Continente Edição Fliporto

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maíra gamarra

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aos leitores Clarice Lispector possui uma aura inquietante. Sua beleza incomum, seu porte, sua presença feminina peculiar e ímpar na literatura brasileira foram qualidades que facilmente a colocaram no patamar de mito. Como se esses elementos externos à obra não bastassem, sua escrita provoca no leitor o mesmo desassossego que sua figura; estabelece uma proximidade estranha e profunda. Ela se mostra tão igual e diferente de nós... Essa autora está sendo celebrada, desta vez, na 6ª edição da Festa Literária Internacional de Pernambuco – Fliporto. O aspecto imediato que justifica a homenagem à escritora de nacionalidade ucraniana, migrada criança ao Brasil, é sua origem judaica, pois o tema da Festa é justamente A literatura judaica e o mundo ibero-americano. Outro elemento que traz Clarice ao encontro é

sua história pessoal, já que a família Lispector fixou-se no Recife, tendo a futura ficcionista passado sua infância e pré-adolescência na cidade, memória que certamente ecoa na sua obra, como podemos observar pela leitura de alguns de seus textos. Nesta edição especial Fliporto da Continente, trazemos um dossiê sobre a autora originalmente publicado no nº 36 da revista (de janeiro de 2004), em que vários aspectos de sua vida e obra são observados. Como conteúdo especialmente produzido para ela, temos uma genealogia dos judeus que em Pernambuco se fixaram, durante o Período Holandês, realizada pelo pesquisador Leonardo Dantas Silva. Trazemos também resenhas e indicações de alguns dos títulos que serão lançados ou relançados na Festa e o depoimento de Antônio Campos, criador da Fliporto.


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sumário

22 História

Período Holandês Uma genealogia da comunidade judaica que se estabeleceu em Pernambuco

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Resenhas

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Saída

Especial

Clarice Lispector As várias faces literárias da romancista, contista e cronista brasileira de origem ucraniana

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Alberto Manguel O escritor argentino faz o lançamento de seu novo romance, Todos os homens são mentirosos, na Fliporto

Antônio Campos A Fliporto e a cultura do diálogo

Capa ilustração Cavalcante

COLABORADORES Antônio Campos é advogado e escritor. Cláudia Nina é jornalista e autora de A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector. Daniel Piza é jornalista e escritor. Leonardo Dantas Silva é jornalista, escritor e pesquisador, autor de vários estudos sobre o Período Holandês. Luzilá Gonçalves Ferreira, é escritora e professora universitária. Maria da Paz Ribeiro Dantas é escritora. Mariana Camarotti é jornalista. Schneider Carpeggiani é jornalista, doutorando em Teoria Literária.

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reprodução

con ti nen te

ESPECIAL

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entender é

a prova do erro Tomando uma de suas frases como paradigma, buscar a compreensão total de uma obra complexa e múltipla como a de Clarice Lispector é tão inútil quanto improvável texto Cláudia Nina

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con eSPECIAL ti nen te FOTOS: REPRODUÇÃO

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Falar de Clarice Lispector não

é referir-se a uma só pessoa. Nem tampouco a uma escritora de obra homogênea e sem fissuras. Clarice Lispector é múltipla em vida e obra. Talvez por isso a sua fortuna crítica seja tão extensa, incluindo aí os trabalhos bio­gráficos que tentam rastrear a mulher por trás do mito. Ao perfil de uma Clarice que gostava de ir a cartomantes, era supersticiosa, acreditava no poder dos números e tinha um ca­chorro chamado Ulisses, soma-se a silhueta de mistério, penumbra e até um soturno encantamen­to de quem fazia questão de manter uma aura enigmática e que, atormentada pela ideia de morte, em uma de suas últimas entrevistas, já doente, chegou a dizer: “Estou falando de dentro do meu túmulo”. A obra de Clarice Lispector reflete essa complexidade e o caráter múltiplo que marcaram a per­so­nalidade da autora. Não se prendeu a um gênero. Aliás, passou a detestá-los à medida que seus escritos iam perdendo contornos precisos. Começou no romance, com Perto do coração selvagem,

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a bela estreia de 1944, mas também foi brilhante contista e, a partir de fins da década de 1960, iniciou as crônicas, publicadas no Jornal do Brasil, primeiro como uma forma de ganhar di­nheiro nos anos difíceis após o divórcio, mas depois acabou tomando gosto; sua ficção chegou a ser diretamente influenciada pelo estilo pessoal e delator com que se lançava nos textos da imprensa. Tudo o que Clarice Lispector escreveu, em qualquer gênero, foi perturbador. Fingia escrever fácil, mas, por trás de uma simplicidade enganosa, havia um arranjo altamente elaborado, filosó­fico e meta­físico. A bruxaria – tão comentada em função de sua participação num congresso de bruxaria na Colômbia – também veio daí: dessa mistura fabulosa que “amarra” os leitores pelo pé. Impossível manter-se indiferente a uma escritora como ela. Clarice escreveu de tudo um pouco, sempre tendo como ponto de partida a vida urbana e o cotidiano, transformados em “delicado abismo da desordem”, como escreveria mais

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tarde em A legião estrangeira. Num tempo ainda fortemente marcado pela literatura regionalista, em meados da década de 1940, sua escrita diferenciada surgia com impacto surpreendente. Roman­ce de for­mação (bildungsroman), aventura da linguagem por excelência, Perto do coração selva­gem trazia, em sua porosa estrutura, a palavra como sendo a grande estrela da narrativa, mais im­portante do que os fatos ou a história em si. Não é à toa que Joana, a personagem, brinca de criar poemas desde criança. Chega a inventar uma palavra – “lalande”, o seu abracadabra, que pode ser qualquer coisa: uma lágrima de anjo, um mar de madrugada, uma praia ainda escurecida... Logo após o sucesso de Perto do coração selvagem, críticos e leitores procuravam por um rosto – onde estava Clarice? Quem era a autora daquele romance tão singular, que redimensionava a linguagem literária brasileira da época? Poucos sabiam. Afinal, Clarice partira para seu exílio pessoal acompanhando o marido, o diplomata Maury Gurgel. Logo ela, que nasceu na Ucrânia, mas


1 desenho

Retrato da escritora feito pelo escultor Alfredo Ceschiatti, em janeiro de 1947, Paris

2 diplomacia

A escritora morou vários anos na Europa, acompanhando o marido Maury Gurgel

se considerava a mais brasileira das brasileiras, que passara a infância no Recife, sua mais doce lembrança, e a adolescência no Rio, onde se formou em Direito, viveria quase 16 anos entre a Europa e os Estados Unidos. Uma tortura, como atestam as várias cartas que escreveu no ex­terior e que montam um excelente e curioso epistolário, parte dele já publicado em livro. No exílio, a literatura foi a grande salvação emocional de Clarice. De lá, a autora enviou três romances – O lustre, A cidade sitiada e A maçã no escuro –, obras densas, soturnas, que falam de personagens solitários e estranhados em seus desertos pessoais, numa atmosfera totalmente diferente daquela que marcou sua estreia. Interessante é observar que a autora nunca teve medo de romper consigo mesma em busca da novidade. Sua obra é marcada por rupturas, uma delas a que inaugura a fase que se inicia após Perto do coração selvagem. Os romances escritos durante o período do exílio, ao contrário da

estreia, não tiveram boa aceitação por parte da crítica e – insondáveis razões – ainda hoje permanecem como “patinhos feios” de sua ficção. Talvez seja justamente por eles terem “frustrado”, por assim dizer, leitores que esperavam da autora uma carreira de continuidade; esperava-se que ela escrevesse algo semelhante ao primeiro ro­mance ou que, pelo menos, fosse algo que aprofun­dasse um estilo já quase consa­grado em sua nascente. Clarice, no entanto, optou pela surpresa. Ao longo de sua carreira, a autora também não ficou restrita ao gênero com que iniciara. Aliás, ela começou, na verdade, escrevendo contos quando, ainda bem jo­vem, tentava emplacar nas páginas de jornais do Recife, sem sucesso. O grande pú­blico a conheceu primeiro como romancista, só depois vindo a descobrir o extraor­dinário ta­ len­to da autora para as narrativas curtas, como comprovam os contos reunidos em Laços de família e A legião estrangeira, pertencentes a mo­mentos distin­tos da trajetória de Clarice, mas

