Arte, repressão e resistências nas ditaduras militares do Cone Sul

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CAPA



ORGANIZAÇÃO DESTA EDIÇÃO Ana Marília Carneiro Pós-doutoranda em História (CAPES-PrInt/UFMG). Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Laboratório de História do Tempo Presente LHTP/UFMG. http://lattes.cnpq.br/1868716813818888

EXPEDIENTE

CORPO EDITORIAL

EDITORA RESPONSÁVEL Michele Dacas CONSELHO EDITORIAL Diana Araújo PereiraI (UNILA) Jorgelina Ivana Tallei (UNILA) Paulo Renato da Silva (UNILA) DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO Sharlon F. de Fraga REVISÃO TEXTUAL Angélica Santamaría Alvarado Carlos Eduardo do Vale Ortiz Cristina Pinilla Duverly Joao Incacutipa Limachi Giovanna Sampaio Juliana Tonin Sônia Cristina Poltronieri Thiago Augusto Lima Alves SITE revistas.unila.edu.br/sures E-MAIL suresrevista.unila@gmail.com

ISSN 2317-2738

REVISTA DIGITAL DO ILAACH - UNILA

Natália Batista Pós-doutora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Membro do Núcleo de História Oral NHEO/UFMG. http://lattes.cnpq.br/7604769311506722

PARECERISTAS Ana Maria Colling Caio de Souza Gomes Carlos Federico Domínguez Avila Daniel Saraiva Denise Aparecida de Paulo Ribeiro Leppos Gessé Almeida Araújo Gregório Foganholi Dantas José Esteves Evagelidis Mariana Bortolotti Meize Regina de Lucena Lucas Paulo Bio Toledo Rafael Morato Zanatto Sabina Florio Wallace Andrioli Guedes FOTO DE CAPA E SEÇÕES DESTA EDIÇÃO Capa: "Opinião. Texto completo do show". Edições do Val, 1965 Teatro União e Olho Vivo durante os ensaios de "Bumba, meu Queixada" de César Vieira, na antiga sede do grupo na Rua Capote Valente na década de 1970. Crédito: Arquivo Público do Estado de São Paulo. Terra em Transe - Filme de Glauber Rocha Atrizes fazem passeata contra a censura durante a ditadura militar.


índice

DOSSIÊ ARTE, REPRESSÃO, E RESISTÊNCIA NAS DITADURAS MILITARES DO CONESUL

05 Editorial

13 "Uma Verdadeira Aula de Comunismo": A Chinesa (1967 de Jean-Luc Godard e sua Inter-

dição no Brasil

32 "Todavía Cantamos". Represión Cultural, Exilio y Resistencia en Argentina: un acerca-

miento a partir del caso de los músicos exiliados en México entre 1976-1983

51 Realismo Mágico e Cinema de Terceiro Mundo no Projeto Cinemtográfico Não-Filmado

de A Hora dos Ruminantes

65 Surrealismo "Anacrónico", Internacionalismo y trotskismo en la Última Dictadura Militar

Argentina (1976-1983)

92 Modernistas Tropicalistas ou: Nem Por Isso o Pão Ficou Mais Barato 110 Ferreira Gullar e Paulo Emílio: No Compasso das Expectativas 135 Uma Análise de Jornada de um Imbecil até o Entendimento, de Plínio Marcos, Enquento

Alegoria do Golpe Brasileiro de 1964

152 Nos Bastidores e nos Palcos: A Resistência Feminina à Ditadura Civil-Militar Brasileira 171 El Quehacer Teatral Independiente Uruguayo Contra el Consenso Cultural de la Dictadu-

ra: radicalidad, liminalidad y subversión

ÍNDICE

195 Entre Engajamento, Censuras e Consensos: a cena cultural durante a ditadura civil-mili-

tar (1964-1985)

Entrevista

86 Cinquenta Anos de Pau de Arara: uma entrevista com Bernardo Kucinski 165 “Repensando o campo: uma discussão sobre a historiografia dos estudos culturais duran-

te as ditaduras latino-americanas”

Exposição de artes

132 associação brasileira de artistas independentes / Sergio Augusto Medeiros Terra em Transe - Filme de Glauber Rocha


Editorial As experiências ditatoriais que emergiram nos países do Cone Sul ao longo da segunda metade do século XX vem despertando cada vez mais interesse – não apenas por parte de pesquisadores latino-americanos, mas do público em geral, em diversos continentes. A atração pelo tema está acompanhada de novas releituras e abordagens, na medida em os estudos sobre a história das ditaduras pode ajudar a compreender os múltiplos aspectos que se relacionam com a permanência de práticas repressivas e valores autoritários nos governos da região na atualidade. A ascensão de líderes de extrema direita que negam a existência da ditadura ou a consideram positiva fez com que o tema se impusesse na agenda do debate público. Todos têm uma opinião [baseada em estudos ou na sua própria vivência] sobre o que foram as ditaduras do cone sul. Por sua vez, o campo acadêmico também está inserido nesse mesmo contexto de maior divulgação do conhecimento histórico sobre esta temática. Nota-se uma ampliação das pesquisas sobre esse período nos últimos anos. As razões são variadas, mas alguns aspectos certamente contribuíram para esse alargamento: a abertura de arquivos e a disponibilidade de documentos classificados anteriormente como sigilosos; a constituição de grupos de pesquisas transacionais e os projetos colaborativos entre seus membros e as próprias políticas de memória fomentadas por alguns países latino-americanos nos anos recentes. O debate se tornou mais complexo e as categorias canônicas, por vezes, não conseguiam explicar todos os fenômenos relacionados a esse tema, principalmente quando se pensa nos estudos culturais realizados nos contextos ditatoriais. Pesquisadores do campo da cultura tem se debruçado cada vez mais na construção e adaptação de conceitos e categorias que contribuam para a interpretação das especificidades presentes nas dinâmicas das ditaduras latino-americanas. Atrizes fazem passeata contra a censura durante a ditadura militar


Este dossiê pode ser considerado um dos produtos desse novo cenário. A partir dele pretende-se contribuir para a ampliação desse debate. O foco principal foi reunir contribuições voltadas para a análise da dinâmica dos campos cultural e artístico inscritas nas diversas experiências ditatoriais nos países do Cone Sul a partir da segunda metade do século XX. Foram selecionados trabalhos que analisam peças teatrais, filmes, obras literárias, militância cultural partidária, exílio, atuação de intelectuais e discussão historiográfica. Os artigos são interpretados por seus autores a partir de diferentes categorias como gênero, análise comparativa, estudos censórios, recepção e análise textual e filológica. Os temas têm relação com as ditaduras brasileira, argentina, chilena e uruguaia e foram produzidos por pesquisadores de diferentes instituições do continente. O principal fator para a escolha desses artigos se deu pelo interesse de pensar a América Latina conjuntamente. No Brasil, o golpe de 1964 que instaurou uma ditadura militar e que se prolongaria por mais de duas décadas não pode ser compreendido como um evento isolado. Existia um contexto marcado pelas tensões da Guerra Fria e da conturbada conjuntura internacional. Brasil, Paraguai, Uruguai, Chile e Argentina assistiram à emergência de golpes de estado sucessivos e à ascensão de inúmeras ditaduras entre as décadas de 1950 e 1970. As experiências autoritárias nesses países se deram em temporalidades próximas e apresentaram características comuns estimuladas pelas diretrizes provenientes da Doutrina de Segurança Nacional e pela arquitetura de um aparato repressivo mobilizado para derrotar os opositores desses regimes. Ao lado da repressão física, que buscou eliminar os dissidentes através da prisão, tortura, desaparecimentos e assassinatos, os regimes militares acionaram um arcabouço repressivo censório voltado para controlar a produção e execução das produções culturais e artísticas e difundir na sociedade um discurso pautado na suposta “defesa da moral e dos bons costumes”. Atrizes fazem passeata contra a censura durante a ditadura militar


A resistência cultural ganha corpo nesse dossiê, não apenas como contraposição às arbitrariedades perpetradas pelo regime, mas como demarcação de um campo de pesquisa. Neste sentido, a “resistência cultural” se constituía não apenas como uma reação à violência e aos problemas sociais e políticos determinados pelas arbitrariedades perpetradas pelos regimes, mas pode ser compreendida como uma expressão de sentido e lógica própria, inserida em um contexto de concepção definido por inúmeras variantes e condicionamentos históricos, econômicos e culturais, de âmbito nacional e latino-americano. No geral, os trabalhos abordam a perspectiva da resistência, concebida tanto a partir da perspectiva de movimentos e coletivos culturais e contraculturais, quanto a partir das diversas manifestações e produções artísticas provenientes do cinema, da literatura, imprensa, teatro, música e demais esferas do campo das artes. A articulação das obras em relação às condições de produção ditadas pela ascensão da indústria cultural, às transformações provenientes de novas concepções estéticas, ao exílio e às restrições impostas pela censura também configuram análises contempladas neste dossiê, assim como pesquisas que exploram as trajetórias de artistas-intelectuais nesse período. Espera-se ter reunido um conjunto de textos relevantes e diversos, que apresentem interpretações e abordagens variadas em diálogo com o tema principal proposto neste dossiê: as nuances da repressão e resistências no campo das artes durante as ditaduras militares do Cone Sul. Vários trabalhos versam sobre o campo teatral, pensado através na análise da montagem de peças, da atuação de grupos contrários à ditadura, mas também da análise literária, através do estudo da dramaturgia. O artigo O que fazer com o que restou? A aporia das memórias difíceis da ditadura em Villa, de Guillermo Calderón, de Marina de Oliveira é um bom exemplo deste último aspecto ao analisar a função dos espaços destinados a prática de torturas e desaparecimentos a partir da dramaturgia Atrizes fazem passeata contra a censura durante a ditadura militar


do escritor chileno Guillermo Calderón. A autora utiliza o texto teatral para discutir sobre qual o papel dos lugares de memória no presente e a dificuldade de analisar as memórias traumáticas oriundos de contextos de violências perpetradas pelo Estado ditatorial. Também o artigo “Análise de Jornada de um imbecil até o entendimento”, de Plínio Marcos, enquanto alegoria do golpe militar brasileiro de 1964, de Roberta Carbone, se utiliza da dramaturgia para construir o seu argumento. A autora analisa a peça teatral de Plínio Marcos para interpretar as referências usadas pelo autor na construção do texto. A partir destes pressupostos busca-se argumentar de que forma a peça poderia ser compreendida também como uma alegoria do golpe militar brasileiro. No que tange a atuação de grupos, Luciana Scaraffuni contribui para o dossiê com sua análise sobre o teatro uruguaio. Intitulado El quehacer teatral independiente uruguayo contra el consenso cultural de la dictadura: radicalidad, liminalidad y subversión, o artigo foca na análise de três grupos de teatro uruguaios atuantes do contexto anterior e posterior ao golpe de 1973. A autora explora como os grupos teatrais se opuseram ao regime e ressalta a importância do método de Bertold Brecht como ferramenta pedagógica e política em contextos ditatoriais. Modernistas Tropicalistas ou: nem por isso o pão ficou mais barato é um artigo de Nina Nussenzweig Hotimsky que analisa a encenação do espetáculo A semana, realizado na cidade de São Paulo em 1972. A proposta da autora é compreender as condições de produção da obra e suas formas de circulação a partir do debate entre Modernismo e o Tropicalismo. No âmbito cinematográfico as pesquisas tiveram foco principalmente na relação entre cinema e censura. Seja na análise da entrada de filmes estrangeiros no Brasil ou na interdição de projetos que poderiam ter mudado o panorama cinematográfico, a censura é o elemento unificador deste bloco de artigos. O artigo “Uma verdadeira aula de comunismo”: A chinesa (1967) de Jean-Luc Godard e sua interdição no Brasil, Atrizes fazem passeata contra a censura durante a ditadura militar


de Luiz Octavio Gracini Ancona, analisa o filme do diretor francês e sua repercussão no Brasil durante o ano de 1968. O autor examina a interdição do filme, acusado pelos censores de fazer doutrinação comunista, e como a proibição do filme deflagou uma crise interna do regime militar. No âmbito da produção nacional, o trabalho Realismo mágico e cinema de Terceiro Mundo: repressão e resistência no projeto cinematográfico não-filmado de A hora dos ruminantes, de autoria de Marcelo Cordeiro de Mello, se debruça sobre um projeto inacabado e parte desse pressuposto para construir uma proposta de cenário social caso o filme fosse divulgado durante o período da ditadura militar. Ainda que o projeto não tenha se concretizado, o autor analisa inúmeras fontes relativas ao filme e mostra como a ditadura militar brasileira pode ter contribuído para a sua não execução. Um artigo que se insere no entrecruzamento entre o estudo da música latino-americana e a discussão sobre o exílio é o de Candelaria María Luque, intitulado “Todavía cantamos”. Represión cultural, exilio y resistencia: un acercamiento a partir del caso de los músicos exiliados en México entre 1976-1983. A autora examina em que medida a produção de músicos argentinos durante o exílio pode ser considerada uma forma de resistência-política musical. Para corroborar a sua tese central ela analisa três LP’s produzidos por artistas argentinos exilados no México durante as décadas de 1970 e 1980, e, constrói um panorama a partir das noções de repressão, resistência e exílio. Um debate também contemplado por este dossiê é a reflexão sobre o papel das mulheres na produção cultural latino-americana. A perspectiva dos estudos de gênero norteou dois artigos que buscaram entender como se deu a inserção das mulheres do campo político, musical e literário. Já o trabalho de Brenda Maria Rodrigues dos Santos, intitulado Nos bastidores e nos palcos: a resistência feminina à Ditadura civil-militar Brasileira, faz um apanhado da participação feminina na resistência à ditadura Atrizes fazem passeata contra a censura durante a ditadura militar


a partir de dois campos distintos: as que atuaram em partidos que foram colocados na clandestinidade com o golpe de 1964 e papel das cantoras que tanto na música quanto em manifestações públicas tiveram manifestações contrárias ao regime militar. No campo da militância – tanto política-cultural quanto partidária – dois artigos permitem compreender as nuances das discussões intelectuais que terminam por adentrar no campo da atuação política propriamente dita. No artigo Surrealismo “anacrónico”, internacionalismo y trotskismo en la última dictadura militar argentina (1976-1983), Ramiro Alejandro Manduca analisa variadas experiências artísticas produzidas pelos militantes do Partido Socialista dos Trabalhadores (PST), organização trotskista que se opunha a luta armada. O autor busca demonstrar como o surrealismo foi mobilizado para a construção de obras políticas e estéticas que visualizavam no futuro saídas para resistir a ditadura. Lorenzo Evola, por sua vez, compara a trajetória de dois importantes intelectuais brasileiros de grande relevância para a construção de ações culturais que modificaram o campo do debate político da esquerda. Em Ferreira Gullar e Paulo Emílio: no compasso das expectativas, o autor analisou tanto as fabulações teóricas, quanto as intervenções no espaço público defendidas por cada autor. Foram mapeadas as trajetórias dos intelectuais ao longo da década de 1960 e criadas possibilidades interpretativas para as suas discordâncias epistemológicas. No campo da discussão historiográfica do campo, o artigo Entre engajamento, censuras e consensos: a cena cultural durante a ditadura civil- militar (1964-1985) de Leonardo Fetter da Silva, tem a função de cumprir esse papel. A proposta do autor é fazer um mapeamento historiográfico do período, explorando a produção artística brasileira no contexto anterior ao golpe militar, a cena cultural durante os primeiros anos do regime militar e a relação com a censura e os consensos presentes nas ações culturais.

Atrizes fazem passeata contra a censura durante a ditadura militar


Duas entrevistas encerram o dossiê e contemplam dois importantes aspectos relativos tema da arte, repressão e censura: historiografia e a memória. A primeira intitulada “Repensando o campo: uma discussão sobre a historiografia dos estudos culturais durante as ditaduras latino-americanas” foi concedida por Miliandre Garcia às organizadoras deste dossiê: Ana Marília Carneiro e Natália Batista. A historiadora analisou sua trajetória como pesquisadora do campo artístico cultural brasileiro e falou sobre o avanço do campo de pesquisa, os debates contemporâneos e a necessidade de repensar constantemente as categorias canônicas desta temática como repressão e resistência. Já a entrevista “Cinquenta anos de Pau de arara: uma entrevista com Bernardo Kucinski” conduzida por Weverson Dadalto tem como proposta uma análise do livro “Pau de Arara” primeiro livro do jornalista sobre a ditadura militar publicado em 1970 em coautoria com Ítalo Tronca. A obra completará 50 anos este ano e teve importância fundamental na denúncia da ditadura militar brasileira exterior. Ainda que Bernardo Kucinski seja ainda hoje um relevante jornalista e escritor sobre o tema da ditadura, situamos esta entrevista no campo na memória exatamente porque ele faz um balanço memorialístico sobre esse período perpassando temas como repressão, tortura, resistência, literatura e o papel dos jornalistas naquele contexto. Ana Marília Carneiro

Pós-doutoranda em História (CAPES-PrInt/UFMG). Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Laboratório de História do Tempo Presente LHTP/UFMG. http://lattes.cnpq.br/1868716813818888

Natália Batista

Pós-doutora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Membro do Núcleo de História Oral NHEO/UFMG. Atrizes fazem passeata contra a censura durante a ditadura militar

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“UMA VERDADEIRA AULA DE COMUNISMO”: A CHINESA (1967) DE JEAN-LUC GODARD E SUA INTERDIÇÃO NO BRASIL LUIZ ANCONA (1)

Resumo

Abstract

Este artigo analisa a censura ao filme A chinesa (La chinoise, Jean-Luc Godard, 1967) no Brasil durante os primeiros meses de 1968 e as polêmicas dela decorrentes. Lida pelos censores como perigosa doutrinação comunista, a obra foi interditada, o que suscitou vasta polêmica com ampla cobertura da imprensa. A distribuidora recorreu ao ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva, que liberou o filme, contrariando o chefe do Departamento de Polícia Federal, coronel Florimar Campello, em um momento no qual ambos protagonizavam uma crise interna do regime em torno da censura. Assim, o artigo contribui com informações acerca do funcionamento ideológico da censura, bem como de crises internas e pressões externas que marcaram a ditadura, em um momento-chave, meses antes da promulgação do AI-5.

This article analyzes the prohibition of the film The Chinese (La chinoise, Jean-Luc Godard, 1967) in Brazil during the first months of 1968 and its polemic repercussions. Read by the censors as a dangerous communist propaganda, the film was banned, which caused a broad contention with wide press coverage. The distributor appealed to Justice Minister Luís Antonio da Gama e Silva, who liberated the film, contradicting the head of the Federal Police Department, Colonel Florimar Campello - at a time when both were leading a crisis within the regime around censorship. Thus, the article contributes with information about the ideological functioning of censorship, and also about internal crises and external pressures that marked the dictatorship, in a key moment, months before the promulgation of AI-5.

Palavras-chave: Ditadura militar brasileira; Censura; Cinema; Jean-Luc Godard; Anticomunismo.

Keywords: Brazilian military dictatorship; Censorship; Cinema; Jean-Luc Godard; Anticommunism.

Bacharel (2015) e Licenciado (2016) em História, e Mestre em História Social (2018), pelo Programa de Pós-Graduação em História Social – Universidade de São Paulo. Atualmente, é doutorando no mesmo programa e universidade e bolsista da FAPESP. https://orcid.org/0000-0002-9933-112X, contato: luizancona@hotmail.com 1


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Introdução Durante a ditadura militar (1964-1985) o Estado brasileiro desenvolveu uma política cultural ao mesmo tempo ativa e repressiva. Já no final da década de 1960, instituições como o Instituto Nacional de Cinema (que funcionou de 1966 a 1975), a Embrafilme (criada em 1969) e o Serviço Nacional de Teatro – SNT, criado em 1937 e atuante de forma bastante significativa sobretudo a partir de 1974 – buscavam políticas de incentivo e regulação da produção cultural. Contudo, foi a partir de 1974, na chamada “distensão”, que o regime mais investiu em sua política cultural ativa, passando ao financiamento de produções e inclusive dialogando com artistas de esquerda opositores da ditadura². Tal processo não se deu sem tensões e conflitos³. Sem contar com intelectuais orgânicos de direita, a ditadura pouco se preocupou com um controle estrito dos conteúdos das obras e com a construção de uma estética e uma temática oficiais (NAPOLITANO, 2014, p. 195). É importante dizer que algumas de suas empreitadas de construção de um imaginário patriótico tiveram resultados muito aquém do esperado4. Nesse sentido, conforme o historiador Marcos Napolitano (2014, p. 196): Em que pese esses esforços para construir uma política cultural positiva e proativa, o regime militar brasileiro passou para a história como um regime que cerceou e controlou a expressão artística e cultural. Se existiu uma “política cultural” que perpassou os governos militares, ela pode ser resumida numa palavra: censura.

Todavia, é importante lembrarmos que a prática censória no Brasil não foi exclusividade da ditadura militar. Conforme aponta a historiadora Miliandre Garcia (2008, p. 12), a censura brasileira é um fenômeno de longa duração, que remonta à época colonial, com o controle da Igreja e os processos inquisitoriais, passa pelo governo de D. João VI e pelo Império, com seus censórios régios, e chega à República com a criação de órgãos especializados. No que diz respeito especificamente à censura cinematográfica, já nas primeiras décadas do século XX há casos de interdições e cortes em filmes, realizados tanto por membros da Igreja quanto da polícia. Já na década de 1920 a censura cinematográfica se institucionalizou em alguns estados brasileiros (SIMÕES, 1999, p. 21-25). Foi em 1932 que se estabeleceu a nacionalização do serviço de censura cinematográfica, cujas disposições orientadoras seriam aperfeiçoadas em 1939, durante o Estado Novo, quando foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, que centralizou o serviço em nível federal e assumiu o monopólio da censura tanto de diversões públicas quanto da imprensa e da radiodifusão (SIMÕES, 1999, p. 26). Em dezembro de 1945, com o fim da ditadura de Getúlio Vargas, o serviço censório sofreu


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transformações significativas, que seriam submetidas às leis da Constituição promulgada no ano seguinte. A censura à imprensa e à radiodifusão foram abolidas, mas foi criado o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP, em 1972 rebatizado para DCDP, Divisão de Censura de Diversões Públicas). Música, cinema, teatro, rádio (e, mais tarde, televisão) passaram a ser submetidos à censura prévia em órgãos estaduais subordinados à polícia (GARCIA, 2008, p. 12). Dessa forma, ao longo de todo o período republicano – com exceção apenas do Estado Novo –, a censura ao cinema e às demais diversões públicas no Brasil foi uma questão tratada pela esfera policial, um caso de polícia. E, antes mesmo do regime militar, configurou-se uma cultura censória no país. Com a ditadura militar, a principal legislação para a atuação censória continuou sendo a Constituição de 1946. E os parâmetros adotados para liberar, interditar e cortar cenas, bem como os funcionários que exerciam a função, também eram anteriores ao golpe de 1964. Dessa maneira, nos primeiros anos do regime militar os pareceres emitidos sobre os filmes pouco diferiam daqueles de períodos anteriores e apresentavam certa superficialidade, com avaliações, brevíssimas ou inexistentes. Mas, em 1966 o governo optou pela centralização do serviço censório em Brasília e iniciou um processo de modernização e racionalização burocrática da censura. Passou-se a exigir formação universitária para o ingresso na função de censor e foram oferecidos cursos de capacitação nas dependências da PF. Assim, com o decorrer dos anos, a documentação censória torna-se mais vasta e oferece maior escopo de análise. Os pareceres ganham maior qualidade textual, se tornam mais longos e mais complexos e as razões das interdições são mais claras e detalhadas. Alguns censores chegam até a apresentar detalhes sobre as filmografias dos diretores e adotam termos próprios da crítica cinematográfica (LUCAS, 2014, p. 198-200). Na ditadura a censura sofreu também um processo de ressignificação, de progressiva politização, em consonância com as preocupações dos governos militares. Como aponta o historiador Carlos Fico (apud GARCIA, 2008, p. 37), à censura legal, amparada pela Constituição de 1946, que há décadas assegurava a moralidade das diversões públicas, os governos militares somaram uma censura “revolucionária” e negada, propriamente política e que integrava os instrumentos de repressão próprios da ditadura. Ou seja, a censura política, antes de uso cotidiano e pouco sistemático, tornou-se prática corriqueira, sem que, com isso, o regime deixasse de lado as interdições por questões ético-morais. Inclusive, não foram poucas as vezes em que as censuras política e moral se embaralharam, sendo difícil discerni-las como duas esferas distintas da atuação censória (GARCIA, 2014, p. 87). No projeto do regime, política e moral não constituíam dois polos distintos, mas se articulavam integralmente, compunham “um mesmo movimento de construção do inimigo e dos modelos positivos a serem forjados” (LUCAS, 2014, p. 207). A conduta


