Continente Nº 78 Junho 07 Decifrando Ariano

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Foto: Gustavo Moura


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O universo mítico de Ariano Suassuna Ariano Suassuna, que completa 80 anos, vem construindo pacientemente, há mais de meio século, uma poesia, um teatro e um romance a partir das sementes míticas da cultura brasileira, numa desforra pessoal pela morte do pai Carlos Newton Júnior

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aras são as obras de escritores que deixam transparecer, ao contato mais íntimo, a unidade profunda que liga cada uma de suas partes num todo orgânico, coeso e fecundo. De resto, na república das letras ocorre o mesmo que em outras repúblicas artísticas: são muitos os que tentam, mas poucos os que conseguem, para além do sucesso fácil, superficial e efêmero, atingir o êxito que consagra as suas obras ao longo do tempo, e assim as pereniza, como um talhe rupestre cuja beleza nos fascina e nos atrai, sempre aberto para o futuro, mesmo que o seu real significado seja para todo o sempre indecifrável. No caso da obra de Ariano Suassuna, a unidade profunda a que me refiro vem sendo pacientemente construída há mais de meio século, desde o momento em que o autor resolveu criar uma poesia, um teatro e um romance a partir das sementes míticas da cultura brasileira, essas sementes que, “armazenadas na memória literária” – na visão sempre lúcida de Ortega y Gasset – , “escondidas no subsolo da reminiscência popular, constituem levedura poética de incalculável energia”.

Ligando-se ao universo mágico e poético do romanceiro popular nordestino, praticamente desde os seus primeiros poemas e peças de teatro, escritos em 1946, 47 e 48 (e não seria demais lembrar que o produto mais esteticamente elaborado dessa ligação, o Auto da Compadecida, surgirá relativamente cedo, em 1955), Suassuna amplia o seu interesse, já nos anos 60, direcionando-o para a pré-história brasileira, tornando-se, assim, um dos mais fervorosos entusiastas dos registros pintados ou lavrados em baixo-relevo nas nossas itaquatiaras, algo que vem reverberando em sua literatura desde o Romance d´A Pedra do Reino, escrito de 1958 a 1970. Num terceiro momento, o interesse de Suassuna estende-se ainda mais, para abarcar, num vôo panorâmico impulsionado por um acurado senso de historicidade, as manifestações artísticas dos povos latinoamericanos e de todos os povos que compõem o chamado “Terceiro Mundo”, povos que, na sua mitologia particular de escritor, serão identificados com os povos pobres, escuros e malhados da “Rainha do Meio-Dia”, mito bíblico cujo núcleo histórico encontra-se no Velho Testamento. No caso da obra de Continente junho 2007

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CAPA A construção da obra suassuniana segue um propósito de “reconstrução”, de recuperação, através da linguagem mítica e da transfiguração do real, de um mundo perdido Suassuna, porém, há aqui, diga-se logo, uma dupla conotação, religiosa e também política, já que a Rainha do Meio-Dia, além de representar a própria Nossa Senhora – a Compadecida, aquela que se compadece de todo sofrimento humano, colocando-se, sempre, ao lado dos injustiçados –, simboliza também a união dos países do “Terceiro Mundo” contra as superpotências que nos exploram, descaracterizam e esmagam. Em mais de uma entrevista, Suassuna afirmou que toda a origem do seu Romance d´A Pedra do Reino encontra-se em um poema, o mesmo poema que o personagemnarrador Dom Pedro Dinis Quaderna, durante um sonho, lê, aterrado, à medida que o texto é gravado a fogo na parede da sua casa, por obra da bela e terrível Moça Caetana – admirável alegoria da Morte, construída a partir de um mito sertanejo. Entre outras coisas, diz o poema: “A Sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro pedregoso. Só lhe pertence o que por você for decifrado. (...) Salve o que vai perecer: o Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a luta sem grandeza, o Heróico assassinado em segredo, o que foi marcado de estrelas – tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu. (...) O silêncio queima o veneno das Serpentes, e, no Campo de sono ensangüentado, arde em brasa o Sonho perdido, tentando em vão reedificar seus Dias, para sempre destroçados”. Confesso que tenho a maior antipatia por certa crítica acadêmica que afirma ser o autor aquele que menos Continente junho 2007