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igualmente intensos e magistrais. É em A legião es­trangeira, por exemplo, que está o enigmático O ovo e a galinha (lido durante aquele tal congresso de bruxaria), em que se encontra a chave para uma melhor fruição, e não compreensão, da literatura da autora – “Entender é a prova do erro”. De volta ao Brasil, em fins de 1950, Clarice Lispector inicia uma nova fase. Mais uma ruptura. Seria como a travessia de um deserto, representada em A paixão segundo GH, de 1964, um dos textos mais complexos da obra clariciana e que marca uma verdadeira guinada em sua carreira. Pela primeira vez, um romance escrito inteiramente na primeira pessoa e uma corajosa reformulação da estrutura narrativa. Protagonista e narradora – a GH do título – são a mesma pessoa e a mesma voz num tom discursivo sobre os mais diversos temas que envolvem a vida e a morte. O romanesco desfaz-se aos poucos. É o anúncio da maturidade de Clarice Lispector que, nas obras tardias, iria dizer: “Gêneros não me interessam mais”. Ou então: “Eu nada planejo, eu dou um salto no escuro e mastigo trevas, e nessas trevas às vezes vejo o faiscar luminoso e puro de três brilhantes que não são comíveis”. É nesse “delicadíssimo, esquizoide e esquivo” abismo de caos e desordem que Clarice Lispector passa a vivenciar sua literatura a partir de A paixão segundo GH, especialmente com os escritos tardios, como Água viva, Onde estivestes de noite, Um sopro de vida (póstuma) e A hora da estrela – obrasíntese de sua história literária. Neles, não só a noção de gênero se estilhaça, como toda e qualquer definição, regra ou parâmetro. Tem-se a impressão de que Clarice Lispector, ao longo de todo o seu itinerário, não fez outra coisa a não ser se movimentar em direção à própria liberdade, devassando os limites da criação e da arte, radicalizando seu projeto literário, já audacioso em sua primeira incursão. É ela mesma que diz em Água viva: “Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a inconsequência. Liberdade? É o meu último refúgio. Sou heroicamente livre. E quero o fluxo”.


con especial ti nen te reprodução/acervo de família

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escrita Um texto em estado pré-consciente

Em toda a obra de Clarice Lispector há a latência do que não é possível dizer, do lugar que as palavras não alcançam texto Daniel Piza

Nos 16 livros que Clarice Lispector

deixou, há uma característica por debaixo da variedade de temas e gêneros: a preocupação com o que não se pode dizer, com o que o verbo jamais poderia alcançar. E essa mesma característica que lhe dá coe­rên­cia – a força específica que exerce sobre seus leitores – é a que muitas vezes se traduz em defi­ciências, em limitações de seu mundo ficcional. Seja nos romances mais realistas, como A hora da estrela e A maçã no escuro ou mais intimistas como A paixão segundo G.H. e Água viva, seja nos contos de Laços de família e A le­gião estrangeira e até nas histórias infantis, como O mistério do coelho pensante, o tema maior de Clarice Lispector é sempre aquele estado pré-verbal, pré-consciente, ao qual as palavras só chegariam perifericamente. Há um âmago indizível em toda personagem da autora, como uma mônada, uma essência misteriosa.

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Tal essência misteriosa, para Clarice Lispector, é partilhada pelos seres humanos com os animais e também com objetos, animados estes pelo contato com os indivíduos. O instrumento dessa partilha, nos seres humanos, é o corpo – sua concretude biológica, sua rede de sentidos e emoções, o que ela chamava de “caos orgânico”. O corpo, segundo ela, sabe coisas que a mente não sabe, que a palavra não apreende ou que até mesmo desvirtua. Sendo assim, a linguagem verbal é obrigatoriamente imprecisa, simbolista, como se apalpasse no escuro por um segredo que jamais fixará. Em todas as suas histórias há essa percepção. Pode ser, como no conto Tentação, o encontro de uma menina ruiva com um bassê numa rua deserta. Eles trocam olhares, como que predestinados um ao outro, pois ambos são ruivos, e: “Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se ape­nas que se comunicaram


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rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se tam­bém que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpre­endi­dos”. A mesma troca silenciosa e reveladora de olhares entre uma personagem feminina e um bicho ocorre em O búfalo. Há sempre uma revelação “depois das palavras” em Clarice Lispector, mesmo que ela não se traduza em felicidade na grande maioria das vezes. Em A paixão segundo G.H., por exemplo, a narradora encontra o que chama de “redenção” em colocar uma barata na boca. “O divino para mim é o real”, diz ela em outra passagem. A mesma religiosidade é exposta em Água viva: “Sinto que sei de umas verdades. Que já pressinto. Mas verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não vou falar no Deus, Ele é segredo meu”. Ou seja: para Clarice Lispector, há um segredo a saber, mas não se trata de algo singular ou universal; não se trata

Os contos da escritora demonstram a capacidade de criar atmosferas e sensações com poucos elementos descritivos do Deus das religiões, com sua ameaça de culpa, com seus mandamentos por escrito. O mistério é algo particular, sensorial, que se revela nos animais e nas coisas na forma de sensações. Em A maçã no escuro, único de seus romances com um ho­mem como protagonista, o texto diz: “Ninguém ensinara ao homem essa convivência com o que se passa de noite, mas um corpo sabe”. E esse corpo sábio, deduzimos, é por excelência o feminino. Não se trata aqui de discutir a filosofia de Clarice Lispector. Está certo que

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ela abre caminho para uma série de interpretações pós-modernas, que misturam existencialismo (o ser e o tempo etc.), femi­nismo (a identidade feminina etc.) e desconstrutivismo (a linguagem como máscara etc.) e ex­ plicam, por exemplo, o sucesso de sua obra nas academias francesas. Mas há escritores cujas teses centrais são as mais tolas, para não men­cio­nar aqueles de ideologia repugnante, e mesmo assim suas obras têm gran­de valor literário. Há valor literário evidente em Clarice Lispector. Especialmente seus contos demonstram uma escritora capaz de criar um clima com apenas algumas frases descritivas, de apresentar seus personagens sem decantar sua biografia, de sustentar um ritmo narrativo contrapondo o contexto histórico e regional a uma vida peculiar. Seu texto é moderno porque se vale de elipses e coloridos que fogem às convenções dos gêneros; essa mu­lher nascida na


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Ucrânia e radicada desde a adolescência no Rio de Janeiro investe na elasticidade e coloquialidade da língua portuguesa falada no Brasil, urbana, ao tentar aproximar a prosa da poesia, assim como a narra­tiva do pensamento. No entanto, seus conceitos sobre a condição humana e a sabedoria do corpo também são responsáveis pelo que há de negativo em sua prosa. A intenção simbolista dá origem a frases em tom de clichê melodramático (“Finalmente, meu amor, sucumbi”, “Perder-se também é caminho”) ou a um excesso de termos afetados (“fulgurar”, “cintilações”, “uivo eterno”). Nos romances, talvez por sua extensão, fica óbvia a simplicidade das tramas, enxertadas como são de perorações meditativas que tentam li­dar com ambiguidades e terminam oferecendo apenas frases vagas (“pen­sava confusamente com uma precisão sem palavras”).

