ilustração e capitulares: buggy/tipos do acaso
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armorial
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Nos anos 1970, surgia o movimento artístico que uniu elementos eruditos aos da cultura popular nordestina, um ideal imaginado e construído com esmero pelo escritor Ariano Suassuna, e que se propagou em obras fundamentais de diversas expressões artísticas, da literatura ao cinema. Esta série registra a importância da iniciativa e aborda a repercussão que teve ao longo das décadas
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liTEraTUra obra-prima do romanceiro popular nordestino Principal criação do Movimento Armorial, o Romance d’A Pedra do Reino permanece como último projeto de matriz regionalista tExto Cristhiano Aguiar
Antes de escrever
este texto, tive uma breve conversa com Ariano Suassuna. Ao lhe mostrar o meu exemplar d’ A Pedra do Reino, ele brincou: “Sabe como meus alunos da UFPE chamavam esse livro?
‘O tijolão do Reino’. E muita gente me dizia que hoje em dia ninguém lê um livro desse tamanho”. No entanto, o prestígio da principal obra do autor do Auto da Compadecida continua a crescer. O Romance d’A Pedra do Reino (1971), além de ter sido adaptado para o teatro e a televisão, já passou da 10ª edição, feito considerável para um livro que ficou anos
fora de catálogo e que é marcado por trama e estrutura bastante complexas. O interesse por esse romance, na verdade, é um sinal da atenção que, 40 anos depois, o Movimento Armorial continua despertando nas pessoas. Como apontam diversos estudos sobre o tema, o Movimento Armorial começou sua gestação décadas antes do seu lançamento oficial, em 1970, e dialogou com as intensas transformações sociais e culturais que o país atravessou desde a década de 1950: o incremento do processo de industrialização com o governo Juscelino Kubitschek e o chamado “milagre brasileiro” do Golpe Militar de 64, por exemplo. Assim, temos um Brasil cada vez mais aberto ao capital estrangeiro, à indústria cultural, à cultura pop e caminhando para um inchaço urbano sem precedentes, cujas estrias de violência, caos e conflitos sociais tão bem conhecemos hoje. Um país que mudava de cara com muita
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1 A PedrA do reino livro de ariano suassuna foi adaptado para a tv, em 2007, na elogiada minissérie dirigida por luiz Fernando carvalho
que é na literatura que se encontra o “coração” do armorial. Não apenas porque o seu idealizador é um escritor, mas porque foi na prosa e no verso que Ariano Suassuna refletiu as questões fundamentais sobre o movimento. A palavra armorial, por exemplo, aparece pela primeira vez não em 1970, ano de lançamento oficial do movimento, mas, sim, na poesia de Ariano Suassuna, com o poema Canto armorial, escrito em 1950.
LiteRAtURA De coMBAte
E que pressupostos seriam esses? Segundo Carlos Newton Júnior, no livro O pai, o exílio e o reino, o armorial queria criar uma cultura erudita a partir da cultura popular, para combater um suposto processo de vulgarização da cultura nacional em decorrência das transformações que foram citadas antes. O armorial possuía duas linhas de ação: recriar uma arte erudita a partir do
o desejo de constituir uma verdadeira cultura “brasileira” retorna com toda a força no Movimento Armorial velocidade e que vivia sob a sombra do autoritarismo e da censura. A literatura brasileira daquele momento dialogava intensamente com essas transformações, nas obras de José Agrippino de Paula, Antonio Callado, Ignácio Loyola Brandão, Rubem Fonseca, entre outros. Esse contexto de intensas transformações sociais e culturais reacende uma pergunta que se transformou numa obsessão da nossa literatura: “Afinal de contas, o que é o Brasil?” A busca pela real e verdadeira identidade nacional, a constituição de uma verdadeira cultura “brasileira” retornam com toda a força possível no Movimento Armorial. Com tantos conflitos, tanta transformação e tanta Coca-Cola, a verdadeira “alma” do Brasil estaria ameaçada? Essa foi a inquietação que moveu Ariano Suassuna a escrever A Pedra do Reino, que, sem sombra de dúvidas, é a obra que faz a síntese dos pressupostos armoriais. Podemos dizer
romanceiro popular nordestino e aproximar essa criação à heráldica, à cultura dos emblemas, dos estandartes e das alegorias. No caso do romanceiro popular, os escritores deveriam retomar personagens, formas fixas e imagens poéticas da poesia popular, bem como se aproximar de uma certa atmosfera mágica, encantada, épica e barroca, que seriam típicas desse popular. Na proximidade com a heráldica, reside, possivelmente, o grande achado do armorial: os emblemas, os glifos, as alegorias e os esmaltes fazem parte de uma vertente importante da cultura nordestina, seja nos estandartes das procissões e penitências, nos campos de futebol, ou nas estripulias carnavalescas das ladeiras de Olinda, e conferem uma visualidade muito marcante às obras dessa estética. O armorial foi, em nossa literatura, o último projeto de matriz regionalista.
Não porque aderisse a uma concepção neonaturalista de linguagem, mas, sim, porque vinculava a uma região específica, o nordeste sertanejo, o cerne da constituição de uma identidade nacional e de uma cultura “verdadeiramente” brasileira. Outra não é a tese de Sônia Lúcia Ramalho de Farias, professora do Departamento de Letras da UFPE, que publicou o livro O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna, no qual traça paralelos e afinidades entre o movimento, em especial A Pedra do Reino, e as ideias regionalistas de Gilberto Freyre. Aproximar o romance de Suassuna do regionalismo significa inseri-lo numa tradição literária que pode ser traçada a partir do Romantismo brasileiro, passando pela Escola do Recife, pelo Manifesto Regionalista de 1926 e alcançando o seu último momento nos poemas e na prosa armoriais. O projeto literário do armorial também é o nosso último projeto “humanista” e “moderno” por excelência: nas décadas seguintes, a literatura contemporânea seria mais fragmentada e proporia projetos mais fluidos e/ou corrosivos. Foi a última tentativa da criação de um mundo coeso, com certa unidade e que pudesse dar conta de uma série de inquietações simultaneamente. Essa energia de agregação em torno de um projeto de país e de cultura não se repetiu em nossa literatura. Se o primeiro romance do autor, A história do amor de Fernando e Isaura, ainda constitui um exercício, e o seu último romance publicado, o esgotado O rei degolado ao sol da onça caetana, perde-se na vontade de tomar um partido político e cultural, A Pedra do Reino consegue, em vários momentos, um excelente equilíbrio. Quando impera o humor, o mágico, o imagético, a ambiguidade, as visagens e a jurema, o romance faz jus à condição de uma das obras mais importantes da ficção brasileira nas últimas décadas. Há também, nas suas entrelinhas, um senso trágico e uma certa melancolia que lhe acrescentam ótimos sabores (vejam, por exemplo, o capítulo A aventura dos cachorros amaldiçoados). No entanto, quando é preciso explicar em excesso o Brasil, expor e sintetizar os pressupostos do armorial, o romance se desgasta.
