Caro poeta Gari, Para o ótimo livro do nosso Joca, uma orelha ótima. No minguado espaço, uma lição de bem-escrever. Ocorre-me uma grave reflexão literária, que submeto ao seu exame. A orelha é quase um gênero, você não acha? Mais concisa e leve, uma versão do Prefácio e do seu abominável siamês, o Posfácio, este correspondente, nos livros, ao que é a ressaca nos porres. Além de agradável, a orelha é instrutiva. Já montei longas “referências bibliográficas” com base em orelhas bem escritas como esta. Chega. Estou quase a escrever uma orelha da orelha.
As histórias aqui reunidas são um saboroso painel do ethos pernambucano: gostos, costumes e valores de personagens anônimos e famosos. Ao narrá-las com verve e fluidez, Joca faz um registro de sua época, apresentando, mais que episódios engraçados, testemunhos da micro-história cotidiana. Homero Fonseca Neste Pano rápido desfilam personagens e situações que compuseram e compõem o panorama humano do Recife. (...) Tipos com emocionado espírito boêmio, dos muitos que enchiam as mesas recifenses dos bares Cabana e Savoy (entre os quais alguns dos 30 homens citados no poema de Carlos Pena). Garibaldi Otávio
Abraço, Aluízio. * O jornalista Aluízio Falcão leu os originais deste Pano rápido e enviou o e-mail acima para o autor da orelha, seu amigo Garibaldi Otávio. O texto tem tanto a ver com o livro que eu não poderia deixar de publicá-lo. ( JSL)
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Uma nova memória intelectual Garibaldi Otávio
Joca Souza Leão
www.cepe.com.br
JOCA SOUZA LEÃO
Orelha da orelha*
Nunca me agradou chamar história de causo. Histórias são histórias. E as que conto, aqui, são histórias de escritores, poetas, artistas, jornalistas, políticos, populares e boêmios pernambucanos (não só, mas principalmente). Histórias bem-humoradas. Se possível, engraçadas. Mas nunca anedotas, piadas ou lorotas. Histórias que ouvi em mesa de bar, debaixo de um pé de pau ou na varanda da casa de um amigo. Mas, evidente, quem conta um conto aumenta um ponto.
pano rápido
mado diante das rodas de amigos que enfrento com frequência, ao impulso de uisquinhos, para combater o desassossego. Todos excelentes, humaníssimos, contadores de histórias. Cada um deles arrotando a vantagem de reviverem lembranças que nascem dos tempos de mocidade e me encarando com ar de vitória diante da perspectiva de empobrecimento do meu acervo, definhando sem a vitamina com que eu o alimentava nas minhas leituras do Pano rápido na Algomais. Mas Joca me vinga agora com este livro. E com a vantagem de me levar com ele à mesma fonte que nos abasteceu intelectualmente na juventude: as férteis reuniões de amigos, sábios tagarelas, promovidas pelo seu pai, Caio de Souza Leão, no velho quintal da Rua Nicarágua. Onde se ouvia e se bebia de tudo. O mesmo endereço onde hoje o filho nos recebe com igual fidalguia, só que (preço do progresso) nove andares acima. Há melhor forma de se viver? E de aprender?
