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CAPA Personagem mítico de Ariano Suassuna chega aos palcos pelas mãos de Antunes Filho e à tela de tevê, pelas de Luiz Fernando Carvalho, em adaptações arrojadas
A volta de Quaderna Alexandre Bandeira
Antunes Filho dirige o ator Lee Thalor em ensaio da Pedra do Reino
Pio Figueir么a
Beto Oliveira/Folha Imagem
CAPA 13
CAPA Ele já trabalhou com alguns dos personagens mais fortes da Literatura e do Teatro. Sob sua direção, ganharam vida em montagens elogiadas shakespearianos como Ricardo III e Lady Macbeth; heroínas trágicas como Antígona e Medéia; ícones das histórias de terror e dos contos de fadas, como Drácula e Chapeuzinho Vermelho; preciosidades das letras brasileiras, como Augusto Matraga e Macunaíma. Não é pouca coisa, portanto, ouvir Antunes Filho dizer que Quaderna, o protagonista criado por Ariano Suassuna para o Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, é o personagem “mais rico, mais contraditório, mais profundo da nossa Literatura”. Uma tese que o diretor paulistano está mais do que disposto a provar, com sua adaptação para o teatro do romance de Suassuna (e de sua continuação, História do Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana), que acaba de estrear no Teatro Sesc Anchieta, em São Paulo. A peça é provavelmente o acontecimento do ano para o teatro nacional. Não só porque é “o novo espetáculo de
O diretor mistura influências suas, como o cinema de Fellini e Sternberg, e as próprias referências visuais de Suassuna para compor o espetáculo
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Antunes Filho”, sempre aguardado, mas sobretudo porque desde 2005 o Romance d'A Pedra do Reino está no centro das atenções culturais do país, onde ainda vai ficar por um bom tempo. Explica-se: o livro, publicado em 1971 e considerado obra-prima desde então, passou mais de 20 anos fora do catálogo até ganhar uma reedição pela José Olympio, bastante celebrada, no ano passado. Agora, é adaptado para o teatro. E em junho de 2007 será transformado em série televisiva por Luiz Fernando Carvalho, espera-se que com o mesmo requinte e apuro técnico que têm marcado os outros trabalhos do diretor na Rede Globo. (Confira entrevista com Luiz Fernando Carvalho na página 20.) Duas adaptações dificílimas. Primeiro, porque se trata de uma obra colossal, 754 páginas condensadas numa peça de uma hora e meia e numa microssérie de cinco capítulos. E principalmente porque na mistura de epopéia, memorial, ensaio, romance policial, folhetim, poemas, folhetos de cordel e mais outros tantos gêneros da literatura universal que compõem A Pedra do Reino, aterse a um enredo como fio condutor pode se revelar limitante. Pio Figueirôa
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Leo Caldas/Titular
Anualmente, uma cavalgada e outras manifestações relembram A Pedra do o episódio dA Reino, em São José do Belmonte – PE
No centro de tudo está Quaderna. Ou Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, o Decifrador, Rei do Sertão, Imperador do Quinto Império do Brasil e Sumo Pontífice da Igreja Católico-Sertaneja, como prefere. É ele o narrador de uma epopéia que atravessa séculos e que tem suas bases fincadas do outro lado do oceano, com a partida de Dom Sebastião, rei de Portugal, para lutar contra os mouros no norte da África, no ano de 1578. Como se sabe, Dom Sebastião nunca regressou de tal viagem, morto em combate na cidade de Alcácer-Quibir, no Marrocos. As conseqüências de sua morte foram trágicas para Portugal: enfraquecida a dinastia de Avis, depauperada a nobreza devido aos gastos militares, os portugueses viram ascender ao trono um rei espanhol, Felipe II, marcando o início de um longo período, 60 anos, privados de uma nação soberana. O povo português se entregou então a uma crença impossível, último recurso ao qual se apegar: El-Rei Dom Sebastião voltaria, para restaurar a ordem perdida e redimir os sofredores. Surgia um mito. Em verdade, como já observou Câmara Cascudo, o mito sebastianista já estava presente em Portugal muito antes de Dom Sebastião nascer. “Quase todos os povos têm essa crença, e raro será o que não acredite no regresso de figura imortal para conduzir seu povo à glória mais alta”, escreveu o folclorista. Dom Sebastião teria sido apenas a encarnação mais apropriada, para o momento