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2 MARcUS AccioLy livro Nordestinados, publicado pelo autor em 1971, traz elementos armoriais
3 DeBoRAh BRennAnD poeta esteve entre os autores que se agregaram inicialmente ao movimento
PoetAS e PRoSADoReS
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Segundo Idellete Muzart Fonseca dos Santos, no livro Em demanda da poética popular, uma série de poetas e prosadores se aproximou de alguma maneira do Movimento Armorial. Os nomes de maior destaque foram Ângelo Monteiro, Deborah Brennand, Janice Japiassu, Marcus Accioly, Raimundo Carrero e Maximiano Campos. Eles foram escritores armoriais? Da leitura da obra desses escritores, percebe-se que a adesão ao armorial foi muito mais em relação ao seu contexto de produção do que à profunda incorporação dos seus elementos estéticos. Dessa forma, sugere-se a hipótese de que a literatura
4 iLUMinogRAvURA várias das obras de suassuna são ilustradas por ele mesmo
armorial por excelência continua a ser a prosa, a poesia e a dramaturgia de Ariano Suassuna. Isso não impede que os chamemos de armoriais; contudo, há evidência de que, em diversos casos, a estética armorial teve uma influência secundária na constituição das suas obras. Aquele que seria o livroadesão de Ângelo Monteiro, Armorial caçador de nuvens, apesar da presença de reinos, caçadas, brasões e de formas poéticas populares, sofre muito mais a influência do hermetismo, do Surrealismo, dos problemas propostos pela filosofia (elemento marcante da poética de Monteiro, que já se revela aqui) e, principalmente, de Jorge de Lima. Algo
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5 RAiMUnDo cARReRo romance de estreia do autor, A história de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, aproxima-se do movimento pela imagística
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semelhante ocorre com Marcus Accioly. Seu livro Nordestinados, de 1971, é geralmente associado ao armorial. Se aqui a sua poesia e o Movimento Armorial compartilham o interesse em retomar, no erudito, as formas populares (mas esse interesse não parece suficiente para classificar por si só uma obra de armorial), estão ausentes o mágico, o heráldico e a atmosfera de encantamento que também seriam as marcas dessa literatura. Pelo contrário, faz-se presente, do início ao fim do livro, a influência de João Cabral de Melo Neto, assim como o compromisso de mapear, poeticamente, todos os aspectos da cultura nordestina, das pedras às habitações. Com a obra de Raimundo Carrero, acontece um caminho oposto à de Accioly. Se, neste, a aproximação com o armorial ocorre pelo interesse em construir uma cultura e uma identidade do Nordeste, em Carrero a aproximação se dá na pura imagem. No seu romance de estreia, associado por Ariano ao armorial, A história de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, somos levados a acompanhar uma história de
emblemas, cavalos-fantasmas, visagens. Embora a história se passe em uma fazenda, não há nenhum compromisso em pensar o Sertão, problematizar questões sociológicas e políticas do Nordeste, ou criar uma cultura brasileira. Muito pelo contrário: como aconteceria também com Sombra severa, publicado mais de uma década depois, a história de Bernarda Soledade acontece no mundo rural mais intensamente porque nesse espaço Carrero pode desenvolver alguns dos temas que são recorrentes no seu trabalho: a violência, a questão do mal, a sexualidade vivida em seus extremos, a corrosão da própria identidade, o império sobre o Outro. Longe está, já nesse primeiro livro, o compromisso de pensar o nacional.
conteMPoRAneiDADe
De que maneira o Movimento Armorial ecoa na nossa literatura, hoje? Um nome de destaque é Carlos Newton Júnior, que tem retomado a estética e os pressupostos do movimento em seus ensaios e na sua poesia. Há pouco tempo, o poeta e dramaturgo pernambucano, radicado
na Paraíba, Astier Basílio, escreveu a peça Ariano, que reconta a biografia do criador de Quaderna através de elementos estéticos do armorial. Em seu livro de poemas Searas do sol, uma série de versos possui afinidade com a poética armorial. A partir da década de 1990, no Ceará, o poeta Virgílio Maia também se aproxima do movimento. Em Pernambuco, dos anos 1980 para cá, vê-se pouca presença da literatura armorial, principalmente no caso da poesia. Nomes surgidos no contexto da poesia independente (também chamada de marginal), como Cida Pedrosa, Luiz Carlos Monteiro e Miró, não têm especial proximidade com o movimento. Da mesma forma, jovens escritores surgidos a partir do final dos anos 1990 e início do 2000, publicados nas duas antologias Invenção Recife, ou nas revistas literárias Crispim, Vacatussa, Entretanto, Interpoética e nos títulos da editora independente Livrinho de Papel Finíssimo, não dão continuidade à estética. Isso também parece ser verdade para grupos como Nós Pós & Freeporto. É digno de nota, contudo, que no romance O grau Graumann (2002), de Fernando Monteiro, e em Galileia (2008), de Ronaldo Correia de Brito, existam algumas críticas ao armorial. No caso do primeiro livro, o discurso de Ariano Suassuna é parodiado; já no romance de Ronaldo, há uma evidente crítica às matrizes regionalistas com as quais o movimento possui afinidades. E o que as novas gerações de escritores podem aprender com o armorial? Se a constituição do Brasil e de uma cultura nacional já não são preocupações das gerações recentes de criadores, nem dos teóricos atuais, outros aspectos do movimento, como o diálogo com o popular, o exercício da imaginação, das visagens e da sedução dos olhos, a valorização das tradições literárias e o sempre bemvindo humor, podem se tornar um caminho fecundo de inspiração. São os principais motivos, aliás, para que continuemos a ler o “tijolão”, vulgo de A Pedra do Reino, e que confirmam a relevância da literatura armorial.
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con especial ti nen te priscila buhr/divulgação
continente Todos beberam no romanceiro popular? Incluindo a poesia de Deborah Brennand? ARiAno SUASSUnA Não, Deborah pertenceu ao Movimento Armorial, mas a semelhança é mais através da imagística, que é muito rica e muito forte. A poesia dela é mais aristocrática e de forma mais livre, enquanto que eu, Janice, Accioly, no Nordestinados, e Ângelo Monteiro, éramos mais ligados às formas da poesia popular.