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JOCA SOUZA LEÃO
Exilado por longo tempo em São Paulo, sempre encontrei na revista Algomais uma fonte de reencontro com o Recife, com Pernambuco e confiável ponto de orientação nessa nossa intrincada realidade brasileira. E, ainda por cima, ganhava o refresco das bem-humoradas tiradas que nos eram relatadas na seção Pano rápido, criação deste cronista “arretado” que é Joca Souza Leão. Ali desfilavam personagens e situações que compuseram e compõem o panorama humano do Recife e que nos permitiam reviver o passado que nos iluminou ou nos decepcionou, ou dar forma ao presente que todos nós estamos abrindo com esperança. Pois bem, certo dia deparei-me com a notícia de que Joca tinha decidido encerrar a sua seção, com a desculpa esfarrapada de que “a fonte secou”, o que me fez escrever uma carta à redação da revista (publicada), lamentando o fim do Pano rápido e registrando que Joca dava uma contribuição inestimável à construção de uma nova memória intelectual para a sua legião de leitores. Pessoas (como eu) que viveram muitas daquelas historinhas e outras, mais jovens, que passaram a contá-las e, com elas, aprenderam as suas lições. Tipos com emocionado espírito boêmio, dos muitos que enchiam as mesas recifenses dos bares Cabana e Savoy (entre os quais alguns dos 30 homens citados no poema de Carlos Pena) e que, após o bar, varavam as noites com nossas meninas nas “Zonas” do Recife, nas pensões da Rua do Rangel. Na melhor das hipóteses, gente que não se vendia nem mesmo por uma fatia do bolo Souza Leão. Agora, sinto-me recompensado com a decisão de Joca de trazer o Pano rápido de volta na forma deste livro. E resgatar assim o seu imenso talento de escritor. Confesso que batalho aqui em causa própria, pensando na dura realidade de como fiquei desar>
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PANO RáPIDO, O LIvRO
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ideia era contar histórias. Nunca me agradou chamar história de causo. Histórias de escritores, poetas, artistas, jornalistas, políticos, populares e boêmios pernambucanos (não só, mas principalmente). Histórias bem-humoradas. Se possível, engraçadas. Mas nunca anedotas, piadas ou lorotas. Nada contra. Só que uma coisa é história; outra, anedota, piada e lorota. Histórias da melhor literatura oral pernambucana. Não necessariamente folclóricas, como tão bem e profundamente as pesquisou e contou Câmara Cascudo (Literatura Oral no Brasil). Mas histórias contadas em mesa de bar, debaixo de um pé de pau ou na varanda da casa de um amigo, bebendo e fumando, na época em que fumar não era pecado. Histórias narradas com estrutura e carpintaria de literatura, com esmero nos personagens e cenários; minicontos. Reais. (Mas, evidente, quem conta um conto aumenta um ponto.) História contada também é teatro. O contador é autor, diretor, ator, cenógrafo e sonoplasta. Com a vantagem de escolher a plateia. Aliás, ele, também, plateia. Pois é no meio dela que conta as histórias e reage como qualquer um, ri e chora. Histórias que ouvi e anotei ao longo da vida, muitas narradas por grandes contadores – entre eles, meu pai, Caio de Souza Leão –, ricas em interpretação, gestos, expressões, tonalidades, inflexões, ritmo e sonoplastia. (Quem ouviu as histórias de meu pai ouviu. Quem não ouviu perdeu. Não há como reproduzir por escrito as vozes e falsetes dos personagens interpretados, tampouco os recursos onomatopaicos.) Porque orais, as histórias podem morrer com seus autores, ouvintes e herdeiros. Se gravadas ou filmadas, perdem espontaneidade. Quem viu Manuelzão contando histórias no cinema sabe do que estou falando. O que fazer, então? Melhor, por certo, conhecer as histórias de Manuelzão no Grande Sertão: Veredas, porque Guimarães as ouviu, não na televisão ou no cinema, mas da boca do 9