histórico, do Messias, de um mito que existe desde que o homem é homem de fé. A narrativa de Quaderna começa onde o sebastianismo encontrou terreno mais fértil além-mar: os sertões do Nordeste brasileiro. O que sua história tem de fantástica, então, tem de assombrosamente verídica. Suassuna resgata aqui o episódio que ficou conhecido como “o massacre da Pedra Bonita”, em 1838. No município de São José do Belmonte, sertão pernambucano, um grupo de fanáticos liderados por um falso profeta, João Ferreira, reuniu-se numa comunidade em volta de uma formação rochosa com duas “torres” de pedra proeminentes, de 30 e 33 metros de altura. As duas torres seriam um castelo encantado, o castelo de Dom Sebastião, que apareceria no Sertão para salvar a população oprimida. Para que a profecia se realizasse, porém, eram necessários sacrifícios. Sessenta e sete vidas foram oferecidas – algumas, a contragosto – para lavar de sangue a Pedra do Reino, como passaram a chamar o local antes conhecido como Pedra Bonita, e fazer retornar o rei desaparecido: 30 crianças, 11 mulheres, 12 homens, 14 cães. E os sobreviventes ainda tiveram de enfrentar uma tropa de soldados da guarda nacional, enviados para acabar com o massacre. Certamente o mais macabro, João Ferreira não foi, entretanto, o único profeta de Dom Sebastião a aparecer em terras nordestinas. Quaderna, o narrador do romance Continente agosto 2006
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CAPA de Suassuna, se declara descendente desses profetas, que seriam os verdadeiros reis do Brasil, ao contrário dos imperadores “estrangeirados e falsificados da Casa de Bragança”. E ao narrar sua epopéia sertaneja – que ainda avança 100 anos no tempo para incluir os conflitos políticos entre a aristocracia rural e a burguesia urbana na Paraíba, a Revolução de 1930, o Estado Novo de Getúlio Vargas, um misterioso assassinato sem solução e o aparecimento de um cavaleiro tido como morto, que retorna para cumprir a profecia sebastiana – Quaderna parece acreditar que o próprio ato da narrativa lhe confere veracidade, como se construísse um “castelo literário”, redentor da Raça Brasileira. E isso é só uma breve, brevíssima e muito incompleta apresentação da obra que Antunes Filho se propôs a adaptar para o teatro. “É um poder de síntese que precisa ter, viu? Mas foram diversas fases [para se chegar ao texto final da adaptação], não foi de prima, não”, diz Antunes, que vem sonhando levar A Pedra do Reino ao palco há pelo menos 15
anos. Desde então, outros projetos do diretor, além de desacordos com o escritor Ariano Suassuna quanto à primeira versão do texto, adiaram esse momento. “Ele [Ariano] era muito intransigente naquela época, mas hoje ficou mais democrático. Eu também fiquei. Somos amigos. Houve só certas questões, que diziam respeito aos particulares do Ariano Suassuna, que criavam certa tensão, leve, ligeira.” (Veja a entrevista de Ariano à página 22 desta edição.) Era de se esperar que o escritor tomasse um cuidado extremado com aquela que ele próprio considera sua obra mais importante, a que ele salvaria da destruição, se lhe fosse dada apenas uma escolha. Entre os acontecimentos históricos em que Ariano se inspirou para escrever A Pedra do Reino está a morte do seu pai, João Suassuna, assassinado por motivos políticos. Representante da aristocracia rural da Paraíba, João Suassuna havia sido governador do Estado de 1924 a 1928, no que foi sucedido por João Pessoa, representante de uma burguesia urbana, inimiga do coronelato. Pessoa
