homenagem e uma quase declaração de amor do holandês, pelo mestre de Pont-Aven. Outrossim, não conhecia na história da pintura uma mesa de bilhar tão esquisitamente desenhada (apesar da sua rigorosa perspectiva), quanto aquela do Café da Noite de Van Gogh. O Quarto de Vicent em Arles, com a sua magnífica cama amarela, demonstrava a solidez absoluta na madeira provençal. A respeito desse quadro, numa carta ao seu amigo Gauguin, o holandês escreveu: “Divertiu-me muito fazer essa pequena cena interior de tão pouca importância em si: com tons discretos mas pincelados com largueza e pincel cheio: as paredes, lilás pálido; o assoalho, um vermelho diluído e esmaecido; as cadeiras e mesas, em amarelo-cromo; o travesseiro e os lençóis, em pálido verde-limão; a colcha, em vermelho-sangue; criado-mudo, laranja; a bacia, azul; e a janela, verde. O que desejo exprimir é um sentimento de repouso absoluto mediante todas essas cores diferentes sem nenhum branco, exceto pequena nota no espelho emoldurado de preto”. Da mesma forma, sabia admirar a solidez dos retratos bem estruturados, realizados por Van Gogh, mas nenhum deles tão impressionante quanto o de Armand Roulin, com chapéu azul na cabeça e paletó amarelo. Definitivamente, estava ali um elo de ligação entre toda a arte do retrato clássico holandês e o caminho aberto para as mais diferentes variações da pintura moderna.”

Caveira com cigarro, 1886. Óleo sobre tela, 32,5 x 24cm. Rijksmuseum Van Gogh, Amsterdã

A asa da loucura A editora Comunigraf está lançando o livro Vincent Van Gogh: Gênio, Criatividade e Psicopatologia de Sara Riwka B´raz Erlich, com texto em português, inglês e holandês. O objetivo é refletir sobre como a loucura do pós-impressionista afetou sua pintura, buscando entender sua genialidade e criatividade. A associação da loucura com a arte é muito antiga. Não foi só em Van Gogh que essa ligação aconteceu. Baudelaire um dia comentou: “Esta noite a asa da loucura passou por mim”. Porém, muitos outros se tornaram gênios do mundo artístico sem nunca terem chegado perto da linha tênue que separa a consciência da insanidade. O livro, baseado em teorias de diversos pensadores, tenta mostrar essa problemática. A personalidade criadora de Van Gogh existia antes dele ser acometido da loucura. Se assim não fosse, bastava ser louco para ser considerado um artista. Por outro lado, não se pode negar que, de alguma forma, a doença afetou sua arte. A espontaneidade, a irracionalidade e a liberdade do inconsciente podem ter agido como libertadores da criatividade. Vale salientar que o livro não se propõe a classificar ou identificar o tipo de doença psíquica que atingiu o artista. Vincent Van Gogh: Gênio, Criatividade e Psicopatologia Sara Riwka B´raz Erlich Editora Comunigraf 66 páginas Preço: R$ 20,00

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» 46 CAPA Mário Hélio

Destinos em fuga Se Van Gogh escapou da vida pelo suicídio, seu amigo Gauguin passou a vida fugindo da civilização Foto: Reprodução

Não dá para falar dos 150 anos de nascimento de Van Gogh (completados no dia 30 deste mês) sem referir o centenário de morte de Gauguin (a fazer-se em maio próximo). Eles são daqueles pares opostos de que, por ironia ou conveniência, se nutrem os contrários. Van Gogh e Gauguin são mais do que uma repetição de letras. Consoantes são pelo destino atroz quando, buscando um o paraíso ou o purgatório dos trópicos, o outro abismando cada vez mais intencionalmente sem remédio o inferno provável de si mesmo. Se não é possível pensar em Van Gogh sem evocar num ou noutro momento a figura de Gauguin, talvez pudesse ser necessário pensar neste lembrando Rimbaud. Ambos foram europeus que a si mesmos se exilaram, mas, de modo muito curioso, têm trajetórias opostas. Sabe-se que Rimbaud abandonou a poesia no auge, para tornar-se um homem de negócios que sonhava em ter uma estável família, dentro da mais perfeita ordem. Mas paradoxalmente, não se dava na Europa fria. Gauguin era um homem de negócios que tinha uma estável família, em perfeita ordem, quando resolve sair da vida convencional para mergulhar no desconhecido que ombreia com o selvagem (Camile Pissarro definia-o como um “horrível homem de negócios, pelo menos na forma de pensar”). A arte nele foi uma conquista da maturidade. Começa como colecionador, não como artista. E a pintura surge como um passatempo, ainda não era uma forma de vida. Os seus temas iniciais refletem pacatas cenas de família – por onde Cícero Dias terminou ele começou. Até encontrar voragens e abismos do Outro. Se o exílio é uma forma de idílio (e viceversa) ele conheceu bem aquela “calma e voluptuosidade” que se encontram nas viagens a paraísos. Não foi Baudelaire que teve aquele “abismo sempre em movimento”, de Pascal, apesar de referi-lo, foi Rimbaud. Nunca a vida quis lhe significar tranqüilidade. Tanto como poeta genial e intratável adolescente, e comerciante obsessivo e áspero, soube enfrentar a dor, e de certo modo procurá-la. Não fugiu somente dos tiros que levou de Verlaine, fugiu da vida européia. As balas de Verlaine foram somente uma parte insigniGauguin no ano de 1888 Continente . março, 03