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próprio Manuelzão, debaixo de um pé de pau nos sertões de Minas. E porque o grande escritor as contou como ouviu. Quando me ocorreu contar por escrito essas histórias pernambucanas, sobretudo recifenses, pensei logo na revista Algomais. E Sérgio Moury Fernandes, editor da revista, topou na hora. O título, Pano rápido, tomei emprestado do Pif-Paf, página de Millôr Fernandes na revista O Cruzeiro. O Pano rápido foi publicado em 28 edições da Algomais, de maio de 2008 a setembro de 2010. Quase 200 histórias, com mais de 300 personagens e coadjuvantes, na maioria pernambucanos. Mas, como no samba de Monsueto, “a fonte secou”. Ou minguou. Preferi então dar uma parada (contra a vontade dos editores, diga-se), juntar novas histórias e, quem sabe, voltar mais adiante. Até porque o Instituto Harrop fez uma pesquisa com os leitores da revista e eu fiquei todo ancho com o resultado: Pano rápido na cabeça, top entre as colunas preferidas. veio, então, a edição comemorativa dos cinco anos da Algomais, em março passado, e Sérgio Moury me pediu para selecionar oito histórias entre as publicadas, “pra matar a saudade dos leitores”. E foi justo um leitor, Aníbal d’Alencastro (“mineiro de Barbacena e olindense por derradeiro”), quem deu a ideia: publicar um livro. E Sérgio, mais uma vez, comprou a ideia no ato. “vamos fazer!” Montado o projeto, o livro foi submetido ao Conselho Editorial da CEPE Editora. Aprovado pelo Conselho, editado numa parceria SMF/TGI (editores da Algomais) e CEPE, em regime de coedição. As histórias, claro, foram revisitadas, enxugadas e reeditadas para o novo formato. Algumas, novas, novíssimas. Não resisti. Eram muito boas pra ficar de fora. Aqui o tem, leitor: Pano rápido, o livro. Joca Souza Leão, no sexto mês do ano de 2011
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ESSA HISTÓRIA vEM DE LONGE
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o final das caçadas, quando a noite jogava o seu manto de trevas sobre todas as coisas, os homens juntavam-se ao redor das fogueiras para se aquecer e se proteger das feras. Era nesse momento que um deles, quase sempre dos menos fortes e destros com as armas, começava a narrar, com voz límpida e gestos precisos, os sucessos passados, atraindo sobre si a atenção de todos. De certa forma, ele compensava suas deficiências guerreiras com esse dom admirado pelos outros. Os ouvintes, por sua vez, escutavam, com atenção redobrada, os relatos dos perigos e os triunfos das jornadas anteriores, alguns protagonizados por anciãos ou pelos que já morreram. Reviviam aquelas aventuras com medo ou orgulho e aprendiam com a experiência do passado. Na próxima caçada, quando deixavam as mulheres e as crianças no espaço seguro do entorno das cavernas, o ritual iria se repetir ao cair de cada noite. Milhares de anos depois... Milhões de pessoas em todo o mundo acessam a internet e navegam nos sites, nos blogues e nas redes sociais, deparando-se com uma quantidade galáxica de narrativas, com as quais se divertem, se emocionam, aprendem ou compartilham conhecimentos. Em comum entre o caçador primitivo e o nerde conectado do mundo contemporâneo está esse desejo de viver para contar e essa necessidade de ouvir para entender e sentir. E, embora as novas ferramentas tecnológicas venham tornando a comunicação entre os humanos cada vez mais interativa, a divisão universal do trabalho consagrou a especialização do contador de histórias em todas as culturas de que se tem notícia. Um especialista amado pelo povo, seja ele um escritor inserido no mercado editorial, seja el hablador da IberoAmérica - o narrador ambulante de histórias nas diversas civilizações pré e pós-colombianas. São profissionais de prestígio. 11
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Pereira da Costa, o notável garimpeiro da História de Pernambuco, registra em seus Anais Pernambucanos a existência, entre os tupis e caraíbas, de “depositários das grandes tradições poéticas” de seu povo, cujos predicados “outorgavam o privilégio de penetrar sem receios nos aldeamentos de todas as tribos, até mesmo as próprias inimigas, e se algum bom cantor ou inventor de trovas era encontrado entre os prisioneiros de guerra que faziam, por isso lhe dão a vida e não o comem, nem aos filhos, quer fossem homens, quer mulheres”. Em Cuba, desde 1865 existe um profissional único na arte de contar histórias. é o lector, atuante nas fábricas de charuto, com a função de entreter os operários responsáveis por enrolar as folhas de tabaco. Escolhido entre os operários, por sua habilidade na arte narrativa, lia de tudo, romances populares e jornais do dia, cânones como Dumas e Shakespeare, daí resultando o nome de duas das mais afamadas marcas de puros: Monte Cristo e Romeo y Julieta. Como os patrões não compactuavam com sua ausência na linha de produção, os demais companheiros estendiam suas jornadas