A recepção da crítica à Pedra do Reino O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta forma, junto com A História do Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana, as duas primeiras partes de uma trilogia que era para ser e que não foi. A terceira parte – Sinésio, o Alumioso –, Ariano Suassuna nunca chegou a publicar, e se um dia o fizer talvez não integre mais uma trilogia, e, sim, a famosa “obra magna” que o escritor há muito tempo está preparando, que vai reunir a maior parte dos seus escritos, peças, poemas, gravuras. Isso não prejudica a leitura dA Pedra do Reino, que se sustenta sozinha como um romance considerado fundamental por nove entre 10 críticos literários. “A grande qualidade desse livro não está em ser um bom romance picaresco”, escreve Wilson Martins. “Está em ser um excelente romance brasileiro.” Continua o crítico e historiador da literatura brasileira: “Para além das suas exterioridades farsísticas situa-se a sua substância profunda de romance social e político no sentido largo da palavra: é o romance de nossa Continente agosto 2006
vida pública nas décadas de 20 e 30, em uma vasta região nordestina, e vida pública como só pode sê-lo a brasileira, emaranhada em atavismos religiosos, em hábitos anacrônicos, em simplificações primárias, em rivalidades mesquinhas, em ódios de famílias, em violência incontrolável como forma de expressão, em imoralidade espontânea e em malícia orgânica”. O jornalista Millôr Fernandes coloca A Pedra do Reino “facilmente entre os 10 maiores romances brasileiros, incluindo aí Guimarães Rosa e excluindo Machado de Assis”. A afirmação de Millôr faz lembrar que nenhuma unanimidade resiste por muito tempo, e com A Pedra do Reino não é diferente. Recentemente, em entrevista concedida ao jornal literário Rascunho, de Curitiba (junho de 2006), o escritor pernambucano Fernando
CAPA era um nome que despontava no cenário nacional, e em 1930 teria sido candidato a vice-presidente da República, na chapa de Getúlio Vargas pela Aliança Liberal, não fosse por dois tiros desferidos por João Dantas, primo legítimo da esposa de João Suassuna, Rita de Cássia Dantas Villar Suassuna. Dantas tinha motivações pessoais para assassinar João Pessoa, mas no calor das disputas políticas da época um outro significado foi atribuído ao crime, o qual vinculava inevitavelmente o nome de João Suassuna. Como conseqüência, em outubro de 1930 as forças getulistas, com o apoio do Exército, aproveitaram-se do pretexto e deflagraram a Revolução que daria fim à República Velha e colocaria Vargas no poder. Naquele mesmo mês, João Suassuna seria morto. Nunca ficou provado se a ordem cumprida pelo pistoleiro Miguel Alves de Souza era de vingança à morte
de João Pessoa, mas para o menino Ariano, então com três anos de idade, importava era que seu pai – seu rei – tinha partido numa viagem para não mais voltar (João Suassuna foi morto no Rio de Janeiro). Perguntado, certa vez, se escrever A Pedra do Reino teria sido sua melhor vingança, Ariano Suassuna respondeu borgianamente: “Foi mais do que uma vingança. Foi uma forma de evitar o crime”. Antunes Filho tem ciência de que está lidando com questões delicadas e se mostra profundamente respeitoso para com o escritor paraibano. “Ele é uma glória. Eu vejo tão poucos artistas no mundo hoje em dia – no cinema, no teatro, na música, é tudo uma desgraceira – que quando encontro um, eu ajoelho e beijo os pés. Suassuna é uma dessas pessoas”, diz o diretor, para quem a definição “artista” dispensa adjetivos como “verdadeiro” ou
Monteiro fez uma crítica bastante dura ao romance. “Não sou, como o agora candidato a senador Ariano Suassuna, idiota o bastante para tentar propor uma mitologia para o Brasil (que nunca teve uma cultura autóctone) a partir daquelas idiotices sobre o Sertão da Onça Castanha, Malhada, sei lá, aquela coisa toda que forra a Pedra dele”, disse o escritor. Embora a crítica de Monteiro se refira mais às idéias do que à qualidade literária dA Pedra do Reino, é inegável que as duas coisas estão intimamente ligadas. Sobre essa relação entre ideologia e forma, o crítico e escritor paranaense Miguel Sanches Neto já apontou: “É uma obra de grande e vasta erudição nacional e estrangeira (principalmente ibérica), que contesta uma visão central de cultura e de política por meio de expedientes narrativos barrocos, investindo nos episódios secundários, sem valorizar um eixo e sem privilegiar o fechamento narrativo, e isso em dois momentos cruciais de centralização do poder no país: a ditadura Vargas (quando se passam as ações) e a militar (quando o livro foi publicado)”. Também se deve ressaltar que a magnitude da proposta de Suassuna, a de criar “uma mitologia para o Brasil”, de decifrar a raça brasileira surgida de outras raças – justamente o que desagrada a Fernando Monteiro –, é uma das maiores razões para o Romance d’A Pedra do Reino