Entrevista
ariano sUassUna “o Auto dA CompAdeCidA Era Uma bandEira do armorial” continente Como foi a sua relação com Osman Lins? Houve influência recíproca, chegaram a ler originais um do outro? ARiAno SUASSUnA O meu relacionamento com Osman se deu no tempo anterior à Avalovara. Quando ele morava aqui, eu li os originais de O visitante. Em 1960 ou 1961, fundou-se na UFPE o primeiro curso de teatro e fui professor nele. Eu dava aula de Teoria do Teatro. Tinha dois departamentos nesse curso: um de Formação de Ator e outro de Dramaturgia. E Osman se matriculou e foi meu aluno no curso de Teoria do Teatro e no curso de Dramaturgia. Como meu aluno, acho que era mesmo uma exigência regimental, ele escreveu Lisbela e o prisioneiro como trabalho de conclusão. Tanto que você nota até uma certa influência, uma certa ligação com o tipo de teatro que eu fazia. continente E com relação a Alberto da Cunha Melo? ARiAno SUASSUnA Relação pessoal muito boa! Mas, em relação à estética, eu acho que Alberto era mais da linha
de João Cabral do que da minha. E fui amigo dos dois. Mas a minha poesia é bastante diferente da deles. A poesia de Cabral era muito diversa e não houve influência nenhuma do Movimento Armorial. Agora eu disse para ele uma coisa de que ele gostou muito, uma revelação da minha infância. Quando eu era menino, se você encontrava um morto, então tinha obrigação religiosa de promover o transporte do pessoal para um local sagrado. As pessoas que faziam o transporte do corpo ficavam gritando: “Chega, irmão das almas,/ Não fui eu que matei, não”. Quando contei isso para João, ele ficou doido e se você ler Morte e vida severina tem essa frase. Se ler o meu Uma mulher vestida de sol, tem lá igualzinho. continente O que os poetas participantes do Movimento Armorial possuem em comum? Eles parecem ser muito diferentes entre si... ARiAno SUASSUnA Se você ler com atenção, não são tão diferentes. Se ler a poesia de Janice Japiassu nessa época, ler O armorial caçador de nuvens, de Ângelo Monteiro, pelo próprio título já faz essa relação, e se ler Nordestinados... eu escrevi um pequeno ensaio e nele chamo a atenção para um poema no qual Janice segue um processo enumerativo. Accioly faz um muito parecido, enquanto Ângelo Monteiro tem poemas em forma de sextilha, que é uma forma usada pelos cantadores e pelos folhetos de cordel, e isso é um traço que coloca todos os três em harmonia com o Movimento Armorial.
continente Como foi a aproximação de Raimundo Carrero no Armorial? ARiAno SUASSUnA Ele começou a frequentar minha casa muito cedo. Era muito novo. Levou-me uma novela que tinha escrito, que me impressionou muito pela linguagem; eu não gostei muito da narrativa, mas vi que ele poderia ser um escritor. Havia essa diferença de idade, então passou a frequentar minha casa. Ele dizia, brincando, que chegava lá de nove da manhã e saía de nove da noite! Quando o Movimento Armorial estava em plena atuação, Carrero publicou Bernarda Soledade, que tem uma ligação muito forte com o movimento. No armorial, fazíamos muito isso: Maximiano Campos escreveu um romance chamado Sem lei, nem rei, e Capiba compôs uma música com o mesmo título para homenagear o romance. E eu escrevi um soneto a partir de Capiba e Maximiano. Então, na época do movimento, eu peguei um conto de Carrero, um conto muito forte e muito bonito, e fiz uma versificação dele. Hoje, seu romance vai por outro caminho, é mais urbano, experimental. continente Como foi a recepção do armorial pelos críticos? ARiAno SUASSUnA A recepção foi boa. Do ponto de vista da relação da obra com a crítica, a arte armorial precedeu o Movimento Armorial. Então, o Auto da Compadecida pegou uma fortuna crítica ótima, logo que foi lançado no Rio e em São Paulo. O Auto da Compadecida era uma bandeira do armorial. Aqui em Pernambuco houve mais oposição em relação à Pedra do Reino e ao Movimento Armorial. Normalmente, para ter a aprovação aqui é preciso ter sucesso em outros estados.
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mÚsiCa ritmos de um rico simbolismo instrumental
roberta guimarães
Repertório concebido para a formação da Orquestra e do Quinteto Armorial delineou toda a estética sonora do movimento tExto Carlos Eduardo Amaral
o Movimento
Armorial pode não ser mais organizado e ativo como nos anos 1970, quando surgiu, como uma celebrada proposta de releitura das artes populares rurais nordestinas pelas artes eruditas, mas perdurou, pelo menos na música, como uma influente corrente estética em Pernambuco até a eclosão do Manguebeat nos anos 1990. E mesmo quando esse ambiente musical efervescia e dava novo rumo à música popular, grupos como Comadre Fulozinha e Mestre Ambrósio desenvolviam seus estilos inspirados pelo legado iniciado por dois antológicos grupos eruditos: a Orquestra Armorial e o Quinteto Armorial. Ambos, nascidos pelo beneplácito de Ariano Suassuna, serviram de parâmetro daquilo que conhecemos como música armorial. No entanto, as composições sob essa estética, à primeira vista, nada mais seriam do que uma contribuição anacrônica, porque vinda de músicos de orientação nacionalista, quando essa vertente havia perdido força na década de 1960, e compositores como Camargo Guarnieri (1907-1993) e Francisco Mignone (1897-1986) já haviam “universalizado” suas linguagens. A chave para a compreensão do diferencial da música armorial encontra-se no texto de apresentação de um dos discos da Orquestra Armorial, que expõe o simbolismo norteador da sua formação instrumental, aplicado por extensão e a posteriori ao Quinteto Armorial. Tudo está explicado em letras miúdas, embora até hoje pouco percebido, na contracapa
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6 AntÔnio noBRegA ex-integrante do quinteto armorial que se consagrou em carreira solo
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con especial ti nen te álbum de Família
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de Chamada (1975), pelo maestro e violinista Cussy de Almeida. Os duelos de rabequeiros, reproduzidos na antiga casa de Ariano Suassuna, em Casa Forte, por Cussy ao violino e Jarbas Maciel à viola (molde que pode ser observado mais notadamente no primeiro movimento da suíte Sem lei nem rei, de Capiba) deram origem à ideia de expandir os desafios, cavalos-marinhos e xaxados para um conjunto maior e fomentá-lo com repertório original. Para tanto, contrabaixos e violoncelos teriam de se somar a violinos e violas por imperativos de harmonia e timbre. Como a Orquestra Armorial haveria de executar peças inspiradas em outras manifestações, a exemplo das bandas de pífanos e repentes, ela incorporou um duo de flautas transversais (em equivalência às flautas de taboca), um cravo (pelo parentesco sonoro com a viola caipira, embora essa fosse eventualmente requisitada) e percussão básica: triângulo, zabumba, pratos e caixa (um mínimo múltiplo comum da percussão de trio pé-de-serra com a de terno de pífanos). As flautas de taboca
tanto a orquestra quanto o Quinteto fundamentam aquilo que ficou conhecido como música armorial e a rabeca foram rejeitadas após algum tempo em virtude da instabilidade de afinação ante os instrumentos eruditos. Fundada a orquestra em 1970, tomou corpo em seguida o Quinteto Armorial, que decidiu reaplicar esse princípio simbólico em um conjunto de câmara aos moldes de um que existiu em 1969 e do qual faziam parte Cussy e Jarbas Maciel. Curiosamente, o Quinteto Armorial, que reintegrou os instrumentos populares sem espaço na orquestra, tomou como ponto de partida a música barroca e renascentista, para aos poucos gerar peças baseadas na música folclórica. Do grupo faziam parte: violino (ora substituído pela rabeca), violão (para dar base harmônica), viola caipira (não mais
trocada pelo cravo), flauta ou pífano, e o inédito marimbau, na percussão.