de trabalho para suprir a lacuna. Após a revolução, o lector continua a exercer sua tarefa, agora com microfone e status de funcionário do Estado (o que inclui leitura de maçantes comunicados oficiais). Mas nem isso impede que o seu trabalho seja incorporado ao próprio marketing oficial das tabaquerias cubanas que proclamam: “Si el tabaco cubano es el mejor del mundo, en su calidad alta y refinada, influye, de manera indudable, el arte del lector de tabaquería que hace que el tabaquero imprima a la hoja la pasión de lo que escucha.” Já se fala até em submeter à Unesco a candidatura do lector à condição de patrimônio cultural vivo da Humanidade. Certamente é por essas e outras que o escritor e crítico Nelson de Oliveira afirmou: “Existem pessoas que simplesmente não têm como sobreviver sem uma dose regular de narrativas.” Ou seja, a arte narrativa para essas pessoas – que ouso supor sejam a maioria, se incluirmos os consumidores da teledramaturgia – é simplesmente um gênero de primeira necessidade. Dito isso, vamos ao que interessa aqui, neste prefácio: o livro de Joca Souza Leão é um depositário da “melhor literatura oral pernambucana, narrada com estrutura e carpintaria de literatura, com esmero nos personagens e cenários”, como salienta o autor com justeza e sem falsa modéstia, no que assino embaixo sem medo de errar. 12
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Movido pelo desejo ancestral de relatar casos reais e imortalizá-los na memória das gentes. Coisa que o insere perfeitamente na linha evolutiva que vai do protonarrador do tempo das cavernas ao qualificado blogueiro contemporâneo, passando pelo cronista de revista e jornal que seduz os leitores pela inteligência e bom gosto. As histórias aqui reunidas são um saboroso painel do ethos pernambucano: gostos, costumes, valores e preconceitos dos personagens anônimos ou famosos focalizados. Ao narrá-las com verve e fluidez, o escritor faz um registro de sua época. Os textos deste Pano Rápido, portanto, revelam mais que a simples narração de episódios engraçados quase sempre, envolvendo gente de carne e osso. Por sua escrita bem tecida e pela contextualização arguta dos episódios, são, como o antigo Repórter Esso, testemunhos oculares da micro-história cotidiana. Por fim, mas não menos importante, destaque-se o projeto gráfico assinado e realizado por Ricardo Melo, adotando com maestria o partido estético dos antigos almanaques: caricaturas (entre outras, de Miguel Arraes, Ascenso Ferreira, Chacrinha, João Cabral de Melo, Antônio Maria, Caio Souza Leão e Adoniran Barbosa), cores chapadas em fundos, ilustrações em profusão, recortes, balões com falas à histórias em quadrinhos, molduras pontilhadas etc. Tudo sem atulhar os elementos da página; ao contrário, com uso generoso dos espaços em branco. A tônica é a leveza, como a dos textos de Joca. Casamento perfeito. Homero Fonseca, agosto de 2011
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poetas
Eles perdem o amigo, não o mote O cerne em questão Eugênio Coimbra dedicava quadrinhas às suas malquerenças políticas, literárias e pessoais. A poetisa Edwiges Sá Pereira, casada com o Dr. José Quirino, foi uma de suas vítimas. O cerne retorcido, poema de Edwiges, ganhou uma quadrinha de Coimbra:
Senhora Dona Edwiges, Me responda de inopino, Esse cerne que tu falas É o pau de Zé Quirino? Bugres Aluízio Falcão visita o poeta Tomás Seixas, Bebé, em sua casa nas Graças.
Bebé, sentado no chão, em meio a pilhas de jornal. “Aluízio, há quinze anos que eu mando o mesmo artigo sobre Conrad para o jornal. Eles nunca leram. Publicaram e republicaram quinze vezes.” Num gesto teatral e grandiloquente, rasga a página do jornal, joga os recortes pra cima e vocifera: — Esta é uma terra de bugres!
destempero Carlos pena era ameno e bem-humorado. no mais das vezes, irônico. Mas quando lhe pisavam os calos, sarcástico. um crítico literário escreveu sobre sua poesia. Carlos não gostou. À noite, o encontrou no Bar Savoy. — Se burrice voasse, você seria um Constellation da Panair. (Constellation, o maior avião da época. Panair, a maior companhia aérea brasileira.)
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Se tiver, pode Joel Pontes se derreteu em elogios a uma poetisa pernambucana em sua coluna no Diario de Pernambuco. À noite, o poeta Jorge Wanderley o encontra num bar: — Só lhe perdoo se estiver comendo.