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desviante era tida igualmente como um desvio em relação à sociedade democrática que o regime militar dizia assegurar. Na lógica anticomunista, o comunismo propagava a imoralidade, a degeneração das instituições religiosas e familiares, visando corromper a própria nação. Dessa forma, a ditadura empregou a censura como um instrumento repressivo que buscou impor um consumo cultural em consonância com os valores, políticos e morais, defendidos pelo regime. E nisso estava incluída a produção artística internacional que era distribuída no Brasil. O objeto deste artigo é o processo censório de um filme estrangeiro: A chinesa (La chinoise), de 1967, realizado pelo franco-suíço Jean-Luc Godard. Cineasta marcado desde o início da carreira (no final dos anos 1950) pela experimentação formal e por discussões ético-morais, que se politizou gradativamente à esquerda a partir de meados dos anos 1960 (GUBERN, 1974, p. 9-13), Godard é evocado pela bibliografia especializada na censura cinematográfica brasileira como um objeto de atenção especial por parte da ditadura militar. O jornalista Inimá Simões (1999, p. 98), por exemplo, afirmou que Godard “era visto como a besta-fera pela comunidade de informações”. Mais recentemente, a historiadora Meize Lucena Lucas (2014, p. 193) apresentou argumentos semelhantes: segundo ela, Godard era um dos “cineastas que tinham suas películas mais cuidadosamente apreciadas” pela censura da ditadura militar. Essa atenção especial conferida pela censura aos filmes de Godard de que nos fala a bibliografia fica evidente quando da análise dos processos censórios localizados nos arquivos do DCDP presentes no Arquivo Nacional em Brasília. A imagem de Godard como um imoral doutrinador comunista é presente sobretudo na documentação dos anos 1970 – quando os filmes de Godard da década anterior foram reavaliados para renovação do certificado de censura ou exibição na televisão5. Mas, certamente, teve suas raízes no fatídico ano de 1968, quando duas de suas películas foram interditadas no Brasil: Uma mulher casada (1964) e A chinesa (1967) – sendo que, no caso desta última, houve uma vasta e polêmica repercussão, inserida em uma crise maior do regime militar, que contou com ampla divulgação na imprensa e com diversas manifestações de indignação de intelectuais. Este artigo analisa a documentação presente no processo censório do filme no arquivo do DCDP, bem como as polêmicas decorrentes da interdição, através de fontes publicadas em jornais de grande veiculação à época. Em guarda contra o perigo vermelho Ao longo dos anos 1960, a trajetória político-ideológica de Jean-Luc Godard passou por significativas transformações. No início da década, o cineasta era tido no debate francês como um “anarquista de direita”, pessimista e provocador. Foi apenas no final de 1965 que o realizador se inclinou ideologicamente à esquerda, aproximan-


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do-se de militantes do Partido Comunista Francês (PCF). No entanto, ao final de 1966, Godard mudou novamente de posição e, atraído pelo maoísmo em ascensão na juventude francesa, passou a criticar ferozmente o PCF como “revisionista” (BAECQUE, 2010, p. 351). Foi exatamente nesse momento que o realizador concebeu A chinesa, filme sobre cinco jovens que se reúnem em um apartamento burguês durante as férias de verão com o intuito de formar uma célula de atuação maoísta. Naquele momento, algumas centenas de jovens franceses organizavam o coletivo maoísta Union de la jeunesse comuniste. O tema se tornava cada vez mais frequente na imprensa francesa, e o Livro vermelho de Mao Tsé-Tung se convertia em um surpreendente sucesso editorial nas livrarias de Paris. Segundo Godard, sua intenção era criar uma reportagem sobre a agitação da juventude revolucionária daquele momento (BAECQUE, 2010, p. 351-352). Conforme Antoine de Baecque (2010, p. 354-355), o cineasta lançou às personagens um olhar que não era isento de compaixão, mas que era carregado de distanciamento e de ironia, resultando em um fatalismo com ares de ceticismo. Godard “tudo registra como um etnógrafo” (DANTAS, 2015, p. 132), deixa que seus jovens militantes falem por si e denunciem o vazio e o dogmatismo de seus próprios discursos políticos inflamados, bem como expõe a desconexão com a realidade político-social, a desunião de classes – a única personagem de origem humilde e camponesa tornou-se a copeira do grupo – e a inconsequência pueril do marxismo de veraneio dos jovens. Após sua estreia nas salas francesas em setembro de 1967, o filme foi recebido com hostilidade por diversas publicações de esquerda. Foram os maoístas que se demonstraram mais indignados e, no jornal L’Humanité nouvelle, definiram A chinesa como uma “provocação de tipo fascista”, ideologicamente reacionária, cujo objetivo seria atacar a China e reprimir o marxismo-leninismo face à opinião pública. O filme foi duramente atacado também por trotskistas, pelos situacionistas e pela direção do PCF, além de ter gerado a indignação de um grupo de diplomatas chineses que participaram de uma projeção privada na embaixada da China em Paris (BAECQUE, 2010, p. 376-379). A chinesa foi adquirido pela Companhia Franco-Brasileira em setembro de 1967, mês de seu lançamento comercial na França. No final daquele ano as cópias já se encontravam no Rio de Janeiro em posse da distribuidora que, em 22 de janeiro de 1968, submeteu o filme à avaliação da censura federal. Dois dias depois foram emitidos dois pareceres. O primeiro deles, de autoria da técnica de censura Jacira de Oliveira. A censora utilizou as fichas padronizadas do SCDP6, mas não preencheu todos os itens. Ao descrever o “entrecho” sintetizou seu posicionamento em relação ao filme:


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A vida de jovens estudantes universitários de Nanterre, integrantes de uma célula comunista, é retratada de forma crua. O relato do seu dia-a-dia, suas dúvidas entre a linha moscovita e a linha chinesa, são revelados ao espectador de modo a impressioná-lo. O problema do Vietnã que parece obcecar Godard, novamente nos é apresentado. As divergências filosóficas e de ação torpedeiam o espectador menos avisado. Uma verdadeira aula de comunismo nos dá Godard com esta obra. Cinema dos mais perfeitos, porém sua causa é nos totalmente prejudicial. Inconveniente sobre todos os aspectos a exibição deste filme em nosso país, pois, quando mais não seja, ficará na mente do público as mensagens visuais, as frases lançadas a esmo, todas formas de propaganda do regime comunista, que conforme é sobejamente conhecido prega a IGUALDADE SOCIAL, mas em seus governos o que se vê é exatamente o contrário, típico “FAZE O QUE EU DIGO, MAS NÃO FAZE O QUE EU FAÇO” (PARECER..., 1968a).

Logo de cara, na tentativa de apresentar uma sinopse, a censora alega que o filme visa impressionar o espectador. A chinesa, para Jacira de Oliveira, era uma “verdadeira aula de comunismo” para um possível “espectador menos avisado” (PARECER..., 1968a). Nessa leitura, o teor da obra era inegavelmente propagandístico e, por isso, prejudicial ao público brasileiro. A censora traçou também uma crítica inflamada, com termos escritos em caixa alta, aos regimes comunistas. Ao final do parecer, ela ainda apresentou uma brevíssima “apreciação técnica” do filme: “a montagem é de primeira, a técnica de Godard é, indiscutivelmente, das mais perfeitas. Mixagem e som dentro da classe do mestre do cinema novo francês” (PARECER..., 1968a). Nota-se que no parecer coexistem duas imagens do cineasta: ao mesmo tempo um grande mestre da técnica cinematográfica e um subversivo doutrinador comunista. Dessa forma, a suposta simpatia nutrida pela qualidade artística do filme não isentou a censora de optar pela interdição completa. Afinal, os censores não eram encarregados de realizar crítica artística (mesmo que, volta e meia, seus pareceres tentem passar essa impressão), mas sim de preservar o país de mensagens tidas como inconvenientes. O segundo parecer foi emitido por José Madeira, que não utilizou a ficha do SCDP. O censor elaborou um texto de duas páginas, iniciado com uma descrição formal da obra – na qual, mais uma vez, fica evidente a pretensão de crítica cinematográfica. Segundo Madeira, a linguagem do filme mesclava elementos do “cinéma verité”, do surrealismo, da “pintura moderna pop” e ainda “pinceladas barrocas” (PARECER..., 1968b). O censor afirmou também que a película era “dividida em movimentos como se fosse uma composição de música clássica”. Ao abordar o “conteúdo”, Madeira afirmou que A chinesa discutia e interpretava a filosofia de Marx e os ensinamentos de Mao Tsé-Tung por meio de diálogos críticos. Para o censor, no filme temas como a educação francesa, o continente africano e a Guerra do Vietnã eram “abordados den-


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tro de uma perspectiva comunista chinesa” (PARECER..., 1968b). Ou seja, na ótica de Madeira o filme optava abertamente por um discurso maoísta. O censor comentou ainda o método de colagem empregado por Godard, no qual eram justapostas imagens de “figuras internacionais do comunismo”, como “Lenin, Marx, Stalin, Trotsky, Engels, a Guarda Vermelha de Smolny e a Guarda Vermelha de Mao, a revolução bolchevique, Ernesto Che Guevara, o líder negro norte-americano Carmichael, etc., etc.” (PARECER..., 1968b). Ao final do parecer, José Madeira, diferentemente de Jacira de Oliveira, não apresentou uma decisão clara a respeito da obra. O censor reconhecia que o filme era “inconveniente para ser exibido livremente, em qualquer cinema do país”, mas chegou a sugerir que talvez fosse o caso de liberá-lo para cinemas de arte, com impropriedade para menores de dezoito anos, dado “o conteúdo artístico da obra em si, que não se pode negar” (PARECER..., 1968b). Assim, Madeira encerrou seu texto propondo que o filme fosse julgado por instâncias superiores, mais aptas a avaliarem as possíveis implicações para a Segurança Nacional: julgo conveniente sugerir à chefia que o filme venha a ser examinado, também, por oficiais do Exército, que, mais familiarizados com a Doutrina de Segurança Nacional, poderiam opinar se a película não fere os objetivos nacionais permanentes, ou se é inoportuna a sua exibição (PARECER..., 1968b).

O parecer de Madeira não compartilha do anticomunismo explícito de Jacira de Oliveira. Ao se deparar com um filme de claro teor político e com menções a tantas figuras internacionais do comunismo, o censor, ciente da delicadeza da questão, preferiu se isentar e sugerir que o caso fosse encaminhado a oficiais do Exército, pois estes estariam mais aptos a avaliar os possíveis riscos à Doutrina de Segurança Nacional. A questão, no entanto, não foi levada a tais instâncias. No dia 6 de fevereiro, Manoel de Souza Leão Neto, chefe do SCDP, enviou uma carta ao coronel Florimar Campello, chefe do Departamento de Polícia Federal (DPF), na qual decretava a decisão do órgão censório de vetar A chinesa. Em seu texto, Souza sintetizou as interpretações contidas nos dois pareceres anteriores. Ao tomar contato com as avaliações de Oliveira e Madeira, ele não teve dúvidas: o filme propunha “uma sequência de debates no sentido da doutrinação política”, logo, “prejudiciais à causa da democracia” (CARTA..., 1968a). Souza não deixou de reportar ao chefe da PF a “impressionante” qualidade técnica da obra, que tinha “sonoridade, iluminação, roteiro e movimentação de câmera perfeitos”; mas concluiu ressaltando a “doutrinação contrária aos interesses da Segurança Nacional”, por meio da qual ele justificou sua decisão pela interdição (CARTA..., 1968a). Tradicionalmente, desde a criação do SCDP, a instituição se apresentava publi-


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camente como “guardiã dos valores ético-morais da sociedade” (GARCIA, 2008, p. 36), preocupada estritamente com a manutenção do decoro e dos bons costumes. Durante a ditadura militar, a censura política, embora cada vez mais praticada, foi um “assunto delicado” para os censores. Foi recorrente que técnicos ou dirigentes do órgão negassem à imprensa a politização da atividade censória, uma vez que esta não possuía o mesmo amparo legal da censura estritamente moral. Um exemplo contundente, apresentado por Miliandre Garcia (2008, p. 36), vem do próprio José Madeira que em 1979 assumiu a função de chefe da DCDP. Ao tomar posse do cargo, em entrevista ao Jornal do Brasil, Madeira se recusou a discutir o assunto da censura política e insistiu que a censura se limitava à moral e aos bons costumes. Nesse sentido, é emblemático verificar que, onze anos antes, quando ainda ocupava a função de técnico de censura, Madeira tenha se eximido de dar o parecer a um filme claramente político. No entanto, a outra técnica, Jacira de Oliveira, e o chefe à época, Manoel de Souza, não seguiram o mesmo caminho da isenção. Para eles, era claro e indiscutível que A chinesa deveria ser proibido mesmo que por razões explícita e exclusivamente políticas. Dessa forma, tal documentação nos fornece um claro exemplo do processo de ressignificação pelo qual a censura de diversões públicas passou no contexto do regime militar. Como vimos, no ano anterior A chinesa fora alvo de hostilidade de diversos setores da esquerda francesa por ser considerado anticomunista, reacionário e até mesmo fascista. Mas, aos olhos dos censores brasileiros, ao apresentar tantas discussões filosóficas e políticas sobre o marxismo e tantas imagens de líderes e intelectuais comunistas, o filme só poderia representar uma clara ameaça ao regime então vigente no país. Regime este que, cabe lembrar, como nos ensina Roberto Schwarz (2008, p. 71), chegou ao poder “a fim de garantir o capital e o continente contra o socialismo”. Conforme o historiador Rodrigo Patto Sá Motta (2002, p. 231), o anticomunismo foi “a fagulha principal a detonar o golpe militar”. Este foi apresentado por seus participantes e apoiadores como uma reação ao comunismo – supostamente ensejado por João Goulart devido à política de aproximação com o Partido Comunista do Brasil (PCB) – e, consequentemente, uma vitória do “mundo livre” (PATTO, 2002, p. 271-272). Ademais, desde a década de 1930 as Forças Armadas tiveram o anticomunismo como uma de suas principais referências político-ideológicas, uma verdadeira cultura política a nortear sua forma de atuação na sociedade brasileira (TEIXEIRA, 2014). Nesse sentido, ao longo da ditadura militar, o pensamento que direcionou as ações do Estado foi a Doutrina de Segurança Nacional, que pressupunha um país em “guerra interna”, contra um inimigo bastante definido: o comunismo (LUCAS, 2014, p. 207). O parecer final de Souza vincula-se explicitamente a tal doutrina, assim como justifica a proibição de A chinesa em nome da “causa da democracia”. Soa contradi-


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tório, até mesmo grotesco, um censor recorrer à noção de democracia para justificar a censura de uma obra de arte. Porém, na lógica dos militares no poder, a verdadeira ameaça à democracia era o comunismo, logo, qualquer medida tomada a fim de contê-lo era essencialmente democrática – mesmo que isso incluísse a implementação de um Estado de exceção e de um aparato repressivo, no qual estava incluída a própria censura. O ministro, o coronel e os artistas: conflitos internos e pressões externas no regime militar Tão logo foi decretada, a interdição do filme de Godard passou a ser reportada pela imprensa. Já no dia 10 de fevereiro, o Jornal do Brasil noticiava a proibição (LANCE-LIVRE, 1968); e, no dia 13, o diretor da Companhia Franco-Brasileira declarava sua indignação em entrevista ao mesmo jornal. Segundo ele, a proibição era “incorreta” e “absurda”, uma vez que A chinesa empreendia uma crítica paródica à chamada “esquerda festiva” e havia recebido duras críticas do jornal francês L’Humanité, órgão de imprensa do PCF. O diretor afirmava ainda que, caso não obtivesse a revogação da proibição por meio da pressão na imprensa, levaria a censura federal à Justiça (GODARD, 1968). Desde o final de 1967, a censura era uma questão particularmente tensa na imprensa e na sociedade brasileiras. Diversos artistas e intelectuais, sobretudo ligados ao teatro, se organizavam, protestavam e recorriam ao ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva buscando reverter decisões arbitrárias dos censores7. Do outro lado da disputa, representantes militares se mostravam intransigentes ao diálogo e defendiam uma rigidez ainda maior do serviço censório. Um deles era justamente o diretor do DPF, o coronel Florimar Campello. Os embates se acirraram no início de fevereiro de 1968, quando o coronel suspendeu a temporada da peça Um bonde chamado desejo (Tennessee Williams, 1947) em Brasília (GARCIA, 2008, p. 60-61). A partir daquele momento, os protestos e críticas na imprensa se intensificaram. Por todo o Brasil, artistas se reuniam, escreviam manifestos e abaixo-assinados, organizavam passeatas, e pediam a demissão de Campello (ARTISTAS, 1968). Foi nesse cenário de tensão que foi decretada a interdição de A chinesa. A proibição ao filme de Godard surgiu então como um argumento a se somar aos ataques desferidos na imprensa contra a censura (A CHINESA, 1968). Em um texto de 17 de fevereiro, Ruy Castro (1968) criticava duramente as autoridades censórias, referindo-se, sobretudo às recentes proibições de Um bonde chamado desejo e A chinesa. No entanto, o aparato repressor não cedeu face aos protestos. No dia 19 daquele mês o coronel Campello baixou uma portaria na qual reforçava a interdição. Segundo ele, a obra retratava “atos visando à subversão da ordem, bem como debates no sentido de doutrinação


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política, o que a faz passível de interpretações distorcidas, tornando-se contrária aos interesses nacionais” (PORTARIA..., 1968). A distribuidora, que já havia ameaçado levar o serviço de censura à Justiça, decidiu recorrer diretamente ao ministro Gama e Silva e, no dia 6 de março, enviou-lhe uma carta. Juntamente, foram enviados seis textos publicados sobre o filme em diferentes jornais. Um deles, inclusive, publicado no jornal francês de direita Le Monde no ano anterior. Na longa carta, de quatro páginas, a Companhia desmontava a argumentação do diretor do DPF por meio de uma análise do filme, amparada nos textos anexados. A argumentação iniciava alegando que na França, palco das ações retratadas no filme, A chinesa fora um “enorme sucesso”, exibido “sem quaisquer restrições de autoridades governamentais” e objeto de críticas favoráveis “DOS PRINCIPAIS ÓRGÃOS DA IMPRENSA, INCLUSIVE DOS JORNAIS ANTI-ESQUERDISTAS”8 (CARTA..., 1968b) – como era o caso do Monde. A carta prossegue, enfatizando o caráter satírico da obra, o que não permitiria enquadrá-la como uma “propaganda comunista”. Pelo contrário, insistia a distribuidora, o filme denunciava a “quebra de unidade” entre os comunistas russos e chineses e, por isso, “desgostou os comunistas, do Brasil e do mundo” (CARTA..., 1968b). Nesse momento, são citadas quatro matérias de jornais que ressaltam a reação negativa por parte da esquerda francesa. Em uma delas, publicada no Jornal do Brasil de 1º de março, os críticos e cineastas Maurício Gomes Leite e David Neves ridicularizavam os censores por não terem compreendido o filme (CINEASTAS, 1968). Ou seja, em sua carta ao ministro, a distribuidora buscava evidenciar o “equívoco interpretativo” do coronel, pedindo a revogação da interdição. Outro argumento empregado no recurso foi a alegação de que a proibição, ao invés de garantir a Segurança Nacional, na verdade poderia ser um pretexto para críticas por parte da “imprensa mundial ávida por denegrir nossas instituições” (CARTA..., 1968b). Buscando convencer o ministro, a Companhia apelava para a imagem do governo brasileiro no exterior, algo que consistia em uma grande preocupação do regime militar, empenhado em projetar internacionalmente a imagem de um Brasil que vivia em estado de normalidade democrática. Dois dias depois, 8 de março, Gama e Silva anunciou ao Jornal do Brasil estar em posse de cópias de A chinesa a fim de avaliar a interdição (GAMA, 1968). Mas foi apenas no dia 21 daquele mês que o ministro emitiu seu parecer no qual, finalmente, liberou a obra. Nesse intervalo de tempo, a interdição continuou alvo de críticas dos jornais (PANORAMA, 1968) e de críticos, como José Lino Grünewald (1968) e Mário Pedrosa9 (1968). Em seu texto, Gama e Silva seguiu o caminho indicado pela Companhia Franco-Brasileira no pedido de recurso, chegando mesmo a citar trechos das reportagens enviadas pela distribuidora. O ministro afirmou que assistira à película e concluíra que


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as razões evocadas por Campello eram inválidas. Afinal, dizia ele, A chinesa era uma “obra satírica e destituída de mensagem positiva a favor do marxismo-leninismo”, que denunciava a “divergência irremediável” do mundo comunista, bem como a “inutilidade dos debates dos temas político-ideológicos por jovens utópicos”. Na leitura do ministro, o filme ironizava “o comportamento de uma juventude pouco experiente, de tendências esquerdizantes, sem bases seguras, que muito se aproxima do que entre nós se convencionou chamar de esquerda festiva” (PROCESSO..., 1968). Gama e Silva concluiu com a afirmação de que A chinesa não representava “qualquer risco à Segurança Nacional e à formação política de nossa mocidade”, e liberou o filme para todo o território nacional com a classificação etária máxima de 18 anos (PROCESSO..., 1968). No dia seguinte, seu gabinete enviou carta ao DPF em que anunciou a decisão final do ministro (CARTA..., 1968c). Juntamente, foi enviada uma nota manuscrita (Figura 1) na qual se exigia que o certificado de liberação do filme fosse expedido com a seguinte “ressalva” (termo sublinhado no documento): “Liberado por decisão do Exmo. Sr. Ministro da Justiça” (Figura 2). Figura 1 As divergências entre Gama e Silva e Campello não se limitaram apenas a esse caso. Nos primeiros meses de 1968 o governo brasileiro vivia uma verdadeira crise em torno da questão da censura, protagonizada justamente pelo ministro da Justiça e pelo diretor-geral do DPF. De um lado, Gama e Silva – largamente pressionado pela intelectualidade, sobretudo pela classe teatral – prometia revisar a legislação censória e acabar com a centralização federal; do outro, Campello defendia o recrudescimento da ação policial e se mostrava irredutível em relação às reivindicações dos artistas (GARCIA, 2008, p. 64). Nesse sentido, não foi por acaso que a Companhia Franco-Brasileira recorreu diretamente ao ministro. Naquele momento, a intelectualidade nutria certa simpatia, até mesmo certa admiração, por Gama e Silva, que se mostrava aberto ao diálogo com os artistas, Figura 2


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chegando a encaminhar, no final de fevereiro, um anteprojeto de descentralização do serviço censório ao marechal Costa e Silva – que o recusou. Em alguns momentos, os jornais veicularam uma imagem do ministro como um “apóstolo da humanização”, personalidade “esclarecida” e de “postura civilista”, em oposição à truculência e ignorância do coronel Campello (GARCIA, 2008, p. 66). No entanto, a análise histórica não pode cair na armadilha de corroborar tal imagem de “bom moço”, arauto das liberdades democráticas, de Gama e Silva. Sua postura de diálogo com artistas e intelectuais era, na verdade, uma estratégia para lidar com as pressões da sociedade civil, sobretudo da classe teatral, em polvorosa naquele momento. Da mesma maneira que a liberação de A chinesa se deveu às pressões da imprensa e da distribuidora – preocupada com o prejuízo financeiro acarretado pelo veto10. O ministro estava preocupado em assegurar determinada imagem do regime – especialmente no exterior – e, nesse sentido, a ridicularização que a imprensa fazia da falta de compreensão do filme por parte dos censores era um elemento que deveria ser contornado. As fontes de imprensa aqui referidas nos oferecem um exemplo dos diálogos (bastante assimétricos) que setores da sociedade civil buscavam estabelecer com o regime autoritário. Bem como, são indicativas da indignação que a censura suscitava em artistas e intelectuais, que se recusavam a aceitar que obras de arte de alto renome artístico – consumidas não pelas massas, mas pela intelectualidade – fossem vetadas por censores desprovidos de senso estético. Tal questão era particularmente forte no caso do cinema, pois remontava a tentativas de interdição ocorridas já nos anos 1950, como os casos dos filmes Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955) e Os amantes (Les amants, Louis Malle, 1958), os quais suscitaram grandes ondas de indignação11. Naquele momento, a interdição de A chinesa representou um importante capítulo na crise interna vivida pela ditadura militar em torno da censura. E sua posterior liberação representou uma vitória das pressões da sociedade civil face ao recrudescimento do serviço censório. Porém, mesmo após liberado, o filme continuou gerando polêmicas. Sua pré-estreia no Rio de Janeiro, inicialmente marcada para o dia 2 de abril, foi cancelada por imposição de “autoridades militares”, que “aconselharam a não exibição do filme ‘até que se acalmem os ânimos’”, conforme noticiado pelo Jornal do Brasil (CRISE, 1968)12. Naquela altura, o Rio de Janeiro vivia o ápice da crise estudantil desencadeada pelo assassinato do estudante Edson Luís, ocorrido apenas cinco dias antes, em 28 de março. A cidade encontrava-se em clima de agitação, com passeatas e manifestações tomando diariamente as ruas. Dessa forma, o Estado autoritário não poderia abrandar seu aparato repressor justamente naquele momento conturbado, ainda mais tratando-se de um filme que já levantara tanta polêmica e resistência por parte da sociedade civil.