evoLUÇÃo
A adoção, por parte de compositores eruditos, de ritmos folclóricos e escalas modais (de intervalos característicos entre as notas) presentes na música rural nordestina era recorrente nos anos 1930-1950, mas César Guerra Peixe (1914-1993) ressaltou em maior escala a aproximação de timbres entre instrumentos populares e eruditos – vide Inúbia do cabocolinho, para flauta e piano, e De viola e de rabeca (depois reescrita por Clóvis Pereira e rebatizada de Mourão), para violão e violino. Não por acaso, Guerra Peixe foi professor de Capiba, Clóvis Pereira e Jarbas Maciel (e também de Sivuca), por volta de 1950. Se o Movimento Armorial construiu todo um imaginário com base nas artes populares rurais nordestinas e enfatizou as raízes ibéricas dessas artes, com o tempo, foi preciso que algumas de suas premissas se revisassem ou evoluíssem, de modo que a natureza regionalista do movimento não o associasse somente às fontes artísticas
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FuNdação quiNteto violado
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QUinteto ARMoRiAL
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oRQUeStRA ARMoRiAL
ariano suassuna, à frente do grupo que tomou como ponto de partida a música barroca e renascentista o quinteto armorial abriu caminho para grupos como o quinteto violado
Na contracapa do disco Chamada, de 1975, há um texto que explica a música
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da região Nordeste – por mais que essas ainda sejam as fontes seminais das obras armoriais. Na música armorial, essas premissas de fato foram depuradas. Primeiro, um dualismo aparente logo se converteu em um frutífero caminho de mão dupla. Não apenas as matrizes da música folclórica foram adotadas pela música erudita, no que trabalhava a Orquestra Armorial (e depois o Quinteto Itacoatiara e o Grupo Orange), como também o inverso ocorreu: os instrumentos e formas da música erudita puderam ser incorporados pela popular, tendo o Quinteto Armorial, mesmo sendo um grupo formado por músicos eruditos, aberto caminho para o Quinteto Violado, a Orquestra Popular do Recife, o Quarteto Romançal e a Banda de Pau e Corda. Segundo, a condição de movimento artístico oficial do Estado de Pernambuco expirou e alguns conjuntos ligados aos projetos de divulgação da música armorial cessaram as atividades, mas a estética musical armorial já estava consolidada. Paralelamente, o não estímulo aos artistas folclóricos, posto que somente artistas de formação
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musical acadêmica se projetaram durante a ascensão do armorial, também foi superado e, hoje, pode-se ver rabequeiros como Seu Luiz Paixão dividir o palco com violinistas e afins. O regionalismo centrado no Nordeste igualmente se expandiu e o ideário armorial influenciou músicos de outras regiões, como o maestro Leandro Carvalho, que criou a Orquestra do Estado de Mato Grosso, o violinista José Eduardo Gramani, pesquisador de repertório e luteria de rabeca no Paraná e em São Paulo, e o violeiro Roberto Correa, em Minas Gerais. Da mesma forma, o frevo, inicialmente preterido pela Orquestra Armorial e pelo Quinteto Armorial, por se tratar de um gênero popular urbano e não modal, passou a ser valorizado. Desfez-se, sobretudo, o desequilíbrio entre as matrizes musicais negras, as ibéricas e as indígenas: mal se encontravam nas “obras clássicas” da música armorial referências a manifestações do porte do maracatu nação, da congada e do banzo. Cussy de Almeida, pessoalmente, reviu essa lacuna
ao incluir esses três gêneros em sua Missa do Descobrimento (2001). Assim, a música armorial poderia fazer, com propriedade, apologia à mestiçagem cultural – mesmo porque a cultura ibérica, ancestral direta da cultura sertaneja nordestina, era exaltada por Ariano Suassuna pela sua hibridização judaico-árabecristã, refletida na música modal. Já a premissa mais polêmica da música armorial, a rejeição à música popular massiva norte-americana “em defesa da autêntica música brasileira” (misto de proscrição à la Adorno e elogio marioandradiano), é a que encontra mais respaldo no senso comum – basta lembrarmos as críticas à atual música sertaneja, que se converteu num country sem nenhuma identificação com a cultura caipira –, ainda que o Manguebeat tenha achado uma inteligente solução para esse falso dilema em Pernambuco. Mas o encanto que a música armorial desperta transcende essas discussões estéticas, já que reside em ritmos e modos revestidos sob um rico simbolismo instrumental.