Mamata Edmundo Celso encontra um operário trabalhando com uma britadeira na Pracinha do Diário. Comunista, discurso afiado, abre o verbo: “Este é o herói anônimo brasileiro. Trabalha com esta máquina infernal por horas a fio, sem carteira assinada, ganhando uma ninharia...” O operário interrompe o discurso. “Não é nada disso, doutor. Trabalho seis horas, tenho carteira assinada e ganho seis salários.” Bem mais do que Edmundo ganhava no jornal. O poeta perdeu a compostura, mas não o mote. — Essa mamata vai acabar! 15
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Mais que equestre
A solução
Mário Melo foi deputado de um único mandato e de um único projeto de lei, que proibia estátuas e bustos de gente viva, além de vetar nome de vivo para ruas, praças e escolas. Mas um grupo de intelectuais e jornalistas pressionava o governador Cordeiro de Farias para que abrisse uma exceção para o busto de Manuel Bandeira. Mário disparou as baterias em suas crônicas no Jornal do Commercio. “Busto? Só quando um dos dois morrer: ele ou eu.” Bandeira lhe fez uma quadrinha:
Juarez Távora ainda era major (chegou a marechal). Por sua participação na Revolução de 30, Getúlio o nomeou ministro da Agricultura. Juarez tinha fama de burro. E, como todo burro que se preza, impudente. Solução de Juarez para o semiárido nordestino: importação de camelos. Oposição e imprensa caíram de pau e gozação. No Diario de Pernambuco, Austro Costa publicou um soneto, do qual anotei dois versos:
Mandei fazer uma estátua Por um novo Donatello Uma estátua mais que equestre Eu montado em Mário Melo.
Nossos problemas... Como resolvê-los? Criemos juízo!... Não. Criemos camelos.
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Desempregado A secretária da editora EBGE, que edita o livro Sociedade Pernambucana, do jornalista João Alberto, ligou para o poeta Marcus Accioly a fim de atualizar seus dados para a próxima edição: endereço, telefones, e-mail, essas coisas. Esbarrou na atividade profissional: “Poeta”. — O senhor já arrumou algum emprego?
pegadinha mauro mota caminha com um amigo e compadre na rua da Palma. Em frente à Casa dos Frios, Mauro propõe dividirem um queijo do reino. “você tá louco, Mauro, até parece que não conhece a sua comadre. Ela vai dizer que eu levei a metade pra casa e a outra metade pra casa da amante.” Mauro insiste e convence. “você manda ela ligar pra mim.” o compadre chega em casa, não dá outra: “Metade taqui e a outra metade só deus sabe onde tá.” “Liga pra Mauro.” Telefone ocupado (provavelmente, fora do gancho). “vamos à casa dele!” depois de insistentes palmas no portão, surge Mauro como se tivesse acabado de acordar. — Minha comadre! Meu compadre! há quanto tempo não os vejo!
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Ascenso Ferreira Reclamação
Desculpa
Ascenso, com sua voz gutural e grave como um trovão, era poeta popular, porém cortejado pelos eruditos modernistas. Naquele tempo, todo mundo tinha pudor de certas doenças. Menos Ascenso. Convalescendo de uma cirurgia de hemorroidas no Hospital Centenário, recebeu a visita do jornalista Murilo Marroquim. “você tá com a cara ótima!” — Cara? Tô reclamando é do cu!
Carlos Pena convidou Ascenso pra comer uma feijoada na casa da sogra, Dona Otília Barbosa. Ascenso agradeceu e justificou por que não ia: — Só sei comer feijoada peidando.
memórias Modesto funcionário da Secretaria da Fazenda, Ascenso ganhava um dinheirinho extra vendendo saco de aniagem pra embalar açúcar. E vendia mais caro que os concorrentes. “Qual é a mágica, Ascenso?” — digo pros usineiros que tô escrevendo um livro de memórias, com as virtudes dos amigos e os defeitos dos inimigos. nunca me pediram desconto.
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“Hora de trabalhar, pernas pro ar que ninguém é de ferro!” Sorte Ascenso ganha uma bolada no Cassino Americano, no Pina. Na saída, um mendigo lhe estende a mão. “vou dividir minha sorte com você, amigo.” E dá uma esmola arretada. De lá, direto pra zona do Recife. E continua dividindo a sorte, agora com as putas. Torra quase tudo. volta ao cassino. “Hoje é meu dia de sorte.” Perde o resto do que tinha ganho e mais algum. Na saída, o mendigo lhe estende a mão. — Foi você que deu azar! Me dê meu troco. 19
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escritores
Papel aceita tudo A escolha de Zora O cronista Rubem Braga era casado com Zora. E, até onde se sabia, Rubem inclusive, bem casado. Um belo dia, Zora comunica que iria deixá-lo. E viver com o escritor Antônio Olinto. — você pode até tá melhorando de homem. Agora, de escritor tá piorando muito.