1 teatro Beth Goulart ganhou o Prêmio Shell 2009 de melhor atriz pelo trabalho na peça Simplesmente eu, Clarice Lispector 2 a hora da estrela José Dumont e Marcélia Cartaxo em cena do filme de 1985, uma adaptação da obra homônima da escritora 3 edições De cima para baixo: o primeiro romance da autora, de 1943; a novela, de 1977, e a coletânea de crônicas (1984) publicadas em jornais e revistas

Mais ainda, seu idealismo não deixa espaço para observações concre­ tas sobre a própria sexualidade feminina, que, afinal, tem suas dinâmicas, seus acertos e enganos. O sonho irrealizável das personagens de Clarice Lispector parece ser o de viver num êxtase espiritual, con­ tínuo, pleno de silêncios divinos que a razão prática só incomoda. Mas não há corpo humano sem palavras, e esta é a com­plexidade do real.

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criação A literatura é um exercício espiritual

Clarice escrevia como obedecendo a si mesma, perplexa muitas vezes diante do que ela própria realizava, como se o texto fosse ditado texto Luzilá Gonçalves Ferreira

Uma mulher tímida, desconfiada diante da vida e da escrita. Lembro-me dela numa de suas vindas ao Recife: um animalzinho acuado diante do público que a amava, dizendo “Que é que vocês querem de mim?” E o que queríamos era apenas isto: ver Clarice, ouvir a voz de Clarice, pois o que dela sabíamos, ou melhor, pressentíamos, ela o colocara nos livros. Numa de suas crônicas no Jornal do Brasil, ela confessara: “Minha vida tem que ser escrever, escrever, escrever como exercício espiritual profundo? E incorporar o ar aéreo deste sábado no que eu escrever. O que escrever? Quero hoje escrever qualquer coisa que seja tranquila e sem modas”. Qualquer coisa que fosse tranquila. Katherine Mansfield, em quem Clarice reconhecia uma alma gêmea (“mas essa mulher sou eu!”), havia escrito quase as mesmas palavras em seu Diário. Vir­ginia Woolf, a quem sempre os críticos aproximam Clarice, também co n t i n e n t e e s p ec i a l f l i p o rto 2 0 1 0 | 1 3

fazia da escrita um exercício espiritual profundo. Hélène Cixous, romancista, crítica, teatróloga, professora francesa, aprendeu portu­guês para ler Clarice no original, reconhecendo na autora de Água Viva uma semelhante. Mas por que sobretudo mulheres na vizinhança de Clarice? Por que há em seus escritos um pouco daquilo que se costumou atribuir à fala feminina, uma certa busca do singular, do diferente, do que está à margem? E mais: um discurso no qual palavras e frases buscam exprimir muito mais do que aquilo que dizem, que se deve ler nas linhas e entrelinhas, nas pausas, nos silêncios, no movimento de recuar e avançar, nas alusões mais do que nas nomea­ções? Tudo isso, certamente, e um pouco mais. Octavio Paz escreveu que a gente escreve para vir a ser. Para se constituir um sujeito, para conhecer um pouco esse indivíduo que diz “eu” ou que se sente capaz de assumir uma fala


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1 em família

Clarice com os filhos Pedro e Paulo e a amiga Lucinda Martins, na praia do Leme, em 1959

pessoal, única, que é dele mesmo e de mais ninguém. E Clarice: “...o fato é que mesmo não me entendendo vou lentamente me enca­mi­nhando”. E mais adiante, respondendo à pergunta, o que acontece com a pessoa encabulada que você é, enquanto tem a ousadia de escre­ver?, ela responde: “Desabrocho em coragem, embora na vida diária continue tímida”. Clarice escreve como obedecendo a si mesma, perplexa muitas vezes diante do que ela própria realiza, como se o texto fosse ditado por alguém que não conhece, por uma voz interior ou por algo que a ultrapassa. À medida que caminha, um texto vai se tecendo, com retalhos de frases, mas também visões do quotidiano, pulsações, como chamava. “Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador”, es­creve numa

crônica de 14 de setembro em 1968. Nesse texto que tece a si próprio, também uma mulher se constrói enquanto sujeito de sua fala, que é aproximação, busca, questionamento, construção, e consegue tocar de leve no seu eu mais profundo: “Alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imagino, eu existo”. Uma mulher que se busca, que investiga seus longes, mas que não se afasta de interrogar, de fazer de uma rotina de mulher matéria literá­ria, em seus romances, crônicas ou contos. Um quotidiano prosaico, no qual faz rol de roupa (que ela pensa poder chamar de rol de senti­mentos), bate um bolo para os filhos, conversa com a empregada, vigia a refeição do caçula que inventa histórias para não ser obrigado a comer, que conversa com Ofélia sobre empadas de legumes, que borda num canto da sala enquanto Aninha, a arrumadeira,

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lhe pede informações sobre a leitura, já que tem uma patroa escritora. Que não hesita em se construir um perso­nagem feminino em suas próprias crônicas, confes­sando ao leitor sua indecisão diante da escolha de um par de brincos ou de um penteado, sua alegria por parecer bonita com o suéter vermelho que recebeu de pre­sen­te, embora temendo, como o confessa, o risco de se tornar “pessoal de­mais”. Tudo isso é dito com um estilo inconfundível, em que fatos, objetos, pessoas e palavras parecem ser uma coisa só, elementos denunciadores de um universo mágico que a escrita apenas pressente. E a gente não pode deixar de vislumbrar na fala clariciana, mesmo sem o querer, mesmo sa­bendo que não se deve confundir o autor com seu personagem, a mulher que vibra, pulsa, existe. No texto e muito além dele. Uma mulher tão per­to da gente que é impossível não lhe querer bem.


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memória O Recife habita a menina Clarice

Vasculhar na sua obra vestígios do tempo em que morou na cidade é encontrar referências que raramente se explicitam em nomes texto Maria da Paz Ribeiro Dantas

Existe um livro importante para o

que vou dizer, e adianto que não se trata de resenha.O livro é A descoberta do mundo, saído em 1999 pela Editora Rocco. Nele foram reunidos textos diversos de Clarice Lispector. É um volume de 478 páginas, rotulado de “crônicas”, mas que in­clui até mesmo entrevistas e contos. Contos que apareceram desde o volume Felicidade clan­destina. Nessa coletânea, alguns desses textos saíram com novos títulos. É o caso de Os desastres de Sofia, que passou a chamar-se Travessuras de uma menina. Está distribuído em cinco partes, corres­pon­dentes às datas de publicação original, e nas páginas do Jornal do Brasil. Daí a submissão do texto à necessidade de “preservar a continuidade” da matéria jornalística, segundo nota do organizador do volume. E agora vai o que interessa. Por curiosidade, mais do que por um sentimento de bairrismo, percorro com