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arTEs CÊniCas Um modo brasileiro de representar
Desejo de criar peças que usassem a música, a dança e as roupagens imaginosas dos espetáculos populares nordestinos moveu o teatro armorial tExto Carlos Newton Júnior
Quando lançou
oficialmente o Movimento Armorial, em 1970, Ariano Suassuna já era um dramaturgo consagrado, reconhecido pela crítica e pelo público, tanto no Brasil quanto no Exterior. Desde a estreia no Rio de Janeiro, em 1957, a sua peça mais famosa, o Auto da Compadecida, corria o mundo, traduzida, montada e editada em diversos países; outras comédias de sua autoria, a
exemplo de O casamento suspeitoso, O santo e a porca, A pena e a lei e Farsa da boa preguiça, escritas entre 1957 e 1960 e montadas pelas melhores companhias do país, já haviam sido consideradas, pela crítica especializada, obrasprimas da dramaturgia nacional, juízo que a história do teatro, nos anos seguintes, só fez ratificar; livros, ensaios e artigos acadêmicos sobre a sua dramaturgia já haviam sido publicados, e não faltavam propostas para a realização de adaptações de suas obras para a televisão, sempre
recusadas pelo autor até o início da década de 1990. Assim, quando começou a expor, sistematicamente, sobretudo em artigos de jornal, os princípios estéticos que norteavam o seu movimento, ainda no início da década de 1970, tais princípios, no que importa ao teatro, não eram outros senão aqueles que já haviam confirmado a sua própria dramaturgia e vinham sendo debuxados por Suassuna desde a segunda metade da década de 1940, sobretudo durante a participação do autor em dois importantes movimentos teatrais surgidos no Recife: o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) – que foi, na verdade, muito mais do que um movimento teatral – e o Teatro Popular do Nordeste (TPN). A rigor, portanto, o teatro armorial antecede o movimento que lhe dá nome, e deve vincular-se, ainda, ao trabalho de Hermilo Borba Filho, escritor sob cuja liderança formou-se o TEP, em 1946, e que foi, juntamente com Suassuna, fundador do TPN, em 1960. Em um depoimento escrito em 1964, Suassuna ressaltava a importância fundamental de Hermilo, sobretudo através do trabalho desenvolvido à frente do TEP, na gestão de ideais que seriam, em um futuro próximo, aprofundados e concretizados pelo Movimento Armorial: “No que se refere à nossa geração, não há ninguém
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10 Auto dA ComPAdeCidA a partir de sua estreia no rio, em 1957, a peça de suassuna foi traduzida para vários idiomas 11 FigURino desenho de romero de andrade lima para peça As conchambranças de Quaderna
que se possa comparar a Hermilo Borba Filho como abridor de veredas e apontador de caminhos. De fato, foi com sua lição, mais do que com a de qualquer outro, que todos nós nos encontramos, quando, aí por 1946, procurávamos uma poesia, uma pintura, um romance, uma música e, sobretudo, um teatro, que, ligando-se à tradição do romanceiro popular nordestino, não nos deixassem presos aos limites, para nós por demais estreitos, do regionalismo”. Foi com enorme estranhamento, portanto, que li, certa vez, um artigo de Hermilo, datado de 1975, em que fazia quase uma cobrança a Suassuna por não ter conseguido “injetar no teatro nordestino de agora a seiva do armorial”. Depois, refletindo melhor, percebi que a intenção de Hermilo, com o artigo, era tão somente incitar Suassuna a retornar ao teatro, talvez inconformado com o fato de o amigo ter abandonado a literatura dramática, após a Farsa da boa preguiça (1960), para dedicar-se exclusivamente ao romance. Infelizmente, o destino não concedeu a Hermilo tempo de vida suficiente para ver Suassuna escrever uma nova peça, algo que só ocorreria em 1987, com As conchambranças de Quaderna, cuja primeira montagem, no Recife, contou com cenários e figurinos assinados pelo artista plástico armorial Romero de Andrade Lima.
maior e antigo – a secular disputa entre os limites criadores dos autores e dos diretores teatrais –, é preciso reconhecer que Suassuna é um escritor com amplo domínio dos recursos expressivos do teatro, e que possui, além disso, considerável Segundo Suassuna, os princípios do experiência no campo da direção. teatro armorial expressam “o desejo Suas peças não foram escritas para de um espetáculo total brasileiro, se moldarem a devaneios teatrais no qual se usassem as máscaras, o estranhos ao seu universo criador canto, a música, a dança, as roupagens e inteiramente alheios às suas imaginosas dos espetáculos populares preocupações de natureza estética nordestinos”; o desejo de um teatro e também moral. A dramaturgia que, partindo do nosso romanceiro armorial, mais do que qualquer outra, popular (universo de poemas e canções requer ensaiadores que pensem de que inclui desde a literatura de cordel modo semelhante a Roger Blin, ator até a de tradição oral decorada), bem e diretor de vanguarda francês, que como dos espetáculos populares a afirmou certa vez: “A atitude do esse mesmo romanceiro relacionados, diretor em relação ao autor deve ser, procurasse “um modo brasileiro de se na minha opinião, de humildade, vestir, de representar e atuar no palco”. mas de uma humildade ativa”. Trata-se, como se vê, de um teatro É preciso ressaltar que Suassuna que se impõe como verdadeira arte de estabeleceu princípios, isto é, postulados de ordem geral, e não uma receita síntese, cujos espetáculos resultassem para se fazer teatro; a receita deve ser não apenas da junção de elementos a de cada diretor, que poderá, a partir díspares, mas de uma verdadeira desses princípios, estabelecer o seu fusão, somente possível mediante o ritmo, as suas marcações, a sua visão respeito absoluto a seus postulados de conjunto particular e inconfundível, estéticos, ou, melhor dizendo, à como ocorre, aliás, na admirável unidade da poética armorial. O teatro compreendido como um espetáculo total, montagem de As conchambranças de Quaderna, encenada no Rio, sob a em que cenários, figurinos, música direção de Inez Viana, e que deverá e tudo mais que o compusessem vir ao Recife no mês de novembro, no estivessem em profunda sintonia com âmbito do Festival Recife do Teatro Nacional. um texto que evita o regionalismo Indiscutivelmente, os princípios do de matiz naturalista para se filiar Movimento Armorial influenciaram ao espírito mágico e poético dos e continuam influenciando o que de espetáculos populares nordestinos. O não entendimento dessas melhor tem sido feito, até hoje, em considerações básicas tem gerado, prol de uma dramaturgia nordestina, ainda hoje, por mais incrível que possa mesmo que muitos dramaturgos parecer, um enorme mal-estar entre não tenham uma clara consciência certos diretores que teimam em não disso. Penso, por exemplo, nos aceitar a vinculação do espetáculo textos de Ronaldo Correia de Brito, teatral à unidade de uma poética Adriano Marcena, Altimar Pimentel pré-estabelecida pelo autor da peça, (recentemente encantado), Lourdes acusando o dramaturgo Ariano Suassuna Ramalho ou Oswald Barroso, que de dificultar ou até mesmo boicotar o escrevem para teatro em Pernambuco, trabalho dos diretores. Ariano, assim, na Paraíba e no Ceará. E se tal passa a ser considerado intransigente e afirmação pode parecer preconceito tolhedor da liberdade de criação alheia, de minha parte, concluo essas breves sobretudo ao proibir, sistematicamente, considerações lembrando aqui o as representações de suas peças, quando que disse certa vez o genial Ortega y deturpavam o espírito e a linha do Gasset: “O profano se coloca diante de espetáculo por ele imaginados. uma obra de arte sem preconceitos, Sem querer aprofundar uma mas esta também é a postura de discussão que nada mais é do que um orangotango. Sem preconceitos reflexo localizado de um problema não se podem formar juízos”.