A escolha de Rubem Tônia Carrero, atriz linda e famosa, era a paixão de Rubem. E o que não faltava era amigo invejoso: “Rapaz, não sei como você aguenta! Essa mulher fala pelos cotovelos.” Rubem só suspirava: — Mas que cotovelos! 20
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Na bucha perseguida e famosa hermilo borba Filho conheceu um camarada em Palmares que só apreciava fiofó. Quando casou, os amigos quiseram saber como tinha sido a lua de mel. Ele não se fez de rogado: — Boceta só tem é fama!
Numa solenidade em Campinas, o orador apelou pra velha e surrada bajulação à plateia: “Desta cidade saíram muitos homens de talento.” O crítico literário Agripino Grieco o aparteou: — Saíram todos.
O tempo ensina Programa da Tv Educativa. Otto Lara Resende pede a Nelson Rodrigues para que ele dê um conselho aos jovens. — Envelheçam logo, meus filhos, envelheçam logo para deixarem de ser tão ignorantes. 21
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nu ariano suassuna nasceu no palácio da redenção em 1927. o pai, João suassuna, era o governador da paraíba. em 68, ariano pediu uma audiência a João agripino, governador nomeado pela ditadura militar. o jovem oficial de gabinete não conhecia ariano. “o senhor não vai poder entrar no gabinete do governador sem paletó. mas eu lhe ofereço o meu.” ariano agradeceu a oferta. e deu a visita por encerrada. — meu filho, a primeira vez que cheguei neste palácio eu estava nu.
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Pontaria Pensão de Dona Berta, mãe de Noel Nutels, na Rua Gervásio Pires. Surge um rato na sala. Capiba, Ariano Suassuna e Rubem Braga, hóspedes, se lançam à caça. E é Rubem quem acerta o rato com o canudo que embalava seu diploma da Faculdade de Direito. — Eu sabia que isso ainda serviria para alguma coisa.
Lado bom Nascimento Brito, presidente do Jornal do Brasil, teve um derrame cerebral. O cronista Otto Lara Resende foi visitá-lo no hospital. O velho Nascimento tava com o lado esquerdo paralisado. De volta ao JB, Otto disse aos colegas de redação: — O Nascimento tem um lado bom.
Primeira-dama A mãe do escritor Humberto Werneck ligou de Belo Horizonte para o
filho em São Paulo e deu a boa notícia: “Humbertinho, seu pai foi nomeado diretor do Zoológico. Bão, né? Mas teve uma coisa que eu não gostei.” “Do quê, mãe?” — Ser primeira-dama do Zoológico, uai!
Estímulo A mulher de Graciliano Ramos, Heloísa, confessou ao marido que estava escrevendo umas coisas, mas não gostava de nada. “Acho que vou desistir.” — Insista, minha filha. Escreva. Zé Lins do Rego não escreve?
Troco Evento literário no Rio. Um bacana convida Graciliano para “vim (sic) compor a mesa, aqui no palco”. O velho Graça deu o troco: — Diz aí que eu não posso im. 23
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Caro poeta Gari, Para o ótimo livro do nosso Joca, uma orelha ótima. No minguado espaço, uma lição de bem-escrever. Ocorre-me uma grave reflexão literária, que submeto ao seu exame. A orelha é quase um gênero, você não acha? Mais concisa e leve, uma versão do Prefácio e do seu abominável siamês, o Posfácio, este correspondente, nos livros, ao que é a ressaca nos porres. Além de agradável, a orelha é instrutiva. Já montei longas “referências bibliográficas” com base em orelhas bem escritas como esta. Chega. Estou quase a escrever uma orelha da orelha.