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No final daquele mês, mais uma aparente vitória das reivindicações da classe artística: Campello foi exonerado de seu cargo (CEL CAMPELLO, 1968). No entanto, os acontecimentos que se sucederam ainda em 1968 não permitiram que a sensação de vitória persistisse por muito tempo. Em novembro, a Presidência da República aprovou o novo projeto de lei de reformulação da censura redigido por Gama e Silva, cujo teor era bastante distinto daquele proposto em fevereiro, quando o ministro ainda ensaiava uma aproximação com artistas e intelectuais. A centralização do serviço censório se manteve e se intensificou, e a regulamentação da censura de peças teatrais e filmes se tornou ainda mais rigorosa. Nessa direção, no dia 13 de dezembro foi promulgado o Ato Institucional número 5, que, também redigido por Gama e Silva, deu início a um período de violência e repressão à cultura ainda maiores. Conclusão Em agosto de 1968, mais uma obra de Godard foi interditada pelo SCDP: Uma mulher casada (La femme mariée, 1964), filme sobre uma esposa adúltera e que já enfrentara problemas com a censura na França13. Para a burocracia censória, o filme atentava contra “a moral brasileira” ao retratar um comportamento feminino muito distante daquele esperado pelos setores mais conservadores da sociedade. A distribuidora, Columbia Pictures of Brazil, chegou a recorrer a Gama e Silva, mas, dessa vez, sem sucesso14. Passados cinco meses das polêmicas envolvendo A chinesa, o ministro não interveio a favor da distribuidora. Não se dispôs a confrontar a burocracia da PF e passar por cima da legislação censória. O momento não era mais o da forte crise de fevereiro-março, e a negociação do ministro estava agora muito mais próxima do governo federal, o que culminaria, no final do ano, no novo projeto de lei de regulamentação da censura e no AI-5. Ademais, com Uma mulher casada a censura executava aquilo que era sua explícita e legalmente amparada razão de ser, o controle da moralidade das diversões públicas. O filme foi liberado apenas em março de 1970, reavaliado por um dos censores que o havia vetado anteriormente. Curiosamente, o censor emitiu um parecer totalmente distinto do anterior. Segundo ele, tal mudança se devia às novas regras do aparato censório, agora mais “liberais” em decorrência da pressão popular (PARECER..., 1970). Assim, a interdição de Uma mulher casada não faria mais sentido e, por isso, o censor optou pela liberação, apenas com um corte em uma legenda, julgada “grosseira”, na qual a protagonista fazia alusão a sexo anal (“e atrás, também é amor?”). As normas que regiam o órgão censório podiam até ter abrandado, mas a população brasileira ainda deveria ser privada do contato com certos comportamentos tido como desviantes. Ademais, é necessário problematizar a afirmação do censor de que


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a censura estaria mais branda devido a demandas da sociedade civil. Se após a reformulação iniciada no final de 1968 a censura tornou-se mais permissiva em relação a determinadas questões morais, foi apenas porque a preocupação central passou a ser com a censura política, dentro da lógica da Doutrina de Segurança Nacional, intensificada após o AI-5. A partir do AI-5 a ditadura entrou em seus “anos de chumbo”, e, preocupada com os grupos de oposição armada que atuaram até 1974, intensificou a paranoia anticomunista de seu aparato repressivo. Exemplar desse processo é a reavaliação do filme de Godard O desprezo (Le mépris, 1963) para exibição na televisão no final de 1973. Em 1969 o filme fora liberado para os cinemas com longos cortes, sobretudo nas sequências iniciais, devido à nudez da protagonista interpretada por Brigitte Bardot. Porém, quando reavaliado, duas censoras o julgaram impróprio para a TV por se tratar de um filme de Godard, “o maior expoente do cinema político de mensagem subliminar de teor subversivo” (PARECER..., 1973a), realizador em cujos filmes “as mensagens subliminares são uma constante” (PARECER..., 1973b). Aqui, é possível evidenciar a imagem fortemente consolidada a respeito do realizador. Meses depois, a distribuidora encaminhou pedido de reconsideração, alegando ter realizado uma série de cortes e eliminado qualquer referência ao nome do diretor (CARTA..., 1974). Omitir que uma obra era de autoria de Godard era, naquele momento, uma estratégia visando a liberação. Até mesmo o nome do cineasta era considerado uma influência negativa para o público brasileiro. No entanto, o censor que reexaminou a obra em julho de 1974 foi ainda mais radical que as pareceristas anteriores, a despeito dos cortes. Para ele, O desprezo buscava incitar o espectador à subversão da ordem estabelecida. Ele ainda listou nada menos do que dez falas proferidas pelas personagens, nas quais haveria “mensagens de desagregação, de combate à religião, ou sentimento religioso, e à sociedade capitalista, chamada de sociedade de consumo” (PARECER..., 1974). Dessa forma, manteve a proibição: “achamos que um filme com todo esse arsenal não deve ser liberado para televisão, pois não há como se proteger os menores em formação das toxinas injetadas a pequenas doses” (PARECER..., 1974). O filme foi enfim liberado para a TV apenas em 1979, ou seja, após a suspensão do AI-5. Fica evidente como, na década de 1970, o rigor da avaliação censória e a paranoia anticomunista se intensificaram. Se em 1969 O desprezo, filme anterior ao engajamento marxista de Godard, incomodara apenas por atentado ao pudor, em 1973-4 ele foi lido como doutrinação comunista. Por fim, a trajetória de O desprezo no órgão censório nos revela outra característica fundamental da política cultural da ditadura. Fica evidente que a liberação de um filme para a televisão seguia critérios muito mais rígidos que no caso do cinema. Pois, mais importante do que determinar o que poderia ser visto, era determinar quem poderia ver. O regime estava preocupado sobretu-


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do com a despolitização da classe trabalhadora, e não com os meios intelectualizados. Assim, os filmes poderiam ser liberados, até mesmo sem cortes, para os cinemas – especialmente “cinemas de arte”, festivais e cineclubes –, mas não para a televisão – desde meados dos anos 1960 a “diversão pública” de maior alcance popular. A trajetória do cinema godardiano na censura da ditadura militar brasileira é bastante prolífica para a compreensão de aspectos do funcionamento ideológico do aparato de repressão cultural do regime. A interdição de A chinesa no fatídico ano de 1968 certamente foi um momento fundamental no processo de consolidação da imagem de Godard como um imoral doutrinador comunista, recorrente na documentação censória dos anos 1970. Ademais, o caso é exemplar de uma censura explicitamente política, anticomunista, empreendida poucos meses antes do AI-5. As reações de indignação na imprensa e todas as polêmicas suscitadas, até a liberação final pelo ministro da Justiça, nos dão informações acerca das resistências e acomodações empreendidas pela sociedade civil em relação à ditadura naquele momento, bem como de tensões internas vividas pelo regime. Notas No caso do cinema, realizadores do Cinema Novo tiveram seus filmes distribuídos e/ou financiados pela Embrafilme desde 1973, e chegaram até a ocupar cargos burocráticos na empresa. Nesse processo, foi bastante significativa a nomeação de Gustavo Dahl, crítico ferrenho do mercado cinematográfico no início dos anos 1960, como superintendente comercial da instituição em 1974. Já no caso do teatro, durante a gestão do empresário Orlando Miranda (1974-1979), o SNT viveu uma prolífica confluência entre empresariado liberal e dramaturgos comunistas que, sob mecenato do Estado, produziu obras ao mesmo tempo críticas e voltadas ao mercado. Sobre as complexidades decorrentes desses diálogos na Embrafilme e no SNT, ver, respectivamente MALAFAIA, 2007; GARCIA, 2013. 2

Um caso emblemático no cinema foi o fato do primeiro filme distribuído pela Embrafilme ter sido São Bernardo (1973), do realizador filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) Leon Hirszman, baseado no romance do também comunista Graciliano Ramos. Apesar da participação estatal, o filme teve problemas com a censura, ficando meses retido, o que causou sérios danos financeiros ao cineasta e à sua produtora (NAPOLITANO, 2017, p. 226). No caso do teatro, a peça Patética, de 1975, alegoria do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, foi premiada pelo SNT, porém vetada pela censura, que impediu a premiação e a montagem, retomada apenas em 1979. Ver GARCIA, 2013. 3

Um exemplo bastante significativo de tentativa frustrada de dirigismo estatal foi o projeto de incentivo à produção de filmes históricos. Desde 1971 o regime exortava cineastas à realização de filmes de caráter cívico e ufanista e a partir de 1975 entrou na produção através da Embrafilme. Em 1977 a empresa lançou um programa especial de fomento à pesquisa de temas para filmes históricos. No entanto, como aponta o crítico Jean-Claude Bernardet (1982, p. 57-68), o único filme histórico de grande repercussão cívica do período, Independência ou morte (Carlos Coimbra, 1972), não resultou dos esforços estatais, assim como Xica da Silva (Cacá Diegues, 1975), grande sucesso de bilheteria, pouco deveu ao projeto governamental. Já o filme ao qual o Estado mais se dedicou, Anchieta, José do Brasil (Paulo César Saraceni, 1977), era inaproveitável por ele. 4


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Os filmes eram reavaliados a cada cinco anos, para que os certificados de liberação fossem renovados. E os filmes já liberados para os cinemas precisavam ser reavaliados caso alguma emissora de televisão desejasse exibi-los. 5

Após a reorganização da censura em 1966, os censores preenchiam fichas nas quais deveriam apresentar “entrecho”, “crítica artística”, “apreciação técnica” e “apreciação moral” dos filmes. 6

Um episódio central, ocorrido no final de 1967, e que suscitou diversas manifestações de indignação da imprensa e de artistas teatrais foi a proibição da peça Navalha na carne de Plínio Marcos. Os impasses gerados pela interdição tiveram de ser resolvidos pelo ministro Gama e Silva (GARCIA, 2008, p. 56). 7

Os trechos constam em caixa alta no documento original e optamos por transcrevê-los desta maneira a fim de transmitir o tom enfático da argumentação. 8

O texto de Pedrosa é posterior à liberação do filme por Gama e Silva, mas anterior à emissão dos certificados de liberação, que ocorreu apenas no dia seguinte, 25 de março. 9

Além da interdição, o chefe do SCDP, Manuel de Souza, solicitou que a Companhia Franco-Brasileira enviasse ao órgão as cópias existentes do filme. No recurso encaminhado a Gama e Silva, a distribuidora enfatizava tal solicitação, alegando que ela constituía um ato de “confisco de propriedade e de legalidade discutível”. Em seu parecer final de liberação, o ministro da Justiça iniciava afirmando que a solicitação carecia de respaldo legal. 10

O filme Rio, 40 graus foi interditado em setembro de 1955 pelo coronel Geraldo de Menezes Cortes, chefe do Departamento Federal de Segurança Pública (órgão que antecedeu o DPF), contrariando a decisão do SCDP, que liberara o filme no mês anterior. Segundo o coronel, o filme enaltecia a conduta delinquente de suas personagens e ressaltava apenas aspectos negativos da sociedade brasileira, o que serviria aos interesses do extinto PCB. Ademais, Cortes também afirmou que o filme era falso, uma vez que no Rio de Janeiro não fazia 40 graus – frase pela qual ele eternizou-se no anedotário nacional. A proibição suscitou uma vasta campanha na imprensa carioca e diversas manifestações de intelectuais no Rio e em São Paulo, além de uma ação promovida por deputados federais pela liberação, obtida apenas em dezembro daquele ano. Já Os amantes gerou polêmicas devido às insinuações de erotismo presentes na trama. Em 1959, foi liberado restrito às capitais Rio e São Paulo. Na então capital federal o filme foi alvo de interdição por uma ação na Justiça proposta por uma entidade privada, posteriormente reforçada pela Procuradoria da República. Quando enfim liberada por decisão judicial e exibida em São Paulo, a obra gerou indignação da Confederação de Famílias Cristãs que iniciou uma enorme campanha, na imprensa e na Justiça, visando sua interdição. Do outro lado da disputa, dezenas de intelectuais paulistas assinaram um manifesto contra as tentativas de proibição. O documento contou com a assinatura de nomes como Sérgio Milliet, Sérgio Buarque de Hollanda, Paulo Emílio Sales Gomes, Lygia Fagundes Telles, Décio de Almeida Prado e B. J. Duarte. Ver SIMOES, 1999, p. 46-57. 11

A chinesa estreou no Rio de Janeiro, finalmente, na semana do dia 22 de abril e, em São Paulo, apenas no final de maio (informações obtidas através de consulta aos arquivos do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo). 12

O filme foi exibido em agosto de 1964 no Festival de Veneza sob o título La femme mariée – A mulher casada. No entanto, quando examinado pela comissão de controle francesa no final de setembro, sofreu interdição total. O presidente da comissão, em carta ao ministro da Inteligência, acusava o filme de apresentar um ultraje à moral; além de condenar o título da obra, que sugeriria, por generalização, que toda mulher casada apresentava o mesmo comportamento adúltero e obsceno da protagonista. A proibição gerou vasta reper13


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cussão na imprensa francesa, que se engajou em defesa de Godard. O cineasta foi pessoalmente negociar com o ministro da Inteligência, que propôs que o filme mudasse de título e tivesse cerca de três minutos de cenas cortadas. Após uma série de mudanças, como a remoção de diversas cenas e a troca do título, o filme foi liberado, com classificação etária de 18 anos, no final de novembro. (BAECQUE, 2010, p. 266-269). O pedido de recurso não se encontra dentre a documentação na pasta do filme no arquivo do DCDP em Brasília. Tomamos conhecimento do documento a partir de uma carta, enviada por Aloysio Muhlethaler, então chefe do SCDP, ao gabinete do diretor do DPF. Ele se referiu a um despacho no qual a distribuidora pedia reconsideração da interdição ao ministro da Justiça. Em seguida, comentou a ilegalidade da medida, uma vez que, segundo a legislação que regia a censura, os pedidos de recurso deveriam ser encaminhados à diretoria do DPF, e não ao ministério da Justiça (CARTA..., 1968d). 14

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PARECER do TC Constâncio Montebello. Brasília, 7 abr. 1970. In: Processo de censura do filme Uma mulher casada, de Jean-Luc Godard. DCDP/CP/CI/FI/CX800/37343. PARECER da TC Valmira de Oliveira. Brasília, 20 dez. 1973. In: Processo de censura do filme O desprezo, de Jean-Luc Godard. DCDP/CP/CI/FI/CX602/28355 [1973a]. PARECER da TC Maria Bezerra. Brasília, 3 jan. 1974. In: Processo de censura do filme O desprezo, de Jean-Luc Godard. DCDP/CP/CI/FI/CX602/28355. PEDROSA, Mário. Censores, tirem as suas patas de cima do teatro e do cinema. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 4º cad., p. 2, 24 mar. 1968. PORTARIA nº 182-68, do diretor-geral do DPF, Florimar Campello. Brasília, 19 fev. 1968. In: Processo de censura do filme A chinesa, de Jean-Luc Godard. DCDP/CP/CI/FI/CX173/7137. PROCESSO MJ-06054/68. Brasília, 21 mar. 1968. In: Processo de censura do filme A chinesa, de Jean-Luc Godard. DCDP/CP/CI/FI/CX173/7137. SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. SIMÕES, Inimá. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: SENAC, 1999. TEIXEIRA, Mauro. Em nome da ordem: a cultura política anticomunista nas Forças Armadas brasileiras: 19351985. Mediações, Londrina, v. 19, n. 1, p. 151-169, jan.-jun. 2014


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“TODAVÍA CANTAMOS”1. REPRESIÓN CULTURAL, EXILIO Y RESISTENCIA EN ARGENTINA: UN ACERCAMIENTO A PARTIR DEL CASO DE LOS MÚSICOS EXILIADOS EN MÉXICO ENTRE 1976-1983. CANDELARIA MARÍA LUQUE2

Resumen

Abstract

Dentro del plan sistemático de eliminación de la disidencia perpetrado por la última dictadura cívico-militar en Argentina, la cultura y el arte se constituyeron en uno de los objetivos centrales de sus políticas de control y persecución. Este andamiaje represivo pretendía desarticular una expansión estética y política que se desarrolló en el campo musical desde la década los sesenta. Dentro del masivo exilio político argentino a partir de 1976, los músicos fueron poco numerosos, pero sus trayectorias y producciones durante el destierro nos permiten pensar sus experiencias como formas de resistencia político-musical. Este acercamiento a partir del caso de las y los músicos exiliados en México busca abonar a ese capítulo de la historia del exilio, y de las continuidades con la música de Argentina vinculada con ideales de denuncia y transformación social.

Within the systematic plan to eliminate dissent perpetrated by the last civic-military dictatorship in Argentina, culture and art became one of the central objectives of its policies of control and persecution. This repressive scaffolding was intended to dismantle an aesthetic and political expansion that developed in the musical field since the 1960s. Within the massive Argentine political exile from 1976 on, the musicians were few in number, but their careers and productions during exile allow us to think of their experiences as forms of political-musical resistance. This approach, based on the case of the exiled musicians in Mexico, seeks to contribute to that chapter in the history of exile, and the continuities with the music of Argentina linked to ideals of denunciation and social transformation.

Palabras clave: Vanguardias musicales; Listas negras; Exilio político argentino; Resistencia cultural; México.

Keywords: Musical vanguards; Blacklists; Argentine political exile; Cultural resistance; Mexico.

Maestra en Estudios Latinoamericanos (UNAM/México) Profesora en Historia en la Universidad Nacional de Luján (UNLu/Buenos Aires, Argentina) Bailarina folclórica. canduli2004@hotmail.com 2


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Introducción La segunda mitad del siglo XX latinoamericano, signada por las profundas transformaciones políticas y culturales a partir de la Revolución Cubana, configuró al arte como un ámbito central en la conformación del imaginario de cambio social propugnado por las vanguardias políticas emergentes (LONGONI, 2017). Esta etapa, conocida como 68 latinoamericano (GIUNTA, 2001), vio nacer propuestas de creación divergentes en la literatura, cine, teatro, artes plásticas y música en muchos países de la región. Este proceso de radicalización se vio acompañado por el avance paulatino del autoritarismo, hasta que la instauración de las dictaduras de la Doctrina de la Seguridad Nacional trastocaron definitivamente la realidad política, social, económica y cultural de América Latina. En Argentina, el régimen cívico-militar instituido en marzo de 1976 estableció como política estatal un plan sistemático de control y represión que incluyó al ámbito artístico e intelectual como uno de sus ejes fundamentales. Bajo el imperio de la censura y la violencia, el campo cultural se fracturó tanto por la segregación y el repliegue de sus integrantes como por el exilio (SARLO, 2014). En este sentido, partimos de la concepción de Sznadjer y Roniger (2013) que plantean al exilio como un mecanismo institucional estructural que los estados latinoamericanos utilizaron para regular la disidencia política desde el siglo XIX, pero que en las décadas del sesenta y setenta adquirió un carácter diferente, debido a su masividad y la inclusión de la esfera pública internacional como campo de interacción y acción política. Para la mayoría, el exilio constituyó una “decisión forzada” tomada por los propios actores en un contexto de violencia atroz que atentaba contra la vida en todas sus formas (FRANCO, 2010). Por ello, a pesar que muchos exiliados pueden no considerarse tales por no haber recibido amenazas directas por parte del régimen, el hecho de tener que irse del país por el desempleo a causa de la censura o el peligro que corría su vida por la creciente represión, los coloca indudablemente dentro de la concepción –por años negada– de “exilios políticos” (JENSEN, 2003). Es en la intersección de esos dos procesos latinoamericanos donde el presente artículo busca analizar el exilio de las y los músicos argentinos como una consecuencia más de la maquinaria represiva de la dictadura que gobernó Argentina entre 19761983, la cual no sólo fue la causa de salida, sino también configuró la experiencia estética exiliar. Para ello, se realizará un recorrido sobre las propuestas estético-musicales que surgieron en Argentina entre la década del sesenta y mediados de los setenta, las cuales constituyeron el marco de referencia y acción de muchos de los músicos que fueron blanco de la represión. Posteriormente, indagaremos en torno a los diversos mecanismos que el gobierno dictatorial instrumentó para controlar la cultura en general y la música en particular, y cómo ellos se relacionaron con el exilio. Retomando


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el análisis de Andrés Avellaneda (2006), consideramos que la represión cultural se estructuró a partir de un discurso que alcanzó su punto máximo de consolidación entre 1974 y 1983, cuando el terrorismo de Estado incluyó de forma sistemática a la cultura, el arte y la educación como parte fundamental dentro de su “estrategia global contra la subversión”. Dentro del amplio universo de artistas que tuvieron que salir del país, los músicos fueron un grupo heterogéneo aunque no muy numeroso. No obstante, durante los primeros tiempos del retorno a la democracia formaron parte de la narrativa de los “exilios dorados” que pretendía despolitizar al destierro (JENSEN, 2003:109). Pero más allá de los exilios de las “grandes figuras” recuperados por la opinión pública, la ausencia de un análisis sistemático de las trayectorias de los diversos músicos argentinos exiliados durante esos años nos lleva a intentar acercarnos a dichas experiencias a través del caso concreto de los que se exiliaron en México. La tradicional política de asilo y refugio mexicana, así como las características políticas particulares que presentó este país luego de la crisis provocada por el Movimiento Estudiantil de 1968, lo convirtieron en el principal destino de exilio argentino en América Latina. Dicha situación ya había propiciado la llegada de varios contingentes sudamericanos –principalmente chilenos y uruguayos– forzados a salir de sus países por la represión, lo cual hacia 1976 configuró un contexto de recepción excepcional. A nivel cultural, constituía un escenario particularmente propicio para la acogida de estos músicos, ya que junto al ‘68 había surgido un “movimiento alternativo de música popular” (VELASCO, 2013) que nucleaba propuestas diversas de grupos y solistas con una fuerte impronta política. Por todo ello, creemos que la experiencia mexicana dentro del exilio musical argentino nos permite abonar al carácter represivo del exilio, no sólo por la índole de los músicos que llegaron allí, sino también por el carácter político que su presencia cultural adquirió. La participación de los músicos en las acciones de denuncia y solidaridad organizadas desde el exilio, la presencia de la temática social y la denuncia política en sus obras musicales y espectáculos, junto al apoyo a otros movimientos latinoamericanos contemporáneos (como el sandinista y el salvadoreño) nos permiten pensar su experiencia como una forma de resistencia artístico-política profundamente relacionada con la represión que operaba en su país de origen. El campo musical argentino entre 1960 y 1976: explosión estético-política en medio del autoritarismo En Argentina, durante la década del sesenta y hasta 1976 –con la excepción de los meses del gobierno peronista de Héctor Cámpora (de mayo a julio de 1973)– el aumento de la radicalidad política en un contexto estatal de creciente autoritarismo y represión potenció el clima de disidencia cultural y el surgimiento de nuevas propuestas


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artísticas que se oponían a los cánones tradicionales, la industria cultural y la censura (PUJOL 2002: 145). En el campo musical, el panorama es diverso y contrastante. Mientras que en la música académica en 1961 se creó el Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales (CLAEM) como un espacio innovador de investigación, enseñanza y creación musical dentro del Instituto Di Tella (NOVOA 2007: 71-75), en el terreno de la música popular, la diversidad fue más significativa. Por un lado, la música para jóvenes inició un proceso de ruptura que dio origen a la música progresiva, o el “rock nacional”. La innovación poético-musical, la problematización y la inclusión de temáticas utópicas, junto con la presencia de un enunciatario rebelde (contestatario aunque no abiertamente político), ubicó al rock como la expresión disidente de una nueva generación de jóvenes (CARNICER; DÍAZ, 2009). En cuanto a la música folclórica, en el contexto del boom del folclore surgió en 1963 el Nuevo Cancionero Argentino (NCA) como un movimiento que buscó renovar en la forma y el contenido de la música popular nacional, considerando las diversas expresiones regionales y el diálogo con el arte latinoamericano. Encabezado por Armando Tejada Gómez, Oscar Matus y Mercedes Sosa, se oponían a las concepciones estéticas e ideológicas de producción, representación y enunciación del “paradigma clásico” del folclore, signado por el nacionalismo cultural y la industria discográfica (DÍAZ, 2009: 90). Desde una posición política vinculada al comunismo, su apuesta fue crear un cancionero nuevo que expresara las reivindicaciones de las clases populares con una elevada calidad poética y musical (GARCÍA, 2006: 9-11), ya que el artista popular debía estar comprometido con su presente y fomentar en el público la toma de conciencia. Años después, bajo la influencia estética, ideológica y personal de este movimiento, Reinaldo “Naldo” Labrín creó el grupo Huerque Mapu, como un conjunto vocal e instrumental que combinó la música popular con la académica a través de arreglos innovadores y un repertorio latinoamericano. Su propuesta integraba obras de gran calidad poético-musical con un marcado compromiso social, que se reflejó en sus presentaciones en sindicatos, universidades, barrios y fábricas, así como en el acercamiento a la izquierda peronista. Por ello, en 1973 fueron convocados por Montoneros (organización político-militar de la izquierda peronista) para crear y grabar Montoneros, obra musical que narra la historia de la organización, y que al grupo le dio gran popularidad dentro de la militancia (SMERLING; ZAK, 2014). Esta obra, que para Carlos Molinero (2011) constituyó la expresión de la radicalización del folclore militante, fue la causa principal de la persecución y el exilio del grupo. Al mismo tiempo, en Buenos Aires surgió la Nueva Canción argentina como un movimiento que, a través de la conjunción del teatro con la música, buscaba crear una expresión urbana con crítica político-social, siendo María Elena Walsh, Nacha Guevara y el músico de jazz Alberto Favero sus exponentes más destacados. En el tango, dentro del proceso de renovación que buscaba un anclaje presente, las composiciones


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heterodoxas y nuevas temáticas introducidas por Astor Piazzolla dieron origen al Tango Nuevo, el cual se mantuvo bastante al margen de las cuestiones políticas (PUJOL, 2002). Finalmente, durante la “primavera camporista” de 1973, surgió en Córdoba un movimiento cultural plural, compuesto por músicos y poetas: Canto Popular de Córdoba (CPC). Al calor de la experiencia del Coro Universitario de la Universidad Nacional de Córdoba, este agrupamiento reunió propuestas de solistas y grupos que, desde diversos géneros y concepciones ideológicas, buscaron desarrollar un canto centrado en las necesidades e intereses del pueblo en un contexto local de gran movilización. A través de presentaciones en barrios, sindicatos y universidades desarrollaron una militancia cultural –y partidaria, algunos de ellos- que alcanzó su punto máximo en 1974 con la conformación de un Frente Cultural junto a actores, escritores y plásticos (MEDINA, 2006). Ese mismo año, organizaron el Festival Nacional de la Canción Popular, cuyo escenario y talleres congregaron a representantes de las nuevas corrientes, como León Gieco y Huerque Mapu. Estas propuestas abarcaron un amplio espectro del campo musical nacional que, por aquellos años, estaba buscando nuevos caminos a partir de una concepción de la música como experiencia estética y política. No obstante, a pesar del carácter disidente que tenían estos movimientos, su concepción de lo político en el arte era muy disímil, así como su práctica. Por ello, mientras algunos de estos músicos eran abiertos militantes de organizaciones políticas (como el Partido Comunista para el caso de varios integrantes del NCA, o de la Juventud Peronista en los fundadores de Huerque Mapu), otros solamente colaboraban en las actividades culturales organizadas por ellas, o eran simpatizantes en lo ideológico sin tener otra vinculación. Este fue el caso de varios integrantes de CPC que, aunque coincidían con algunas ideas de determinadas organizaciones o sus allegados eran militantes en ellas, se reconocen como “militantes de la cultura”. Paralelamente, algunas organizaciones políticas consideraron importante generar una vertiente cultural que amplíe su espectro de acción revolucionaria, como lo fue el Frente Antiimperialista de Trabajadores de la Cultura (FATRAC) del Partido Revolucionario de los Trabajadores (PRT)3 creado en 1968 (LONGONI, 2005). Según Juan Sosa, esta idea también estuvo presente en la creación del grupo Huerque Mapu, en tanto él pretendía que fuera “la parte estética” de la agrupación político-sindical que estaba formando con otros compañeros (LUQUE, 2020b). De esta forma, podemos observar la importancia que los nuevos proyectos musicales adquirieron dentro del ámbito cultural así como dentro del espectro político, lo cual el régimen militar utilizó posteriormente como fundamento de la política de control, persecución, censura y represión que implementó sistemáticamente dentro del campo artístico, por la cual muchos músicos tuvieron que optar por el exilio.