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DANÇA Movimentos corporais a partir dos brincantes
Premissas que motivaram a criação do Balé Popular do Recife reverberam nas coreografias de expoentes como o Grupo Grial e o multiartista Antônio Carlos Nóbrega TEXTO Liana Gesteira
Na dança, o
Hoje, o armorial conta com dois representantes sólidos no cenário nacional: o Grupo Grial e o artista Antônio Carlos Nóbrega. Mais conhecido por sua atuação em música, Nóbrega tem reconhecida contribuição para o corpo da dança, a partir dos espetáculos Figural (1990) e Passo (2008). Além disso, tem se dedicado a disseminar as danças populares, a partir da série de documentários intitulada Danças brasileiras, veiculada pela TV Brasil, e das aulas ministradas no seu espaço, o Instituto Brincante, em São Paulo. A presença da dança no armorial ocorre desde os primórdios de sua fundação. Em 1975, quando estava à frente da Secretaria de Educação e Cultura do Recife, Ariano Suassuna fez
DIVULGAÇÃO
IMAGENS: REPRODUÇÃO
Movimento Armorial também tem sua participação significativa na ampliação do olhar da sociedade para as práticas corporais dos brincantes e dos artistas populares. Historicamente, Ariano Suassuna sempre buscou estimular as iniciativas de dança que utilizassem símbolos das manifestações populares para a construção de uma arte erudita brasileira. Fazse necessário refletir sobre quais questões a perspectiva armorial da cultura popular trouxe para o corpo da dança, e como os criadores da área articulam essas informações.
sua primeira investida na criação de uma vertente de dança para o movimento, ao fundar o Balé Armorial do Nordeste. Tal iniciativa representou um marco na profissionalização da cena de dança recifense, pois esse foi o primeiro grupo financiado por um órgão público, que pagava salários mensais aos integrantes. O Balé Armorial do Nordeste teve seu apogeu na montagem Iniciação armorial aos mistérios do Boi de Afogados, que cumpriu temporada em junho de 1976, no Teatro de Santa Isabel. Nele, deu-se a inserção de bailarinos populares num espaço ocupado predominante pela “arte erudita”, ao levar à cena os brincantes do Boi Misterioso de Afogados, do Mestre Capitão Antônio Pereira. Em 1977, Ariano investiu na criação do Balé Popular do Recife, que durante três anos também foi subsidiado pela Secretaria para pesquisar as danças populares e realizar espetáculos. Posteriormente, o Balé Popular desvinculou-se do Movimento Armorial, e iniciou trajetória autônoma, criando uma metodologia própria de catalogação das danças brasileiras, o método Brasílica. O grupo é responsável por disseminá-lo pelas escolas do Recife. A experiência profissional desses dois grupos, juntamente com outros fatores, contribuiu para que a trajetória de dança em Pernambuco tivesse a
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cultura popular como uma de suas principais fontes de criação. Hoje, a dança produzida no Estado é reconhecida nacionalmente, também, por essa vertente. Assim, o Movimento Armorial pode ser considerado como uma importante influência para a constituição profissional da dança local, bem como da difusão das danças populares como matéria investigativa para criação. A reflexão atual que se faz dessa contribuição, entretanto, é sobre a visão épica da cultura popular proposta pela estética armorial, reconhecida apenas pelas referências ibéricas e mouras na sua constituição. Essa perspectiva insinua uma cultura de raiz única, original, estanque, negando o processo dinâmico de qualquer cultura, ao se relacionar com outras influências ao longo do tempo. No discurso de Ariano Suassuna, fica evidente a negação da inclusão de elementos culturais de outras nações no corpo da arte brasileira. .
ReeLABoRAÇÃo
Um olhar mais atento sobre a produção dos atuais representantes da dança armorial aponta para um corpo que reelabora o discurso da cultura popular. Tanto Maria Paula Costa Rêgo, diretora do Grupo Grial, como Antônio Carlos Nóbrega, trazem em suas práticas recentes um olhar mais dinâmico sobre o
fazer do artista popular. Essa perspectiva, provavelmente, é decorrente do contato frequente desses criadores com as manifestações e seus ambientes. Na criação do espetáculo Iniciação aos mistérios do Boi de Afogados, em 1976, o elenco do Balé Armorial do Nordeste, formado por bailarinos clássicos e estudantes de Educação Física, tiveram aulas de caboclinho, pastoril e bumba meu boi. Mas, para isso, os mestres da cultura popular se deslocaram para as salas de ensaio do grupo, sem que o elenco tivesse contato com o ambiente das manifestações que aprenderam. Esse caminho de criação influenciou a cultura popular para que entrasse em cena por seus símbolos e não tanto por sua poética. As criações de Maria Paula e de Antônio Nóbrega incidem em um contato maior com os brincantes populares em suas comunidades, em seus ambientes de manifestações. Dessa forma, apreendem as práticas corporais desses artistas de modo mais coerente com suas poéticas e absorvem também todas as mudanças que esses folguedos vêm realizando. Bem como influenciam para que essas mudanças aconteçam, como é o caso da inserção da presença feminina no ambiente do maracatu de baque solto, decorrente do contato direto de Maria Paula com o Maracatu Leão de Ouro do Condado.
12 gRiAL criações da companhia refletem a pesquisa com os brincantes populares em suas comunidades 13 BALé ARMoRiAL Do noRDeSte grupo foi criado, em 1975, por ariano suassuna, então secretário de educação e cultura do recife 14 cARtAz o balé armorial do Nordeste teve apogeu com Iniciação armorial aos mistérios do Boi de Afogados, de 1976
Em sua tese de doutorado, a professora Roberta Ramos, do curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco, aprofunda a discussão sobre a relação da dança com a estética armorial. Na conclusão, ela traz uma reflexão interessante para as comemorações de quatro décadas do Armorial: “Um movimento estético só pode perdurar por tanto tempo se, assim como o corpo, for pensado em sua condição viva, na qual é impensável concebê-lo sem movimento, ou seja, sem deslocamentos, mudanças ou pontos de instabilidade”. Ao que parece, o corpo da dança tem contribuído para que o Movimento Armorial chegue aos 40 anos com um novo fôlego. O grupo Grial e Antônio Carlos Nóbrega conseguiram reelaborar, em suas práticas, o discurso estético desse movimento e, assim, permitem que novos caminhos sejam trilhados pelo corpo armorial.