CAPA 47 » Imagens: Reprodução

Vincent van Gogh Pinta Girassóis – Paul Gauguin, 1888

Paisagem Taitiana com Montanha – Paul Gauguin, 1893

ficante das tantas inquietações que o fizeram vagabundo e andarilho, uma espécie de peregrino profano, primeiro na Europa, depois na África. Doutra parte, o abismo não estava só em Van Gogh, apesar de sua vida e morte românticas, estava talvez ainda mais plenamente em Gauguin, também um peregrino de tipo muito especial. Quando se aproximou do Impressionismo, como diz Ingo F. Walther, “não volta o olhar indiferente para um mundo vivo, sempre em movimento, mas volta-o para a própria indiferença.”

O dandy nasceu em Gauguin depois do seu fracasso na Bolsa de Valores, onde era corretor, num sentido oposto ao de Rimbaud cuja vocação para o comércio foi precipitada pela sua crise no meio literário parisiense e seu total desencanto com a Europa. Seria interessante um inventário do amor e ódio dos escritores e artistas com os lugares. Talvez com a mesma intensidade com que Baudelaire detestava a Bélgica, Gauguin odiava a Dinamarca, apesar da mulher e dos cinco filhos (ou talvez ainda mais por isso, e uma exposição fracassada). No momento em que temas como novos colonialismos e globalizações estão na ordem do dia, o seu exemplo deve ser lembrado como de um desbravador. Em que se discute novamente a natureza, inclusive nos seus novos lugares-comuns, como a ecologia. Um misto muito especial de fuga e encontro define Gauguin, para além da Europa e do Pacífico Sul. A evocação constante da ironia de glória póstuma de Van Gogh, que vendeu um só quadro em vida miserável, logo se liga à de Gauguin, com uns parcos centavos no bolso para curar o filho da varíola e os cinco francos que ganhava por dia pregando cartazes. Mas é bom não romantizar em excesso a pobreza dos artistas. Todos eles, condenados à morte (como Villon) ou à vida eterna (como a sua ilusão supõe), pagam o preço de viverem noutro tempo e noutro mundo. A Bretanha (1886-1891) foi para Gauguin a primeira das várias estações de fuga. Lá é que pintou o famoso Cristo amarelo. Era o sintetismo suplantando o naturalismo. Como lembra Walther: “O amor de Gauguin pelos trópicos era uma fuga à civilização. Mas era também a procura da felicidade sentida nos dias de infância, que tinha passado na América Latina. Quando tinha um ano de idade, Paul, nascido em Paris, tinha ido com a família para o Peru.” Faltou ao comentarista dizer que essa ida ao Peru tem a ver com a sua avó, Flora Tristán. A ligação está sendo refeita no novo romance de Mario Vargas Llosa, O paraíso na esquina. A vida de Flora foi tão rica e aventurosa quanto a do seu neto. Mas isso já é outra história.