ter recebido tamanha aclamação, aqui e fora do país. O pensador e escritor português António Quadros (19231993) chegou a definir Suassuna como “um dos maiores escritores de língua portuguesa deste século, talvez o maior dos vivos, porque nenhum outro terá ido tão fundo e tão longe, nessa descida-subida à lonjura próxima do nosso ser mítico, porque raros conhecemos, com tão extraordinário poder de criação, de imaginação e até de organização novelística, porque nenhum é tão brasileiro e ao mesmo tempo tão português e nenhum atinge, como ele, o nó de raízes das 'três raças saudosas' da cultura brasílica”. O sociólogo e escritor pernambucano Renato Carneiro Campos (1930-1977) foi outro que situava a criação de Ariano entre as maiores da literatura mundial. Para ele, Quaderna, o narrador-protagonista do romance, era “um palhaço da melhor tradição, parente de Plauto, Gil Vicente, Cervantes, Molière, Rabelais, Fielding, Mark Twain, Charles Chaplin”. Mais sucinto e poético, Carlos Drummond de Andrade comentava: “Escrever um livro assim deve ser uma graça, mas é preciso merecer a graça da escrita, não é qualquer vida que gera obra desse calibre”. Como a vida de Ariano Suassuna continua, quem sabe essa graça não se repita quando, finalmente, o escritor levar a público a sua grande obra inacabada? (AB) Continente agosto 2006
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CAPA possível cânone brasileiro. “A peça é enternecedora. Tem um lado picaresco, mas também tem um lado dramático – eu penei muito durante os ensaios para encontrar esse equilíbrio. E o Quaderna... eu gosto muito do Macunaíma, do Policarpo Quaresma, de Diadorim, mas como personagem Quaderna é o mais rico, o mais contraditório, o mais profundo da literatura brasileira”, diz o diretor, que demonstra conhecer a obra de Suassuna como poucos. O que não é difícil: o próprio Suassuna costuma repetir em entrevistas que se considera um escritor de poucos livros e poucos leitores. Antunes concorda. “Não se leu A Pedra do Reino”, diz o diretor. “E não falo só do leitor comum, mesmo a crítica especializada. É fácil dizer uma ou outra frase a respeito do Suassuna, aquelas frases de algibeira, como se tem também sobre o Mário de Andrade, sobre o Oswald de Andrade. Mas na verdade é muito superficial o nosso conhecimento. As pessoas nesse país, eu vejo que elas ignoram quem é Quaderna! Conhecem as peças do Suassuna, que têm aquela certa brejeirice nordestina. “A Pedra do Reino”, não. “A Pedra do Reino tem sangue”. Antunes parece tomar como missão divulgar a obra e o personagem de Ariano, da mesma forma como, segundo ele, foi o responsável por fixar Macunaíma definitivamente no imaginário brasileiro. “Ninguém lia Macunaíma”, era um nome que aparecia em citações. Depois que eu fiz a peça (1978), aí divulgou. Eu espero fazer a mesma coisa com Ariano Suassuna. “Exagero ou Fotos: Divulgação
“autêntico”. “Por isso eu não gostaria que ele brigasse comigo, que não concordasse com alguma coisa da peça.” É por respeito a Ariano, também, que Antunes mede cuidadosamente as palavras ao falar sobre a adaptação da Pedra do Reino para a Rede Globo. Crítico notório da televisão brasileira, ele admite ter ficado chateado, a princípio, ao saber do projeto em andamento, mas que reconsiderou o fato como positivo. “Vai trazer publicidade para meu espetáculo, vai divulgar o Ariano Suassuna, vai divulgar A Pedra do Reino. Todo mundo lucra com isso”, diz. Sua análise seguinte, no entanto, denuncia uma irremediável desconfiança em relação à TV: “Eu não sou contra a televisão fazer coisas boas. Quando eles fazem Suassuna, aliás, eles têm um cuidado maior, um carinho, não se deixam levar pelo comércio. Mas isso só é feito duas vezes por ano, o resto é patifaria, item de alto consumo. E tem outra coisa: esse requinte e essa sofisticação eventuais me parecem de um formalismo exacerbado, empolado. Como se estivessem dizendo: ‘Isso aqui é a Globo fazendo coisa séria’. A gente vê pela luz, pelo enquadramento, por um certo tipo de tomada, que aquilo é ‘coisa séria’. Mas isso também é um estereótipo, não é? O estereótipo do sério.” Diferenças à parte, Antunes Filho prefere concentrarse no entusiasmo de estar lidando com uma das melhores obras literárias do país – a única de um autor vivo, dentre as 10 apontadas em pesquisa da Continente sobre um