entende do seu próprio trabalho. O meu ponto de vista – sobre isso e tudo o mais – é exatamente o oposto do desses “entendidos”, e por isso mesmo sempre levo em altíssima conta as afirmações dos autores quando escrevo sobre suas respectivas obras, sobretudo quando trato de Ariano Suassuna, que é, reconheça-se ou não, um dos escritores mais dispostos a declarar as influências que recebeu ao longo da sua vida literária. Partindo desse princípio antiacadêmico, acredito, portanto, que o poema em questão explica, em essência, a gênese não só do Romance d´ A Pedra do Reino, mas de toda a obra de Suassuna. Embora hermético, o poema deixa transparecer, claramente, que a construção da obra suassuniana segue um propósito de reconstrução, de recuperação, através da linguagem mítica e da transfiguração do real, de um mundo perdido. Veja-se como


CAPA Desenhos de Ariano Suasuna/Reproduções

Sendo rigorosamente pessoal, o universo mítico de Ariano Suassuna pulsa em consonância com os mitos do nosso povo, na tentativa de erguer uma "Mitologia brasileira"

o trecho do poema acima citado se coaduna perfeitamente com uma afirmação que Suassuna fez no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1990: “Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o Pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o Pai deixou”. Egresso do patriarcado rural derrotado na Revolução de 1930, e trazendo, como sua mais profunda marca biográfica, a morte do seu pai, João Suassuna, Ariano faz de sua obra um grito de protesto e uma desesperada ten-

tativa de recuperação de um mundo que lhe foi confiscado pela inapelável trama do destino. Através de um reencontro com a linguagem do mito (território próprio da epopéia), Suassuna consegue reerguer um mundo novo a partir do caos e das cinzas de uma realidade destruída – o reino encantado da sua infância, sempre ligado à fazenda Acauhan, onde passou o pouco tempo que o destino lhe concedeu viver ao lado de um rei, seu pai. O que a vida desconjuntou, Suassuna reconstituiu pela imaginação, erguendo, pedra sobre pedra, o seu grandioso castelo poético. Quem se lembraria, hoje, de João Suassuna e da injustiça de que foi vítima, não houvesse sido ele resgatado para a história pelo poder da literatura? Talvez tenha sido Carlos Lacerda o primeiro a perceber esse projeto que se encontra na medula da obra suassuniana. De fato, num artigo escrito em 1971, quando do lançamento do Romance d'A Pedra do Reino, Lacerda discorre com precisão e agudeza psicológica acerca da “tremenda desforra” que Suassuna, através da fantasia, tirara “sobre os erros do mundo” – ou sobre os papéis que, no palco da vida, foram reservados para ele e seus familiares. Sendo rigorosamente pessoal, o universo mítico de Ariano Suassuna pulsa em consonância com os mitos do nosso povo, que ele tão bem recria, na tentativa já declarada de erguer uma “Mitologia brasileira” – uma mitologia que nos ajude, finalmente, a formular uma compreensão melhor e mais generosa de nós mesmos. • Continente junho 2007

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Clemente (Jackson Costa) e Samuel (Frank Menezes) travam um duelo de penicos. Na página seguinte, a caracterização de Erandhir Santos remete à figura de Dom Quixote

Espetáculo medieval na tevê Luiz Fernando Carvalho dirige minissérie dando um toque medieval à adaptação do romance-tese de Suassuna Homero Fonseca

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Fotos: Divulgação TV Globo / Renato Rocha Miranda

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obra de Ariano Suassuna, especialmente as peças de teatro, com destaque para o Auto da Compadecida, já recebeu inúmeras adaptações, mais ou menos bem-sucedidas, para o cinema e a televisão. Agora, dentro de um projeto amplo chamado Quadrante, que pretende levar à TV obras literárias de peso, a Rede Globo, aproveitando com senso de marketing as comemorações pelos 80 anos do escritor, exibirá a adaptação de A Pedra do Reino do diretor Luiz Fernando Carvalho (Hoje é Dia de Maria). A minissérie, de cinco capítulos, irá ao ar a partir do dia 12, encerrando-se triunfalmente no dia 16 deste mês – data natalícia do autor. Luiz Fernando Carvalho é, talvez, o mais intelectualmente ambicioso dos encenadores de televisão do país, com incursões louvadas no cinema (Lavoura Arcaica). Experimentador e irrequieto, tinha a plena confiança de Ariano, de quem já levara à telinha anteriormente Uma Mulher Vestida de Sol (1994) e A Farsa da Boa Preguiça (1995), em um capítulo cada. Diretor autoral, Carvalho preparou uma versão pouco convencional e literal do monumental romance. O próprio Ariano, que acompanhou de perto as filmagens em Taperoá, no segundo semestre passado, acredita que terá uma recepção diferen-