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Personagem precursora Flora Tristán, avó de Gauguin, foi antecipadora do feminismo no século 19

Gravura anônima do século 19, sem identificação da personagem – do livro Flora Tristán – Leandro Konder

“As mulheres podem mais que os homens porque têm mais amor do que eles”. Com esta epígrafe, o professor Leandro Konder começa o excelente livro Flora Tristán – uma vida de mulher, uma paixão socialista. Ela não foi somente a autora da frase, levou-a à prática, especialmente no que diz respeito ao amor coletivo, pois a sua vida amorosa foi muito infeliz. É sobre essa “feminista, quando o termo ainda não existia”, e o seu contexto, que Mario Vargas Llosa compôs o seu mais novo romance, colocando-a como personagem central. No próximo mês completa-se o bicentenário de nascimento de Flore-Célestine-Thérèse-Henriette – Flora Tristán – nascida no dia 7 de abril de 1803, em Paris. O pai dela era peruano (oficial do exército espanhol), e é dele que vem o seu Tristán. Chamava-se Mariano Tristán Moscoso. A casa dos pais de Flora, em Paris, era freqüentada por figuras do porte de um Simon Bolívar. As más-línguas chegaram a suspeitar – mas é lenda – de que ele fosse o pai verdadeiro de Flora. Aquela que definiu o amor como sua “religião”, e confessou que “desde a idade de 14 anos, minha alma ardente o tinha deificado”, casou-se, aos 18 anos, no dia 3 de fevereiro de 1821, com André-François Chazal, um gravador e ilustrador. Mas nunca o amou. O casamento durou três anos. Foi dessa união ao mesmo tempo indiferente e infernal que

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nasceu Aline-Marie, que viria a ser mãe do pintor Paul Gauguin. Semi-analfabeta, Flora foi autodidata. Entre os livros foi que descobriu a sua grande paixão: o socialismo. O dia-a-dia como empregada doméstica de ingleses e outras ocupações que tais e o clima de repressão aos operários no reinado de Louis-Phillipe cristalizaram a sua formação política. Foi graças às idéias de Saint-Simon que ela começou a cultivar o socialismo, impulsionador do seu feminismo. A leitura do livro Uma reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft (1759-1797) ajudou a construir efetivamente o seu feminismo. Uma curiosidade: a autora era mãe de Mary Shelley, autora do famoso Frankenstein. A feminista que apanhava do marido e lutava com dificuldades para manter a família resolveu ir em busca das suas origens, no Peru. Era uma aventura cara, mas certamente não mais dura do que a que vivia todos os dias na Europa: tinha 30 anos nessa época. Foram 133 dias de enjôo, de vômitos. Mas não se seduziu pelo Peru. Ao contrário. Desprezou a sociedade e os poderosos da época e também externou vários preconceitos de européia, nos 21 meses que lá permaneceu. O seu primeiro livro se intitulou Necessidade de dar uma boa acolhida às mulheres estrangeiras, que foi bem recebido por Fourier, teórico do socialismo que Flaubert chamava de “caixeiro delirante”. Mas Flora ficou fascinada por ele. Outro utopista, Owen, também a interessou. Mas não seguiu como discípula de nenhum desses teóricos, apesar da simpatia e da influência inegável que exerceram sobre ela. Ela, que era contra a indissolubilidade do casamento e contra a pena de morte, continuou a ser contrária a ambos quando levou dois tiros do marido, no dia 10 de setembro de 1838. As balas se alojaram perto do seu coração e nunca mais saíram de lá. Mas não morreria disso. O coração não a mataria e sim uma congestão cerebral, no dia 14 de novembro de 1844.

Flora Tristán – Uma vida de mulher, uma paixão socialista – Leandro Konder – Editora Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1994, 125 páginas.


CAPA 49 »

Uma viagem à utopia Vargas Llosa e a atração pela personalidade de Flora Tristán no quadro das utopias que marcaram o século 19

Foto: Guto Costa – ABL / AG

Vargas Llosa: utopistas encaram a história como uma escultura

Politicamente polêmico, o escritor peruano Mario Vargas Llosa ocupa, sem contestação, um lugar no alto do panteão da literatura mundial. Em fins de fevereiro, recebeu mais uma condecoração: o Prêmio Nabokov 2002 do Pen Club de Nova York, a ser entregue no próximo 20 de maio, por sua trajetória literária. Autor de obras consagradas como A casa verde (1965), Conversação na Catedral (1969), Batismo de fogo (1963) e Guerra do fim do mundo (1981), seu último romance – A festa do Bode (2000) – recebeu aclamação mundial. A crítica o colocou ao lado de obras emblemáticas sobre o tema das ditaduras latino-americanas, como Eu, o supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos; O recurso ao método, do cubano Alejo Carpentier; O outono do patriarca, do colombiano García Márquez, e O senhor presidente, do guatemalteco Miguel Angel Astúrias. Vargas Llosa também é autor de ensaios sobre literatura e de peças teatrais, entre as quais El loco de los balcones acaba de estrear em Lima, Peru. Para os críticos, a obra do romancista se caracteriza pela experimentação narrativa, construções complexas e