“As pessoas nesse país ignoram quem é Quaderna! Conhecem as peças do Suassuna, que têm aquela certa brejeirice nordestina. A Pedra do Reino, não. A Pedra do Reino tem sangue”
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CAPA não, Macunaíma, a peça, é um marco inconteste do teatro nacional. Ela representa o rompimento do diretor paulistano com o teatro comercial – que ele fazia muito bem – e o início de sua reinvenção como um dos mais originais, corajosos e respeitados encenadores do país. Quem vai assistir a um espetáculo de Antunes Filho pode esperar uma erudição invulgar a serviço do teatro. Suas montagens são sempre precedidas por muito estudo – que o diretor também exige de seus atores – para que se encontrem os arquétipos subjacentes ao texto, o universal oculto no circunstancial. “Eu persigo os mitos, estou na cola deles”, diz Antunes. Expandido o alcance do texto, o diretor se vê livre para abusar de referências as mais diversas na concepção do espetáculo: o cinema, uma paixão assumida; as artes plásticas, de onde aproveita a sensibilidade para compor cada cena como um quadro; e mais o teatro oriental, mais a literatura, mais a psicanálise junguiana, mais as teorias modernas da física. Às vezes, ele mesmo reconhece que as conexões encontradas não são claras para o espectador. Mas, enquanto Antunes se mostra implacável ao reclamar dos críticos que tenham um mínimo de bagagem cultural – “não sabem das conexões, sentam na platéia, gostam ou não gostam como se fosse pipoca”, disse ele, certa vez –, ele tem a convicção de que o seu público, não raro jovens, entenderá suas peças mesmo que inconscientemente. “Todos nós temos a mesma legião de arquétipos “no nosso chip”, partilhamos do mesmo jogo, das mesmas regras. É por isso que todas as minhas peças, de uma maneira ou de outra, fazem sucesso”, diz ele. Nesse sentido, o Romance d'A Pedra do Reino" facilita o trabalho de Antunes por apresentar de antemão o seu terreno mitológico mapeado. É o próprio Suassuna quem ressalta, na figura de Quaderna, os arquétipos de Rei e Palhaço – aquele que personifica ordem e hierarquia, aquele que as transgride. O sonho utópico de Quaderna, que ele pretende materializar por meio de sua obra literária, é quase uma contradição em termos: uma monarquia de esquerda, entendendo-sse por esquerda, na concepção do narrador (alter-eego de Suassuna),
uma ideologia igualitária, socialista. A única solução possível para o paradoxo é que todos sejam reis, que Quaderna sejam todos. Visualmente, ao universo naturalmente forte de Suassuna, com seus brasões, suas cores carregadas de simbologia, suas iluminogravuras, Antunes Filho acrescenta suas próprias referências para montar figurinos e adereços: o cinema de Fellini e Sternberg. As obras de Picasso, Volpi, Guignard, Pancetti. O trabalho do grupo japonês Ishin-hhá, que desenvolveu um estilo de teatro original até na forma de andar (com passos ligeiramente fora do tempo, num “movimento não natural” que se aproxima do “falso naturalismo” antuniano). Nada disso, porém, se apresentará de pronto para o espectador quando as cortinas se abrirem: A Pedra do Reino começa com Quaderna em um palco escuro. “À medida que ele vai falando, vão acontecendo coisas”, diz Antunes. Uma escolha adequada para um personagem que se propõe a criar realidades por meio da narrativa. A ênfase na interpretação arquetípica do romance também resulta em outra escolha deliberada do diretor: nada de sotaque nordestino. “Não me preocupei com isso. É claro que existe uma sintaxe própria, que já vem do texto e que obriga a uma prosódia, uma certa pontuação que você é obrigado a seguir. Não dá para falar de maneira macarrônica. Mas será uma coisa natural, não fui eu que impus”, diz ele. O goiano Lee Thalor, que interpretará Quaderna no palco, concorda: “A preocupação maior do Antunes é com a palavra bem dita, que o público entenda a peça”. Mais do que se fazer entender, Antunes aposta no assombro. “Eu acho que vai cair o queixo das pessoas”, diz o diretor. “Vão pensar: ‘Quaderna? Que coisa é essa?’ Então vão querer saber mais, e vão perceber que a peça pode ser um mapa da mina para uma obra atualíssima, que fala das entranhas e das contradições deste país.” Um país que, depois de 20 anos afastado de uma das maiores criações da literatura universal, agora a vê voltar reencarnada em livro, teatro e televisão. • A Pedra do Reino – Em cartaz no Teatro Sesc Anchieta R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque. São Paulo, SP. Temporada: de 21 de julho a 17 de dezembro. Continente junho 2006
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Divulgação
Luiz Fernando Carvalho dirigindo tomada do filme Lavoura Arcaica, da obra de Raduan Nassar
Nordeste sem clichês Diretor Luiz Fernando Carvalho prepara-se pela levar Quaderna para a televisão, numa leitura particular que, promete, fugirá dos estereótipos que têm marcado a imagem dos nordestinos
Aos 46 anos, o cineasta e diretor de TV Luiz Fernando Carvalho prepara-se para dar início, em 2007, a um projeto com o qual vinha sonhando há mais de 20 anos, o de "contar o país através de sua produção literária contemporânea", adaptando obras de autores representativos de cada Estado brasileiro para a televisão. Como abre-alas do projeto, batizado de Quadrante, O Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, será transformado em microssérie de cinco capítulos, com estréia marcada para 12 de junho. Outros autores já confirmados são o carioca João Paulo
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Cuenca, com o romance Corpo Presente; o amazonense Milton Hatoum, com Dois Irmãos; e o cearense Ronaldo Correia de Brito, colunista da Continente, com Faca. Carvalho já transformou Os Maias, de Eça de Queiroz em minissérie de TV e conseguiu agradar público e crítica, em 2005, com Hoje É Dia de Maria. Nesta entrevista, concedida por e-mail, Luiz Fernando Carvalho fala sobre A Pedra do Reino, sua relação com Ariano Suassuna, sua posição dentro da Rede Globo e sobre como o Nordeste costuma ser apresentado pela televisão.
CAPA Elenco e equipe técnica já estão Maria foi realmente um sucesso. definidos para A Pedra do Reino? Algum Pelo horário em que foi exibida, nome que o senhor já possa divulgar? jamais pensei que tivéssemos uma audiência tão boa. Em Os Pretendo trabalhar com atores que de Maias, tratava-se de buscar uma rescerta forma não pertençam ao modelo de piração e não um espetáculo circenescalação do Sudeste, que, no meu modo se. Toda e qualquer indústria nos ensina de sentir, privilegia sempre os rostos consaa subserviência a um único modelo grados em detrimento de tantos talentos que permanarrativo, uma espécie de estrada traiçoeira da necem escondidos pelo país. Minha equipe, em unanimidade, mas os limites cabem a cada um. No meu grande parte, também será formada por artistas do Nordeste, por talentos inseridos naquelas realidades. Não caso, ao contrário do que possa parecer, buscava uma vejo outro caminho senão este para o meu trabalho na TV: comunicação mais verdadeira entre o público e a atmosfera o de buscar um processo colaborativo, e não corporativo. da prosa do Eça. Não devo ter conseguido. A idéia de incorporar trechos de outros romances surgiu quando nos Ariano Suassuna conta em entrevistas que desde a foi pedido um número maior de capítulos, superior ao que década de 1960 recebeu convites para escrever novelas ou acreditávamos que Os Maias poderia proporcionar. No adaptar seus trabalhos para televisão, mas que sempre re- meu modo de sentir, tratou-se de uma grande derrapada. cusava. Até que, na década de 1990, o senhor (e mais tarde Já vendo com os olhos de hoje, depois da reedição que fiz Guel Arraes) conseguiu convencê-llo. Como fez para “do- para o DVD, posso lhe dizer que agora, sim! Agora me brar” o escritor? E como é sua relação hoje com Ariano? parece uma narrativa muito mais clara e forte, e talvez por Nossa convergência foi imediata. Faz 10 anos que nos isso até capaz de uma comunicação mais efetiva com o conhecemos. De minha parte, àquela altura, já conhecia público. toda a obra de Ariano e toda a