As histórias aqui reunidas são um saboroso painel do ethos pernambucano: gostos, costumes e valores de personagens anônimos e famosos. Ao narrá-las com verve e fluidez, Joca faz um registro de sua época, apresentando, mais que episódios engraçados, testemunhos da micro-história cotidiana. Homero Fonseca Neste Pano rápido desfilam personagens e situações que compuseram e compõem o panorama humano do Recife. (...) Tipos com emocionado espírito boêmio, dos muitos que enchiam as mesas recifenses dos bares Cabana e Savoy (entre os quais alguns dos 30 homens citados no poema de Carlos Pena). Garibaldi Otávio
Abraço, Aluízio. * O jornalista Aluízio Falcão leu os originais deste Pano rápido e enviou o e-mail acima para o autor da orelha, seu amigo Garibaldi Otávio. O texto tem tanto a ver com o livro que eu não poderia deixar de publicá-lo. ( JSL)
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Uma nova memória intelectual Garibaldi Otávio
Joca Souza Leão
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JOCA SOUZA LEÃO
Orelha da orelha*
Nunca me agradou chamar história de causo. Histórias são histórias. E as que conto, aqui, são histórias de escritores, poetas, artistas, jornalistas, políticos, populares e boêmios pernambucanos (não só, mas principalmente). Histórias bem-humoradas. Se possível, engraçadas. Mas nunca anedotas, piadas ou lorotas. Histórias que ouvi em mesa de bar, debaixo de um pé de pau ou na varanda da casa de um amigo. Mas, evidente, quem conta um conto aumenta um ponto.
pano rápido
mado diante das rodas de amigos que enfrento com frequência, ao impulso de uisquinhos, para combater o desassossego. Todos excelentes, humaníssimos, contadores de histórias. Cada um deles arrotando a vantagem de reviverem lembranças que nascem dos tempos de mocidade e me encarando com ar de vitória diante da perspectiva de empobrecimento do meu acervo, definhando sem a vitamina com que eu o alimentava nas minhas leituras do Pano rápido na Algomais. Mas Joca me vinga agora com este livro. E com a vantagem de me levar com ele à mesma fonte que nos abasteceu intelectualmente na juventude: as férteis reuniões de amigos, sábios tagarelas, promovidas pelo seu pai, Caio de Souza Leão, no velho quintal da Rua Nicarágua. Onde se ouvia e se bebia de tudo. O mesmo endereço onde hoje o filho nos recebe com igual fidalguia, só que (preço do progresso) nove andares acima. Há melhor forma de se viver? E de aprender?
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Exilado por longo tempo em São Paulo, sempre encontrei na revista Algomais uma fonte de reencontro com o Recife, com Pernambuco e confiável ponto de orientação nessa nossa intrincada realidade brasileira. E, ainda por cima, ganhava o refresco das bem-humoradas tiradas que nos eram relatadas na seção Pano rápido, criação deste cronista “arretado” que é Joca Souza Leão. Ali desfilavam personagens e situações que compuseram e compõem o panorama humano do Recife e que nos permitiam reviver o passado que nos iluminou ou nos decepcionou, ou dar forma ao presente que todos nós estamos abrindo com esperança. Pois bem, certo dia deparei-me com a notícia de que Joca tinha decidido encerrar a sua seção, com a desculpa esfarrapada de que “a fonte secou”, o que me fez escrever uma carta à redação da revista (publicada), lamentando o fim do Pano rápido e registrando que Joca dava uma contribuição inestimável à construção de uma nova memória intelectual para a sua legião de leitores. Pessoas (como eu) que viveram muitas daquelas historinhas e outras, mais jovens, que passaram a contá-las e, com elas, aprenderam as suas lições. Tipos com emocionado espírito boêmio, dos muitos que enchiam as mesas recifenses dos bares Cabana e Savoy (entre os quais alguns dos 30 homens citados no poema de Carlos Pena) e que, após o bar, varavam as noites com nossas meninas nas “Zonas” do Recife, nas pensões da Rua do Rangel. Na melhor das hipóteses, gente que não se vendia nem mesmo por uma fatia do bolo Souza Leão. Agora, sinto-me recompensado com a decisão de Joca de trazer o Pano rápido de volta na forma deste livro. E resgatar assim o seu imenso talento de escritor. Confesso que batalho aqui em causa própria, pensando na dura realidade de como fiquei desar>
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