No Cruzamento de Personae, Notas Sobre Notas João Denys Araújo Leite
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Em Humano, demasiado humano, Nietzsche afirma que “o autor tem direito ao prefácio; mas ao leitor pertence o posfácio”. Mas, ainda há, ou algum dia houve, quem leve a sério um prefácio? Rogo aos leitores que me perdoem a redundância deste pré-texto para A personagem dramática, de Rubem Rocha Filho (1939-2008). Redundante porque não pode falar de outra coisa que não seja o que já vem esmiuçado nas páginas que se seguem. Redundante por não poder falar mais que o autor e falando menos diz provavelmente o mesmo que ele, com palavras diferentes, assumindo as paráfrases, resenhando na melhor das hipóteses, ou sumariando, quando muito. Talvez por isso, muitos creem na inutilidade dos prefácios. Outros acreditam que o prefácio é a senha de penetração no texto, mas corre o risco de tornar-se esfinge mais complexa que a própria obra prefaciada. Às vezes é a abertura de portas sólidas e herméticas. Não é este o caso. Rubem abre 1 João Denys Araújo Leite (Currais Novos, RN, 1957) é professor e pesquisador do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística, da Universidade Federal de Pernambuco. Encenador, dramaturgo, cenógrafo, figurinista, aderecista, maquiador e iluminador, é mestre em Teoria da Literatura, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. Sua dissertação Um teatro da morte: transfiguração poética do Bumba-meu-boi e desvelamento sociocultural na dramaturgia de Joaquim Cardozo recebeu o Prêmio Jordão Emerenciano, de Ensaio, do Conselho Municipal de Cultura (Recife, 2002). Publicou, sob o título geral Trilogia do Seridó, três peças de sua autoria. Sua encenação mais recente é Os fuzis da senhora Carrar, de Bertolt Brecht (2010).
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generosamente as portas do seu ensaio com a paciência do genuíno pedagogo. Além da redundância aludida, meu prefácio está entretecido com material analítico e passional. Analítico porque penetrei cada capítulo saboreando o que o autor chama de notas sobre a personagem dramática e desentranhei das sequências expositivas as mais preciosas informações sobre o cerne do teatro: das probabilidades genéticas a uma certa atualidade. O percurso do autor, nesse sentido, manifesta uma nítida preocupação didática, sem didatismo, perpassada com luzes eruditas, com um cabedal de exemplos reveladores da vasta e profunda cultura de quem domina, como poucos, o assunto e a escritura. Nunca é demais salientar a versatilidade intelectual de Rubem, desvelando-se como dramaturgo, ator, encenador, professor, ensaísta. Seu texto revela, no traçado construtivo, uma poesia, uma cadência, uma seleção e uma combinação de fatos, ideias, obras e autores que confirmam as qualidades de sua personagem, de seu espírito livre. Minhas notas sobre as notas de Rubem são passionais pela satisfação de concitar os leitores, sobretudo os jovens estudantes de teatro, à leitura de um autor que esteve presente, e de forma decisória, em momentos muito importantes de minha existência, contribuindo para o meu reconhecimento artístico, profissional e humano. Daí ser difícil fugir das lembranças, escamotear a memória, em nome de uma postura imparcial ou distanciada. A personagem dramática faz uma síntese admirável da história canônica do teatro ocidental de braços dados com a história do teatro brasileiro. Em ambos os casos o recorte é o texto dramático e este por sua vez tem como centro o sujeito das enunciações2. A tentativa de uma taxonomia 2 Quanto à concepção de personagem como sujeito da enunciação, cf. UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Tradução coordenada por José Simões Almeida Junior. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 74.