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o olhar, de alto a baixo, as páginas de A descoberta do mundo, na expec­tativa de quantas vezes irei deparar-me com a palavra Recife. Embora o dado quantitativo não conte muito, é a partir dele que descobrirei até que ponto a cidade, onde Clarice viveu até os 12 anos, teria marcado a obra da escritora. No final da pesquisa, dá para perceber que a palavra não é tão frequente, não aparece em mais do que 10% do total de páginas do livro. Nesse jogo ou tentativa de detectar agulhas no palheiro, quando avisto a pala­vra, ela provoca, em algum lugar de mim, quase uma cintilação de árvore de Natal. Recife. Quero ver até onde a cidade da infância de Clarice permaneceu na memória do seu coração. Numa dessas cintilações, o Recife sepa­ra-se de Olinda, no texto, apenas por uma vírgula. O texto fala do mar ou, mais precisamente, dos banhos de mar em companhia da família, das temporadas de banhos de


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Página anterior 1 infância

larice, na Praça do C Derby, aos 10 anos, em luto pela morte da mãe, falecida em 1930

Nesta página 2 família

larice (D) com C a mãe Marieta Lispector e a irmã Elisa

mar em jejum, to­mados antes do nascer do sol. Banhos de conhecida propriedade terapêutica, bastante acredi­tada naquela época sem poluição. Clarice descreve, com intensas tonalidades interiores, o que era para ela, criança, despertar às quatro da manhã, cumprir diariamente o trajeto de bonde entre o Recife e Olinda, atravessando a cidade ainda escura, a troca de roupa nas cabines, o contato do seu cor­po todo sensação com o mar muito iodado e salgado de Olinda. E, por fim, a expectativa do dia seguinte, quando o ritual se repetiria. De novo a palavra cintila, dessa vez remetendo, como nas outras, à infância da escritora.Traz de volta a lembrança do Carnaval no Recife. Embora não participasse diretamente da folia, a menina era toda tomada pelo espírito que emanava daqueles três dias. “Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e as praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.” Apesar de uma infância atormentada pela doença da mãe e pela precária situação financeira da família, Clarice, como demonstra em seus textos, era uma mulher vital. Longe de um otimismo piegas, expunha o absurdo de certas situações, vendo-as sob ângulos em que nunca é impossível uma saída. No seu caso, privações tinham o seu lado de compensação. Como na personagem de Felicidade clandestina, um conto ambientado no Recife. Nele, a narradora é torturada pelo desejo de ler determinado livro, que alguém possui e promete emprestá-lo, mas sadicamente vai adiando a entrega, tapeando com mil desculpas. Entre o desejo e o mo­mento em que o mesmo se realiza, há todo um percurso. É o contraponto entre a impos­sibilidade da menina (expresso na fome de ler e tocar o objeto do desejo) e o poder esmagador de quem poderia proporcionar-lhe o prazer e a isso se nega. Mas há um outro lado, e este é bem mais explícito: “Às

Trecho

Clarice lispector Felicidade clandestina Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que vezes sentava-me na rede, balançandome com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu aman­te”. Nessas ocorrências como palavra, o Recife pode ser às vezes uma cidade só adivinhada. Não há nomes de ruas, de praças ou de praias. Tampouco há referência a acontecimentos datados. Os fatos se ocultam sob uma capa de generalidade, fugindo o mais possível ao detalhe pessoal (isso, aliás, foi conversado com Rubem Braga,

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ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

pela própria Clarice Lispector, em autocrítica sobre o gênero crônica e os textos que escrevia para o Jornal do Brasil). Ao narrar episódios da infância, Clarice não cita nomes. Voltando às fontes do prazer: embora sem entrar na folia, viveu o Carnaval a ponto de inte­riorizá-lo como o que “era meu, meu”. O mesmo foi com a cidade que ficou sendo mol­dura da infância: com o Carnaval, os banhos de mar em Olinda antes do nascer do sol, as largas ruas do Recife, abertas aos ventos de todas as horas.


con especial ti nen te maĂ­ra gamarra

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boa vista Um sobrado no antigo bairro dos judeus

1 migrantes A família Lispector residiu por mais de uma década na cidade, onde a mãe da escritora faleceu

Infância da escritora se passou entre a Praça Maciel Pinheiro e a Rua da Imperatriz, no Centro do Recife, e ressoa em sua obra adulta texto Mariana Camarotti

Do segundo andar de um sobrado

na Praça Maciel Pinheiro, uma criança espia o frenético movimento do comércio, os homens de casaca e chapéu que passam e o bonde que leva e traz, no Recife dos meados dos anos 20 do século passado. Não fosse pela retirada do coreto, a praça hoje seria a mesma, e o casario, apesar de algumas descaracterizações, é tal qual o da época. Mas a menina, que achava o segundo andar alto demais e morria de medo de cair dali, cresce e se torna Clarice Lispector, uma das maiores e mais sensíveis escritoras do Brasil. A praça Maciel Pinheiro fica na Boa Vista, bairro onde moravam cerca de 350 famílias judias naquele tempo. Há oito décadas, Clarice chegava ao Recife, cidade em que vive a maior parte da infância e de onde carrega na memória cenários e histórias para os seus contos, romances e crônicas. “A casa se acabou? Era pintada de cor-de-rosa. Uma cor acaba? Se desvanece no ar, meu Deus?”, pergunta Clarice, já adulta. O sobrado da Maciel Pinheiro, onde morou entre seus quatro e cinco anos de idade, existe e é o da esquina da Rua do Aragão, antiga Conde d’Eu, com a Travessa do Veras. Hoje ocupado pelo comércio, o sobrado, naquela época, abrigava um armazém no térreo. As janelas e varandas dos andares de cima foram reformadas, mas a fachada foi mantida. O bonde já não passa mais pela praça e os trilhos foram cobertos pelo asfalto, mas a Maciel Pinheiro conserva um tanque com esculturas portuguesas de 1875 e uma fonte d’água. Desse casarão, a humilde família Lispector se muda para um próximo, na Rua

Em suas memórias de criança, a escritora se descreve como uma menina levada que gostava de brincar na rua da Imperatriz, ocupando também o segundo andar. Aí, Clarice vive até os 12 ou 13 anos, quando se muda para o Rio de Janeiro, após a morte da mãe. Vinda da Ucrânia, a família instalase primeiro em Maceió, tendo Clarice apenas dois meses. Movida pelas oportunidades de trabalho, a família muda-se para a capital pernambucana. Autora de Clarice, uma vida a ser contada, Nádia Gotlib revela que a pobreza e a doença da mãe foram assuntos marcantes na vida da escritora, mas que ela utilizava-se da alegria e do bom humor para esconder as dificuldades. Falava-se que o nascimento da es­critora teria provocado a doença da mãe. “Não deve ter sido fácil para Clarice suportar o peso da doença da mãe”, diz Gotlib. As longas escadarias do sobrado da rua da Impe­ratriz, Clarice as subia às carreiras, sapeca que era. Des­cia para brincar na rua e, quando não tinha com­panhia, espe­rava que alguma criança passasse. “Nunca gostei de ficar em casa. Sempre que podia, estava na calçada, que­rendo encontrar alguém para brincar”. Também na porta de ca­sa, ela observava o Carnaval, que acontecia perto dali, no Pátio de Santa Cruz e nos bairros de São José e Santo Antônio, onde o Galo da Madru­gada arrasta mul­ti­dões. A outra casa em que Clarice morou é a segunda da Rua da Imperatriz, perto