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El sonido del silencio: persecución y censura en el ámbito musical Unas semanas después de que la Junta Militar tomara el poder en Argentina en marzo de 1976, Francisco Carcavallo, subsecretario de Cultura de la Provincia de Buenos Aires, expresaba: La cultura ha sido y será el medio más apto para la infiltración de ideologías extremistas. En nuestro país los canales de infiltración artístico-culturales han sido utilizados a través de un proceso deformante basado en canciones de protesta, exaltación de artistas y textos extremistas. Así logran influenciar a un sector de la juventud, disconformista por naturaleza, experiencia o edad (CARCAVALLO,1976 citado en PUJOL, 2007: 22).

De esta forma, el gobierno dictatorial fijaba en la arena pública los elementos principales que conformaban aquel discurso de represión cultural latente desde 1960 y que el régimen venía a consolidar. La infiltración ideológica corruptora de la juventud constituía el peligro central que debía combatirse con un rígido control cultural, para preservar el “ser nacional” occidental y cristiano. Así, el Ministerio de Cultura y Educación instituyó la Operación Claridad como un plan sistemático de vigilancia, persecución y censura de artistas, intelectuales y docentes que eran considerados “ideólogos de la subversión”. Con el apoyo de la Secretaría de Inteligencia del Estado (SIDE) y en diálogo directo con la Junta Militar, sus censores evaluaban los antecedentes ideológicos y las obras de los diversos artistas y, a partir de allí, se activaban diversas prácticas de silenciamiento, que iban desde “listas negras”, amenazas, detenciones y torturas, hasta asesinatos, desapariciones y el destierro forzado (PINEAU, 2006; JENSEN, 2003). De esta forma, la censura constituyó un eslabón fundamental de la maquinaria de terror y aniquilamiento del régimen, cuyo carácter indefinido y ubicuo incrementó su potencia represora (SARLO, 2014). Una declaración del Teniente General Viola en 1979 reafirma el papel central que la música producida por y para los jóvenes tuvo en el imaginario antisubversivo del régimen, al considerarla como un “arma del agresor subversivo”, en especial “las canciones de protesta” (AIDA, 1981). Por ello, el Comité Nacional de Radiodifusión (COMFER) fue el organismo encargado de controlar el contenido de los discos, prohibir los que presentaran temas y mensajes de tono político, social o que atacaran la moral y las buenas costumbres, y elaborar listas que se distribuían en radios, discográficas y teatros para impedir su difusión (Pujol, 2007). El hallazgo de archivos secretos en el año 20004, junto con los informes de la Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (DIPPBA)5 y las listas negras encontradas en el Edificio Cóndor en 20136, nos permiten conocer como operó este sistema de vigilancia en el ámbito musical, que ya había sido denunciado durante la dictadura por los artistas exi-


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liados. En primer lugar, se establecieron cuatro fórmulas para clasificar a las personas y determinar su grado de “peligrosidad” en relación a la presencia de “antecedentes ideológicos marxistas”. La cuarta pauta (“registra antecedentes ideológicos marxistas que hacen aconsejable su no ingreso y/o permanencia en la administración pública”) fue la más coercitiva y la base para la elaboración de las listas (MINISTERIO DE DEFENSA, s/f). Las producidas en 1979 y 1980 contaron con 285 y 331 individuos respectivamente, siendo artistas la mayoría y, entre ellos, 40 y 43 pertenecían al ámbito musical (entre compositores, cantantes, instrumentistas y docentes). Asimismo, el listado de canciones y obras prohibidas contó con 214 elementos entre 1969 y 1982, aunque la mayoría se establecieron entre 1976 y 1979, los años más duros de la represión. Por otra parte, en las listas de “normalizados” elaboradas en 1982 ante el proceso de gradual desafectación de personas calificadas bajo la fórmula cuatro, sólo nueve de los 64 músicos serían eliminados del listado de “marxistas”, mientras que a otros tres nunca se les quitaría dicha condición, como es el caso de Nacha Guevara y el pianista Miguel Ángel Estrella. Además de la falta de oportunidades laborales y artísticas que dicha persecución generó, muchos músicos fueron blanco de amenazas, atentados, detenciones ilegales, desaparición forzada, tortura y asesinato. Entre 1980 y 1981, la Asociación Internacional de Defensa de Artistas Víctimas de la Represión en el Mundo (AIDA) –una red de solidaridad transnacional que nucleó a artistas e intelectuales, muchos de ellos exiliados, en la lucha contra la censura y la represión cultural– realizó una campaña donde se denunciaba la existencia de cien artistas argentinos desaparecidos, de los cuales quince de ellos eran músicos. Por otra parte, los cantores Horacio Guarany, Mercedes Sosa y Nacha Guevara, por ejemplo, fueron amenazados de muerte por la Triple A7 (MARCHINI,2008), y esta última sufrió también un atentado durante el estreno de su espectáculo, al igual que el grupo Huerque Mapu (SMERLING; ZAK, 2014). También se conoce la existencia de dos músicos fusilados (BASSO, 2018), y los casos de detención arbitraria de León Gieco, Mercedes Sosa y Armando Tejada Gómez, mientras que Miguel Ángel Estrella estuvo preso ilegalmente por dos años en Uruguay, período en el cual fue brutalmente torturado. Así, el exilio se presentó como la “opción obligada” para huir del hambre, del terror y de la muerte. Tanto ellos como muchos otros músicos –profesionales y aficionados, conocidos y anónimos– salieron del país en aquellos años para salvar la vida y seguir creando ante el culturicidio instrumentado por el régimen (TERÁN, O.; STARCENBAUM, M, 2013). No obstante, hay que mencionar que, paralelamente y “por lo bajo”, surgieron diversas estrategias de producción, circulación y asociación que buscaban escapar tanto a la lógica cultural oficialista (moralista y comercial) como a los embates de la represión (GONZÁLEZ, 2014). Para Pujol, este fue el caso del rock que, si bien estuvo bajo un ingente control, durante aquellos años logró afirmarse como práctica social y expresión artística, constituyéndose en un es-


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pacio de resistencia juvenil interna (PUJOL, 2007). Haciendo eco de los reclamos que enarbolaron los artistas e intelectuales desde el exilio, AIDA tuvo un papel importante en la denuncia de la represión cultural que operaba en Argentina en aquel momento (CRISTIÁ, 2020). Si bien en su libro-informe Argentina: cómo matar la cultura (1981) incluyen testimonios de músicos y mencionan el papel de algunos en el exilio, en la actualidad contamos con pocas investigaciones que aborden las experiencias exiliares de este grupo específico de artistas (FIUZA; BOHOSLAVSKY, 2012; LUQUE, 2020a, 2020b). Por eso, proponemos posicionar la mirada en ellos a través del caso específico de los exiliados en México, desde una perspectiva que, a la vez que considera el carácter represivo de su vivencia, busca re-significarla desde su impronta de resistencia. A este respecto, la idea de resistencia estética-política que aquí empleamos refiere a prácticas que se ubicaron en disidencia al poder y buscaron fragmentar el discurso unificado del régimen (MARGIOLAKIS, 2011). Para el caso del exilio, esta concepción está relacionada con el diagnóstico de “genocidio cultural” realizado por el escritor Julio Cortázar, con el cual pretende convertir el carácter negativo y excluyente del destierro en un punto de apoyo que desde el exterior contribuya a la lucha contra el régimen (JENSEN, 2018). Yendo más allá del debate que se desencadenó entre “los que se quedaron” y “los que se fueron”, consideramos las ideas de genocidio cultural y resistencia artística como una mancuerna conceptual que nos permite reubicar las prácticas estéticas de los músicos en el exilio dentro del esquema de represión y lucha antidictatorial en Argentina, junto a las diversas formas de resistencia cultural interna que surgieron. Músicos argentinos exiliados en México: resistencia estético-política más allá de las fronteras Tanto en el campo de estudio del exilio político argentino, como en estudios del ámbito musical nacional o latinoamericano, no existen hasta el momento estudios que aborden el exilio de los músicos argentinos en su totalidad. No obstante, a través de biografías, notas periodísticas, entrevistas y otras investigaciones sobre los exilios nacionales, podemos detectar la presencia de músicos exiliados durante la última dictadura en diversos países de destino, ubicados principalmente en Europa y América. Entre los primeros, España y Francia fueron los más receptores: Piero, Moris, Miguel Cantilo, Miguel Abuelo, Roque Narvaja, Horacio Guarany, Armando Tejada Gómez y Hamlet Lima Quintana estuvieron en España, mientras que a Francia llegaron Mercedes Sosa, Jairo, Susana Rinaldi, el “Tata” Cedrón, Néstor “Piru” Gabetta y parte del grupo Huerque Mapu, además de la presencia de Atahualpa Yupanqui que residía allí desde hacía un tiempo. El guitarrista y cantante Pappo, luego de un tiempo en España y Estados Unidos, se estableció en Londres. En América, varios rockeros llegaron a Es-


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tados Unidos, como León Gieco, Gustavo Santaolalla y Luis Alberto Spinetta, mientras que Charly García y David Lebón estuvieron un tiempo en Brasil –donde formaron el grupo Serú Girán– y el músico Adrián Goizueta se estableció en Costa Rica. México fue el país de América Latina que recibió el mayor número de exiliados argentinos –calculado entre cinco y diez mil personas–, quienes constituían un conjunto diverso en su composición profesional y política, motivos por los cuales ha sido objeto de diversas investigaciones8. Nucleados en torno a dos organismos principales –la Comisión Argentina de Solidaridad (CAS) y el Comité de Solidaridad con el Pueblo Argentino (COSPA)– la labor de difusión y denuncia de la realidad argentina fue el vector común que atravesó a la gran mayoría del exilio, a pesar de las disputas y rupturas políticas que se dieron entre los diferentes grupos (YANKELEVICH, 2009). Dentro de los más de sesenta artistas exiliados en México de diversas disciplinas9, los músicos constituyeron una parte importante con la presencia de 38 músicos (entre cantantes, instrumentistas y compositores) y diez grupos de impronta argentina entre 1976 y 1983 (LUQUE, 2020a). La mayoría de ellos formaron parte activa o se influenciaron de alguno de los movimientos estéticos que se habían desarrollado en Argentina desde la década del sesenta. Así, de CPC llegaron Juan Carlos Roca, Rodolfo Taubas, Raquel Oyola, Liliana Felipe, Jorge Luján, Claudia Christiansen, Nora Zaga, Delia Caffieri, Francisco Heredia, Ricardo Rud, Dante Andreo, Mario Delprato, Ignacio Bustillo, Juana Politi, Horacio Cerrutti, Carlos Rivarola y Carlos Duvanced; del grupo Huerque Mapu, Naldo Labrín, Juan Sosa y Hebe Rosell (estos dos últimos después de un tiempo en España y Francia); Nacha Guevara y Alberto Favero como representantes de la Nueva Canción argentina; dentro del arco del folclore y la canción popular arribaron Delfor Sombra, Eduardo Bejarano, Caíto Díaz, Jorge Basulto, Jorge Montenegro, Coco Domínguez, María Beltrán, Rodolfo Dalera, Luis Pescetti, Ignacio Copani, Alejandro del Prado, Facundo Cabral, Nahuel Porcel de Peralta y Ramón “Zitto” Segovia; y finalmente, más vinculados con el rock y la canción urbana llegaron el ya consagrado Litto Nebbia y el joven Luis Nach. Paralelamente, otros músicos argentinos llegaban a México a realizar giras, algunos desde su estadía en Europa –como Atahualpa Yupanqui, Mercedes Sosa, Susana Rinaldi, Osvaldo Pugliese, Astor Piazzola y Miguel Ángel Estrella– mientras que otros arribaban desde Argentina, como Jorge Cafrune, Los Trovadores, Hugo del Carril, Cacho Tirao, Mariano Mores y el grupo Les Luthiers. Dentro de éstos últimos, destaca la presencia del grupo folclórico Los Chalchaleros, quienes a través de sus declaraciones a la prensa manifestaban cierto “alineamiento” con las directrices del gobierno dictatorial argentino. Para estos músicos en gira, es factible que la existencia de una numerosa comunidad de argentinos haya sido importante al momento de decidir presentarse en México, al mismo tiempo que su presencia –sobre todo de aquellos que ya gozaban de fama internacional– pudo haber facilitado la recepción de las propuestas de los músicos exiliados.


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Dentro de este “mapa musical argentino en México” que se configuró desde 1976, surgieron varios grupos: Sanampay, Grupo Sur, Los Huincas, Nacimiento, el dúo Nora y Delia, Elegía, Dúo Sol Arenas, Los Chaskis, el Grupo Vocal Gregor, y la agrupación teatral y musical Siripo. En cuanto a su composición, varios de ellos se pueden considerar como grupos “transplantados” mientras que otros fueron creados en el exilio, contando con integrantes argentinos, mexicanos y latinoamericanos. Un elemento importante en esta configuración tiene que ver con las diversas trayectorias exiliares, determinadas por las formas de salida al exilio y de llegada a México: cuando se da el golpe de estado algunos estaban de gira en el exterior y deciden no regresar a Argentina, mientras que otros salen al exilio directamente hacia México o llegan allí luego de primeras estancias en otros países, siendo el caso más paradigmático el largo peregrinar artístico que realizaron varios miembros de CPC por Sudamérica. Para los músicos, México representaba cierta cercanía cultural y lingüística, al mismo tiempo que ofrecía mayores oportunidades laborales: con un importante presupuesto en materia cultural, fueron contratados por diversos organismos gubernamentales mexicanos10 para realizar giras por todo el país. Paralelamente, actuaban en peñas11 y eventos organizados por la comunidad argentina, grupos mexicanos o exiliados sudamericanos, y muchos tuvieron la posibilidad de grabar sus obras en sellos discográficos independientes, como Nueva Cultura Latinoamericana (NCL), Discos Pueblo, El Cóndor Pasa, Discos Fotón, Nueva Voz Latinoamericana y Ediciones Pentagrama, creado por Modesto López –fundador del grupo Siripo– en 1980. Por otra parte, en abril de 1978 varios músicos argentinos formaron junto a bailarines, cineastas, actores y artistas plásticos de varios países latinoamericanos la Organización Trabajadores del Arte Latinoamericano (OTRARTE), que se conformó como un espacio de trabajo colectivo y cooperativo con una clara impronta social. Esta confluencia en espacios diversos, tanto oficiales como alternativos, junto con los vínculos forjados con músicos mexicanos de la Nueva Canción y del rock –como Los Folcloristas, el Negro Ojeda, Amparo Ochoa, Gabino Palomares, León Chávez Teixeiro, Pancho Madrigal, Guillermo Briseño y Tania Libertad, entre otros– les dio a los músicos argentinos presencia cultural y cierta visibilidad pública, que ellos podían canalizar políticamente para la labor de denuncia y solidaridad. De forma individual o grupal, organizaron y participaron en festivales, jornadas, manifestaciones, solicitadas y campañas de recaudación de fondos, vinculadas tanto a la situación argentina como a la de los demás países latinoamericanos. No obstante, si bien la denuncia y la solidaridad se constituyeron en el sustrato político común que articuló las acciones en el exilio, algunos de estos músicos tuvieron una participación política más activa, vinculada en gran medida a sus experiencias de militancia previa. Juan Sosa, por ejemplo, a través de la Agrupación Peronista en el Exilio (APE) continuó su militancia obrera para apoyar a los trabajadores argentinos


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en resistencia, mientras que Naldo Labrín (además de participar del COSPA y de la CAS después) y Carlos Roca en octubre 1980 se incorporaron a la Brigada Cultural Roque Dalton en apoyo a la lucha salvadoreña, y Eduardo Bejarano estuvo en Nicaragua trabajando en diversos centros culturales sandinistas en 1982. Al mismo tiempo, a pesar de que tenían prohibido participar en política interna12, varios de estos músicos se vincularon y comprometieron con la realidad mexicana de formas diversas. Por ejemplo, Nora y Delia, Los Huincas, Nacimiento, Sanampay y Hebe Rosell participaron de la conformación de la Liga Independiente de Músicos y Artistas Revolucionarios (LIMAR) en 1978 y, años después, algunos formaron parte del Comité Mexicano de la Nueva Canción (VELASCO, 2013). También cooperaban en eventos y actividades político-culturales organizados por grupos políticos mexicanos, como los Festivales de Oposición del Partido Comunista. A pesar de los matices en el accionar político y en el reconocimiento de éste por parte de ellos mismos, podemos sostener que estos recorridos heterogéneos ubicaron a los músicos en un lugar importante dentro de las prácticas centrales del exilio argentino. Asimismo, la presencia en México de exiliados de diversos países latinoamericanos, no sólo amplió los márgenes de acción política de los argentinos, sino que también generó un contexto de confluencia que expandió y consolidó el horizonte latinoamericano de los músicos. En especial, la interacción con la comunidad chilena y uruguaya fue la que sentó las bases más firmes de solidaridad y cooperación que, para el caso de la música, decantó en colaboraciones musicales en eventos y obras conjuntas. Aunque no han sido muchos los músicos chilenos y uruguayos exiliados en México –por ejemplo, Ángel Parra, Carlos Elgueta y el grupo Illapu entre los primeros, la Camerata Punta del Este, Alfredo Zitarrosa, Los Olimareños y varios músicos de cámara, como Jorge Risi y Nelson Govea, entre los segundos–, muchos de los grandes representantes de la Nueva Canción Chilena y Uruguaya que estaban exiliados en otros lugares tuvieron una presencia activa y constante en este país, como Isabel Parra, Patricio Manns, Daniel Viglietti y los grupos Quillapayún e Inti Illimani. El carácter político de su experiencia exiliar se refleja también en las producciones estéticas que realizaron en el destierro, condensadas tanto en discos como en espectáculos. Dentro de los diversos LP producidos en aquellos años por los diferentes grupos y solitas –incluso algunos en colaboración con otros artistas mexicanos y latinoamericanos–, nos detendremos en tres de ellos que nos permiten observar cómo su práctica musical mantenía un anclaje político proyectado tanto hacia su país de origen como a la realidad latinoamericana. De formas diferentes, estas obras reconfiguraron su significado político, centrándose en la denuncia del autoritarismo e incorporando algunos elementos que trazaran una perspectiva esperanzadora para la región.


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Juan Sosa fue uno de los músicos que tuvo una intensa militancia política, antes y durante el exilio. Al tiempo de llegar a México en 1977, se incorporó al grupo Los Huincas13 y a la APE, participando activamente en la denuncia antidictatorial y la solidaridad con los obreros argentinos. Entre 1981 y 1982, inspirado por el accionar de las madres de desaparecidos, compuso la “Cantata a las Madres de Plaza de Mayo”: “Yo veía que la única resistencia fuerte eran las Madres de Plaza de Mayo […] A mí me conmovió mucho esa movida política de las madres, y de ahí me surgió” (SOSA, 2018). Musicalizada por el argentino Coco Domínguez y con la participación de los guitarristas argentinos Caíto Díaz y Alejandro del Prado, su discurso poético-musical ensambla el homenaje a la lucha tenaz de aquellas mujeres con la denuncia de la represión de régimen y la complicidad de la sociedad argentina en el contexto de la inminencia de la Guerra de Malvinas. La plaza, la cárcel, la locura, la patria y la guerra constituyen los tópicos semánticos que atraviesan la obra, que musicalmente combina piezas de estilo lírico –con cuarteto de cuerdas y coros– con otras de canción urbana. A través de Laura Bonaparte –fundadora de Madres exiliada en México– se contacta con la organización, y con su autorización se dedica a difundir la “Cantata…” para que la graben en otros países. Luego de que se edita una versión en Holanda, logra juntar recursos que dona a las Madres, junto con los derechos de la obra. En esa misma tónica colaborativa, también organizó un Festival de Solidaridad con las Madres en el Anfiteatro Flores Magón del Distrito Federal, donde actuaron artistas mexicanos y argentinos, como Guillermo Briseño y su grupo, Betsy Pecanins, Tania Libertad, Ignacio Copani y Los Huincas. De esta forma, la “Cantata…” constituye la concreción estética de su accionar político, ambos aspectos que él concebía de forma convergente, y que en el exilio adquirieron el carácter de resistencia. Ello porque su práctica política siguió relacionada con los sectores obreros en Argentina, pero también porque su compromiso y solidaridad amplió sus márgenes hacia la lucha de quienes él consideraba como la “única resistencia fuerte” en el país. Así, la resistencia se constituye en el significado central de una obra que, a la par que colaboró en la difusión internacional y la obtención de recursos para la lucha de las Madres, representa para el Juan Sosa artista una forma de volver a la expresión musical con sentido político, la cual en ese momento era casi imposible realizar en Argentina. En segundo lugar, consideramos una de las obras del grupo Sanampay: Coral Terrestre. Este conjunto, que por sus integrantes14 y su propuesta musical latinoamericanista y comprometida sostuvo cierta continuidad con la experiencia de Huerque Mapu, fue uno de los más representativos del exilio. La ausencia de un proyecto similar en México hizo que rápidamente adquiriera trascendencia, al mismo tiempo que sus colegas mexicanos lo recibieron con gran apertura. Esta popularidad artística del grupo fue canalizada políticamente en torno a la lucha contra el régimen argentino (LABRÍN, 2018). En esta línea, junto al poeta Armando Tejada Gómez crearon en 1980


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Coral Terrestre, como una obra integral de denuncia a las dictaduras sudamericanas. A través de piezas musicales que retoman ritmos populares regionales –como la cueca, el candombe, la samba, el rin, la milonga y la huella–, intercaladas con poemas sobre la realidad social y cultural de aquellos países, la obra buscaba reflexionar estéticamente sobre el presente del subcontinente. Al abordar la obra, se nos hizo insoslayable la imposición de formas y contenidos indivisibles. Había que contar y cantar desde nuestros orígenes, hasta la urgente y lacerante realidad de ya mismo, eludiendo por un lado el panfleto y, por el otro, la vacuidad […]. Encerrados en el fervor colectivo de crear un testimonio vivo y palpitante, que sirva a la honda reflexión sobre nosotros y nuestro destino, que deberá ser común y uno, en el seno de esta América nativa cuya conciencia de liberación acaba de estallar entre nosotros (TEJADA GÓMEZ, 1982).

