Pinturas e Platibandas

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Sobre a construção deste livro

Fachadas pintadas a cal pigmentada, com platibandas e enfeites, são constantes nas moradas populares do Nordeste, tanto no litoral quanto no sertão. Formam faixas nas ruas e praças dos vilarejos, cidades e periferias das capitais. Esse “correr de casas” me encanta desde a infância, vivida em Salvador e no Recôncavo baiano. Embora a minha família tenha se mudado para o Rio de Janeiro quando eu tinha 10 anos, a relação com a Bahia não se rompeu, e a cada verão havia um reencontro com o colorido das casas. Esse convívio engendrou Pinturas e Platibandas, que é o resultado de uma longa imersão nas paisagens urbanas e rurais do Nordeste, pontilhadas pelas cores e ornamentos dessas fachadas. Em 1970, quando já morava em São Paulo há 14 anos, comecei a fotografar intensamente durante as voltas à Bahia nos períodos de férias dos meus cinco filhos. No começo só em preto e branco, “anotações fotográficas” das voltas ao Recôncavo – paisagens, vegetação, trabalhos das mulheres, muitos retratos. De volta a São Paulo, depois de um curso de fotografia na Enfoco, escola muito acatada na época, dedicava-me a incontáveis horas de laboratório – cinzas, nuances, lentas descobertas das possibilidades de luzes e sombras, suavidades e contrastes. As anotações cruzaram o sertão baiano em 1972 e chegaram ao rio São Francisco. Na confluência com o rio Grande, registraram a cidade da Barra, onde se estabelecera um solitário genovês de 30 anos, vindo da Córsega em 1760, meu antepassado Antonio, o primeiro Mariani a pisar o solo brasileiro. O encontro visual com o Sertão, preparado pelos escritos de Euclides e Suassuna e pelos relatos de um tio que mantinha relações com sua origem sanfranciscana, foi deslumbrante e o marco inicial da realização das inúmeras imagens fotográficas que fui apurando nos anos que se seguiram. As fachadas já se destacavam nesta travessia, mas ainda não chegara a hora da introdução da cor nas fotografias. Só em 1974, quando voltei à cidade da Barra e fui conhecer Xique-Xique, distante 30 quilômetros, rodados em três horas de arrodeios, ensaiei meus primeiros “retratos” coloridos (p. 209).

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Em 1976, enquanto seguia os rumos iniciais de Antonio Conselheiro na Bahia, assumi as fachadas como tema principal. E a cada ano fui encompridando os caminhos, cruzando o Sertão em muitas direções, alcançando lugares distantes e inesperados, recantos pródigos em surpreendentes exemplos para o meu inventário. A partir de 1982, ultrapassei as fronteiras da Bahia para traçar novos roteiros através de Sergipe, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. Encontrei fachadas com a mesma riqueza: Piaçabuçu, em Alagoas, e Ingá, na Paraíba, se revelaram extraordinárias. Na volta do Ceará, em 1983, ainda sem qualquer projeto definido – era algo eufórico, urgente, envol­vente –, projetei diapositivos para amigos e houve uma acolhida calorosa. A ideia de um álbum/registro começava a se delinear, e Gabriel Zellmeister, que assina a diagramação, colaborou intensamente desde esse início. Nossas primeiras decisões: expandir ainda mais os trajetos para marcar a amplitude e a extensão geográfica do fato cultural; apresentar as fachadas sem fronteiras políticas ou mesmo regional-geográficas (Litoral, Recôncavo, Zona da Mata, Agreste, Sertão etc.), já que depois de anos de convivência eu não era capaz de afirmar a localização de uma fachada desconhecida – raros são os lugares que apresentam características típicas, como as ventilações de alvenaria da região de Goiana-pe (pp. 50 a 53) ou as platibandas com vértices centrais, comuns em Ingá-pb (pp. 58 a 61) –; mostraríamos apenas fachadas pintadas a cal, com portas e janelas de tábuas, embora os registros incluíssem fachadas com portas industrializadas, venezianas, basculantes e pinturas com látex que foram se tornando mais frequentes a cada ano; seriam apresentadas numa escala aproximada obtida a partir das portas e assentadas numa “linha de terra” (encontro da fachada com o chão) sempre à mesma altura da página. A escala não poderia ser estabelecida a partir de uma medida absoluta, posto que as portas de tábuas, que tomaríamos como referência, não são industriais. Faríamos os necessários ajustes aproximativos baseados em memórias.