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do rio Capibaribe. Da varanda do se­gundo andar, a menina via do lado direito o rio, os barcos, a ponte Princesa Isabel e a da Boa Vista, a Rua Nova e a Avenida Guararapes. Do lado esquerdo, via a Rua da Imperatriz, a Matriz da Boa Vista e a Praça Maciel Pi­nheiro. Com a mesma arquitetura da época, o sobrado hoje também serve ao comércio, tal qual o da Praça Maciel Pinheiro. Da varanda do segundo piso, a vista ainda é a mesma de Clarice: o rio, as ruas e pontes, a praça e a igreja. Nos fundos da casa, mais uma varandinha, de onde se vê a antiga Casa de Detenção (hoje Casa da Cultura), a Ponte Velha, o mangue. No sobrado da esquina, ao lado de onde a menina morava, funcionava a Livraria Berenstein, mais tarde Livraria Imperatriz. Aí, Clarice teve as primeiras leituras: um livro fininho, que tinha a história da lâmpada mágica de Aladim e a do Pati­nho Feio. Lia e relia as duas histórias, mesmo já sabendo de cor e salteadas, como ela revelaria mais velha. Depois, encanta-se com Reinações de Narizinho, de Monteiro Loba­ to. A escola João Barbalho, à época na Conde da Boa Vista (antes chamada Rua Formosa), é onde a menina a­pren­de a ler e a escrever, aos sete anos. De lá, passa ao Co­légio Israelita e, em seguida, ao Ginásio Pernam­ bu­ca­no. Clari­ce escreve para a seção infantil do Diario de Pernambuco, mas é ignorada por tratar de sensações e não de histórias de “era uma vez”. O Recife de Clarice Lispector é o de uma infância muito pobre, onde a menina corre pelas ruas, toma banho de mar logo cedo, pula muros para roubar flores. É também o Recife em que ela se deslumbra ao ter nas mãos um livro e descobre que quer ser escritora.


IMAGENS: REPRODUÇÃO

con ti nen te

História

zur israel A primeira comunidade judaica na América

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Disfarçados de cristãos-novos, os judeus perseguidos pela Inquisição europeia estabeleceram-se no Brasil. Durante o Período Holandês, a comunidade recifense ganhou projeção internacional TEXTo Leonardo Dantas Silva

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1 RUA DOS JUDEUS No local, funcionava o mercado de escravos, retratado por Zacharias Wagener 2 INSCRIÇÃO Placa de 1992 indica a presença judaica no bairro portuário

mulher e filhos, e de lá para Amsterdã – lá estava em 1598. Nessa cidade, conhecida como “A Jerusalém do Ocidente”, declarouse judeu passando a usar o nome de Jacob Tirado, sendo responsável pela fundação da primeira sinagoga portuguesa de Amsterdã, na qual pôs o nome de Bet Yahacob (Casa de Jacob).

Invasão Holandesa

Perseguidos pela Inquisição em

Portugal e na Espanha, os judeus, disfarçados em cristãos-novos, vieram estabelecer-se no Brasil onde, em Pernambuco, somavam 14% da população economicamente ativa no final do século 16. No período da dominação holandesa (1630-1654), a comunidade do Recife tornou-se conhecida internacionalmente, sendo o seu passado objeto do interesse dos estudiosos dos nossos dias. Em Pernambuco, a primeira presença documentada de cristãosnovos data de 1542, quando da doação das terras a Diogo Fernandes e Pedro Álvares Madeira, nas quais pretendiam erguer o Engenho Camarajibe, nas redondezas do Recife.

Além desses, outros cristãos-novos tornaram-se senhores de engenho, permanecendo também como mercadores, atividade peculiar dos judeus por todo o mundo. Alguns, porém, se transformaram em rendeiros na cobrança dos dízimos e faziam empréstimos, sendo denunciados como onzeneiros, isto é, agiotas, a exemplo de James Lopes da Costa, João Nunes Correia e Paulo de Pina. Dentre esses primeiros cristãosnovos com nome de destaque internacional, figura James Lopes da Costa, natural da cidade do Porto (1544) que, em 1591, encontravase como proprietário do Engenho da Várzea, transferindo-se depois para Lisboa, onde tinha

No século 17, a produção de 121 engenhos de açúcar viria a despertar a sede de riqueza de senhores dos Países Baixos, que, através da Companhia das Índias Ocidentais, armaram uma formidável esquadra sob o comando do almirante Hendrick Corneliszoon Lonck, que, com 65 embarcações e 7.280 homens, apresentouse nas costas de Pernambuco em 14 de fevereiro de 1630. Graças, sobretudo, à tolerância religiosa garantida nos domínios dos Países Baixos, permitia-se aos que residiam nas terras onde se viesse a estabelecer a soberania holandesa, quer fossem espanhóis, portugueses e nativos, católicos ou judeus, “que não sejam molestados ou sujeitos a indagações em suas consciências ou em suas casas particulares”. A partir de 1635, já consolidado o domínio holandês no Nordeste do Brasil, tornou-se cada vez maior o fluxo de judeus que atravessaram o Atlântico em busca de melhores dias, como se depreende do número de solicitações feitas à Companhia das Índias Ocidentais. Um desses judeus, Manuel Mendes Castro, que atendia pelo nome judaico de Manuel Nehemias, pretendia

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reprodução

3 RABINO DE AMSTERDÃ Menasseh ben Israel (Manuel Dias Soeiro) veio ao Recife, em 1640 4 ZUR ISRAEL A sinagoga ganhou sede própria na Rua do Bom Jesus, e também funciona como museu Próxima página 5 nova amsterdã

apa, datado de 1656, registra M a representação geográfica da futura Nova York

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História

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situar no Brasil holandês, de uma só vez, uma colônia de 200 judeus, “entre ricos e pobres”. Com o crescimento da população judaica, o Conselho Político, em sua reunião de 9 de novembro de 1635, assim decide: como a extensão e área do Recife era diminuta, de modo a acomodar os comerciantes livres em suas necessidades e negócios, resolveu-se vender um terreno medindo 80 pés de comprimento e 60 de largura (24,3440 m x 18,2880 m). Situado junto à Porta de Terra, no caminho de Olinda, o terreno fora adquirido pelo comerciante Duarte Saraiva, “para que [nele] construa uma casa segundo o seu gosto, ou para vender o terreno ou casa e o terreno para seu lucro”. Graças às construções ali realizadas, nesse e em outros lotes que vieram a ser comprados pelos mais ricos comerciantes

A primeira sinagoga das Américas começou as atividades na casa de um comerciante, por volta de 1636 da comunidade, já a partir de 1636, fez surgir a Rua dos Judeus (Jodenstraat), denominação que se manteve até 1654, ano da retirada dos holandeses de Pernambuco. É dessa época a presença de Duarte Saraiva, conhecido entre os do Recife e da Holanda pelo nome de David Senior Coronel, um judeu português nascido aproximadamente em 1572. Membro da renomada família Senior Coronel, radicada em Hamburgo, deixara ele um filho em Amsterdã, Isaac Saraiva, que