Además de reivindicar aquellos sonidos populares silenciados por la censura y renombrar las problemáticas que atraviesan la historia latinoamericana, la explotación, la violencia, la muerte, el miedo y el destierro aparecen como los signos del presente, que es imperioso denunciar. Pero, al mismo tiempo, consideramos que la música y la poesía de esta obra buscaba forjar un horizonte de esperanza regional: la memoria, la libertad, el regreso del desterrado, la resistencia, el amor, la fuerza popular y la alegría son los tópicos utilizados para reivindicar el necesario salto hacia adelante de los pueblos que, como dice la última pieza, “con alegría estaban luchando hasta el final”. Su calidad estética le dio mucha repercusión en México, y tuvo una larga temporada de presentaciones en uno de los recintos más importantes del Distrito Federal (SOMBRA, 2019). Así, Coral Terrestre representa una síntesis de una práctica estético-política de memoria, denuncia y solidaridad, constituyéndose en un testimonio urgente y colectivo de lucha, resistencia y esperanza, enunciado desde el exilio en México, con la mirada puesta en el Cono Sur pero proyectada hacia toda Latinoamérica (LUQUE, 2020b). Finalmente, recuperamos el disco Un pasito adelante del Grupo Nacimiento, el cual grabaron en Venezuela en 1977 con el apoyo de la Confederación Universitaria Centroamericana. Integrado por Liliana Felipe, Jorge Luján y Claudia Christiansen, el conjunto formaba parte de CPC y su propuesta incluía la adaptación e interpretación de poemas y canciones de artistas contestatarios. El golpe de estado los encontró de gira por Perú y desde allí emprendieron su exilio itinerante por Sudamérica hasta que llegaron a México en 1978. En este periplo, la consciencia de la brutalidad de la realidad argentina y el acercamiento a otras culturas fueron transformando la concepción política de su práctica musical, que asumió un tono menos radical: “con el golpe nos dimos cuenta del terrible destino de la masacre y comprendimos que no podíamos cantar mensajes revolucionarios cuando estaban torturando y matando a tanta gen-


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te. Por ello nos distanciamos de lo panfletario para ser más reflexivos” (LUJÁN, 2019). Este viraje quedó plasmado en el disco, integrado por canciones propias compuestas junto a la dramaturga argentina María Escudero y otras que retoman letras de Bertolt Brecht, Nazim Hikme y Mario Benedetti, música de Milton Nacimiento, e incluso una versión de “El matadero” de M. Teodorakis. Mientras algunas piezas introdujeron la tortura, el miedo, la muerte y el exilio como tópicos de denuncia explícita –como es el caso de “El matadero”, “Angina de Pecho” y “Todo lo que está pasando”– otras se inscriben en un discurso de oposición al sistema, como “Tuvimos muchos señores” y “Los Boina-scouts”, canciones que satirizan la explotación y militarización presente. Una mención aparte merece “Variaciones sobre el tema Pablo II”, que a pesar de ser una pieza mayormente instrumental, hacia el final incluyen unas voces que a gran velocidad exclaman algo referente a “las canciones que no pudieron cantar… ¡por la censura!”. En cambio, otras piezas están más vinculadas a la proyección de un futuro más esperanzador, anclado en la lucha colectiva, la poesía, los ideales, la alegría y el amor como valores fundamentales para la construcción social, como “Un pasito adelante”, “Tiempo de alevosías”, “Cuidado que va a llover”, “Te quiero” y “Pequeña canción”. Esta diversidad temática, que combina denuncia y esperanza, se vincula con un cambio de perspectiva ética y estética del grupo ante la nueva realidad política. El paso del ímpetu revolucionario previo a un discurso de lucha más acompasado y reflexivo nos permite pensar esta propuesta musical del Grupo Nacimiento como una forma de resistencia artística y política ante un contexto de extrema violencia y censura. De esta forma, a través de estas tres obras podemos ver cómo, a pesar de las diferencias de estilo, carácter y objetivos, la práctica creativa de los músicos argentinos en el exilio no sólo mantuvo su carácter político sino que adquirió un sentido nuevo, al configurarse como un espacio de resistencia. La memoria, la denuncia y la solidaridad reflejadas en estos discos y en las acciones que rodearon su producción y difusión representan una continuidad interrumpida, donde el horror de la represión truncó proyectos que, a la distancia y con otra perspectiva, se reacomodaron para poder dar lugar a la nueva realidad de violencia y exilio que tocaba enfrentar. “Porque no podemos ni queremos dejar que la canción se haga ceniza15”: exilio, canción y resistencia En la actualidad, las múltiples investigaciones en el campo de la Historia Reciente y la inclusión del destierro forzado dentro del proceso de memoria en Argentina han puesto de relevancia la dimensión represiva del exilio y, con ello, su carácter político muchas veces negado, tanto por los exiliados como por la sociedad. Por otra parte, el hallazgo de documentación inédita permitió conocer y confirmar el plan sistemático de represión cultural diseñado y perpetrado por el régimen militar, y así desarticular


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la idea del “exilio dorado” que sobrevoló sobre la experiencia exiliar de los artistas. Dentro de éstos, pudimos observar el lugar que ocuparon las y los músicos como blanco de la censura y persecución, tanto por su presencia en las listas negras, como por los diversos casos de amenazas, atentados, desapariciones y exilio entre ellos. Por esa razón, este trabajo pretendió unir en una misma trama histórica a este sector fundamental del arte y la cultura argentina que durante los años previos había desarrollado expresiones comprometidas estética y políticamente, con el proceso de los exilios políticos provocados por la última dictadura cívico-militar. El exilio constituye una experiencia disruptiva, dicotómica y paradojal, que en el caso de las y los músicos analizados operó dialécticamente entre la continuidad y la ruptura. El predominio de la represión física y cultural fueron el eje del exilio político de los músicos, el cual al realizarse en un contexto argentino, latinoamericano y exiliar de “derrota”, replanteamientos y nuevos movimientos, los llevó a reconfigurar su praxis estética y su relación con la política. En este sentido, las nociones de compromiso y resistencia adquirieron nuevos y diversos sentidos, que también se pusieron en juego en sus obras. En tanto práctica que desde los márgenes se opone al poder y confronta el discurso dominante, consideramos que la resistencia es el tópico central que opera y nos permite entender estas experiencias. Las obras de Juan Sosa, Sanampay y Nacimiento, creadas y difundidas en México, nos permiten observar esta transformación en las propuestas estéticas a partir de la fuerza otorgada a la denuncia y la solidaridad como los nuevos vectores de su práctica artístico-política en el exilio. Paralelamente, la presencia en este país de artistas que apoyaban explícitamente al régimen dictatorial –como Los Chalchaleros– nos hace pensar en la importancia política que tuvieron las acciones estéticas de denuncia, las cuales aquellos venían a contrarrestar. De esta forma, a través del caso de las y los músicos exiliados en México pretendimos ampliar los márgenes de la resistencia artístico-política más allá de las diversas experiencias internas –como el rock y la creación del Movimiento por la Reconstrucción y el Desarrollo de la Cultura Nacional en 1981 (MARGIOLAKIS, 2011)– que operaron en y contra la dictadura. De esta forma, intentamos aproximarnos a una parte fundamental de nuestra historia política y cultural reciente y, desde allí, plantear horizontes que nos acerquen un poco más a las experiencias de los músicos argentinos exiliados, cuya historia colectiva falta narrar aún. Notas 1

Canción del disco Aquellos soldaditos de plomo (1983) del cantautor argentino Víctor Heredia.

Partido político marxista-leninista creado en 1965. El Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP) fue su brazo armado en la lucha por la toma del poder dentro de la revolución socialista. 3


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Archivo de inteligencia que perteneció a la Subsecretaría de Interior del Ministerio del Interior del gobierno militar, encontrado en lo que fue la sede del Banco Nacional de Desarrollo (BANADE). Consiste en expedientes de la Dirección General de Publicaciones y la Dirección General de Seguridad Interior, a través de los cuales se tramitaban prohibiciones a publicaciones, obras y personas. Actualmente, el Fondo BANADE forma parte del acervo del Archivo Nacional de la Memoria, el cual puede consultarse online. 4

La DIPPBA –creada en 1956 y disuelta en 1998– fue un elemento central del control y la represión durante el gobierno militar. Desde el 2001, su extenso fondo documental es custodiado, organizado y difundido por la Comisión Provincial de la Memoria. Los legajos de inteligencia que involucran al campo cultural, tanto de personas como de obras, forman parte de la sección “Mesa Referencia”, nucleados en la Colección N° 6: “Censura cultural durante la última dictadura militar (1976-1983)”. 5

Dentro de los archivos secretos de la Junta Militar hallados en la sede de la Fuerza Aérea Argentina, se encontraba una carpeta con las “listas negras” de intelectuales, músicos, comunicadores y artistas. En la actualidad, forman parte del Fondo Junta Militar del Archivo del Ministerio de Defensa, el cual se encuentra digitalizado y disponible online. 6

La Alianza Anticomunista Argentina fue un grupo parapolicial que operó durante el tercer gobierno peronista y estuvo liderado por el Ministro de Bienestar Social, José López Rega. Encargado de perseguir, amenazar, asesinar y desaparecer a artistas, religiosos, intelectuales, políticos de izquierda, estudiantes y sindicalistas, tras su desintegración muchos de sus miembros pasaron a formar parte de la represión clandestina del régimen dictatorial. 7

Sólo como ejemplo, los libros México: el exilio que hemos vivido de Jorge Luis Bernetti y Mempo Giardinelli (2003) y Ráfagas de un exilio. Argentinos en México, 1974-1983 de Pablo Yankelevich (2009), las tesis Gregorio Selser: exilio y periodismo. Catálogo de artículos periodísticos, 1976-1983 de Ana Laura Ramos Saslavsky (2005); Del exilio al no retorno: experiencia narrativa y temporal de los argentinos en México (2010) de Soledad Lastra; y Exilio, vida y obra: mujeres argentinas en México, 1974-1983 de María Idalia León Osorio (2013). Los artículos de Daniel Korinfeld “Adolescencia, militancia y exilio. Procesos de reconfiguración identitaria” (2007); José María Casco “El exilio intelectual en México. Notas sobre la experiencia argentina 1974-1983” (2008); y Malena Alfonso “Cuando el exilio deviene experiencia formativa: una lectura del exilio argentino en México a través de las narrativas de un grupo de pedagogos cordobeses (1976-1983)” (2012). Los capítulos de Inés Rojkind “La revista Controversia: reflexión y polémica entre los argentinos exiliados en México” (2004); y Pablo Yankelevich y Silvina Jensen “México y Cataluña: el exilio en números” (2007). Dentro del ámbito artístico, estan las tesis Poesía contra el olvido: exilio y memoria en la obra de Juan Gelman de Ana Inés Machado Oviedo (2008); Literatura y exilio: el caso argentino: la narrativa de Mempo Giardinelli y Tununa Mercado de Andrea Candia Gajá (2012); y Volver a entrar saltando: Memorias visuales de la segunda generación de exiliados políticos en México (2016) de María Florencia Basso. 8

Bernetti y Giardinelli (2003: 147-148) y Yankelevich (2009: 264-268) registran la presencia de escritores, poetas, dramaturgos, actores, grupos de teatro, bailarines, pintores, cineastas y músicos 9

Por ejemplo, el Fondo Nacional para Actividades Sociales (FONAPAS), el Instituto Nacional de Bellas Artes (INBA), la Secretaría de Educación Pública (SEP) y el Instituto Mexicano del Seguro Social (IMSS). 10

Tanto las peñas mexicanas –como El Cóndor Pasa, El Mesón de la Guitarra, El Sapo Cancionero, la Peña de los Folcloristas y Tecuicanime– como la tradicional “Peña de Roma 1” organizada por el exilio argentino en la sede del COSPA. 11


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El artículo 33 de la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos establece que los extranjeros no pueden inmiscuirse en los asuntos políticos del país, lo cual podría ser motivo de expulsión. 12

Grupo folclórico argentino creado como un dúo por los argentinos Jorge Basulto y Jorge Montenegro en 1974. Dos años más tarde, éste último se va y se incorpora el cordobés Ricardo Rud. Posteriormente, con el ingreso del músico chaqueño Ramón Segovia se convierte en trío, hasta que con la llegada de Juan Sosa quedó conformado el grupo. Un tiempo después ingresa “Cacho” Duvanced en reemplazo de Rud que se va al grupo Elegía, y con la llegada del bandoneonista César Olguín, ampliaron su repertorio de música popular incorporando el tango. 13

Grupo vocal argentino-mexicano de música latinoamericana, creado en septiembre de 1976 por Naldo Labrín, contó con la presencia inicial de la cantante mexicana Guadalupe Pineda y el quenista francés Maurice Assuline, a los que se sumaron luego los argentinos Eduardo Bejarano, Delfor Sombra, Hebe Rosell y Caito Díaz, y los mexicanos Jorge González, Guillermo Contreras y Eugenia León, alternativamente. 14

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“Por qué cantamos” Benedetti y Favero, 1985.

Referências bibliográficas AA.VV. Argentina: cómo matar la cultura. Madrid: Editorial Revolución, 1981. AVELLANEDA, A. El discurso de represión cultural (1960-1983). Revista Escribas Nº III, 2006, p. 31-43. Disponible en: https://www.comisionporlamemoria.org/archivos/jovenesymemoria/bibliografia_web/ejes/cultura_avellaneda.pdf BASSO, N. Memorias del Coro Universitario de Córdoba. Buenos Aires: Leviatán, 2018. BERNETTI, J.; GIARDINELLI, M. México: el exilio que hemos vivido: memoria del exilio argentino en México durante la dictadura, 1976-1983. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2003. CARNICER, L.; DÍAZ, C. Discursos hegemónicos y rupturas en la música para jóvenes y el folklore en la Argentina de 1968. Boletín música. Revista de música latinoamericana y caribeña, La Habana, v. 25, pp. 25-40, 2009. CRISTIÁ, M. Diálogos transatlánticos de la resistencia. Denuncia artística y redes de solidaridad con el Cono Sur en los primeros ochenta. En páginas, año 12, Núm. 29, mayo-agosto 2020. Disponible en: https://doi. org/10.35305/rp.v12i29.405 DÍAZ, C. Variaciones sobre el ‘ser nacional’. Una aproximación sociodiscursiva al ‘folklore’ argentino. Córdoba: Ediciones Recovecos, 2009. FIUZA, A.; BOHOSLAVSKY, E. El exilio de los músicos en el Cono Sur: el Tango Rojo de Piru Gabetta. Jornadas Exilios políticos del Cono Sur en el Siglo XX, La Plata 26, 27 y 28 de septiembre de 2012. Disponible en: http:// sedici.unlp.edu.ar/bitstream/handle/10915/32003/Documento_completo.pdf?sequence=1&isAllowed=y FRANCO, M. Algunas reflexiones en torno al acto de exilio en el pasado reciente argentino. Problemas de historia reciente del Cono Sur. Ernesto Bohoslavsky, Marina Franco, Mariana Iglesias y Daniel Lvovich Comp. Buenos Aires: Prometeo: 303-321, 2010. GARCÍA, M. I. El Nuevo Cancionero. Aproximación a una expresión de modernismo en Mendoza. Actas del VII Congreso Latinoamericano de la IASPM, 2006, www.hist.puc.cl/historia/iaspm/lahabana/articulosPDF/Ma-


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REALISMO MÁGICO E CINEMA DE TERCEIRO MUNDO NO PROJETO CINEMATOGRÁFICO NÃO-FILMADO DE A HORA DOS RUMINANTES MARCELO CORDEIRO DE MELLO1

Resumo

Abstract

Este artigo retraça a trajetória do projeto cinematográfico não-filmado de A hora dos ruminantes, adaptado em 1967 da narrativa homônima de José J. Veiga pelo cineasta Sergio Person e pelo roteirista e crítico cinematográfico Jean-Claude Bernardet. Discutimos A hora dos ruminantes dentro do contexto cultural brasileiro e latino-americano dos anos 1960, especialmente em diálogo com o realismo mágico e com a produção cultural associada ao Terceiro Mundo. Nossa proposta é discutir o significado de A hora dos ruminantes como alegoria política dentro de uma espécie de realismo mágico cinematográfico, na perspectiva daquilo que o cineasta Sergio Person chamou de “cinema de Terceiro Mundo”, referindo-se a A hora dos ruminantes.

This article retraces de itinerary of the unfilmed cinematographic project of The plague of the ruminants, adapted in 1967 from José J. Veiga’s short novel by filmmaker Sergio Person and screenwriter and film critic Jean-Claude Bernardet. We discuss The plague of the ruminants within the brazilian and latin american cultural context of 1960s, specially in dialogue with magic realism and the cultural production associated with the Third World. Our goal is to discuss the meaning of The plague of the ruminants as a political allegory within a sort of cinematographic magic realism, related to what filmmaker Sergio Person referred to as “Third World cinema”, refering to The Plague of the ruminants.

Palabras chave: Luiz Sergio Person; Jean-Claude Bernardet; José J. Veiga; A hora dos ruminantes; Realismo mágico.

Keywords: Luiz Sergio Person; Jean-Claude Bernardet; José J. Veiga; The plague of the ruminants; Magic realism.

Marcelo Mello é Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (2019). Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade Paris IV, Sorbonne (2011). Graduado pela Universidade de Brasília: Bacharel em Letras Português (2007) e Licenciado em Francês (2013). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua e Literatura. Lecionou Língua portuguesa e respectiva literatura na Faculdade Evangélica de Brasília e no Liceu Francês de Brasília (2012-2014). Atuou como Assistente de Língua Portuguesa da Academia de Bordeaux, França (2010-2011). Foi Leitor de Língua Portuguesa da Universidade de Bourgogne, França (2008-2010). Email: marcelocmello@gmail.com 1


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Este artigo apresenta o roteiro cinematográfico não-filmado de A hora dos ruminantes, de Luiz Sergio Person e Jean-Claude Bernardet, situando-o no contexto cultural latino-americano dos anos 1960, especialmente em sua relação com a estética do realismo mágico e com projetos do cinema latino-americano envolvendo a estética do Terceiro Mundo, em resistência à americanização da cultura da América Latina. Em 1967, o cineasta Luiz Sergio Person e o crítico e roteirista Jean-Claude Bernardet iniciam aquele que teria sido seu mais importante projeto cinematográfico: A hora dos ruminantes. Adaptado do livro homônimo do goiano José J. Veiga, o filme não chegou a ser realizado. No entanto, dele resta um roteiro cinematográfico (que hoje pertence à Cinemateca Brasileira), além de algumas folhas manuscritas referentes ao trabalho de preparação do roteiro. A partir deste material, é possível retraçar as características daquele que provavelmente seria um dos mais importantes filmes da geração do Cinema Novo. A motivação de resistência política de A hora dos ruminantes era evidente para os adaptadores Person e Bernardet: Durante toda a elaboração do filme, nunca se perdeu de vista essa perspectiva, a tal ponto que passamos a qualificar os Naves de “filme Castelo Branco”, em oposição ao roteiro que escreveríamos em seguida, A Hora dos Ruminantes, que chamávamos de “filme Costa e Silva”. (BERNARDET & PERSON, 2004, p. 10)

O projeto cinematográfico não-filmado de A hora dos ruminantes se insere no contexto cultural brasileiro dos anos 1960, caracterizado pela luta política, especialmente de resistência à Ditadura Militar, a partir do golpe de 1964. Nos últimos meses de 1966, José J. Veiga publica A hora dos ruminantes pela editora Civilização Brasileira, importante editora pelo seu posicionamento político naquele contexto cultural. O texto da contracapa da primeira edição apresenta assim a narrativa de Veiga: A hora dos ruminantes é a estória de uma cidade pequena, de gente simples e desprevenida, que, certo dia, amanhece sob a ameaça da opressão e da violência. Poderão os homens estranhos, sistemáticos, de poucas palavras, exigentes e inflexíveis, dominar pelo terror o pequeno lugarejo? Ou os habitantes da cidadezinha – uns acomodados, outros altivos, êstes rebeldes, aquêles indiferentes – levarão os usurpadores à desagregação e à derrota?” (VEIGA, 1966)

A obra apresenta uma cidade imaginária situada no interior do Brasil, a pacata Manarairema, que recebe a surpreendente visita de homens estranhos, cujas intenções são desconhecidas. Com o tempo, os homens estranhos se mostram autoritários, exigindo serviços da população. Sucedem-se eventos bizarros, beirando o sobrenatural, especialmente, duas invasões de animais: primeiro os cães, e depois os bois. Em ambos


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casos, os animais surgem sem explicação, em enorme número, ocupando todos os espaços públicos da cidade. O efeito fantástico destas aparições instaura no livro uma realidade paralela, cuja caráter distópico contrasta com o ambiente calmo anterior à chegada dos homens estranhos. Por seu caráter insólito, desde cedo, a literatura de José J. Veiga foi associada aos autores hispano-americanos do chamado realismo mágico. Ainda que seja usado em outros contextos, o termo realismo mágico se impõe principalmente em relação à literatura hispano-americana dos anos 1960. Mas o que este fenômeno editorial diz sobre nós? Se há de fato uma coerência estética por trás do rótulo, o que haveria de tão latino-americano nesta estética? Muitas vezes, o que se reconhece como efetivamente latino-americano no realismo mágico é a presença deste um certo elemento que envolve, ao mesmo tempo, os mitos ameríndios, mas também o folclore e a cultura oral popular, alimentado por lendas, superstições e crendices (SHAW in HART & OUYANG, 2005). Ao se preocupar com superstições e com o sobrenatural, o realismo mágico rompe com a estética racionalista do romance de costumes e do romance realista, que haviam se preocupado em compor panoramas históricos e dramas individuais, com ênfase em descrições psicológicas. Nesta perspectiva de mundo, acontecimentos históricos podem se misturar a elementos plenamente absurdos. O escritor guatamalteco Miguel Ángel Asturias considera que na América Latina, a realidade é inseparável do maravilhoso: não há fronteira clara entre o real e o maravilhoso. Segundo ele, transitamos numa mistura de magia e realidade (Cf. COFFON, 1992, p. 283, nota 3). Outro precursor do realismo mágico é o escritor cubano Alejo Carpentier. Em 1949, ele publica o romance El reino de este mundo, cujo prólogo funciona como um manifesto, apresentando ideias estéticas que teriam impacto na América Latina. Carpentier argumentava que o continente americano possuía uma essência mágica inerente. O autor recorria ao termo real maravilhoso e sugeria que os escritores incorporassem este elemento maravilhoso que, no continente americano, é parte da realidade: as justaposições e misturas improváveis são parte da própria história e demografia latino-americanas. Por isso, também o crítico mexicano Ángel Flores considera, em artigo de 1955, que o realismo mágico seria a autêntica expressão que a América Latina sempre havia buscado (FLORES, 1955, p. 190). Mas até que ponto o mundo descrito no realismo mágico latino-americano é, de fato, mágico? Sob qual ponto de vista? Certamente, o contexto político da América Latina explica em parte o conteúdo insólito de suas narrativas. Tomemos como exemplo uma narrativa latino-americana associada ao realismo mágico: Redobles por rancas, do peruano Manuel Scorza, publicada em 1970 no Peru (e, poucos anos depois, traduzida no Brasil como Bom dia para os defuntos, e


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publicada pela editora Civilização Brasileira). Scorza narra a luta dos camponeses indígenas nos Andes peruanos para recuperar as suas terras, roubadas – com apoio do próprio governo – pela empresa mineradora americana Cerro de Pasco Corporation. A estrutura narrativa remete imediatamente tanto a A hora dos ruminantes quanto a momentos de Cem anos de solidão – por exemplo, a passagem da Companhia Bananeira por Macondo. O romance de Scorza apresenta um cenário distópico, no ambiente ultracontrolado instaurado pela empresa, em que ocorrem cenas perfeitamente fantásticas. Em dado momento da narrativa, a bola de futebol de um menino atinge sem querer um membro da empresa, e seu pai é obrigado a construir com pedras um muro enorme em volta da casa. Noutro, os rostos dos trabalhadores intoxicados pela mineração começam a mudar de cor: azul, verde, vermelho, amarelo. Há ainda uma passagem em que um funcionário da empresa oferece a alguns camponeses aguardente – envenenada – deixando todos mortos logo após entornar seus copos. Por mais absurdas que pareçam estas passagens, são todas baseadas em fatos reais. Scorza fez uma pesquisa minuciosa sobre acontecimentos históricos e procurou relatar cada detalhe do sofrimento e da luta dos camponeses indígenas na região andina (RAMÍREZ, 2006). O chamado realismo mágico relativiza a oposição entre realidade e fantasia fundindo ambas dimensões. O exemplo de Redobles por rancas nos mostra que, no contexto latino-americano, o mágico não aparece num sentido agradável (como contos de fadas em que desejos se realizam) nem tampouco assume as formas mórbidas tradicionais do gótico, romantismo ou fantástico europeu. Há nas passagens aterrorizantes e distópicas do realismo mágico latino-americano um evidente significado político e social. Como fenômeno histórico, o realismo mágico esteve diretamente ligado ao período da guerra fria – aquele ambiente polarizado em que, especialmente após a revolução cubana, passam a proliferar ditaduras militares latino-americanas aliadas ao imperialismo estadunidense. Embora a leitura como alegoria política possa ter servido para empobrecer o sentido de algumas obras, o fato é que o realismo mágico foi frequentemente entendido por leitores e crítica como uma alegoria política do momento histórico que atravessava a América Latina. Um dos mais importantes representantes do realismo mágico, e um dos poucos latino-americanos a receber o prêmio Nobel de literatura, Gabriel García Márquez, em seu discurso de aceitação do prêmio, insiste que a literatura latino-americana foi contaminada não apenas pelo ambiente político, mas especialmente por certo caráter absurdo típico dos autoritarismos: A independência do domínio espanhol não nos deixou a salvo da demência. O general Antonio López de Santa Anna, que foi três vezes ditador do


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México, fez enterrar com funerais magníficos a perna direita que havia perdido na chamada Guerra dos Pastéis. O general Gabriel García Moreno governou o Equador durante 16 anos como um monarca absoluto, e seu cadáver foi velado com seu uniforme de gala e sua couraça de condecorações sentado na cadeira presidencial. O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teósofo de El Salvador que fez exterminar numa matança bárbara 30 mil camponeses, havia inventado um pêndulo para averiguar se os alimentos estavam envenenados, e fez cobrir com papel vermelho os postes de iluminação pública para combater uma epidemia de escarlatina. O monumento ao general Francisco Morazán, erigido na praça principal de Tegucigalpa, é na verdade uma estátua do Marechal Ney comprada em Paris num depósito de esculturas usadas (RAMÍREZ, 2006)

Por trás de certo caráter cômico aparente, estas descrições bizarras evidenciam o grau de violência que atingiram as ditaduras latino-americanas daquele período. A influência do contexto político na literatura da América Latina é tão marcante que dá origem a um subgênero do realismo mágico, que ficaria conhecido como romance de ditador (“novela del dictador”), inaugurado, bem cedo, por Asturias em 1946 com El señor Presidente. Este período da narrativa latino-americana de que faz parte o realismo mágico é frequentemente chamado de boom. É curioso observar que boom é uma onomatopeia grafada de acordo com a fonologia do inglês. Não por acaso, o período do boom coincide também com a chegada definitiva à América Latina dos meios de comunicação de massa (como televisão e revistas impressas) onde se expandem com enorme rapidez. Estes veículos vão permitir a instalação definitiva da influência cultural estadunidense. Trataremos destes problemas um pouco mais adiante. Por ora, voltemos ao realismo mágico da geração do boom da literatura latino-americana. Num encontro ocorrido em Washington e organizado pelo escritor uruguaio Ángel Rama para discutir o fenômeno do boom, estiveram presentes poucos intelectuais brasileiros, entre eles, o crítico Antonio Candido, que publicaria mais tarde (em Más allá del boom) um ensaio escrito em 1979 intitulado El papel del Brasil em la nueva narrativa. Candido observa que o Brasil é o único país diretamente mencionado entre os temas discutidos no encontro. Segundo os próprios organizadores, o objetivo era reparar uma exclusão, determinada pela diferença de língua. Procurando atualizar o intelectual hispano-americano sobre a literatura brasileira recente, Candido traça um panorama em que aparecem muitos nomes: tendências literárias, obras e autores. O crítico menciona então certa corrente literária fantástica, e cita Murilo Rubião e seus “contos absurdos”, que estariam propondo um caminho que poucos viram e que só mais tarde foi seguido por outros (…) seus adeptos são legião, mas bastante antes de se implantar


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a moda, José J. Veiga havia publicado Os cavalinho de Platiplanto (1959), contos marcados por uma espécie de tranquilidade catastrófica. (CANDIDO in RAMA, 1984, p. 182. Tradução nossa.)