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visUais Um território entre o delineado e o indefinido
Poucos artistas podem ser apontados hoje como evidentemente armoriais, embora o legado do movimento esteja presente na produção pernambucana atual
15 DAntAS SUASSUnA detalhe de Azougue, tela de técnica mista 16 RoMeRo De
AnDRADe LiMA
obra do artista aponta influências da arte indígena, ibérica e africana
17 SAMico imagética do gravurista funde elementos da cultura popular nordestina
tExto Diana Moura Barbosa
As gravuras
bem-talhadas de Samico, as telas que misturam uma profusão de tons terrosos de Dantas Suassuna, o universo mágico percorrido por Romero de Andrade Lima. O Movimento Armorial é um fio delicado a unir artistas plásticos de tendências tão diferentes entre si quanto singulares em si mesmos. Quem quiser se arriscar, procure uma só imagem capaz de sintetizar o armorial dentro das artes plásticas e tente explicar por que um deles seria mais representativo que o outro. Talvez o artista armorial mais conhecido seja Samico, o homem capaz de dar formas fantásticas a uma imensidade de histórias que vagavam soltas no nordeste brasileiro. Monstros, narrativas bíblicas recontadas em cordéis, autos populares, mitologias indígenas vieram se encontrar na cultura popular nordestina e serviram de base ao pensamento pictórico de Gilvan Samico. Considerado o maior gravurista brasileiro da atualidade, não foi com nenhum artista local que Samico aprendeu o rigor e a beleza de sua talha. Foi aluno de dois grandes mestres da xilo, Osvaldo Goeldi e Lívio Abramo, quando residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente. Para Samico, a face armorial de seu trabalho não está, como muitos pensam, na transformação das capas dos folhetos de cordel em uma composição
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reprodução
erudita. O artista explica que já era um xilogravurista quando, numa conversa com Ariano Suassuna, se apercebeu da beleza das histórias populares e decidiu recriá-las a seu modo, numa reinvenção desse imaginário. Desta forma, Samico também ajudou a refundar a xilogravura nordestina, transportando-a do campo rústico (mas não precário) e do funcional (capa do folheto) para dar-lhe uma visibilidade altamente formal, erudita e sofisticada. Ou seja, o artista cumpriu, ponta a ponta, todas as etapas preconizadas pelos armoriais.
FAMÍLiA ARMoRiAL
Outros dois importantes artistas do movimento são Manuel Dantas Suassuna e Romero de Andrade Lima. Filho
do escritor Ariano Suassuna, Dantas é um dos incontornáveis nomes da atual pintura pernambucana, mas seu trabalho tem se destacado em outras áreas. Desde os anos 1990, ele tem se dedicado também à cerâmica, ao vídeo, à criação de figurinos e cenários. Em 2007, por exemplo, foi um dos principais responsáveis pelo visual da minissérie A Pedra do Reino, da Rede Globo. A cenografia, em tudo, traduzia a reunião de influências culturais que caracteriza o Movimento Armorial e o Romance d’A Pedra do Reino. Romero de Andrade Lima, sobrinho de Ariano, também voltou boa parte de sua obra à pesquisa e construção de uma imagem que retratasse a poética das diversas influências que compõem, inicialmente, a base central da formação cultural brasileira: arte indígena, ibérica e africana. Embora o trabalho de Romero, atualmente, esteja passando por outra fase, o artista ficou muito conhecido, dos anos 1990 até o princípio dos 2000, pela criação de trabalhos que reuniam texto, música ao vivo, iluminação, figurinos, cenários, maquiagem dos atores – compondo com todos os elementos uma obra de arte complexa, que não poderia ser resumida puramente a teatro ou artes plásticas. O que lhe interessava em seus espetáculos, como ele dizia na época, era proporcionar experiências novas na apreensão da obra de arte. Essa proposta de aproximação e contaminação das artes sempre esteve presente no pensamento armorial. O
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próprio Ariano Suassuna é ilustrador de seus livros. Depois, criou vários álbuns de iluminogravuras – que, baseadas nas iluminuras medievais, reúnem, numa só lâmina, poesia, desenho e pintura.
DeSDoBRAMentoS
Um dos desafios da contemporaneidade, em inscrição local, é investigar quais os desdobramentos do Movimento Armorial na arte pernambucana. É verdade que a arte – não só no Estado, mas de uma forma universal – vive de ciclos de aproximação e afastamento das raízes populares. É igualmente verdadeiro afirmar que, em Pernambuco, a assimilação de matrizes populares passa por fases duradouras e profundas, que se apresentam de formas variadas, em vertentes distintas. Esse, talvez, seja um dos reflexos mais importantes do armorial na arte do Estado: a aceitação dessa estética – que não é formal nem acadêmica – pelos artistas, criando-se assim uma situação de convivência pacífica, mesmo para aqueles “não armoriais”. E se o armorial não sugere práticas artísticas fechadas – sendo permeável a
Quem quiser se arriscar, procure uma só imagem capaz de sintetizar o armorial dentro das artes plásticas criações que se proponham mergulhar no universo pictórico das influências primitivas da arte brasileira –, o movimento pode ecoar tanto num trabalho urbano, como o do grafiteiro Derlon, ou na obra de Marcelo Silveira – que atua numa eficiente reelaboração de signos populares. Outros artistas remetem à estética armorial também pelo uso de materiais. Inicialmente associada à arte primeva, a cerâmica ocupa lugar de destaque na produção contemporânea, notadamente a partir dos anos 1990. O seu uso mais sofisticado, no Estado, começa nos anos 1970, com Francisco Brennand, que influenciou gerações posteriores. Artistas como o citado Dantas Suassuna, José Paulo, Christina
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Machado, Maurício Silva (hoje radicado na França), Flávio Emanuel, entre outros, utilizaram-se das técnicas de modelagem e cozimento do barro. Alguns deles seguiram essa trajetória, descobrindo formas diferentes de trabalhar com o material. Não se deve, de forma simplista, alinhar os artistas aqui citados ao Movimento Armorial. Mas, a partir da observação de suas obras e de outros artistas não mencionados aqui, é possível afirmar que existe, em Pernambuco, uma relação complexa entre a produção artística considerada erudita – a que frequenta galerias, museus e bienais de arte – e as criações populares. Isto se dá de diversas maneiras: da simples escolha de um material até a referência a artistas assumidamente ligados ao movimento. É possível que seja esta a principal demanda do armorial, no tocante às artes plásticas: uma presença que não indica uma maneira única de ver e representar o mundo, que não exige semelhanças estéticas, mas que assevera a relevância da arte popular na expressão erudita.