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exercia a função de rabino e mestreescola entre os judeus portugueses. Na casa do comerciante David Senior Coronel, veio a ser criada a primitiva sinagoga do Recife, antes de 1636, estabelecendo-se a Kahal Kadosh Zur Israel, ou seja, a “Santa Comunidade, o Rochedo de Israel”. O nome de batismo da nova comunidade talvez viesse em alusão ao próprio Arrecife. É dessa época a visão de outro contemporâneo, o reverendo calvinista Joannes Baers (1580-1653), que assim sintetiza a descrição da cidade de então: “o Recife é um arrecife”. Em princípio, funcionou a sinagoga em casa alugada, mas, logo depois, veio a ser construído um templo próprio em dois pavimentos, possivelmente entre 1640 e 1641, conforme documento enviado ao Conselho dos XIX, com data de 10 de janeiro de 1641. A sinagoga Zur Israel estava situada no sexto lote de terreno, construído a partir do norte, funcionando no primeiro andar de um prédio geminado. O acesso ao salão principal era feito por uma só escada, existindo no andar térreo dois armazéns (lójias), um dos quais destinados à micvê (piscina para o banho ritual) e outro a escola dos iniciantes no livro da Torá, do Talmud e na língua hebraica. A grande construção situava-se bem próxima à “Porta de Terra”, que dava saída para o istmo que ligava o Recife a Olinda. No amplo salão, destinado ao culto, fora disposto, voltado para o leste, o armário em madeira (Aron Hakodesh), com os rolos da Sefer Torá, e, ao centro, a mesa Tebá – uma grande mesa, situada em local elevado destinado aos oficiantes na leitura dos rolos sagrados e cânticos, rodeada no plano inferior por cadeiras, destinadas aos membros de projeção da comunidade, e bancos nas laterais.


francisco baccaro/divulgação

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Nessa primeira sinagoga em terras das Américas, exerceu o rabinato o célebre Isaac Aboab da Fonseca, que era português de nascimento. Natural de Castro Daire, distrito de Viseu, na Beira Alta, Isaac Aboab da Fonseca nasceu em 1605, tendo emigrado ainda criança com os seus pais para a França e, logo em seguida, para Amsterdã. Bisneto do último Gaon (máxima autoridade no ensino e interpretação da Lei) de Castilha, que em 1492 foi forçado a emigrar da Espanha para Portugal, estabelecendose na cidade do Porto, Isaac recebeu, ao nascer, o nome de Simão da Fonseca. Era filho de David Aboab e Isabel da Fonseca, que, em 1612, já se encontravam em Amsterdã, “onde a

família pôde, finalmente, observar com liberdade sua religião judaica”. Tendo estudado nas escolas judaicas daquela cidade holandesa, Aboab da Fonseca foi, em 1626, designado Haham (rabino) da Congregação Beth Israel, função que ocupou até 1638, momento da unificação de três sinagogas ali existentes. Por desistência do rabino Menasseh ben Israel (1604-1657), veio a aceitar, em 1641, o convite da comunidade do Recife para vir presidir os serviços religiosos da sinagoga local, a Zur Israel, recebendo para isso o estipêndio de 1.600 florins anuais. Exercia ainda a função de Mohel, ou circundador, e tinha o seu sustento retirado exclusivamente do culto e

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do ensino – do hebraico, da Torá e do Talmud – para os que se iniciavam. A sinagoga Zur Israel era integrada por personagens ilustres como o Hazan (o leitor), Jehosua Velosino; o Rubi (o mestre-escola), Samuel Frazão e o Samas (guarda e mestre das crianças) Isaac Namias, Bodeck (encarregado da matança dos animais) Benjamin Levy, segundo relação dos funcionários no ano de 1649. Outros nomes de destaque poderiam ser citados como integrantes da comunidade Zur Israel, dentre os quais o rico mercador Baltazar da Fonseca, que, em 18 de fevereiro de 1641, arrematou, por 100 mil florins, os serviços de construção da ponte que anexava o Recife à Cidade Maurícia,


através do qual iriam se reger as duas comunidades, subscrito por 172 membros, adultos do sexo masculino, pertencentes à comunidade, residentes no Recife e na Cidade Maurícia. Tal era a importância da comunidade do Recife, que o famoso erudito Menasseh ben Israel, rabino de Amsterdã, cujo nome português era Manuel Dias Soeiro, interessou-se em fixar residência no Recife, em 1640, onde já se encontrava o seu genro, Ephraim Soeiro. Em seus livros, publicados naquela ocasião, assinala

imagens: reprodução

na ilha de Antônio Vaz. Era ele um dos mais proeminentes cristãosnovos residentes no Brasil antes da invasão holandesa, que, quando da consolidação da tomada, se passou para a religião dos seus ancestrais, segundo denuncia frei Manuel Calado. Faleceu no Recife, antes de 10 de julho de 1649 (Dag Notulen). Em 1648, a 16 de novembro, houve a fusão das comunidades Zur Israel e Maguen Abraham, ocasião em que foi elaborado o Haskamot, ou seja, Regulamento de 40 artigos

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com destaque os nomes de alguns dos membros mais eminentes da comunidade do Recife: David Senior Coronel, Dr. Abraão de Mercado, Jacob Mocata e Isaac Castanho. A homenagem se dá na publicação da segunda parte de sua obra em 1641, O conciliador, em quatro volumes (Amsterdã, 1632-51), na qual o Haham Menasseh ben Israel faz incluir uma dedicatória das mais significativas: Nobilissimos y magnificos señores [...] y más Señores de nuestra nacion, habitantes en el Recife de Phernambvco, Salud.


Em 1646, um ano depois do retorno do conde João Maurício de Nassau aos Países Baixos, teve início a chamada Insurreição Pernambucana. Liderados por João Fernandes Vieira e outros representantes dos proprietários da terra, os lusobrasileiros iniciaram o movimento que visava à expulsão dos exércitos da Companhia das Índias Ocidentais do território da então capitania de Pernambuco, o que veio a acontecer em 26 de janeiro de 1654. Sitiados por terra, sem acesso aos alimentos produzidos na zona rural, os

habitantes do Recife passaram por uma grande fome, ocasião em que até ratos foram consumidos pela população. Johan Nieuhof, alemão residente no Recife entre 1640 e 1649, dá o seu testemunho de que “os gatos e cachorros, dos quais tínhamos então abundância, eram considerados finos petiscos. Viam-se negros desenterrando ossos de cavalo, já meio podres, para devorá-los com incrível avidez”. Esse momento de privação vem a ser descrito em cores vivas e pungentes no poema escrito em hebraico, pelo

Vinte e três judeus saíram do Recife em 1654 rumo à atual Nova York, fundando a 1ª comunidade judaica da cidade rabino Isaac Aboab da Fonseca, Mi Kamókha (Quem como tu?), que se refere, na primeira parte, a João Fernandes Vieira, tratando-o por “conhecido homem sem coração, um sádico e embusteiro de mãe negra”. Nos seus versos, o introdutor da literatura hebraica em terras do Novo Mundo lembra que “o corpo reduziu-se em carne e ossos devido à fome. O pão era pesado e racionado. Meu povo acostumou-se a substituir o pão pelo peixe, até quando os intestinos se ressentiram”. Os socorros da Holanda chegaram ao Recife em 22 de junho de 1646, data em que aportaram os barcos Gulden Valk e Elizabeth trazendo soldados e alimentos para aquela população de esfomeados. Anos mais tarde, nas batalhas dos Montes Guararapes (1648 e 1649), os holandeses vieram depor as armas em 26 de janeiro de 1654, deixando em sobressalto cerca de 400 judeus residentes no Recife e em Maurícia, que foram forçados a buscar subsistência em outras plagas. Dali alguns deles retornaram ao Novo Mundo, fundando novas comunidades em ilhas do Caribe e na América do Norte. Um desses grupos saídos do Recife, passageiros do navio Valk, depois de aportar na Jamaica, como prisioneiros