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Definida a escala, a dimensão das imagens seria resultante do tamanho da fachada. O formato não seria aquele do fotograma de 35 mm, até então muito cultuado por mim, enquanto constrangimento muito estruturador do olhar para as fotografias de paisagens. Não existiriam dois formatos iguais em toda a sequência. A decisão de mantê-las numa escala aproximada e implantadas à mesma altura na página criou uma atmosfera de ordem necessária à realização do livro, já que as fotografias eram obtidas sem projeto, sem tripé, sem proximidade fixa, sem escolha do momento de luz mais adequado, sem qualquer método preconcebido. A seleção das fotografias se alongou por quase três anos, recebendo, de tempos em tempos, imagens trazidas de novos itinerários. Voltei a lugares que já havia conhecido e vi, muitas vezes, fachadas repintadas com novas cores, testemunho da reinvenção contínua do colorido (pp. 44, 59, 119, 170, 176, 186, 187). Tive a sorte de presenciar o cuidado na execução de uma linda pintura em Fazenda Nova (p. 149). Em agosto de 1986, fiz uma longa viagem a partir de Bom Jesus da Lapa, que conheci engalanada em plena romaria. De lá, mar­geando e navegando o rio São Francisco, cheguei a Juazeiro, e depois, descendo pelo Sertão, voltei a Salvador. Desses dias, vieram fachadas preciosas: face à página de rosto, branco sobre branco, minimalismo necessário em Ponta d’Água (p. 2); nas páginas 172 e 173, Caratacá, reluzente de ousadia e vigor. A sequência foi organizada a partir das fachadas mais tênues e singelas para as mais intensas e complexas, quando a incorporação de elementos da arquitetura erudita, da engenharia dos galpões industriais (sheds, p. 131) e de elementos das artes decorativas é visível. Ao mesmo tempo, foram agrupadas por analogias entre os enfeites, como são chamados os detalhes decorativos: representações da paisagem tais como flora, cristais, malacachetas, sóis, crescentes, estrelas; faixas, laços, listas e quadriculados (pp. 146 a 163); recortes das platibandas (pp. 110 a 129); estilos, entre os quais predomina o chamado “moderno” (pp. 172 a 199), absorvido do art déco, que foi muito utilizado no Nordeste na década de 30 do século passado pelos serviços públicos – na página 174, o prédio dos Correios é um exemplo.

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Ao dispormos no chão centenas de fachadas formando um imenso caracol que nos permitia vislumbrar o futuro livro inteiro, elas próprias pareciam se organizar, numa coreografia caleidoscópica introdutora de novas constelações. Pinturas e Platibandas foi o nome escolhido logo no início porque pintura é como os moradores nomeiam suas fachadas ornamentadas (“Gostou da minha pintura?” “Mudei a pintura!”) e platibanda é palavra de uso corrente no Nordeste para designar o topo da fachada que oculta o telhado e que é, em geral, a parte mais enfeitada das pinturas. A platibanda foi introduzida no Brasil pela Missão Francesa na onda do classicismo romântico. A Lei da Bica, em realidade uma postura municipal de Salvador de 1850, instituiu a obrigatoriedade de calhas que recolhessem a água dos telhados, protegendo com isso as calçadas. As calhas passaram a ser ocultadas por platibandas, e os beirais tornaram-se inadequados às construções urbanas. No inicio do século xx, o seu uso já estava bastante difundido por todo o Nordeste, embora a expressão “sem eira nem beira”, que se popularizou aplicada para desvalorizar qualquer situação, derivou-se dessas casas sem o pátio e o beiral característicos do período colonial. Nas construções populares rurais do Nordeste, as platibandas aparecem com o mesmo ímpeto que ocorre nas urbanas. Achei interessante permear algumas delas na sequência. (pp. 54, 56, 157 e 224). Nas páginas 31 e 43 desta edição, introduzi fotografias em que convivem lado a lado beirais e platibandas. Em 1987, quando preparávamos a primeira edição deste livro, já contava 14 viagens aos sete estados do Nordeste e cerca de 1200 fachadas fotografadas em mais de 100 localidades. Já com a edição em andamento, recebi um convite da 19ª Bienal Internacional de São Paulo para apresentar fotografias de 100 fachadas. Para a exposição, foi preciso substituir a delicadeza proposta para as imagens no livro, quando há tempo para serem descobertos detalhes e nuances, e preparar uma nova maneira de mostrar que facilitasse uma apreensão rápida do público. O apoio que recebi foi um estímulo para acreditar na força do tema e o livro foi impresso