impecáveis, personagens bem delineados e domínio da linguagem. Por tais qualidades, tem sido recorrentemente apontado como candidato ao Prêmio Nobel. Nos últimos anos, Vargas Llosa distanciou-se do esquerdismo da juventude, adotando uma postura neo-liberal (rótulo que ele rejeita), tendo concorrido à presidência do seu país e sido derrotado por Alberto Fujimori. Respondendo às críticas, costuma declarar que rejeita os totalitarismos à esquerda e à direita. Ao decidir escrever um romance tendo Flora Tristán como principal personagem, afirmou o romancista, em conferência na Espanha, em julho de 2002: “O século 19 não foi apenas o século do romance e dos nacionalismos: foi também o das utopias. A culpa disso é da Grande Revolução de 1789. O cataclismo e as transformações sociais, que acarretou, convenceram tanto a seus partidários quanto a seus adversários, não apenas na França como no mundo inteiro, de que a história podia ser modelada como uma escultura, até alcançar a perfeição de uma obra de arte. Com uma condição: que a mente concebera previamente um plano ou modelo teórico a que logo a ação humana calçaria a realidade como uma mão a uma luva. Rastros desta idéia se podem encontrar bem longe, até na Grécia clássica. No Renascimento, ela se cristalizou em obras tão importantes quanto a Utopia, de sir Thomas Morus, fundadora de um gênero que se prolonga até nossos dias. Porém nunca antes, nem depois, como no século 19, foi tão poderosa, nem seduziu a tanta gente, nem gerou empresas intelectuais tão ousadas, nem inflamou a imaginação e o idealismo (às vezes a loucura) de tantos pensadores, revolucionários ou cidadãos comuns, a convicção de que, tendo as idéias adequadas e pondo a seu serviço a abnegação e a coragem necessárias, se podia trazer o Paraíso à terra e criar uma sociedade sem contradições nem injustiças, em que os homens e mulheres viveriam em paz e em ordem, compartindo os benefícios daqueles três princípios do ideal revolucionário de 89 harmoniosamente integrados: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A esta dinastia de inconformistas, opositores radicais da sociedade em que nasceram e fanaticamente persuadidos de que era possível reformá-la pela raiz para erradicar as injustiças e o sofrimento e instaurar a felicidade humana, pertence Flora Tristán”. Vargas Llosa conclui sua explicação, definindo a personagem como “a temerária, a romântica justiceira que, primeiro em sua vida difícil e golpeada pela adversidade, depois em seus escritos e finalmente na apaixonada militância política dos seus últimos anos de vida, traçaria uma imagem de rebeldia, audácia, idealismo, ingenuidade, truculência e aventura que justifica plenamente o elogio do pai do Surrealismo, André Breton, para quem não houve um destino feminino que tenha deixado, no firmamento do espírito, uma semente tão vasta e luminosa”.

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» 50 CAPA Mario Vargas Llosa

Lançado agora em março, na Espanha, pela Editora Alfaguara, o novo romance do peruano Mario Vargas Llosa – O pa ara aíso na a outra a esquina a – tem como protagonistas Flora Tristán, francesa de origem peruana, percursora do feminismo e socialista, e seu neto, o pintor Paul Gauguin. Ele faz um contraponto entre duas utopias: a política e a artística. O livro não tem previsão de lançamento no Brasil. A seguir, leia em primeira mão um trecho do romance, no qual o pintor Gauguin ocupa o centro da cena.