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dos espanhóis, foram libertados pelos franceses e, com eles, rumaram em direção à Nova Amsterdã, a bordo do barco Sainte Catherine. Desse grupo, 23 judeus (eram quatro casais, duas viúvas e 13 crianças) já se encontravam lá, em setembro de 1654, fundando assim a 1ª comunidade judaica daquela que veio a ser a cidade de Nova York; hoje a maior comunidade de judeus de todo mundo. Em 21 de outubro de 2001, 347 anos após a expulsão dos judeus de Pernambuco, foi solenemente reaberta ao público a Kahal Kadosh Zur Israel, no Recife, na mesma Rua dos Judeus, berço das comunidades judaicas das três Américas. Assim, “o Rei dos reis, Senhor Soberano” reaparecerá diante de todos, como se ouvisse as súplicas ali clamadas por Aboab da Fonseca, ..... trazendo-vos e oferecendo-vos as possibilidades tanto de salvação, de alimentação, de caridade e bondade, quanto de educação e ensino de vossos filhos e de aplicação nos sagrados estudos da justiça e da paz. Amém.

para saber mais Dantas-Silva, Leonardo. Holandeses em Pernambuco – 1630-1654. Recife: Instituto Ricardo Brennand, 2005. Dantas-Silva, Leonardo in A fênix ou O eterno retorno – 460 anos da presença judaica em Pernambuco. Recife: Ministério da Cultura, 2001. Mello, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação – Cristãos-novos e judeus em Pernambuco. Recife: Editora Massangana, 1989. Mello, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos – influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. Recife: Editora Massangana, 1987.


divulgação

con ti nen te

resenhas

ALBERTO MANGUEL A melancolia dos portenhos

Em Todos os homens são mentirosos, o autor apresenta a Buenos Aires de um escritor, que se torna, na verdade, o estudo de caso da cidade texto Schneider Carpeggiani

Papai era obcecado (ainda deve ser) por um tango que resumia o mundo a um simples endereço. “Corrientes, 348, quem sobe ao segundo andar, sem porteiro e sem vizinho, só o amor vai encontrar”.

Não sei quem era o cantor ou o autor daquela canção. O que impressionava era a sua narrativa, que prosseguia em seu preciosismo, ao falar que “um gato de porcelana, mudo, assiste ao nosso amor”.

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O mudo gato de porcelana, o porteiro ausente e o preciso número 348 eram alguns dos meus alvos durante certa visita a Buenos Aires. “Você vai se decepcionar, não tem nada lá. Todo mundo se decepciona. É só um prédio comercial”, alertou o porteiro do hotel. Mas não havia medo da decepção. Estava sendo atraído pelo chamado de um tango, e tangos são prefixos de decepção, desejo e repulsa. De qualquer modo, houve a decepção, mas valeu a pena. O fascínio pela Avenida Corrientes voltou durante a leitura de Todos os homens são mentirosos (Cia das Letras, 2010), de Alberto Manguel. O aviso de decepção incontornável do porteiro, o prédio sem graça e até o gato de porcelana inexistente, tudo foi recuperado graças a esse romance que flagra a tristeza de uma Buenos Aires que não está no mundo das


lançamentos latitudes, das longitudes, das cartografias, dos guias turísticos e suas promocionais atrações coloridas. É isso, sim, a Buenos Aires de um misterioso escritor suicida, Bevilacqua, homem vitimado pela “melancolia que atinge a maioria dos portenhos”, frisa Manguel, como se seu personagem fosse mais o estudo de caso de uma cidade que de um homem. Todos os homens são mentirosos se volta para o fascínio que a biografia de Bevilacqua desperta, sobretudo pelas imagens melancólicas que pairam ao seu redor. Decifrar esse escritor é também decifrar os signos da cidade, encontrar razão para continuar trafegando por suas ruas. Trinta anos após a morte de Bevilacqua, quatro pessoas tentam recuperar (reconstruir até) sua história e se deparam com fantasmas que só ganham sentido a partir do olhar fascinado delas próprias. Certamente, Bevilacqua é a Corrientes, 348, de Manguel.

ENSAIO

RONALDO VAINFAS Jerusalém colonial – judeus portugueses no Brasil holandês

Alberto Manguel Companhia das Letras Livro se volta para o fascínio que a biografia de Bevilacqua desperta

MARCIA TIBURI Filosofia brincante Galerinha Record

BIOGRAFIA

EVA SCHLOSS E EVELYN JULIA KENT A história de Eva Record

Resultado de uma pesquisa, o livro adentra o universo dos judeus portugueses na “Nova Holanda”, a partir de um olhar que não privilegia apenas personagens e fatos de macro interesse, mas considera a vivência cotidiana. Ronaldo Vainfas reúne a história e a microanálise da presença desse povo no Brasil.

A experiência da reflexão não precisa ser apática e penosa, ao contrário, ela normalmente surge da inquietação pessoal e pode ser estimulada por recursos lúdicos. O assunto deste livro é justamente essa “brincadeira” do pensamento, norteada pela curiosidade dos personagens Clara e Peri, que levantam questões sobre o eu, o outro e aquilo que nos cerca.

QUADRINHOS

ROMANCE

CONTOS

Quadrinhos na Cia

Calibán

Rocco

Civilização Brasileira

DANIEL GALERA E RAFAEL COUTINHO Cachalote

Todos os homens são mentirosos

INFANTIL

Instigados pelo boom da literatura em quadrinhos, os amigos criaram uma obra com belas ilustrações e diálogos fortes. São apresentadas cinco histórias que não se cruzam, em uma narrativa que vai do fantástico ao cômico. Entre mistérios e frustrações, os personagens estão ‘amarrados’ por situações recorrentes: há sempre um motivo para a superação.

LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA Deixa ir meu povo A história de um povo é marcada por injustiças e perseguições. Instigada por essa ideia, a autora fala do amor de uma brasileira não judia e um judeu brasileiro, em meio à aceitação de um passado doloroso. Com traços de um romance histórico, a narrativa dessa relação é apenas uma justificativa para abordar a presença judaica em Pernambuco.

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“Eva, estou esperando desde que a conheci, para escrever sua história”, comentou a amiga Evelyn Kent ao ser solicitada para relatar estas memórias do Holocausto. Após 63 anos da primeira edição do diário da meia-irmã Anne Frank, a trajetória de Eva reafirma o que há de mais comovente na experiência judaica do início do século 20.