Candido filia Veiga à tradição literária do absurdo inaugurada por Rubião – provavelmente reconhecendo em ambos autores a presença de certo elemento fantástico dentro do ambiente interiorano identificado com a literatura regionalista. Ainda que Candido apresente ao público hispano-americano esta corrente como uma novidade estética com vários adeptos, parece significativo que o único representante mencionado nominalmente seja Veiga. Embora procure situar Veiga dentro da literatura brasileira e, por sua vez, situar a literatura brasileira em relação à literatura latino-americana do período do chamado boom, em momento algum de seu texto Candido vincula Veiga ao realismo mágico – termo que, aliás, os participantes do encontro utilizam raramente (e sempre para criticar ou problematizar o seu sentido). Sabemos que Veiga foi frequentemente associado pela crítica ao realismo mágico latino-americano: segundo um crítico, “Sua arte poder-se-ia definir como a do “realismo mágico”, quero dizer, a do conto fantástico em que todos os elementos são os da vida cotidiana, em que há mistério sem haver (a não ser em raras exceções) o arbitrário” (CASTELLO, 2000). O fato é que Veiga reconhece certa semelhança com autores hispano-americanos, mas nega influência direta. Os efeitos da hegemonia cultural estadunidense começam a se fazer sentir drasticamente no mercado cinematográfico da América Latina a partir do pós-guerra. As consequências do imperialismo cultural são o desaparecimento dos cinemas nacionais, em especial aqueles de apelo popular ou politicamente engajados e críticos à ameaça de aculturação representada pela imposição em escala global da cultura de massa estadunidense. Em 1945 a Motion Picture Producers and Distributors of America (MPPDA) é remodelada, dando origem à Motion Picture Association of America (MPAA) – associação com fortes vínculos tanto com o Estado quanto com o setor privado: todas as principais grandes distribuidoras cinematográficas hollywoodianas estavam representadas pela MPAA. Principalmente a partir de 1966, sob a gestão de Jack Valenti, o MPAA, por meio de seu órgão voltado para a exportação de filmes – o Motion Picture Export Association (MPEA) – passa a pôr em prática desleais estratégias comerciais e políticas para desbancar os monopólios das indústrias de cinema nacionais mundo afora, em especial na América Latina – que se consolida como zona de influência cultural americana, a partir da política de boa vizinhança. Se a imagem do latino-americano passa a circular dentro do cinema hollywoodiano a partir dos anos quarenta e cinquenta, é sempre sob um estereótipo exotizante adaptado ao olhar americano, como em Saludos Amigos (1942) de Disney ou nos filmes de Carmen Mi-


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randa (LÓPEZ in LÓPEZ & ALVARADO, p. 1993). Embora possam ser encontradas nesta altura na América Latina algumas manifestações de cinema com apelo identitário nacionalista e até latino-americanista, curiosamente, não havia entretanto, no plano estético, equivalente cinematográfico daquela estética associada ao realismo mágico literário. Mas afinal, o que significa falar de realismo mágico no cinema? O primeiro autor a teorizar sobre o assunto foi o marxista Fredric Jameson, no artigo “On Magic Realism in Film”, publicado bem depois do fim do boom literário latino-americano (JAMESON, 1986). Reconhecendo que se trata de um conceito problemático, Jameson parte do realismo mágico latino-americano afirmando que o que se entende por mágico depende do ponto de vista. O autor lembra a insistência de Carpentier na ideia de que a realidade social concreta da América Latina já é, por si só, realismo mágico: “o que é a história de toda a América senão uma crônica do real maravilhoso?” (CARPENTIER citado em JAMESON, 1986. Tradução nossa). Jameson considera que muitos problemas conceituais teóricos e históricos emergem principalmente quando se compara a noção de realismo mágico com outros termos, como fantástico. O autor recorre a uma complexa construção teórica, que utiliza em parte a Psicologia. Ele termina por definir o realismo mágico como um modelo estético que parte de um material bruto derivado da sociedade camponesa, podendo também ser retirado de mitos tribais (JAMESON, 1986. Tradução nossa). Jameson situa a origem dessa estética entre os autores latino-americanos, como Asturias, Carpentier e García Márquez – abertamente de esquerda e revolucionários, conforme sublinha. Já no cinema, segundo ele, o realismo mágico incorporaria uma visão antropológica semelhante àquela que está presente nas obras literárias do realismo mágico literário latino-americano. Os exemplos dados são de obras cinematográficas que não estão ligadas ao contexto latino-americano, e apenas incorporam, de forma genérica, a tal visão antropológica descrita por Jameson. O autor traz estes exemplos justamente em contraste com a concepção do termo vinculada apenas à América Latina e à literatura – que Jameson considera uma concepção tradicional. O autor aponta para um entendimento muito mais abrangente do termo, que ele próprio reconhece ser uma definição um tanto pessoal: “se não ao realismo mágico ele próprio, então pelo menos ao significado privado e pessoal que eu devo estar dando ao termo” (JAMESON, 1986. Tradução nossa.). O fato é que o estudo de Jameson – que durante décadas foi o único conhecido sobre realismo mágico no cinema – aponta uma tendência que se consolida depois entre teoria e crítica, em que a estética do realismo mágico passa a ser entendida como um fenômeno mundial, e já não mais exclusivamente literário, manifestando-se especialmente no cinema.


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Procurando atualizar a visão de Jameson, a teórica Maggie Ann Bowers, no livro Magic(al) Realism, publicado em 2004, dedica um capítulo ao cinema. Ela lembra que reconhecer características do realismo mágico no cinema não significa considerá-lo como uma estética cinematográfica própria ou como um gênero cinematográfico: “O cinema não é frequentemente considerado como realismo mágico pela crítica e o realismo mágico não é uma categoria reconhecível de cinema. Entretanto, é possível reconhecer características do realismo mágico em diversos filmes” (BOWERS, 2004, p. 104. Tradução nossa, com adaptações). Bowers parte de adaptações de obras literárias para o cinema, procurando entender como os aspectos visuais afetam a narrativa do realismo mágico. Mas a autora termina com exemplos bastante distantes da América Latina. É curioso que o único exemplo latino-americano trazido à tona por Bowers seja a adaptação de Como água para chocolate, romance de 1989 identificado com a estética do realismo mágico. O filme homônimo foi roteirizado pela própria autora Laura Esquivel e chegou ao cinema em 1992. Obviamente, o livro e o filme surgem bem depois do fim do fenômeno editorial do boom, ao qual os autores do realismo mágico estiveram ligados. É possível supor que o realismo mágico não tenha se afirmado como um gênero do cinema latino-americano por um mero problema de mercado e público. A pesquisadora de gêneros no cinema Raphaëlle Moine observa que “Um gênero se estabelece quando organiza um rol de atributos semânticos numa sintaxe estável – isto é, quando a fórmula fílmica aplicada é reconhecível ao público” (MOINE, 2008. Tradução nossa.). É evidente que, dentro do contexto da indústria cinematográfica mundial, a hegemônica indústria estadunidense não tinha interesse em deixar surgir um novo mercado e um novo público para um novo gênero cinematográfico como o realismo mágico latino-americano. Conforme explica Moine, um filme não pode circular se não for encaixado num gênero definido, do contrário, torna-se um investimento excessivamente arriscado. Para o produtor, o distribuidor e o exibidor latino-americanos, o risco do investimento seria grande ao escolher filmes ligados a essa estética, já que o cinema mundial ia tomando o rumo da americanização, cada vez mais sob o impacto da homogeneização dos mercados. E no entanto podemos supor que, se tivesse dependido apenas dos escritores, é quase certo que um realismo mágico cinematográfico teria frutificado, já que muitos dos autores latino-americanos associados ao realismo mágico tinham claro interesse em trabalhar para o cinema. Citemos apenas dois exemplos emblemáticos: Rulfo e García Márquez. O mexicano Juan Rulfo (atendendo a um pedido do diretor Emilio Fernández em 1956) escreve alguns roteiros em colaboração com Juan José Arreola. Além disso, obras literárias suas são levadas para o cinema, como Pedro Páramo (1967) ou ainda


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El gallo de oro (1964), esta última adaptada para o cinema por ninguém menos que Carlos Fuentes e Gabriel García Márquez – nela há alguns elementos do chamado realismo mágico, como a superstição e a atribuição de características mágicas a lugares e objetos. Já García Márquez lembrava com ironia sua relação com o cinema: “Ao princípio, eu quis ser diretor e a única coisa que realmente estudei foi cinema” (RODRÍGUEZ, 2014). Começa trabalhando como crítico em 1954 (CORTÉS, 2010), mesmo ano em que dirige com amigos um curta-metragem experimental de inspiração surrealista, La langosta azul. Em 1955, ano em que publica seu primeiro romance, matricula-se no Centro Sperimentale di Cinematografia em Roma (onde também estudaria, anos depois, o cineasta brasileiro Luiz Sergio Person). Lá, o jovem García Márquez entra em contato com os engajados criadores do Neorrealismo, especialmente com Cesare Zavattini, roteirista e ideólogo do movimento. García Márquez se afirma como um dos críticos de cinema mais importantes da Colômbia e da América Latina, participando em diversas outras produções e, em alguns casos, adaptando para o cinema suas próprias obras literárias. Mas nem com a participação direta de Rulfo e García Márquez o realismo mágico pôde se afirmar como estética cinematográfica latino-americana. As adaptações da obra de Rulfo são quase todas “medíocres e servis, quando não grotescas ou muito afastadas versões de suas obras narrativas” (BLANCO in RULFO, 1980). Também os filmes adaptados da obra de Gárcia Márquez são, com poucas exceções, fracassos de crítica e bilheteria: “a maioria dos projetos cinematográficos de obras de Gabriel García Márquez estiveram marcados pela decepção” (RODRÍGUEZ, 2014. Tradução nossa.). Na época em que surge na literatura o realismo mágico, os cineastas latino-americanos já estão empenhados em construir um cinema latino-americano – ainda que esteticamente ele tenha traços realistas e documentais bastante distantes da estética narrativa literária do realismo mágico. O cinema latino-americano evoluía e procurava lutar contra a dominação hollywoodiana por meio de movimentos idealistas, engajados na luta revolucionária e em busca de uma linguagem cinematográfica autenticamente latino-americana. A homogeneização gradual dos mercados ia limitando o campo de atuação dos cinemas nacionais latino-americanos, cada vez mais sujeitos à lógica imperialista do capitalismo. Naturalmente, o novo cinema latino-americano envolve também cineastas brasileiros. Em 1958, realiza-se em Montevidéu o Primer Congreso latino-americano de Cineístas Independientes, que reúne cineastas da Argentina, Bolívia, Chile, Peru, Uruguai, além do representante brasileiro, Nelson Pereira dos Santos (MOGUILLANSKY, M., MOLFETTA, A. e SANTAGADA, M. (org.), 2010, p. 391). Surge assim o primeiro movimento cinematográfico latino-americano. O Nuevo Cine latino-americano é repre-


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sentado especialmente por filmes como Rio, 40 graus (1955) de Nelson Pereira, Tire Dié (1960) de Birri e ainda El Mégano (1955) de Espinosa e Alea. Com uma estética própria (como sabemos, bastante diferente da estética do realismo mágico na literatura), o Nuevo Cine latino-americano se afirma como um movimento cinematográfico engajado supranacional, de denúncia da desigualdade e representação das classes trabalhadoras, com apelo para uma identidade latino-americana. Vemos portanto que o cinema latino-americano se desenvolve particularmente no período em que Veiga inicia sua produção literária. Autores do realismo mágico hispano-americano – cuja estética tem certa identificação com a de Veiga – participarão ativamente da nova produção cinematográfica latino-americana, mas nem por isso a estética literária do realismo mágico terá equivalente nas telas do cinema. Isto nos leva a crer que, caso o projeto cinematográfico de A hora dos ruminantes tivesse se concretizado, teria inaugurado uma estética inovadora de realismo mágico cinematográfico, possivelmente fundando um movimento latino-americano a partir daquela pedra fundamental. Em 1972, o cineasta Sergio Person concede uma entrevista ao semanário Pasquim (publicada na edição de 5 a 11 de junho de 1973). No cabeçalho da reportagem, um breve texto anuncia que “Seu próximo trabalho será uma adaptação do romance A Hora dos Ruminantes de José J. Veiga, projeto antigo a ser financiado por algum produtor novaiorquino”. Assim o Pasquim anuncia que Person está retomando o projeto cinematográfico de A hora dos ruminantes iniciado em 1967, buscando financiamento na indústria americana. Na entrevista do Pasquim, Person se refere diversas vezes a A hora dos ruminantes: (…) Nos tempos que nós vivemos, é uma alegria pra mim fazer Cassy Jones. Eu nunca serei capaz de fazer um filme como Esta Pequena É uma parada, a não ser que reverta tudo isso em idéias próprias de um cinema de Terceiro Mundo - cinema meu, pessoal, que vai realmente eclodir. Esse filme chama-se aquilo que ou eu faço ou eu nunca mais vou fazer cinema. Esse é o meu maior filme, é uma coisa que eu tento realizar... Zélio - Cassy Jones? Person - Não, A Hora dos Ruminantes. E depois disso, fim. (LABAKI, 2014, p. 54)

Ao mencionar o cinema de Terceiro Mundo, certamente Person está consciente do sentido que o termo vai tomando, em que o Brasil se vincula ao cinema latino-americano. Um pouco mais adiante na entrevista, Person volta a mencionar o projeto: “O único projeto que eu tenho se chama A Hora dos Ruminantes” (LABAKI, 2002, p. 65). Sabemos que no contexto da guerra fria, em especial a partir dos anos sessenta, os países latino-americanos passam a ser dominados por ditaduras civis-mi-


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litares, em muitos casos, com apoio das elites empresariais locais e dos serviços de inteligência estadunidenses. As nações do chamado Terceiro Mundo, em especial as latino-americanas, estão sujeitas a uma mesma conjuntura política, que determina a dependência econômica, que por sua vez tem efeitos diretos na cultura. O crítico cinematográfico Paulo Emílio Salles Gomes – cujo pensamento teve notável influência sobre Jean-Claude Bernardet – se afirma como uma voz importante na defesa de um cinema nacional, “descolonizado” não apenas em termos estéticos, mas também de financiamento. Paulo Emílio insistia que um cinema subdesenvolvido era resultado do subdesenvolvimento econômico, e portanto não podia encontrar uma saída apenas dentro da criação artística. O fenômeno do cinema do Terceiro Mundo (ARMES, 1987) engloba principalmente América Latina e Ásia (países como Índia, Filipinas, Hong Kong, Turquia) – lugares onde o surgimento dos cinema nacionais foi a expressão do capitalismo local buscando viabilizar um mercado com estruturas de produção e distribuição próprias. O estabelecimento da hegemonia mundial do mercado hollywoodiano coincide com a decadência e morte dos cinemas nacionais do Terceiro Mundo. Ella Shohat, acadêmica dedicada aos Estudos Culturais, escreveu junto com o crítico Robert Stam o ensaio Crítica da Imagem Eurocêntrica – Multiculturalismo e Representação. Um dos problemas discutidos pelos autores é o cinema do Terceiro Mundo. Eles explicam que, em sua origem, o termo está associado a países economicamente subdesenvolvidos, relativamente “atrasados” no plano industrial e tecnológico. O termo Terceiro Mundo vai ganhando força no contexto da revolução cubana de 1959, da guerra anti-imperialista no Vietnã e das lutas anticoloniais na África, especialmente a independência da Argélia em 1962. O termo Terceiro Mundo propõe um terceiro modelo de desenvolvimento político e econômico, em oposição ao Primeiro Mundo capitalista (Europa, Estados Unidos, Austrália e Japão), e ao Segundo Mundo, representado pelo bloco comunista (União Soviética e China) (SHOHAT & STAM, 2006, p. 55). Para Stam e Shohat, por mais imperfeita que seja esta teoria dos três mundos – já que não leva em consideração heterogeneidades e contradições – é possível, em todo caso, considerar que os países da América Latina, Ásia e África dividem uma “exclusão do poder e dos processos de tomada de decisão, assim como uma experiência opressiva do desenvolvimento e da industrialização globais, que fizeram de suas economias um mero complemento daquelas dos países capitalistas adiantados. (SHOHAT & STAM, 2006, p. 56)

No final dos anos sessenta, o termo passa a ser entendido no contexto latino-americano como um reflexo histórico da revolução cubana e do peronismo. Cineastas latino-americanos como os argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino, com o movimen-


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to do Tercer Cine, adotam o terceiro-mundismo como bandeira, naquilo que Stam e Shohat chamam de “usos táticos e polêmicos para uma prática cultural de pretensões políticas” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 59). A produção latino-americana de cinema de Terceiro Mundo se vincula assim diretamente ao projeto pan-americanista do Nuevo Cine Latino Americano. Porém, a partir do final da Primeira Guerra Mundial, as companhias distribuidoras americanas começam a dominar o Terceiro Mundo. Stam e Shohat explicam que A crescente dependência econômica dos cinemas do Terceiro Mundo os torna vulneráveis a pressões neocoloniais. Quando países dependentes procuram fortalecer suas próprias indústrias cinematográficas estabelecendo, por exemplo, tarifas protecionistas e impostos para filmes estrangeiros, os países do Primeiro Mundo ameaçam retaliações em outras áreas, tais como a política de preços e a compra de matérias-primas. (SHOHAT & STAM, 2006, p. 63)

Durante sua curta vida, o cinema do Terceiro Mundo vai representar a busca por uma arte autenticamente latino-americana, original e autoral. Cineastas como Solanas e Getino, ao defender o modelo estético do grupo Cine Liberación, vão criticar diretores como Arturo Ripstein, cujas propostas de adaptação de obras literárias para o cinema lhes pareciam excessivamente “literárias”, individualistas e eurocêntricas. Era o caso especialmente de sua versão para o cinema do conto El lugar sin límites do escritor chileno José Donoso – autor vinculado ao boom e ao realismo mágico latino-americano. Adaptado em colaboração com o argentino Manuel Puig, o filme de Ripstein foi considerado por Solanas e Getino como “ideologicamente limitado, estrangeirizante, eurocêntrico, individualista” (GRANT, 2014. Tradução nossa). O que dizer, então, sobre o projeto cinematográfico de A hora dos ruminantes? Naturalmente, por se tratar de um filme não-realizado, qualquer conjectura fica no terreno das hipóteses. Porém, a análise do material preparado por Bernardet e Person dá fortes indícios de que o filme teria características bastante diferentes das adaptações mal sucedidas do realismo mágico que surgem naquele mesmo período. Um dos documentos disponíveis no acervo da Cinemateca Brasileira é um plano de filmagem intitulado “Idéia e Realização” – parte dos paratextos que tratam da preparação do roteiro. Nele, Person e Bernardet explicam a concepção estético-política que pretendiam pôr em prática. O filme partiria de elementos da cultura popular – como festas populares folclóricas – para compor um colorido espetáculo cinematográfico. A hora dos ruminantes assumiria completamente a sua dimensão “mágica”, e apostaria na invenção de uma nova estética, autenticamente popular, brasileira e latino-americana. O filme adotaria traços bastante característicos da linguagem do interior do Brasil, em termos de pronúncia mas também no uso de expressões idiomáticas. Além


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disso, A hora dos ruminantes comporia seu espetáculo cinematográfico também por meio da comédia: o filme adotaria um tom humorístico popular escrachado, bastante inspirado da chanchada e do cinema de Amácio Mazzaropi. Neste sentido, o realismo mágico cinematográfico que o filme talvez teria inaugurado funcionaria aglutinando características de outros gêneros populares brasileiros e latino-americanos. Em seu projeto autodenominado de “cinema de Terceiro Mundo”, a dupla de realizadores Person e Bernardet buscaria uma aproximação do público semelhante àquela de seu filme anterior, O caso dos irmãos Naves – filme que se contrapunha diretamente à Ditadura Militar adotando uma linguagem de alegoria histórica. Já na linguagem alegórica próxima do realismo mágico de A hora dos ruminantes, a proposta seria diferente, porém semelhante neste ponto: representaria um ambiente interiorano popular e, ao mesmo tempo, se dirigiria precisamente a um público popular e interiorano. Esta estratégia cinematográfica e política permitiria ao filme alcançar um público diferente daquele atingido por grande parte dos filmes do Cinema Novo, que “pregavam para convertidos”, na medida em que se dirigiam a espectadores que já estavam engajados na luta contra a Ditadura. A hora dos ruminantes, por sua vez, buscaria atingir um público mais amplo, levando a ele, por meio das alegorias do realismo mágico cinematográfico, sua mensagem de resistência política à Ditadura Militar. No já citado documento “Idéia e realização”, os realizadores mencionam ainda a possibilidade de exportação do filme: é possível supor que a dupla ambicionasse chegar a outros mercados do continente americano, especialmente, o da América Latina, já que tinham uma realidade política em comum – das ditaduras militares – e uma estética em comum – a do realismo mágico. Pode-se ainda supor que o “cinema de Terceiro Mundo” de A hora dos ruminantes chegasse a outros públicos do terceiro mundo. Resgatar a memória de A hora dos ruminantes hoje permite repensar os rumos que poderia ter tomado o cinema brasileiro, o cinema latino-americano e o “cinema de Terceiro Mundo”. Seu projeto estético-político inovador poderia ter tido um forte impacto naquele contexto cultural. Referências bibliográficas ARMES, Roy. Third World Film Making and the West, University of California Press, 1987. BERNARDET, Jean-Claude & PERSON, Luiz Sérgio. O caso dos irmãos Naves (Chifre em cabeça de cavalo). Argumento e Roteiro. São Paulo: Imprensa Oficial, Coleção Aplauso. Fundação Padre Anchieta, 2004. BLANCO, Jorge Ayala. Presentación. In: RULFO, Juan. El gallo de oro. Madri: Ediciones Era. Alianza Editorial, 1980. BOWERS, Maggie Ann. Magic(al) Realism. Routledge, 2004.


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SURREALISMO “ANACRÓNICO”, INTERNACIONALISMO Y TROTSKISMO EN LA ÚLTIMA DICTADURA MILITAR ARGENTINA (1976-1983) RAMIRO ALEJANDRO MANDUCA1

Resumen

Abstract

En este trabajo buscaremos reconstruir y analizar una serie de experiencias artísticas en el contexto de la última dictadura militar argentina (1976-1983), protagonizadas por jóvenes cercanos o militantes del Partido Socialista de los Trabajadores (PST), organización de la izquierda trotskista. Nos centraremos en una serie de festivales, talleres, formaciones y coordinaciones internacionalistas, en las que de manera “anacrónica” (LONGONI, 2012) los postulados del surrealismo operaron como articuladores singulares en términos estéticos y políticos. A partir de los enunciados de esta corriente y el cruce con la tradición política a la que adscriben, estos jóvenes trazaron colectivamente modos de subsistir al terror imperante e imaginar futuros superadores.

In this paper, we will seek to reconstruct and analyze a series of artistic experiences in the context of the last Argentine military dictatorship (1976-1983), led by young people close to or militants of the Socialist Workers Party (PST), an organization of the Trotskyist left. We will focus on a series of festivals, workshops, formations, and internationalist coordination, in which in an “anachronistic” way (LONGONI, 2012) the postulates of surrealism operated as singular articulators in aesthetic and political terms. From the statements of this current and the intersection with the political tradition to which they ascribed, these young people collectively drew up ways of surviving the prevailing terror and imagining future superstars

Palabras chave: Surrealismo; Vanguardia; Dictadura; Trotskismo; Internacionalismo.

Keywords: Surrealism; Avant garde; Dictatorship; Trotskyism; Internationalism.