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da personagem e de seu estudo diacrônico se faz necessária visto que, pondo entre parênteses as categorias teóricas que envolvem a personagem de ficção e mais precisamente a complexidade da personagem teatral, sempre numa encruzilhada de relações dialógicas, o autor promove uma visada dessa figura, numa espécie de panorama que abarca o epaço-tempo do seu surgimento até meados do século 20. Rubem confirma o que parece óbvio e que tem, entre tantos pensadores do teatro, em Nicolas Evreinoff, autor de The theatre in life, seu principal companheiro e defensor: a personagem é anterior ao teatro. Nesse sentido, ele anota sobre a faculdade humana de se transmutar ou desdobrar-se ou transfigurar-se em objetos inanimados, em forças da natureza, em animais; capacidade arduamente treinada para tanger o divino. Essa capacidade congrega em seu fenômeno o esqueleto, ou “genoma”, da personagem: um sujeito de relações, múltiplo, duplo dele mesmo, médium de intrincados e diversificados discursos referenciais que, no seu grau zero, estabelece conexões com o ator e dele sofre as consequências psicofísicas ou, ao contrário, estrutura-se psicofisicamente a partir do que o ator oferece e põe em condições de encenação. Esses apontamentos nos estimulam a enxergar uma matriz fenomenal da persona teatral nos rituais ancestrais e nas práticas religiosas indígenas e africanas e delas provenientes, para só então adentrarmos no mundo grego, em que a personagem corporifica a gênese do teatro ocidental, composta de um adensado conjunto imagético, arquetípico, simbólico, para o qual Aristóteles dedicou sua Poética, obra fundamental para os estudos teatrais e que, como verão, receberá lugar de destaque no ensaio de Rubem. Em parágrafo anterior, afirmei que o trabalho de Rubem faz uma síntese da história do teatro mundial de braços 9
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dados com o teatro brasileiro. Este é um aspecto primordial deste ensaio, ou seja, a permanente conexão mundo-Brasil, passado-presente, longe-perto. Desde as primeiras páginas o leitor deparar-se-á com manifestações de nossa cultura, a exemplo do Candomblé ou com os nomes de Alda Garrido e Dercy Gonçalves, atrizes que mais que “médiuns” transgrediram os limites entre personagens e dramaturgos, impondo com suas personalidades histriônicas um estilo que desviava a personagem que representavam das rotas preestabelecidas pela escritura dramatúrgica. Se cotejarmos a ensaística brasileira que trata da personagem, sobretudo o pequeno e precioso capítulo de Décio de Almeida Prado intitulado A personagem no teatro3 e Dramaturgia: a construção do personagem4, de Renata Pallottini, só para citarmos duas obras consistentes, verificaremos que o trabalho de Rubem, originalmente publicado pelo então Instituto Nacional de Artes Cênicas, INACEN, em 1986, destaca-se por primar pelos exemplos retirados da dramaturgia brasileira e de importantes manifestações teatrais da região Nordeste. Como realizar uma antropologia de personagens, ainda hoje vivas, em sua técnica antinaturalista, em sua atuação tipificada e histriônica, em sua aderente relação com o ator/ brincador? Há um diálogo entre essas personagens e um teatro praticado no Brasil? As respostas, o leitor verá, encontram-se nos capítulos dedicados à Comédia romana, ao Teatro medieval e à Commedia dell’Arte. Nestas dimensões espaciotemporais de criação estão, provavelmente, as bases ancestrais de um teatro brasileiro assinalado pelo melodrama, pelos quadros curtos, 3 In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 83-101. 4
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: a construção do personagem. São Paulo: Ática, 1989.
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ou sketches, pela dança, pela galhofa, pelo mimo e pela invenção coletiva do povo. No vasto panorama que Rubem executa com maestria, para além do gênio de William Shakespeare, “encruzilhada de correntes artísticas e humanísticas”, criador das personagens mais englobadas e mais concretamente ficcionais de que temos notícia, pois urdidas com sound and fury e com a matéria de que são feitos os sonhos, está Gil Vicente, anterior ao bardo inglês, em outra encruzilhada de personagens reduplicadas, a lutar com as antíteses, com o esplendor e a variação de um único tema: “a Encarnação e a Graça”. Este investimento vicentino sintetiza as farsas de feiras medievais, enriquece as personagens alegóricas e cultiva as personagens individualizadas, que vão conquistando espaço com a chegada do Renascimento. Os recursos didático-teatrais do dramaturgo português prenunciam procedimentos técnicos de um teatro moderno brechtiano e até mesmo daqueles utilizados pelos dramaturgos encaixados em um conceito pós-dramático. Após comentar a escandalosa e magistral Celestina (1499), de Fernando de Rojas e distinguir Dom Juan como a personagem única, de dimensões abissais, produzida pela maestria espanhola de ação e movimento; depois de deter-se no teatro clássico francês, mais precisamente na genialidade de Molière, Rubem chega ao século 19 e brindará o leitor com o sugestivo capítulo intitulado As teses lacrimogêneas e o riso fácil. Neste ponto da obra encontra-se uma chave bem moldada para entendermos o núcleo caracterizador de uma fisionomia do teatro brasileiro, ou melhor, da fisionomia de suas personagens e do gosto do público mais numeroso que frequenta o nosso teatro, em todos os quadrantes do País. Refiro-me a um ponto central de um cruzamento de tendências diacrônicas e sincrônicas que se movimentam no tempo, desde a gulodice histriônica demandada pelos roma11