TEREZA MONTEIRO (ORG.) Clarice na cabeceira O livro reúne contos selecionados por famosos leitores de Clarice Lispector, entre eles, Luís Fernando Veríssimo e Rubem Fonseca. Através de depoimentos que antecedem os contos, esses leitores revelam a importância e a repercussão das palavras da escritora em suas vidas. Textos famosos como Coração clandestino integram a coletânea.


divulgação

con ti nen te

resenhas

RICARDO PIGLIA Sombras num mundo falsamente iluminado

Armado com álibi cheio de reviravoltas, o escritor volta a se debruçar sobre a história argentina e sua constante luta entre civilização e barbárie

Sortuda era Agatha Christie, que só precisava de um mordomo, um trem, uma xícara de chá e talvez uma cortina rasgada na sala para infiltrar a suspeita em nossa cabeça. Era tão mais fácil, meu

Deus... Talvez por isso que, quando as pessoas falam hoje em dia na escritora inglesa, em geral é de forma nostálgica, risível até, como se a leitura dos seus livros fosse um hobby extravagante, mas

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deixado para trás. A sra. Christie não assusta nem mais uma mosca . É compreensível: o importante em suas tramas era encontrar, prender o suspeito e assunto encerrado. Mas a literatura contemporânea propõe que a dúvida vale mais que a solução, que um mapa para lugar nenhum diz mais sobre nossos tempos que o surrado “mapa da mina”. Num mundo onde tudo pode ser comprovado, flagrado ou fotografado sem maiores problemas, qual a razão de ser de um livro policial? Ora, a sra. Christie que nos perdoe, mas se as provas estão em todos os lugares, então tudo pode ser uma prova, todos são suspeitos e os crimes, esses aí, ficaram relativos, o que só melhora as coisas ... É olhando por aí que se torna ainda mais interessante Blanco nocturno,


lançamentos primeiro livro de ficção de Ricardo Piglia em uma década. Armado com o álibi de um mistério ardiloso e cheio de reviravoltas, o escritor volta a se debruçar sobre a história argentina e sua constante luta entre civilização e barbárie, assim como no já clássico Respiração artificial. E tal e qual em Respiração artifical, o início do livro já nos arrebata: “Tony Durán era um aventureiro e um jogador profissional e viu a oportunidade de ganhar a aposta máxima quando topou com as irmãs Belladona. Foi um ménage à trois que escandalizou o povo e ocupou a atenção geral durante meses”. Como largar um livro que começa com jogatina e sexo a três? Em tempo: ainda sem edição nacional (a Cia. das Letras deverá lançá-lo por aqui em 2011), Blanco nocturno tem seu título inspirado nos visores infravermelhos usados pelos soldados ingleses na Guerra das Malvinas. É Piglia nos ensinando a ver sombras num mundo falsamento iluminado por certezas.

CONTOS E CRÔNICAS

RELIGIÕES

ROMANCE

Record

ARNALDO NISKIER A sabedoria judaica de A a Z

Dores de cotovelo à parte, o jornalista e escritor apresenta mais uma de suas facadas emocionais, com os escrachos vividos pelos diversos “tipos” masculinos e femininos contemporâneos. O flerte amoroso e a canalhice boêmia são temas centrais da obra, ilustrada ao estilo “pulp fiction”, pelas pinturas do consagrado Benício, autor de cartazes da pornochanchada.

Buscando resgatar reflexões acerca da sabedoria judaica, Niskier faz um recorte dos ensinamentos judaicocristãos encontrados em obras como O Livro da Sabedoria, de Salomão e A essência do Talmud, de Theodore Keler, mesclando os tradicionais conceitos às opiniões de pensadores contemporâneos como Woody Allen e Mel Brooks.

Movido pelo idealismo comunista, o personagem central Valdo, jovem apaixonado pela leitura, resolve embarcar para o Rio de Janeiro ao encontro de Astrojildo Pereira, líder do Partido Comunista. Com a ida do líder à Moscou, o encontro não fora concretizado, e o idealista tornou-se mais um dos operários assalariados que sobrevivem do sistema.

BIOGRAFIA

CONTOS

XICO SÁ Chabadabadá

Sêfer

MOACYR SCLIAR Eu vos abraço, milhões Companhia das Letras

Schneider Carpeggiani

ROMANCE

RICHARD ZIMLER Os anagramas de Varsóvia

MARCELO PEREIRA A fragmentação do humano

O significado de anagrama é apropriado pelo autor com habilidade ao tecer a narrativa sobre um sobrevivente dos guetos de concentração, ora retratado como o ranço da sociedade nazista que habitava a capital polonesa nos anos 1940, ora como o herói da resistência, da esperança, diante da adversidade.

Conviver com Raimundo Carrero é anotar manias. Ele gosta de fazer o sinal da cruz ao entrar em ambientes, evita falar no Coisa-Ruim e usa seus interlocutores como acervo para seus romances. O jornalista Marcelo Pereira recolheu essas manias, e outras, nesse álbum biográfico, que conta com acervo iconográfico a cargo de Roberta Guimarães.

Oceanos

Blanco nocturno ricardo piglia Anagrama É o primeiro livro de ficção de Piglia em uma década

Andrea Mota

co n t i n e n t e e s p ec i a l f l i p o rto 2 0 1 0 | 3 1

MILTON HATOUM A cidade ilhada Companhia das Letras

O primeiro livro de contos do escritor manauense é repleto de contrassensos entre elementos –cosmopolitas e naturais da cidade que é o coração da Amazônia. Situações vividas e imaginadas são narradas através dos personagens que, à despeito da violência intrínseca em suas obras – como em Cinzas do Norte –, são pautados pelo lirismo de um vida andarilha.


Antônio Campos

a fliporto e a cultura do diálogo A 6º edição da Festa Literária Internacional de Pernambuco – Fliporto

Antônio Campos

é advogado e escritor

divulgação

valoriza a cultura do diálogo através do diálogo entre culturas. Os diálogos culturais são fundamentais para uma maior integração cultural entre países, culturas e etnias em um momento de grande tensão do mundo contemporâneo. A globalização econômica e financeira, juntamente com o progresso das tecnologias de comunicação e informação, têm tido impacto direto nas identidades culturais, colocando em risco também a diversidade cultural no mundo. As identidades nacionais, que têm nas culturas nacionais suas principais fontes, seguem uma tendência de desintegração. Novas identidades híbridas estão tomando seu lugar. Dialeticamente, algumas identidades estão sendo reforçadas pela resistência à globalização, num processo de tensão entre o local e o global e entre culturas. O que significa ser europeu, num continente marcado não apenas pelas culturas de suas antigas colônias, mas também por outras culturas e povos oriundos de migrações ou diásporas pós-coloniais? O século 21 passou da diversidade como riqueza para a interculturalidade como problema. A crescente islamofobia na Europa, o conflito entre árabes e judeus, juntamente com as reações às diásporas pós-coloniais em vários países, são grandes preocupações do mundo contemporâneo. No seu livro Choque de civilizações, o sociólogo Samuel P. Huntington previu que, depois da Guerra Fria, as disputas se dariam no terreno da cultura e da religião. O Brasil, que é um país mestiço, marcado pela mistura de várias raças, deve ser motivo de estudos quanto à tolerância e ao convívio entre raças e culturas. Prescindimos de identidade, porque temos todas elas. Precisamos preservar essa grande qualidade nacional, evitando tentativas de fundamentalismos religiosos como vimos nessas últimas eleições presidenciais. O Brasil pode ser um importante paradigma para uma aliança e não um choque de civilizações e culturas. Como melhorar o convívio ou diálogo entre culturas ou indivíduos, admitindo diferenças, sem discriminações, passou a ser uma das principais indagações do século 21. Está no centro da vida contemporânea o desafio de construir pontes, diálogos construtivos de paz, entre culturas que estão em choque real ou aparente, em sociedades cada vez mais interculturais do que multiculturais. Somos “di-versos”, como afirma o poema do músico brasileiro Marcelo Yuka, pois “entre a revolta e a obediência, crescer com diferenças e crescer pelas diferenças, será sempre entender que o amor é a nossa maior forma de inteligência”. O Brasil não é mais o país do futuro: é do presente. Nossa grande tarefa é preservar a cultura do diálogo entre as religiões e etnias existentes no Brasil e tentar alargá-la para o mundo. Essa é certamente a maior contribuição que o Brasil pode dar ao mundo contemporâneo. E a Fliporto, como festa e pensamento, busca esse propósito.

con ti nen te

Saída

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