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CinEma marcos de uma tradução imagética
Adaptações para as telas do Auto da Compadecida e A Pedra do Reino mantêm a peculiar fusão entre o barroco ibérico e o romanceiro popular tExto Alexandre Figueirôa
A rigor, não
existe um cinema armorial. O movimento, criado por Ariano Suassuna, tem representantes e seguidores nas artes plásticas, literatura, teatro, dança e, sobretudo, na música. Na sétima arte, o máximo que poderíamos elencar seriam incursões e aproximações em seu universo estético, quando obras do próprio Suassuna foram levadas à tela. A primeira delas foi a adaptação
do Auto da Compadecida, realizada em 1969 por George Jonas, cujo título era A Compadecida. O figurino, desenhado por Francisco Brennand, apresentava traços dos elementos estéticos propostos pelo movimento, e o fato de o filme seguir o texto teatral vincula-o a uma concepção narrativa que, mesmo de forma superficial, estaria na base dos preceitos defendidos por Suassuna. No entanto, uma visualidade realmente próxima e inspirada por uma iconografia presente no imaginário da cultura popular nordestina e dos
traços “neomedievais” do ideário armorial, só alcançaram melhor representação em obras mais recentes. Entre elas, destacam-se as minisséries O auto da Compadecida, de Guel Arraes, e A Pedra do Reino, de Luiz Fernando Carvalho. Elas ganharam versões para serem mostradas no cinema e foram lançadas em DVD, embora tenham sido concebidas inicialmente para serem exibidas na televisão. Apesar da boa recepção de público e crítica para essas adaptações televisivas, podemos identificar a existência de uma lacuna entre o armorial e o audiovisual pela desconfiança que o criador do movimento sempre teve em relação aos meios de comunicação de massa. Para Suassuna, a televisão seria uma inimiga da cultura popular e o fato de ele aceitar ver suas obras numa emissora comercial como a TV Globo deveu-se, no caso de Guel Arraes, à relação de afeto com o filho do ex-governador Miguel Arraes e também por Guel ser uma referência de qualidade na televisão brasileira. Essa distância entre o armorial e as câmeras foi parcialmente superada pelo estrondoso êxito tanto da versão do
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divulgação
18 o Auto dA
ComPAdeCidA
a distância entre o armorial e as câmeras foi parcialmente superada pelo êxito da versão da peça para tv e cinema
no interior do Nordeste, bem como nas pinturas dos artistas armoriais. As cores em tom de terra do vestuário e as gravuras que ilustram os folhetos de cordel são elementos usados por Guel na criação da plasticidade da sua obra audiovisual. A mise-en-scène de O auto busca tirar o máximo proveito do uso da paisagem e dos tipos humanos, estabelecendo uma representação cara ao espectador brasileiro e que povoa o seu imaginário, realçando nela seus aspectos pitorescos e dando-lhe, ao mesmo tempo, um verniz de erudição e de valorização da cultura popular.
AFiniDADeS
Auto na televisão quanto no cinema, embora Guel, ao realizar a adaptação, não tivesse em vista necessariamente ser um difusor do movimento armorial. Ele estava muito mais interessado em trabalhar com a ideia de um cinema popular brasileiro e ao mesmo tempo dessacralizar os limites entre a televisão e o cinema. No depoimento prestado no livro Guel Arraes, um inventor no audiovisual brasileiro (Cepe, 2008), Guel afirma ter buscado o texto de Suassuna pela facilidade de comunicação que a obra teria com o público. De qualquer modo, o diretor reconhece que, na adaptação da mais famosa peça teatral de Suassuna, ele utilizou o que chama de “método armorial”, ou seja, na obra há piadas e cenas inteiras tiradas do teatro, de histórias e autores medievais, já que esse repertório retrabalhado por Suassuna no Auto da Compadecida está muito próximo da cultura popular nordestina. Visualmente, O auto de Guel Arraes segue, apesar da leitura pessoal do diretor, a estética preconizada por Suassuna, uma vez que ele mergulhou no universo apontado no texto, cujos traços ainda hoje podem ser encontrados
Porém, para Ariano Suassuna, seria Luiz Fernando Carvalho quem melhor traduziria o armorial para o audiovisual. Não podemos ignorar, nesse contexto, ter sido Carvalho o precursor das adaptações dos textos de Suassuna para o meio televisivo, com os programas especiais Uma mulher vestida de sol, levado ao ar em 1994, e O santo e a porca, em 1995. Também a minissérie Hoje é dia de Maria, realizada por ele em 2005 para a Globo, embora não seja um texto de Suassuna – pela forma como dialoga com os espetáculos populares, sobretudo no cenário, iluminação e figurino, revela afinidade com o movimento armorial. Apesar das diferenças de sua criação com relação ao Núcleo Guel Arraes, Carvalho segue o modelo de qualidade proposto pela Globo no estabelecimento de uma teledramaturgia diferenciada e em oposição a uma televisão popularesca. Em A Pedra do Reino, ele recriou o Romance d’A Pedra do Reino e levou sua experimentação estética a um patamar realmente surpreendente, mesmo estando na televisão. A adaptação da obra de Suassuna integrava o Projeto Quadrante, cujo objetivo seria transpor para a teledramaturgia obras clássicas da literatura brasileira. Os cinco episódios da minissérie têm a duração total de 4 horas e 36 minutos e foram exibidos em 2007 por cinco dias consecutivos. Posteriormente, foi lançado em DVD e algumas salas de cinema também arriscaram mostrá-la na íntegra. Comparado a O auto, o sucesso de público foi bem menor, contudo não podemos negar o êxito da empreitada de Carvalho. A minissérie foi rodada em Taperoá, na Paraíba, cidade natal
de Suassuna, e utilizou apenas atores nordestinos. Todo o material – roupas e adereços – foi feito por artesãos da região e usou produtos como palha de milho e serragem para obter um efeito de rusticidade cênica. A ousadia do diretor na adaptação, porém, não se limitou a transpor o cenário e o figurino descritos no livro, mas compôs uma mise-en-scène audiovisual em que os personagens e acontecimentos narrados emergem da tela como quadros barrocos, num fluxo imagético em que predomina o estabelecimento de um pacto sensorial com o espectador. A saga do herói sertanejo Quaderna, criada por Suassuna, foi apropriada por Carvalho para revelar uma imagem de brasilidade
Uma visualidade próxima do armorial teve boa representação com as minisséries o auto da Compadecida e A Pedra do reino cuja raiz seria a diversidade cultural do país. O diretor não seguiu a lógica tradicional do formato minissérie, preferindo ao invés disto estruturar os episódios de A Pedra do Reino em narrativas autônomas. Do conjunto, emerge uma unidade que faz sentido no universo labiríntico pensado por Suassuna. Se, ao final deste pequeno levantamento, desejássemos apontar um caminho para um audiovisual de base armorial, não resta dúvida de que seriam esses dois trabalhos – O auto da Compadecida e A Pedra do Reino – os marcos de uma possível tradução para imagens em movimento daquilo que Ariano Suassuna por 40 anos vem afirmando como linguagem nacional, a partir da fusão entre o barroco ibérico e o romanceiro popular. Mas, para integrar seu ideário numa linguagem contemporânea, teria de abrir mão dos preceitos que reafirma e incorporar ao armorial a mistura de popular e erudito com elementos da cultura pós-massiva, transitando entre o artesanal e a tecnologia. Algo que talvez os seus herdeiros tenham a coragem de empreender.
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