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nos, os caracteres da Atelana, que reverberaram na comédia medieval, no teatro vicentino, nos autos do Padre José de Anchieta, na Commedia dell’Arte, até ecoar no desfile das escolas de samba. Mas, como esta hipótese não é formulada, apenas vagamente divisada no subtexto de Rubem, voltemos à concretude de seus escritos. “A dimensão psicológica densa e terrível” das personagens de Anton Tchekhov, imersas numa temporalidade esfacelada, abrirá uma atmosfera e um espaço novos para a dramaturgia que, paulatinamente, se conforma a um conjunto de ideias realistas. Os novos tempos exigem temas e figuras urgentes: as enormes contradições dilacerando personagens e, consoante, estruturando-as; a burguesia exercendo forte opressão à classe trabalhadora, a mulher tateando por uma incipiente emancipação e, ao lado de vistosos progressos técnicos, a exaustão de um século 19 que se exaure com agressiva desigualdade social. Estes temas formam discursos, mais precisamente teses sociais, que clamam por porta-vozes bem estruturados para a ribalta, o tablado, lugar privilegiado à duração encenada de Henrik Ibsen, George Bernard Shaw e Anton Tchekhov. Ibsen destaca-se dessa tríade, como o mestre que influenciará os maiores dramaturgos do século 20: de Strindberg a Nelson Rodrigues. O livro suspende seu curso com a personagem épica, após nos ter apontado as preciosas contribuições de grandes poetas para a criação teatral e revelado o fascínio que o oriente exerceu sobre o teatro ocidental, especialmente o teatro tradicional do Japão e da China. O núcleo deste último capítulo é composto pelos dramaturgos Thornton Wilder e Bertolt Brecht, autores basilares na edificação da personagem épica moderna. Sucintamente, o autor nos apresenta essa personagem/narradora, contraditória e autocrítica, ao lado do ator que, por sua vez, joga com ela, veste e desveste seu gestus. 12
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O agudo senso perspectivista de Rubem aponta, por fim, para o alvo mais rico de personagens épicas do teatro brasileiro, o Bumba-meu-boi que, de forma mais crua, amalgama a trilha paradigmática sugerida neste prefácio para entender o teatro brasileiro e suas personagens. Transpondo os limites do ensaio que tenho a satisfação de prefaciar, acredito também que o papel da personagem é de “mediadora entre texto e representação, entre escritor e espectador, entre sentido prévio e sentido último”. A personagem carrega sua contradição fundamental imanente ao teatro: por trás da fala da personagem não há nenhuma “pessoa”, nenhum sujeito, mas um vazio. Sua fala impulsiona por meio “desse vazio mesmo, e pelo desejo que suscita, o espectador a nele investir sua própria fala”5. O autor não chegou a desenvolver este tópico, que terá relevantes desdobramentos na teorização da personagem, mas deixa o campo aberto, quando se refere aos anos 1980, reconhecendo a fragmentária constituição do arcabouço de personagens contemporâneas das últimas décadas do século 20, com suas encruzilhadas de filamentos e caminhos, na maioria das vezes desarmoniosas, ou, como afirma Patrice Pavis, “uma síntese mais ou menos harmoniosa de várias formações discursivas” 6. Compreende, no entanto, Rocha Filho, que a personagem teatral tornou-se mais difícil de ser apreendida, tornou-se polimorfa, como também infere Pavis. Porém, como o próprio autor coloca em nota final, cada passo deste tão amplo “legado dramatúrgico” necessita ser completado em seus interstícios, em seus vazios. Mesmo assim, o intento dele é plenamente atingido, pois a incompletude de seu trabalho abre janelas, portas, escadas e sendas para que um profundo plano de estudo seja concretizado. 5 UBERSFELD, Anne. Op. cit., p. 90. 6
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. 2ª ed. Tradução sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 289.
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Rubem suplementa seu estudo com dois adendos: o primeiro, com o título Técnicas de Análise Dramática – uma contribuição brasileira, em que resenha o capítulo A personagem no teatro, de Décio de Almeida Prado, ao qual já fizemos menção, e o segundo, A Incelença, nasce uma Personagem, no qual faz uma rápida visita a alguns elementos constituintes de uma incelença, ritual fúnebre cantado, típico do interior nordestino. O que Rubem quer despertar no leitor, e quiçá nos dramaturgos, é o interesse por capturar o teor épico-teatral invulgar existente nestas manifestações, para que sirvam de matrizes estéticas a uma determinada dramaturgia brasileira, a exemplo do que fizeram Luís Marinho, com a incelença, com o pastoril; Ariano Suassuna, com a literatura de cordel; Joaquim Cardozo e Hermilo Borba Filho, com o Bumba-meu-boi. Se os estudantes, e aqui me perdoem novamente os leitores especializados, souberem questionar cada capítulo, investigar cada autor citado e ler cada peça mencionada, podem ter certeza de que farão um primoroso curso de teoria e história do teatro, a partir de A personagem dramática. Que a leitura que se inicia nas próximas páginas provoque o delicioso prazer que experimentei e que cada um possa ensaiar a não menos prazerosa elaboração do seu próprio posfácio. Recife, Madalena, 28 de maio de 2010.
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