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e lançado antes do encerramento da Bienal. Para a impressão das 215 imagens escolhidas, tive o privilégio de contar com os conhecimentos de Josef Brunner, que se esmerou em reproduzir no papel a transparência e a luminosidade da pintura a cal. Entre 1987 e 1997, fiz mais 12 viagens ao Sertão e, mesmo sem considerar a possibilidade de refazer o livro, fotografava fachadas enquanto me dedicava a outros temas. Nesses dez anos, meu inventário-mostruário-rol cresceu, percorri novos caminhos e ainda pude conhecer novos lugares. Nesta reedição, os antigos fotolitos foram substituídos por processos digitais que antecedem a impressão. A edição mantém as duas principais regras da primeira – escala única e linha de terra. A intenção de que a sequência se assemelhasse ao desenrolar de um novelo, que cada página virada convidasse cromaticamente à seguinte, foi aprimorada numa busca de que a apresentação contivesse algo do que sempre me sensibilizou e atraiu ao me aproximar das casas: um zelo na execução de detalhes. Mantive a centralização das imagens nas páginas, mas aliviei muitas vezes a centralização das fachadas nas imagens para permitir a introdução de elementos do entorno, principalmente a paisagem e a vegetação. Na primeira edição, ficou clara a prioridade absoluta dada às fachadas, foram protagonistas indiscutíveis. O entorno que agora as envolve por vezes, seja ele urbano ou rural, revela também a minha intenção de contextualizar as fotografias. Pela amplitude, frequência, intensidade, complexidade, vigor e resistência, estas fachadas são um patrimônio da cultura popular brasileira: mecanismo espontâneo de sobrevivência cultural adaptativa, mescla de tradições e memórias multiétnicas com incorporações incessantes de formas novas, refletem nostalgias e aspirações, criam arquitetura doméstica, espaço cênico e paisagem urbana. Os novos padrões introduzidos pelo progresso necessário são assimilados e utilizados enquanto persistem aspectos absorvidos de estilos tradicionais, ao sabor da vontade dos mestres-pedreiros e dos moradores, exibindo a visível atemporalidade das realizações.

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As fachadas mostradas no livro possuem semelhanças e, ao mesmo tempo, são profundamente singulares. Não defendo que sejam modelos para novas construções nem que este padrão deva ser mantido para sempre, posto que vivemos numa era de transformações nunca vistas e cabe às populações a decisão de manter a tradição ou atender a novos anseios e propostas oferecidas a cada dia. O livro é registro fotográfico de um tema num tempo e num espaço que tive a sorte de conhecer. Certos conjuntos de fachadas, construídos a partir da intensa e primordial necessidade do morar, surpreendem a cada vez como algo imaginoso, expressão vívida de sonho humano. A praça de Poço de Fora, aqui apresentada numa fotografia aérea feita pelo arquiteto Joaquim Guedes em 1976, interage com a epígrafe de Ariano Suassuna. Quando a vi pela primeira vez, provocou a surpresa e o encantamento da aparição de um arco-íris.

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Anna Mariani, 2010

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