Foto: Guto Costa – ABL / AG

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na outra esquina

O paraíso

Havia ido a Papeete verificar, como de costume, se havia chegado alguma correspondência de Paris. Eram deslocamentos que procurava evitar, pois a carruagem cobrava nove francos pela ida e nove pela volta e, além disso, havia aquele chacoalhar numa rota infame, sobretudo se estava encharcada. Partiu ao amanhecer, para regressar à tarde, porém o dilúvio cortou o caminho e o coche o deixou em Mataiea depois da meia-noite. A cabana estava às escuras. Era raro. Teha’amana não dormia jamais sem deixar uma pequena lâmpada acesa. Sentiu um aperto no coração: teria ido embora? Aqui, as mulheres se casavam e se descasavam como quem troca de camisa. Pelo menos nisso, o empenho dos missionários e pastores para que os maoris adotassem o modelo da estrita família cristã era inútil. Em assuntos domésticos, os nativos não haviam perdido de todo o espírito de seus ancestrais. Um belo dia, o marido ou a mulher se mandava e ninguém se surpreendia com isso. As famílias se faziam e desfaziam com uma facilidade impensável na Europa. Mas se Teha’amana se fora, tu irias sentir saudade. Dela, sim. Entrou na cabana e, cruzado o umbral, procurou nos bolsos a caixa de fósforos. Acendeu um e à luz da pequena chama amarelo-azulada que flamejava em seus dedos viu aquela imagem que nunca esqueceria e que, nos dias e semanas seguintes, trataria de resgatar, trabalhando nesse estado febril, de transe, em que havia pintado sempre seus melhores quadros. Uma imagem que, passado o tempo, permaneceria em sua memória como um desses momentos privilegiados, visionários, de sua vida no Taiti, quando acreditou tocar, viver, ainda que por uns ins-


Reprodução

CAPA 51

Paul Gauguin: O espírito do morto vigia (Manao tupapau), 1892

tantes, o que tinha vindo buscar nos mares do Sul, aquilo que, na Europa, não encontraria nunca porque tinha sido aniquilado pela civilização. Sobre o colchão, ao rés do solo, nua, de bruços, com as redondas nádegas levantadas e os ombros encurvados, rosto semi-voltado para ele, Teha’amana olhava-o com uma expressão de infinito espanto, os olhos, a boca e o nariz crispados numa careta de terror animal. Suas mãos se encharcaram também de susto. Seu coração latejava, desembestado. Deixou cair o fósforo que queimava as pontas dos dedos. Quando acendeu outro, a guria permanecia na mesma postura, com a mesma expressão, petrificada pelo medo. – Sou eu, sou eu, Koke – tranqüilizou-a, aproximando-se. Não tenhas medo, Teha’amana. Ela desatou a chorar, com soluços histéricos, e, em seu murmúrio incoerente, ele distinguiu, várias vezes, a palavra “tupapau”, “tupapau”. Era a primeira vez que a ouvia, mas já a havia lido. Sua memória recuperou de imediato, enquanto, abraçada contra seu peito, sentada em seus joelhos, Teha’amana se recobrava, que no livro Viagem às ilhas do Grande Oceano (Paris, 1837), escrito por um antigo cônsul francês, Antoine Moerenhout, figurava a palavra que agora Teha’amana repetia de maneira entrecortada, queixando-se por ele tê-la deixado às escuras, sem óleo no candeeiro, sabendo do seu medo do escuro, porque nas trevas apareciam os “tupapaus”. Então era isso, Koke: ao entrar na casa escura e acender o fósforo, Teha’amana te tomou por um fantasma. Assim, pois, existiam esses espíritos dos mortos, malignos, de garras curvas e presas de lobo que habitavam os ocos do mundo, as cavernas, as brenhas, os troncos esburacados e que saíam dos seus esconderijos para assustar os vivos e atormentá-los. Dizia Moerenhout, neste livro que te emprestou o colono Goupil, tão minucioso sobre os desaparecidos deuses e demônios dos maoris, antes que os europeus chegassem até aqui e matassem suas

crenças e costumes. E, por acaso, até falava deles, também, aquele romance de Loti que entusiasmou a Vincent e que, pela primeira vez, pôs em tua cabeça a idéia do Taiti. Não tinham desaparecido totalmente, depois de tudo. Algo desse belo passado pulsava sob a roupagem cristã que missionários e pastores lhes haviam imposto. Não falavam nunca disso e cada vez que Koke tratava de arrancar dos nativos algo sobre suas velhas crenças, do tempo em que eram livres como só podem sê-lo os selvagens, eles o olhavam sem compreender. Riam-se dele, de que estava falando?, como se o que seus ancestrais faziam, adoravam ou temiam houvesse se eclipsado de suas vidas. Não era verdade; pelo menos esse mito ainda estava vivo; demonstrava-o o murmúrio queixoso da garota que tinha em seus braços: “tupapau”, “tupapau”.

Tradução: Homero Fonseca, com colaboração de Marcelo Perez Continente . março, 03



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