Ramiro Manduca es profesor y licenciado en Historia de la Facultad de Filosofía y Letras (UBA), maestrando en Estudios Culturales de América Latina en la misma casa de estudios. becario doctoral de la UBA en Historia y Teoría de las Artes bajo la dirección de Ana Longoni. email: ramiromanduca@ gmail.com 1


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“Querida imaginación, lo que más quiero en ti, es que no perdonas” André Bretón Primer Manifiesto Surrealista (1924) Introducción En este trabajo buscaremos reconstruir y analizar una serie de experiencias en el contexto de la última dictadura militar argentina (1976-1983) en las que la noción de vanguardia articula tanto sus sentidos políticos como estéticos. Todas ellas estuvieron protagonizadas por jóvenes cercanos o militantes del Partido Socialista de los Trabajadores (PST), organización de la izquierda trotskista, opuesta a la lucha armada, que continuó interviniendo políticamente desde una condición clandestina y luego semilegal entre 1976 y 1983. Se trata de talleres, festivales, intervenciones y coordinaciones internacionalistas que tuvieron como motor una recuperación “anacrónica” del surrealismo (LONGONI, 2012). Encontrando en el Taller de Investigaciones Teatrales (TiT) la principal usina de iniciativas, recorreremos una serie de eventos y formaciones que tuvieron lugar entre 1979 y 1982: la conformación del Zangandongo (un intento de iniciativa frentista), los festivales Alterarte I y II y la fundación de un agrupamiento, con trayectoria efímera, junto a los grupos Cucaño2 de Rosario y Viajeu Sem Passaporte (VSP), de Sao Pablo, denominado Movimiento Surrealista Internacional. Nos interesa ver el modo en que la militancia política y el activismo artístico se cruzan y contaminan en estas diversas iniciativas, el modo en que el concepto vanguardia “relampaguea” en ambos términos. Buscaremos responder a estas preguntas en las siguientes páginas: ¿De qué modo se actualizan los postulados surrealistas medio siglo después de su irrupción?; ¿Qué tradición selectiva, en términos de Raymond Williams se hace presente en estos itinerarios?; ¿Qué gesto vanguardista caracteriza estas producciones marginales? Para ello, nos abocaremos a reconstruir cada una de las iniciativas estableciendo los cruces pertinentes con algunas orientaciones que también tuvieron asidero en el partido trotskista, para finalmente, recuperando para ello algunas de las discusiones centrales en torno a la definición de vanguardia, reflexionar acerca del sentido en el que opera en estos itinerarios. Para lograr estos objetivos trabajaremos con documentos partidarios internos, folletos de difusión pública, revistas culturales y entrevistas a protagonistas de los acontecimientos. Un antecedente fundamental para el abordaje que aquí proponemos fue la investigación colectiva llevada adelante por la Red Conceptualismos del Sur (2014) acerca de las producciones estético políticas en América Latina durante los años 80, condensada en la muestra “Perder la forma humana”. En el mismo sentido, se enmarcan las investigaciones que han desarrollado Ana Longoni (2012), Malena La Rocca (2012; 2018)


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y Lorena Verzero (2012; 2014), recuperando “del olvido” de las historias oficiales del arte las experiencias sobre las que aquí nos centraremos. El PST, los intelectuales y los artistas El trabajo en el plano de la cultura por parte del PST muestra un antecedente importante en 1975. Documentos internos dan cuenta de la planificación de un Frente de Artistas cuya principal función era poder interpelar a aquellos desencantados de la “derechización peronista y al mismo tiempo disputar la orientación reformista del PC”, al que identificaban en una “crisis en su construcción cultural” en buena parte fundamentada, por el “seguidismo hecho durante esos años al peronismo” (HERNÁNDEZ, 1975). Con el dictado de la ley 21.325, del 25 de marzo de 1976, ya en el marco de la dictadura, que prohibía todo tipo de partido político calificado como de extrema izquierda, el PST y sus diversas construcciones frentistas adoptaron nuevas modalidades de funcionamiento. Fue a partir de ese momento, que la táctica de intervención viró de ser “legal” a ser “semiclandestina”. Las medidas del gobierno se profundizaron a partir del mes de junio con el dictado de las leyes 21.322 y 21.325 “que disolvieron y declararon ilegales a la mayor parte de las agrupaciones políticas, sindicales y estudiantiles de la izquierda marxista y peronista, entre ellas, al PST” (OSUNA, 2011: 102). Desde entonces el partido desarrolló su actividad en la clandestinidad quedando una dirección provisoria en Argentina y otra, integrada por los principales referentes, en Colombia, lugar escogido para el exilio. Este funcionamiento implicó también el “tabicamiento”3 partidario, la utilización de seudónimos y otros procedimientos militantes tendientes a garantizar la seguridad de la organización que configuraron una suerte de “cultura” o “sociedad del secreto” (Tello Weiss, 2008), aspecto que repercutió además en una mayor disgregación de la actividad política. Sin embargo, como señala Osuna (2015), la intervención durante el período dictatorial se alternó sin una lógica muy clara entre la persistencia de la clandestinidad y las actividades de “superficie”. Cómo veremos, ambos rasgos fueron características también de las iniciativas sobre las que se centra este trabajo. Volviendo a las formulaciones relacionadas estrictamente con el abordaje de intelectuales y artistas, en el año 79 se sitúa un escrito, que, si bien aparece sin firma, es posible de atribuirlo a la dirección en el exilio ya que aborda tareas desarrolladas en el frente de intelectuales y la cultura en Brasil y Colombia, tomando como ejemplo la línea desarrollada en Argentina (SIN FIRMA b, 1979). En él se desprende un concepto importante, que estructurara la intervención del partido en el campo cultural: el de “sectores puente” entre el movimiento obrero y la pequeña burguesía. Esta táctica partía de la hipótesis de que eran ciertos sectores con “prestigio social” como los ma-


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estros, los profesionales, los intelectuales y los artistas, los que podían ser el puente para que el movimiento obrero gane influencia sobre la pequeña burguesía dominada por los parámetros políticos burgueses. Ahora bien, al mismo tiempo, diferenciaban que la influencia del partido debía estar centrada en los sectores más “proletarizados” dentro de los antes mencionados, como podrían ser los artistas jóvenes con dificultades para obtener trabajo ya que eran quienes más iban a tender a desarrollar una perspectiva combativa. Siguiendo este planteo, el abordaje de los sectores juveniles dentro del campo artístico fue el privilegiado en la intervención de la organización trotskista. Los “Talleres” y la juventud Como afirma Sandra Souto (2007: 181), la juventud como grupo definido no es un fenómeno universal, sino producto de una construcción social e históricamente situada, y por eso, cada sociedad construye su juventud. En el caso argentino, Alejandro Cattaruzza (1997:54) identificó que fue la articulación entre la radicalización y gran movilización política de la sociedad argentina desde finales de la década del 60 y el proceso de modernización sociocultural4 que irrumpió a mediados de los 50 lo que configuró una “cultura juvenil de masas que se inclinaba con facilidad a alguna forma de crítica social”. Este proceso, para el autor, es el que llevó a que a comienzos de los 70 se pueda hablar de una “nueva autonomía de la juventud como estrato independiente” (CATTARUZZA, 1997:54). En una línea similar, Valeria Manzano (2017) encuentra un punto de interrupción de esa autonomía juvenil a partir de 1974 con el ascenso de los sectores conservadores del peronismo. Desde entonces, comenzó una búsqueda creciente de “restaurar la autoridad” en todos los planos de la sociedad, concentrando la represión en sus diversas dimensiones sobre los jóvenes. Fue en ellos y ellas donde se condensó el sentido del “caos”. Esta autoridad debería ser reforzada desde la familia, donde la figura de los padres se veía desafiada por una juventud radicalizada tanto en lo político como en sus nuevas conductas sexuales, en los ámbitos educativos donde las autoridades y directivos se veían permanentemente cuestionados por los estudiantes y claro está, en el conjunto del orden político, donde las organizaciones de izquierda contaban con una composición juvenil mayoritaria. Esa tendencia se profundizó con el golpe de Estado. En ese marco, para algunos jóvenes del PST, las iniciativas artísticas sobre las que nos centraremos, fueron espacios desde donde seguir cuestionando autoridades diversas, desde donde persistir con una praxis militante en la superficie y desde donde reavivar, en los intersticios del terror, la cultura crítica en la que habían configurado su identidad juvenil. En el plano de lo específicamente teatral, se registra, en distintos documentos e informes, un seguimiento particular de las actividades desarrolladas, pese a definir


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el trabajo en el sector como “débil” y “con dificultades de estructuración” (SIN FIRMA a, 1979). El partido, en línea con el abordaje hacia la juventud, partía de la caracterización de que ese sector de los actores, a quién interpelar, por esos años se situaba ya no en instituciones de enseñanza oficial o conservatorios (espacios de los que habían salido los principales actores desde hacía por lo menos 50 años) sino en talleres particulares. Será de instancias de estas características “informales” de donde surja una iniciativa relevante, que contendrá a militantes vinculados del PST: el Taller de Investigaciones Teatrales (TiT). El modelo del TiT llevó posteriormente, a constituir “réplicas” hacia otras disciplinas, como el Taller de Investigaciones Cinematográficas (TiC) y el Taller de Investigaciones Musicales (TiM). El TiT se conformó hacia el año 1973, cuando un grupo de jóvenes, algunos de ellos vinculados ya al PST, se nuclearon alrededor de la figura de Juan Carlos Uviedo, un “actor santafesino ligado al Di Tella en los años ’60, que luego pasó por el teatro militante setentista y realizó teatro experimental en Europa, Estados Unidos, México y Centroamérica, [tomando contacto directo] con el Living Theatre, Peter Brook y Eugenio Barba” (VERZERO, 2012: 23). Del grupo inicial de militantes partidarios, había quiénes se habían destacado durante su adolescencia como dirigentes del movimiento estudiantil secundario de Capital Federal (como Pablo Espejo o Raúl Zolezzi5) contando para el año 1977 con cerca de 4 años de militancia orgánica. Ante el exilio a Colombia de la dirección tras el golpe de estado de 1976 y el paso a la clandestinidad, el modo en que estos jóvenes decidieron continuar con su praxis política fue incorporándose a talleres de teatro, disciplina con la que algunos, no tenían ningún tipo de acercamiento previo. Son ilustrativas al respecto las palabras de Espejo: La inserción en el teatro fue una estrategia nuestra para no clandestinizarnos. El centro del debate con el partido era “clandestinizarse”. Pero nosotros éramos pibes de 18, 19 años que teníamos nuestra vida. Veníamos de una militancia muy dinámica y con mucha referencia en el frente estudiantil. Nos clandestinizamos en algún sentido, de todos modos. Yo no pise el centro porteño hasta el mundial del ´78, a lo de mis viejos hacía ya bastante que no iba, deje de ir de mis abuelos y me fui a trabajar a zona norte. La inserción en el teatro entonces fue la estrategia para seguir militando y sostener nuestra vida6.

El teatro aparece entonces como un espacio de militancia, que conjugaba al mismo tiempo la dimensión afectiva como un aspecto fundamental para continuar con algún proyecto político en el marco de la dictadura. Las tensiones entre “superficie” y clandestinidad son palpables en el testimonio citado. Otros, como Marta Cocco y Beto Burnstein, hicieron el recorrido inverso partiendo de una trayectoria desde el teatro


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para luego sumarse a la militancia partidaria. En 1978, “el maestro” Uviedo fue detenido por posesión de drogas y tras obtener la libertad se “exilió” a Brasil. El taller sin embargo continuó, asumiendo un funcionamiento en tres subgrupos de trabajo, uno a cargo de Marta Cocco (Marta Gali), que trabajó sobre Meyerhold y Lautréamont; el segundo, a cargo de Rubén Santillán (el Gallego), se centró en Genet, Artaud y el teatro de la crueldad; y el tercer grupo, dirigido por Ricardo D’Apice (Ricardo Chiari)7, se orientó hacia Ionesco y el teatro del absurdo (LONGONI, 2012: 24). La influencia del partido en el desarrollo del grupo fue prácticamente nula hasta 1979, año en que tuvo lugar el Festival Alterarte I, una iniciativa que apuntaba a consolidar el trabajo desarrollado en el plano específico de lo cultural, impulsado por el TiT y particularmente por un espacio que buscaría ser el embrión de una suerte de coordinadora multidisciplinaria, llamado Zangandongo. Es importante destacar que el año 1979 presenta la particularidad de estar aún en el umbral de los que son considerados los años más álgidos de la represión estatal entre 1976 y 1978, pero sin ser aún una coyuntura donde haya signos posibles de ser leídos como indicios de una apertura democrática que algunos autores sitúan en el llamado al diálogo a los partidos políticos hecho por Videla en 1980 (LÓPEZ, 1994) o en el gobierno de Roberto Viola durante 1981 (NOVARO Y PALERMO, 2001). Es más, la visita de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (D’ANTONIO, 2010), ese mismo año, implicó una ofensiva en el plano propagandístico por parte de la dictadura en pos de no perder legitimidad y aval social. Una singularidad de estas iniciativas entonces es que aparecen en un momento donde aún la “liberalización” del régimen no era manifiesta. El Zangandongo: un frente de artistas de vanguardia Como primera iniciativa tendiente a nuclear a artistas de diversas tendencias en un movimiento de mayores dimensiones, el Zangandongo confeccionó su propio manifiesto, acto inaugural que remite de manera inmediata a la pretensión programática con la que las vanguardias de entreguerras inscribieron sus prácticas. El significado de zangandongo es “persona inhábil, desmañada, holgazana”. En ninguno de los materiales se hará explícito esto, por lo que, incluso por su propia sonoridad, el nombre quedaría anclado a un sentido absurdo, que, sin embargo, será constitutivo de la propia identidad y estética que asumirán algunas de las acciones llevadas adelante. En el primero de los boletines plantean de manera programática el tipo de teatro que proponen construir, delimitando también el sector del campo cultural al que se dirigen. Las influencias en este escrito, elaborado por Mauricio Kurcbard y Marco Sadowski (Marinho), según sus testimonios, estuvieron dadas por el surrealismo y su cruce singular con el trotskismo. En palabras del actor, “fue producto de una intensa


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lectura de los manifiestos del surrealismo, los libros de Antonhy Tapies, junto con otras cosas por el estilo vigentes en esa época. Aparte por nuestra orientación política los manifiestos de Trotsky y Breton fueron fundamentales”8. Las definiciones plasmadas en el escrito son claras, no titubean, y afirman: “queremos la unidad de todos los artistas de vanguardia que quieran formar una corriente artística alternativa” (COCCO, 2011: 36). Vanguardia y arte alternativo parecen unificarse en un solo contenido. En el mismo escrito desarrollan su concepción acerca del rol del arte en la sociedad, poniendo en relieve la ampliación del campo perceptivo que este genera a partir de las emociones, siendo el artista un sujeto activo en este rol, contra lo que entienden como una función pasiva propia del arte hegemónico (MANIFIESTO DEL ZANGANDONGO EN COCCO, 2011: 5). Ahora bien, sin lugar a dudas es el final del manifiesto donde aparece de manera más concreta su propuesta estética. En clave herética, se oponen a los principios fundamentales de las principales corrientes teatrales vigentes al menos en el teatro argentino de entonces9. Rechazan al escenario como “templo ceremonial”, postulando que el teatro es “cualquier lugar donde haya gente y ganas de hacer (…) el teatro es cualquier plaza, vereda, alguna casa” (MANIFIESTO DEL ZANGANDONGO EN COCCO, 2011:53); impugnan la concepción del “actor y del director como instrumentos y sacerdotes de un método” revalorizando su carácter de “artistas, productores y transmisores directos de sensaciones y emociones”(MANIFIESTO DEL ZANGANDONGO EN COCCO, 2011:53); proponen una ruptura en la concepción tradicional de público, a la separación entre este y los actores apelando a la conformación de una unidad entre ambos y finalmente postulan la necesidad de “investigar, experimentar, plantear nuevas propuestas”, ya que solo así podrían “hacer verdaderamente arte, algo verdaderamente nuevo”, en vínculo para ellos, “con un nuevo proceso social al que le debe corresponder una nueva estética”(MANIFIESTO DEL ZANGANDONGO EN COCCO, 2011:53). Si más arriba afirmamos que los conceptos de vanguardia y arte alternativo parecían fundirse en un solo significado, en este último pasaje se agrega la noción de experimentación. La conjunción de los tres en este caso, tienden a asumir puntos de partida, balbuceos para definir un hacer construido desde la negatividad, la oposición a las corrientes dadas, la recuperación de una práctica vanguardista tendiente a formular imaginarios en los que arte y vida se condensen en un imaginario superador del terror social. Quizás el modo en que Susan Buck-Morss (2004) piensa las vanguardias soviéticas y el proceso revolucionario permitan hacer sentido con estas experiencias. La autora define como avant-garde a la vanguardia artística y como vanguard a la vanguardia política. La primera está signada por la vocación destructiva, la segunda por la constructiva. Dos orientaciones contradictorias de la temporalidad en la que también buscan inscribirse las prácticas de estos jóvenes artistas “trostsko-surrealistas”.


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El Zangandongo impulsó también un folletín propio en la búsqueda de interpelar a otros sectores del campo cultural. La edición del mismo fue en octubre de 1979, un mes antes de la realización de Alterarte I. La estética es propia de un fanzine, con recortes, historietas, y montajes. El contenido del material está centrado en la propuesta de abolir las concepciones de arte vigentes, ligadas al pasatiempo y la industria cultural, pero también la impugnación de todas las tradiciones heredadas para dejarse llevar hacia un arte fundado en la experimentación, cuya única guía sea la búsqueda de una “forma y un contenido” propios de su época. Esta impugnación de toda tradición entra sin embargo en tensión, con una recuperación “anacrónica” (LONGONI, 2012:13) del surrealismo y el dadaísmo. La fuerte presencia de las vanguardias históricas en el folletín parece evocar la época de surgimiento de ellas, signadas por el horror de entreguerras, para ponerla en diálogo con los años dictatoriales. El cierre del material hace un llamado que refiere explícitamente al programa de las vanguardias históricas: “Aquí tenemos la verdadera revolución poética: ninguna preocupación por el arte y la belleza, el arte es una forma de vida” (BOLETÍN DEL ZANGANDONGO N° 1, 1979). Fiestas y festivales Parte de las iniciativas tendientes a afianzar redes y vínculos con otros sectores artísticos fue la realización de algunos eventos, entre ellos, una fiesta en un galpón del barrio de Almagro. En estas iniciativas se pone en funcionamiento la denominada por Roberto Jacoby, “estrategia de la alegría”. Esta estrategia está asociada a lo que “en general se considera frívolo (…) el poder juntarse una cantidad de gente a tomar vino, a pensar a charlar (…) a no postergar las posibilidades de crear un espacio fraterno o igualitario, justo, de intercambio”10 (RED CONCEPTUALISMOS DEL SUR, 2011:172). Un accionar tendiente a generar espacios de intercambio necesarios “para recuperar el aire” en el medio del terror, aunque en este caso aparecen también contornos de una puesta político-partidaria específica cuyos objetivos, sin ser opuestos, apuntan a la constitución de un movimiento artístico multidisciplinario. En cuanto a estas iniciativas de intercambio, la fiesta del galpón se describe detalladamente en el primer folletín del Zangandongo con la finalidad de ejemplificar que concepción artística estaba inscripta en esta particular referencia. Es interesante que tal descripción parta de dar cuenta, previamente, del escenario cultural de Buenos Aires donde se caracteriza que “la rebeldía del rock, decantó y siguió su rumbo a través de distintas formas” como las publicaciones y talleres literarios underground, los grupos informales que se reunían para publicar sus producciones, los talleres de teatro en reemplazo de las escuelas e instituciones consagradas, etc. A esa generación de artistas, y a esas producciones se dirigía el Zangandongo, y claro está, el PST.


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El ambiente de la fiesta del galpón (realizada el 21 de julio de 1979), es caracterizado por una iluminación basada simplemente en velas, con una “delirante música rock”, un espacio escénico que no obedece a los parámetros tradicionales, sin un escenario que sea protagonista, con gente deambulando por todos lados (BOLETÍN DEL ZANGANDONGO N° 1). El balance que presentan de la fiesta es al mismo tiempo un enunciado que justifica su razón de ser como movimiento: “Fue el reflejo de la crisis del arte, descabezado de una vanguardia que lo lleve a nuevas metas. Fue reflejo de que la juventud tiene ganas de hacer arte, pero que no tiene una respuesta válida y concreta” (BOLETÍN DEL ZANGANDONGO N° 1, 1979). Nuevamente el uso del término vanguardia es escurridizo, ambiguo. Si bien centrado en el “mundo del arte” el sentido que se desliza de la afirmación “descabezado de una vanguardia que lo lleve a nuevas metas” adquiere un carácter político asociado a los proyectos de las izquierdas marxistas-leninistas donde la vanguardia partidaria es la que orienta al movimiento de masas. En este caso, el movimiento de artistas “underground” y la necesidad de una orientación política para que esas “ganas de hacer arte” aporten a un objetivo superador. El posicionamiento en este caso, volviendo a lo propuesto Buck-Morss, parece tener su centro de gravedad más en el sentido de vanguard que de avant-garde. Alterarte: un festival subterráneo Esta iniciativa, tuvo lugar entre el 19 de noviembre y el 5 de diciembre de 1979. El lugar elegido fue el Teatro del Plata, ubicado en una galería de Cerrito al 200, en pleno centro porteño y a cuadras de la casa de gobierno. Cómo se explicitan tanto en el manifiesto ya citado del Zangandongo como en la misma bajada que acompañaba al título del festival (festival de arte de arte experimental e investigaciones de avanzada), la iniciativa apuntaba a nuclear a las producciones con las que los miembros del TiT dialogaban y a las que incluían en el ambiente de vanguardia. Al pie del afiche publicitario se ampliaba este mismo concepto: Hay un tiempo para todo…los viejos parámetros se han desintegrado. La llave de lo banal yace bajo la tierra, y sobre ella, nosotros exigiendo ya ese mismo tiempo. El germen parido por el mundo comienza a convertirse en microbio. En sublime procesión las banderas de la imaginación vuelven a tomar nuevas formas. Es hora de mostrarlas (AFICHE DE DIFUSIÓN, ALTERARTE I: 1979)

En un planteo que remite de manera directa al primer manifiesto surrealista en el que Bretón no duda en afirmar que “no ha de ser el miedo ni la locura el que nos obligue a poner la bandera de la imaginación a media asta” (BRETÓN, 2001: 22), esta nueva generación de artistas se plantea actualizar los objetivos del surrealismo y concretar una


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nueva “revolución en el arte”11, que por su orientación trotskista es necesariamente concebida como permanente. Tal como señala Longoni: La revolución permanente en el arte hace alusión a la inestabilidad de las formas, la condición procesual e irrepetible del “hecho artístico” y la continua investigación de nuevos modos de creación. Hablar de arte revolucionario los ubica, entonces, tanto en un desafío al orden dictatorial como en la impugnación a la tradición estética vinculada al partido comunista y al populismo peronista que despreciaban como realista y panfletario (LONGONI, 2012: 14)

Aparece entonces un elemento diferenciador respecto al teatro representacional que es extensible al realismo, y por lo tanto a las experiencias teatrales hegemonizadas por el PCA. Sin ir más lejos, entre los integrantes del TiT circulaba una frase irónica donde esta concepción aparece sintetizada de manera excelente: “Stanislavski es Stalin” (LONGONI, 2012: 14). Un enunciado artístico y político que condensa también las discusiones que en buena parte del siglo XX atravesaron a las izquierdas. Cómo señala Eduardo Grüner (2016), el realismo socialista como estética impulsada por el Estado Soviético y abrazada por los Partidos Comunistas a nivel internacional, era el “reflejo fiel” del carácter políticamente reaccionario del socialismo realmente existente. El autor homologa ese efecto de falso reconocimiento, ese relato a favor de la conformidad con la realidad “de forma tal que el arte no se diferencia de la realidad” (GRÜNER, 2016:13) con las operaciones de la industria cultural. Frente a ambas, la crítica vanguardista restablece el carácter utópico del arte, su capacidad de mostrar que otras realidades son imaginables. Es esa intersección crítica la que encuentra a Bretón y Trotsky, es ese proyecto frustrado el que se proponen recuperar los jóvenes del TiT. En Alterarte participaron artistas de distintas disciplinas, pero también de generaciones diversas: plásticos relevante tales como Gyula Kosice, Ennio Iomi, Emilio Renart, Juan Carlos Romero, Juana María Heras Velasco, Gabriel Messil, Horacio Koll y un joven, Guillermo Kuitka; músicos como Roque de Pedro, Rick Anna y Carmelo Saitta. Tuvo lugar también un espacio de poesía a cargo de miembros de la revista Poddema12 y obviamente, se destacó un fuerte componente teatral, donde además del TiT participaron Omar Chaban, Gustavo Schwarz, Ángel Elizondo y un alumno de él y también militante del PST, Alberto Sava13 con su Escuela de Mimo Contemporáneo y Teatro Participativo (EMC). En sus estudios sobre las revistas culturales durante la última dictadura militar, Evangelina Margiolakis (2011) utiliza la definición de “subterráneas” para caracterizar a las publicaciones que se “encontraban en el “límite” o al “margen” de lo “establecido”, que intentaban ir “más allá”, que proponían otra jerarquización de temas y claves


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de lectura, diferentes de las que provenían de otro tipo de publicaciones, a las que se puede denominar “de superficie”, vinculadas con la denominada “cultura oficial” (MARGIOLAKIS, 2011: 68).