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Na primeira conversa, o diretor perguntou-lhe se te, junto ao grande público, daquela que O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, teve. Isto não apenas por conta havia lido o calhamaço de Ariano e, diante da resposta negativa, presenteou-o com o livro, recomendando das diferenças dos textos, mas da própria encenação. Com efeito, pelas entrevistas e pelo material de divul- sua leitura. Erandhir estava excursionando com a pegação distribuído à imprensa, percebe-se que a proposta ça Quem tem, tem medo, em Petrolina, e durante quatro de Carvalho explora com afinco o universo mítico do es- dias, nos intervalos das sessões, devorou o romance. “Eu conhecia peças de Aricritor, criando “um espaço onírico em ano, sabia do seu trabalho, que a narrativa circular do romance – mas, ao ler A Pedra do Reino, com folhetos que vão e voltam no entendi por que certa vez ele tempo, e que foi respeitada na adapdisse que se tivesse de salvar tação – se desenvolve como um espeuma única obra de um intáculo medieval, um teatro de rua cocêndio, seria essa. Todo o mandando pelas memórias de Quaseu universo está contido derna, um velho palhaço”. ali” – discorre o jovem ator. Certamente, a reprodução do A composição do persouniverso mítico de Suassuna é uma nagem, como não poderia façanha, pela complexidade e densideixar de ser, baseou-se prindade das cenas e personagens. Principalmente no texto de Suascipalmente quando se tem em mente suna, com as contribuições que se trata de romance-tese, em que do próprio Luiz Fernando, todos os princípios estéticos do escride Tiche Vianna, prepator são brilhantemente colocados, em radora de expressão corporal, alguns momentos até com certa e de Ricardo Blatt, no queredundância. sito emocional. E também Diretor afeito a surpreender o púcom muitas conversas com o blico, Luiz Fernando assim agiu, já Na minissérie, Quaderna autor, juntamente com todo na escolha do ator que protagoniza a é um velho palhaço que o elenco. “O que senti era minissérie. desfia suas memórias que Quaderna era um buscador. Uma interrogação amQuaderna, o buscador Quando o diretor Luiz Fernando Carvalho virou-se bulante. Alguém que está em busca do seu caminho, para ele, no hotel em Olinda, onde mantinham a terceira de responder às grandes questões sobre quem somos conversa, e disse – “O papel de Quaderna é seu” – Eran- e para onde vamos e que para isso vai buscar, em suas dhir Santos quedou-se 10 minutos no mais absoluto silên- fontes, suas próprias raízes. Alguém que diante das cio. Formado há apenas dois anos pelo curso de Artes Cê- coisas indaga sempre, desconfiado e curioso, um ser nicas da UFPE, Erandhir, 28 anos, natural de Barreiros, único.” Quanto à expectativa da minissérie, Erandhir confia Pernambuco, não tinha qualquer experiência em televisão. Participara, é verdade, dos filmes Cinema, Aspirinas e Uru- no taco do diretor Luiz Fernando Carvalho que, “fuginbus e Baixio das Bestas, mas sua vivência era toda do teatro, do do naturalismo regionalista, conseguirá tocar o coraonde estreara na peça A Ver Estrelas, do dramaturgo e dire- ção de todos. Espero que a série faça com o espectador o tor João Falcão. Três anos antes, ele tinha gravado para que fez comigo, pois a leitura do livro e a interpretação testes de elenco na Rede Globo e foi com base nesse VT do texto me mostraram um outro Sertão, não apenas aque Luiz Fernando decidiu entrevistá-lo para compor o quele seco, cinza, mas um Sertão vivo, com cores fortes, elenco da minissérie que passou cinco meses sendo um lugar enigmático”. Tudo será conferido a partir do gravada no sertão de Taperoá, Paraíba, onde se desenrola dia 12 nos milhões de telinhas azuis espalhadas por todo o Brasil. • a trama do romance armorial de Suassuna. Continente junho 2007

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