produção armorial. Da Acredito que a expectativa do público televisivo hoje, parte dele, vieram também sinais de que acompanhava meu trabalho. Algum tempo depois me dediquei à sua diante de uma obra nordestina, esteja muito influenciada peça Uma Mulher Vestida de Sol (1994), adaptando-a para pelo trabalho de Guel Arraes com O Auto da Compadecida, um especial de TV – e com o qual Ariano, aos 70 anos, Lisbela e o Prisioneiro e O Coronel e o Lobisomem. São obras marcava sua estréia na televisão. Mas talvez não lhe tenha que, independentemente da qualidade, se assentam numa respondido exatamente. Quero dizer, minha cumplicidade visão mais cômica e regionalista do Nordeste, se com Ariano e sua obra data de muito antes, certamente comparadas, por exemplo, ao seu trabalho em Hoje É Dia desde os últimos anos de minha adolescência, quando senti de Maria, que me parece mais universal. Como apresentar uma necessidade inadiável de recuperar e completar o a obra de Ariano Suassuna para esse tipo de público? Minha leitura do universo de Ariano não entra em universo de sensações e imagens que tinha de minha mãe, a qual perdi muito menino; assim como, também muito conflito com a de nenhum outro realizador, seja ele de menino, Ariano perdeu seu pai, lá na primeira infância. teatro, cinema ou TV. Simplesmente será a minha leitura, Dentre tantos caminhos, enveredei em direção à sua obra mas que de certo modo reage à minha própria constatação como alguém que busca fazer daquelas leituras o seu de que a leitura que se faz do Nordeste tem sido repleta de caminho de volta. E assim, até hoje, sigo completando esta clichês. Na grande maioria das vezes, a forma como o colcha de retalhos de minha vida. Nordeste nos é apresentado tomou um rumo lamentável: em vez da diversidade étnica e estética, cultural, lingüística A minissérie Os Maias foi sucesso absoluto de crítica e e comportamental, mostra-se um empobrecimento geneteve baixa audiência. Como o senhor avalia esse trabalho, e ralizado que faz com que os nordestinos pareçam mecomo foram, nesse sentido, as experiências com Uma Mu- díocres e ridículos, numa ânsia obsessiva de ora os tornar lher Vestida de Sol, A Farsa da Boa Preguiça(adaptada da peça atração exótica, ora os igualar a padrões que não corde Ariano Suassuna) e Hoje É Dia de Maria? respondem às suas tradições e que nascem com a consoUma Mulher Vestida de Sol e A Farsa... foram especiais lidação dos valores da cultura de mercado. Esses “prode um único capítulo. Mesmo assim corresponderam dutos nordestinos” parecem obcecados em adquirir aceimui to bem às expectativas de audiência. Hoje É Dia de tação a qualquer custo. (Alexandre Bandeira) • Continente agosto 2006
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CAPA
“A Pedra do Reino é o meu universo”
Folha Press
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Ariano Suassuna comenta os percalços para adaptar seu romance para as linguagens do Teatro e do Cinema e se diz orgulhoso com o trabalho dos diretores Qual a expectativa do senhor sobre a adaptação do livro A Pedra do Reino para peça de teatro e para um seriado de televisão? Eu estou muito orgulhoso e muito contente. Eu sempre tive muito medo de uma adaptação dA Pedra do Reino, principalmente para o teatro, porque eu achava que o romance é muito grande e de dimensões muito complexas para se reduzir a uma peça de teatro. Mas Antunes Filho discordou de mim, para minha alegria, e decidiu fazer uma adaptação para o teatro o que me deixou muito contente. Já para a televisão é diferente, porque é um seriado tem uma amplitude maior. Vão ser cinco episódios de 45 minutos cada um, de maneira que dá tempo suficiente para exibir história toda. O senhor já teve as peças Uma Mulher Vestida de Sol e A farsa da Boa Preguiça adaptadas para especiais de televisão e a peça O Auto da Compadecida adaptada para série de televisão e depois filme. O que cada obra ganhou e o que cada uma delas perdeu quando passaram para a televisão? Nos três casos, os dois especiais dirigidos por Luiz Fernando Carvalho e o seriado e filme de Guel Arraes, eu gostei muito das adaptações. No caso de Uma Mulher Vestida de Sol nós fomos muito constrangidos pelo tempo reduzido. Era um dia só e em 45 minutos nós tínhamos que mostrar a tragédia que Uma Mulher Vestida de Sol é. Mesmo assim Luiz Fernando Carvalho fez um trabalho muito bonito. A mesma coisa com A Farsa da Boa Preguiça. Apesar da experiência de ter de cortar o texto, foi Continente agosto 2006
menos doloroso. Apesar de que talvez eu goste mais do trabalho que ele fez com Uma Mulher Vestida de Sol do que no de A Farsa da Boa Preguiça. Mas tenho a impressão de que ainda não avaliei muito bem, eu gosto muito dos dois trabalhos. Quanto ao seriado de Guel Arraes, houve algumas novidades, mas feitas com minha autorização. Ele me pediu para enxertar trechos de peças minhas no seriado. Ele tomou alguns episódios de O Santo e a Porca, A Pena e a Lei e A Farsa da Boa Preguiça e eu concordei. Ele também pediu licença para colocar cenas de clássicos, que foi o caso de Shakespeare e Molière. A história em que o coronel quer tirar o couro é de O Mercador de Veneza e aquela história do marido enganado que passa a ser traidor da mulher e que fica trancado fora de casa é de uma peça de Molière. Ele propôs essas mudanças e eu achei que ficou muito bem encaixado. Além disso, Guel tratou os personagens do padre e do bispo com uma dimensão religiosa mais profunda do que está na peça, onde eu tive de apresentar os personagens de modo mais esquemático. Lá ele dispunha de tempo e aproveitou o momento onde os dois são fuzilados junto com o padeiro, para dar uma dimensão dramática a eles que me agradou muito.
CAPA reiro, a peça estreou na televisão. Pois bem, eu andava na rua e a impressão que me dava era de que eu tinha escrito a peça em dezembro de 1998. Porque eu encontrava pessoas que nunca tinham ouvido falar de O Auto da Compadecida e que a partir daí começaram a conhecer e se interessar pela peça e até por outros trabalho meus.
O senhor foi consultado ou interferiu de alguma forma na adaptação do texto de teatro para o texto de televisão? No caso de Uma Mulher Vestida de Sol e A Farsa da Boa Preguiça eu fiz a adaptação e Luiz Fernando Carvalho fez o roteiro a partir dos meus cortes e da minha adaptação. No caso de O Auto da Compadecida a adaptação é do pernambucano João Falcão. Como o senhor vê a tendência de se explorar novas linguagens? Eu acho muito bom. As pessoas não têm acesso ao teatro – que em países como Brasil continua a ser uma atividade meio elitista –, já a televisão atinge muito mais gente. Eu vou lhe dar um depoimento pessoal. Eu escrevi O Auto da Compadecida em 1955, a partir daí a peça andou o mundo todo. Foi encenada aqui, na Europa, em Israel, em Cuba. Mas em 1999, em janeiro ou feve-
O senhor já declarou que A Pedra do Reino seria uma trilogia e lançou O Rei Degolado. O novo romance que o senhor está escrevendo completa esta trilogia ou virou uma obra mais ampla? Eu mudei muito de foco. Veja bem, quando eu comecei a escrever O Rei Degolado e publicar no Diario de Pernambuco na forma de folhetins, ia ser um livro em cinco partes como A Pedra do Reino. Eu só cheguei a publicar no jornal duas partes e em forma de livro uma. Depois que eu publiquei esta parte em livro que se chama Ao Sol da Onça Caetana eu percebi que eu tinha dado um erro de visão. Quando você lê A Pedra do Reino e depois lê essa parte de O Rei Degolado que foi publicada em livro você vai ver que o Quaderna que aparece nele é outra pessoa. É muito mais parecido com Ariano Suassuna do que com o próprio Quaderna de A Pedra do Reino. Isso foi uma das coisas que me desanimaram a continuar. Agora com a reedição de A Pedra do Reino eu comecei a reanimar e estou com vontade de parar com o romance que estou escrevendo e terminar A Pedra do Reino que ficou inconcluso. Qual o sentimento que o senhor tem com A Pedra do Reino? Eu já declarei isso várias vezes. Se um dia me dissessem que minhas obras seriam destruídas e que eu só teria direito de salvar uma, eu salvaria A Pedra do Reino porque é a minha predileta, é aquela na qual eu expressei, do modo menos incompleto que me é possível, meu universo interior, que todo escritor tem. Eu acho que tomada isoladamente é a obra que expressa esse universo interior. • Continente agosto 2006
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