Retomando estos elementos, caracterizaremos a la experiencia de Alterarte como subterránea principalmente por su búsqueda de una estética rupturista que se plantea desde sus inicios en oposición a los parámetros de la industria cultural y oficial. Reforzando este aspecto, se puede mencionar la participación de una serie de artistas que se encontraban en los márgenes de sus respectivos circuitos, aunque también formaron parte de la actividad otros consagrados como Juan Carlos Romero o Gyula Kosice. Por último y para reponer también en este caso el carácter experiencial de las iniciativas impulsadas por estos jóvenes, el clima generado y la atmósfera de constante exaltación como aspecto formal recuperado por los postulados de las vanguardias históricas tomaremos el relato de uno los miembros de TiC, quién participó en carácter de espectador: El Teatro del Plata quedaba cerca del Obelisco, una galería comercial toda vidriada por la cual se accedía un sótano oscuro iluminado con velas, la gente sentada en el piso, te pasaba por delante gente vendada, sangrando, llevando cadenas, todo un clima de película de terror. Me gustó la cosa, me pareció fuerte, no se entendía un pomo, eran emociones, imágenes. Todo muy fragmentario (EDUARDO “MAGOO”NICO, EN RED CONCEPTUALISMOS DEL SUR,2014: 77)

La apelación a una narrativa fragmentaria, la ruptura del espacio teatral convencional, la búsqueda del efecto inmediato de la obra sobre quienes forman parte de esa experiencia construyen sentidos vanguardistas en estas prácticas, pensándose junto con Hal Foster (2001: 33), contextual y performativamente. En un contexto donde la grupalidad y la juventud constituían amenazas, en las que las jerarquías en todo ámbito no toleraban cuestionamientos, estos jóvenes construían estos espacios libertinos desde donde buscaban una activación crítica contra terror externo, al tiempo que socializaban los medios de producción teatrales alterando los principios del realismo hegemónico en la escena teatral argentina. Alterarte II: un festival de la exaltación Hacia 1980 asistían cerca de 150 personas a los diversos grupos que conformaban el TiT, según lo que sus protagonistas afirman en distintas entrevistas (VERZERO 2012; LONGONI,2012). Sin criterio de selección alguno, sólo por el deseo y las posibilidades de hacerlo, en el verano de ese año, una delegación de aproximadamente 30 “tite-


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anos” partieron de Buenos Aires rumbo a São Paulo acudiendo a una convocatoria hecha por Juan Uviedo. En este viaje establecieron contacto con los grupos 3Nós3 y Viajeu Sem Passaporte (VSP), quienes por esos años desarrollaban intervenciones urbanas en el marco de las incipientes aperturas culturales de la dictadura brasileña. También los grupos brasileños se postulaban continuadores del surrealismo y al igual que sus “camaradas” argentinos, su trayectoria política se entrelazaba con la corriente trotskista que por esos años comenzaba a tener influencia en el dinámico movimiento estudiantil (RED CONCEPTUALISMO DEL SUR, 2014: 60). Este viaje sirvió para construir afinidades e intercambios de procedimientos que, retomando la tradición histórica de las izquierdas, pueden ser pensados en términos de internacionalismo, más aún, si consideramos los ya mencionados vínculos entre espacios teatrales y organizaciones políticas. El singular cruce de ambas dimensiones se pone de manifiesto en que los acuerdos alcanzados fueron plasmados en un acta entre miembros del TiT y de VSP, un documento donde ambos grupos se comprometían a profundizar sus vínculos y convocar a otros espacios similares para conformar un “movimiento latinoamericano por la revolución del arte” dando una “lucha a botellazos contra todo tipo de realismo y didactismo” y en pos de la “liberación total del hombre” (ACUERDO TIT-VSP, 1980). A los pocos meses un grupo de miembros del TiT encabezado por Ricardo Chiari decidió viajar e instalarse en São Paulo desde donde continuaron su trabajo artístico en vínculo con los grupos locales y con el objetivo final de conformar un movimiento internacional “Anti-Pro-Arte”. El paso a la práctica de estas nociones internacionalistas se expresó de manera concreta en el encuentro Alterarte II del año 1981, coordinado por los grupos antes mencionados a los que se le agregó el grupo Cucaño de Rosario y el TiC. Nuevamente el lugar del encuentro fue São Paulo, teniendo a la Universidad Nacional como un espacio central de las acciones. En una minuta organizativa previa al evento se destaca que la programación a diferencia de los festivales comerciales, no debía ser anticipada, sino que, por el contrario, debía estar sujeta al devenir inmediato y por eso mismo, las actividades que se iban a desarrollar debían ser versátiles (ALTERARTE II-MINUTA DE PREPARACIÓN, 1981). En el mismo escrito, se mencionaba la creación de un grupo específico que tenga la función de provocar constantemente reacciones en los espectadores y compañías invitadas, generando un acontecimiento dentro del mismo festival. La obra central del evento sería entonces esa provocación. También se menciona como parte de los objetivos destacados la recuperación y puesta en vigencia del surrealismo a partir de la confección de materiales, la realización de una conferencia y la conformación de una comisión tendiente a reactualizar el proyecto de la Federación Internacional del Arte Revolucionario Independiente (FIARI). Poco o nada de esa detallada planificación parece haberse ejecutado si se contrasta esa metódica minuta con los escritos de balance en lo que se destaca el carácter improvisado del


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encuentro, la poca afluencia de público, salvo en acciones puntuales y el exceso de caudillismo por parte de los miembros del TiT São Paulo que estuvieron a la cabeza de la organización. Sin duda el momento de mayor trascendencia del evento fue el montaje de La Peste, acción conjunta entre miembros del TiT y Cucaño. La misma estuvo inspirada en los conceptos que desarrolla Artaud en el primer capítulo del Teatro y su Doble, donde pone en relación al teatro con la peste. Para Artaud La peste toma imágenes dormidas, un desorden latente, y los activa de pronto transformándolos en los gestos más extremos; y el teatro toma también gestos y los lleva a su paroxismo. Como la peste, rehace la cadena entre lo que es y lo que no es, entre la virtualidad de lo posible y lo que ya existe en la naturaleza materializada (…) Una verdadera pieza de teatro perturba el reposo de los sentidos, libera el inconsciente reprimido, incita a una especie de rebelión virtual (que por otra parte sólo ejerce todo su efecto permaneciendo virtual) e impone a la comunidad una actitud heroica y difícil (ARTAUD, 2014: 27 )

La intervención llevada adelante en la Praça da Repùblica, implicó poner en acción esos principios. Un domingo a la mañana, momento de enorme afluencia de público debido a la realización de una feria comercial en un espacio urbano central, el conjunto de actores y actrices de los tres grupos comenzó a distribuirse en distintos lugares de la plaza. La idea era que poco a poco se fueron descomponiendo físicamente para provocar un clima disruptivo en los transeúntes pero que, ante la reacción de estos, continuaron su deriva como si nada hubiera ocurrido. Ese “malestar” era padecido por los argentinos, era una dramatización escatológica de la situación de opresión que atravesaba a la sociedad argentina en los años del terror dictatorial. Sin embargo, el plan no salió como se había ideado. Ante la “descompostura” de los actores, la reacción de la gente fue asistirlos y comenzar a llevarlos a una glorieta en el centro de la plaza, al mismo tiempo llamaron a ambulancias para que asistan a los supuestos “descompuestos” y para tratar de frenar los vómitos, algunos de los sorprendidos transeúntes, fueron a comprar leche. Llegaron las ambulancias, también patrulleros. A quiénes llevaron en las primeras no les quedó otra posibilidad que blanquear el artificio y entonces el recorrido al hospital derivó hacia la comisaría, donde se les inició una causa judicial y algunos de los partícipes fueron deportados. Como señala Ana Longoni (2012) “El episodio, que recibió amplia cobertura mediática en ambos países, concretaba una vieja aspiración de Juan Uviedo: había que provocar hechos que no aparecieran en las páginas culturales de los diarios sino en las policiales” (LONGONI, 2012: 16). Artaud entonces, se encarnó en esos cuerpos que, se reapropiaron de sus conceptos y se constituyeron en autores singulares de ese acontecimiento, borrando


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los límites entre una acción artística, una protesta singular y la alteración del orden público. Esta conjunción reforzó la idea de conformar un movimiento que, en línea con sus objetivos iniciales, recuperara el legado de la FIARI: el Movimiento Surrealista Internacional (MSI). El MSI y la Enciclopedia Surrealista: dos proyectos efímeros Como mencionamos al pasar en el apartado anterior, los balances de Alterarte II no fueron compartidos por todos los grupos. Mientras la sección São Paulo del TiT defendía a rajatabla lo hecho, desde la “coordinadora de Buenos Aires” en la que se nucleaban el TiT, el TiC y el TiM eran sumamente críticos de los criterios organizativos que habían guiado el encuentro. Una discusión donde más que criterios estéticos o políticos lo que se dejaba ver eran desgastes de vínculos afectivos y personales de jóvenes que, sin embargo, se mostraban convencidos de estar encarnando una tarea histórica en la conformación de un movimiento internacional por la revolución del arte. De estos balances, nos interesa destacar una de las minutas escrita por María Selez. Ella conformaba el TiT S.P y además continúo en Brasil el proyecto de un grupo específico de mujeres, Las Rahuínas, que se había iniciado en Buenos Aires. En su escrito no dudaba en afirmar que Alterarte II había sido “el más importante evento cultural alternativo del año en Brasil y quizás en Sudamérica” así como también “el hito que marca la agrupación de los auténticos surrealistas luego de 41 años de dispersión, confusión y claudicación a los aparatos de la superestructura cultural capitalista” (SELEZ, 15 de enero 1981). Estos, junto a otros cuatro puntos eran planteados como ejes vertebradores para un balance en común. El lugar en el que los jóvenes protagonistas de estas experiencias se auto percibían es posible de ser enmarcado en una suerte de tradición selectiva en el desarrollo del surrealismo como corriente estética. Este concepto propuesto por Raymond Williams implica “una versión intencionalmente selectiva de un pasado configurativo y de un presente pre-configurado, que resulta entonces poderosamente operativo en el proceso de definición e identificación cultural y social” (WILLIAMS, 2009: 153). Esa genealogía selectiva estaba vertebrada por el manifiesto de 1924 de Bretón, el manifiesto de México de 1938 y finalmente en ellos como síntesis de ese proyecto, como recuperadores de un legado histórico. El MSI tuvo como bajada el lema “Transgresión- Imaginación-Subversión”, tres conceptos con cargas negativas en los discursos sociales imperantes durante las dictaduras latinoamericanas, pero desde donde buscaban afirmar un proyecto de vanguardia político y artístico. Aparte de los grupos que participaron del festival, el acta fundacional firmada en Interlagos el 22 de agosto de 1981 “contenía en espíritu [sic]”


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la incorporación de la Escuela de Mimo Contemporáneo y Teatro Participativo de Buenos Aires, dirigida por Alberto Sava y el Novísimo Cinema Alemao de São Paulo. El acta cerraba enunciado los objetivos principales del movimiento, donde arte y política conviven en tensión: “Investigación y producción en función del desarrollo de la imaginación humana. Contra el disciplinamiento artístico. En defensa del patrimonio cultural de la humanidad. Contra toda forma de nacionalismo cultural” (ENCICLOPEDIA SURREALISTA, 1982: 32). La imaginación como principio fundante del surrealismo, la libertad absoluta en el arte en línea con los planteos de Trotsky14, el universalismo en línea con las concepciones del marxismo clásico y el internacionalismo como forma de cualquier proceso revolucionario se conjugan en estas últimas consignas. La enciclopedia fue la única acción del movimiento. El mismo concepto de enciclopedia está presente en la tradición surrealista. Al definir al surrealismo en el manifiesto de 1924, Bretón escribe Enciclopedia. Filosofía. El surrealismo se funda en la creencia en la realidad superior de ciertas formas de asociación anteriormente desatendidas, en la omnipotencia del sueño, en el juego sin finalidad determinada del pensamiento. Aspira a la destrucción definitiva de todos los mecanismos psíquicos y pretende ocupar su lugar en la solución de los problemas fundamentales de la vida (BRETÓN, 2001: 45)

El surrealismo implicaba otro modo de entender el mundo, necesitaba de otros conceptos porque aspiraba a otra vida, a otro modo de vivir. Desde este lugar el proyecto de enciclopedia del MSI buscaba sistematizar esta mirada del mundo, ya no en los años de entreguerras, sino en el de las dictaduras latinoamericanas. El primer y único tomo estuvo compuesto por una serie de escritos a máquina principalmente de miembros del TiT, reunidos de manera artesanal. Recuperaciones de manifiestos previos, y discusiones acerca de diversos proyectos emprendidos en esos años, mediante los que se buscaba actualizar el proyecto surrealista con una perspectiva revolucionaria. En uno de estos escritos afirmaba: Si ser surrealista hoy significa reivindicar idénticas producciones a las de hace sesenta años, el mismo manifiesto del veinticuatro caería sobre nuestras cabezas. Si acaso lo fuese, ser amante de la vida de Bretón, quien a pesar ser el más grande de los artistas revolucionarios de todos los tiempos, debió ceder frente a la dureza de la segunda guerra mundial y terminar escéptico, cosa que nos prueba con frialdad como la realidad puede doblegar a los vanguardistas más acérrimos; En estos sentidos decimos taxativamente: entonces no somos surrealistas. Pero a la ves [sic] reconocemos en estos aspectos la pequeñes [sic]e insignificancia frente a la grandeza del genio surrealista, si analizamos su actitud frente al pasado, su defensa incondicional de la cultura frente a la amenaza


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fascista, sus postulados TOTAL LICENCIA E ARTE E INDEPENDENCIA TOTAL DE LOS ARTISTAS [mayúsculas de la fuente], su reivindicación constante de marginales como Lautremont y su espíritu de exaltación permanente, puesto de manifiesto en declaraciones todavía vigentes como PADRE-PATRIA-PATRÓN, decimos: Somos surrealistas entonces ( ENCICLOPEDIA SURREALISTA, 1982: 9)

Nuevamente en esta construcción selectiva de la tradición en la que se buscan enmarcar, los jóvenes trostskos-surrealistas critican la claudicación política de sus antecesores al tiempo que exaltan sus gestos provocadores. Fue en la superación de esa actitud escéptica hacia el cambio social y en la actualización de la exaltación las coordenadas en las que buscaron inscribirse. Su compromiso político en la militancia partidaria era la respuesta al primero de los aspectos, sus acciones tendientes a ocupar la sección de policiales en los diarios era la puesta al día de lo segundo. En esa intersección se construía su adscripción anacrónica como surrealistas. Al igual que la FIARI, el MSI no prosperó como iniciativa. Si en el primero de los casos los esfuerzos de Bretón cayeron en saco roto frente a la irrupción de la Segunda Guerra Mundial, los cambios en sentido contrario de los años 80, es decir los comienzos de las transiciones a las democracias en América Latina fueron también cambios reordenadores del conjunto de los imaginarios sociales y políticos. Más aún, cuando no hablamos de “Bretones” sino de jóvenes cuya relevancia en las escenas artísticas de sus respectivos países era marginal. Las tareas políticas, sobre todo luego de la Guerra de Malvinas para los militantes que permanecieron en Argentina cambiaron rotundamente. Muchos de los miembros del TiT dejaron sus prácticas artísticas para dedicarse de pleno a la campaña que emprendería el flamante Movimiento al Socialismo (MAS)15. A diferencia de los artistas de los 70, su salto no fue del arte a la revolución, sino a la democracia. A modo de conclusión El carácter contextual y performativo que Hal Foster pondera a la hora de desarrollar su concepción acerca de las vanguardias y neovanguardias pensamos que construye sentido con las prácticas aquí analizadas. La crítica a la trama sociocultural y política en la que tuvieron lugar fue un articulador central en su hacer. Su oposición furibunda al realismo en términos artísticos y su conjunción con una militancia política de intenciones revolucionarias aún en el marco de la dictadura constituyeron una fuerte impugnación a los valores vigentes en los ámbitos donde intervinieron. El aspecto performativo se puso de manifiesto en la alteración y provocación que guiaba sus acciones. Su obrar vanguardista logró su consagración en la acción de la Praça da Repùblica. Arte y vida se conjugaron en el espacio público y en sus días en prisión.


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Del mismo modo, la noción de vanguardia en los documentos formulados por los protagonistas oscila todo el tiempo entre el rol político que pretendían ocupar y sus transgresiones artísticas, como hemos dicho más arriba, en lo que Bucks-Morss define como vanguard y avant-garde. Ahora bien, a lo largo del trabajo también hemos recuperado la noción de surrealismo anacrónico para definir las prácticas analizadas. Lo que nos interesa de este anacronismo es que aparece de modo productivo. Es decir, las experiencias de estos jóvenes apelan a la referencia del surrealismo como repertorio de enunciación y definición de su hacer, cómo modo de situar su práctica marginal en una perspectiva trascendental, como una suerte de “referencia salvavidas” ante un contexto signado por el terror. Ese hilo deshumanizador que atravesó al siglo XX es el que une, de algún modo, al 24 de Bretón con el 82 de los “trostkos-surrealistas”. Un último aspecto a señalar, sobre el que buscaremos profundizar en futuros trabajos es la relación con lo institucional. Justamente la ruptura y crítica a las instituciones “Arte”, “Museo”, “Teatro”, etc, fue el aspecto fundamental de los movimientos de vanguardia. Ese gesto impugnador aparece en estas prácticas, pero al mismo tiempo, lo que se hace presente es la constitución de instituciones alternativas, creadas por ellos mismos. Instituciones efímeras y caóticas, pero desde las que validar su propio hacer: los Talleres frente a los conservatorios estatales; los festivales alternativos frente a los festivales consagrados (por ejemplo el Festival de Teatro de Caracas), inclusive ¡la constitución de un movimiento internacional y su propia Enciclopedia! Esos espacios se hacen presentes como proyectos colectivos desde donde legitimar prácticas marginales, desde donde combatir “a botellazos” con las corrientes hegemónicas, desde donde alterar el orden público y construir comunidades afectivas que mantuvieran vivo el carácter revulsivo de la juventud. Notas En Cucaño también se nucleaban jóvenes militantes trotskistas quienes tuvieron un vínculo estrecho con el TiT. Respecto a estos vínculos se destacan los trabajos de La Rocca, Malena (2012). 2

El tabicamiento es una concepción, si bien no excluyente, si extendida en la tradición de los partidos marxistas-leninistas, en la que el funcionamiento de la vida política se reduce a las células más pequeñas, siendo sólo la dirección partidaria quién puede tener contacto y conocimiento del conjunto de la actividad política desarrollada. La organización tabicada propuesta por Lenin en el ¿Qué hacer? obedecía al contexto de fuerte represión del zarismo. Del mismo modo, el Partido Comunista alemán ante la irrupción del nazismo asumió este tipo de funcionamiento. Incluso el Partido Comunista Argentino durante la década del 30 apeló al tabicamiento como manera de resguardarse de la represión estatal (OSUNA, 2015). 3

La definición de proceso de modernización sociocultural suele utilizarse para referirse a un fenómeno que tuvo lugar en buena parte del mundo occidental entre las décadas del 50 y el 70 caracterizado por el desarrollo de la producción en masa y la masificación de nuevos medios de comunicación, principalmente la tele4


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visión, pero también nuevos formatos de revistas apuntados centralmente a las clases medias urbanas. Los cambios en los modos de vida, consumos culturales y prácticas cotidianas de estos sectores fueron notorios. En muchos casos se conjugó también con una ampliación del acceso a la educación superior y ascenso social. En Argentina se puede pensar este proceso desde mediados de los años 50, pero de manera más acentuada durante los 60 y 70. Tal como ha demostrado Manzano (2017), fue la juventud el sector social que con mayor intensidad atravesó estos cambios. Nos remitimos a estos dos casos dado que ambos han podido ser entrevistados y han aportado sus testimonios al respecto. Entrevista realizada por Ramiro Manduca a Pablo Espejo y Raúl Zolezzi, 16 de enero de 2019, Buenos Aires. 5

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Entrevista realizada por Ramiro Manduca a Pablo Espejo y Raúl Zolezzi, 16 de enero, 2019, Buenos Aires

Los nombres entre paréntesis son los “nombres de guerra” que ponen de manifiesto la extensión de las lógicas partidarias y épocales al funcionamiento del taller. 7

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Entrevista online a Mauricio Kurcbard, realizada por Ramiro Manduca, 30 de marzo de 2017.

Entre ellas es meritorio hacer una mención especial al realismo en sus distintas vertientes, siendo el movimiento de teatro independiente quién supo agrupar aquellas más ligadas a una crítica social. Fundado en la década del ‘30 del siglo XX, e impulsado por personajes como Leónidas Barletta, ligados estrechamente al Partido Comunista Argentino, sostuvo está impronta a lo largo de décadas . Estéticamente es un tipo de teatro con abundancia de procedimientos miméticos, didactistas, que jerarquiza los espacios teatrales tradicionales y la dupla autor-director como “protagonista” en la formulación del hecho teatral. 9

Si bien el autor asociará esta “estrategia” al ámbito musical dada su experiencia durante esos años con el grupo de rock Virus, en este trabajo la pondremos en relación a otros espacios donde los cuerpos se hacen presentes y ponen de manifiesto la misma “recuperación del estado de ánimo” que el señala. 10

Esta es la definición dada por Mauricio Kurcbard para definir cuál pensaban que era su objetivo de fondo. Entrevista online realizada a Mauricio Kurcbard, por Ramiro Manduca el 30 de Marzo de 2017. 11

Poddema fue una publicación fundada en ese mismo año 79 por el escritor Alberto Arias en torno a la que se conformó un grupo de escritores y artistas plásticos que también retomaron los principios del surrealismo. 12

En documentos internos del partido el rol de Sava aparece como destacado debido al papel jugado dentro de la Asociación Argentina de Mimos, de la que fue elegido presidente en 1980 .De hecho, Sava fue el impulsor y organizador de dos iniciativas que pueden ser leídas como continuidad del festival en cuestión, los llamados Encuentros de las Artes que tuvieron lugar en 1981 y 1982. Ver: Manduca; Ramiro (2017) 13

Cómo señalan Eduardo Grüner y Ariane Díaz (2016), en el prólogo y la introducción en la compilación, que hace unos años se editó con los manifiestos e intercambios entre Bretón y Trotsky, este último propuso la formulación de “Total libertad en al arte” suprimiendo la aclaración “salvo contra la revolución proletaria” que el artista francés había incluido en el primer borrador. Para los autores, esa eliminación de un principio que el mismo Trotsky había formulado en su libro de los años 20, Literatura y Revolución, obedecía a una actualización dada por los usos de “la revolución proletaria” hechos por el stalinismo. 14

El Movimiento al Socialismo fue producto de la confluencia de diversos grupos y personalidades a partir de una convocatoria lanzada por el PST hacia comienzos de 1982. Su influencia en los primeros años democráti15


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cos fue relevante si se tienen en cuenta los efectos de la última dictadura sobre el conjunto de organizaciones de izquierda en Argentina.

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Entrevistas Entrevista online realizada a Mauricio Kurcbard, por Ramiro Manduca el 1 de marzo de 2017. Entrevista online realizada a Mauricio Kurcbard, por Ramiro Manduca el 30 de marzo de 2017. Entrevista telefónica realizada a Mauricio Kurcbard, por Ramiro Manduca, 28 de marzo de 2018. Entrevista realizada a Pablo Espejo y Raúl Zolezzi, por Ramiro Manduca, 16 de enero de 2019, Buenos Aires.


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CINQUENTA ANOS DE PAU DE ARARA: UMA ENTREVISTA COM BERNARDO KUCINSKI WEVERSON DADALTO1

Bernardo Kucinski atuou como jornalista durante a ditadura militar brasileira e, em coautoria com Ítalo Tronca, escreveu o primeiro livro de denúncia internacional dos crimes de tortura praticados pelo regime iniciado com o golpe de 1964. Intitulado Pau de arara, o livro foi escrito em 1970. Traduzido para o francês, foi publicado na França no ano seguinte; logo depois foi traduzido para o espanhol e publicado no México, em 1972. Kucinski trabalhou em importantes periódicos da imprensa alternativa, como Opinião e Movimento. Posteriormente, durante sua carreira como professor de jornalismo da USP, publicou diversos títulos, tratando especialmente de ditadura, jornalismo e economia. Entre seus vários livros desse período, destacamos Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa (1991), Jornalismo econômico (1996) e O fim da ditadura militar (2001). Depois de aposentar-se, estreou na literatura e tornou-se um dos escritores mais discutidos pela crítica literária brasileira na última década. Destacam-se, na sua obra ficcional, K: relato de uma busca (2011), Você vai voltar pra mim e outros contos (2014) e Júlia: nos campos conflagrados do Senhor (2020). Nesta entrevista, conversamos com Kucinski a respeito de seu primeiro livro, que em 2021 completa cinquenta anos desde sua primeira edição. [Weverson Dadalto] Você escreveu Pau de arara em 1970, em coautoria com Ítalo Tronca. Qual foi a motivação para a produção desse livro? [Bernardo Kucinski] De todas as modalidades de repressão a que mais nos enfurecia na época era a tortura de presos políticos. Havia urgência em denunciar essa prática em âmbito internacional já que a ditadura brasileira era tratada com benevolência por parte da mídia estrangeira que, fascinada pelo milagre econômico brasileiro, fazia vista grossa às torturas. As execuções extrajudiciais e os desaparecimentos forçados de presos políticos só se tornariam prática regular a partir de 1972. Tanto assim que Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), Campus Vitória. Mestre e doutorando em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Endereço de e-mail: weversondadalto@gmail.com. 1


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Pau de Arara empalidece frente ao que viria a acontecer. Não obstante a urgência humanitária, a articulação para produzir Pau de arara fez parte da luta política contra a ditadura, ou seja, da resistência à ditadura, pois além dos autores envolveu várias pessoas, pesquisadores e datilógrafos, trabalhando em condições de alto risco. Em outras palavras, o objetivo específico pode ter sido humanitário, a motivação maior foi política. [W.D.] Na edição brasileira, de 2013, você conta que a iniciativa para a produção do livro foi de Luiz Eduardo Merlino. ngela Mendes de Almeida, nessa mesma edição, relata a seguinte reação de Merlino, depois de ter recebido os originais, na França, para a primeira publicação: “Gravei também, pela sua conotação premonitória trágica, uma frase dele, dita algum tempo depois, em tom de pilhéria e com olhar maroto: ‘livro tão autêntico que seus próprios autores foram torturados’” (p. 235). Quais foram os efeitos da publicação do livro na sua vida pessoal? [B.K.] A premonição do Merlino só se confirmou, e nesse caso tragicamente, em relação a ele próprio, que foi barbaramente supliciado e deixado à morte na prisão por uma gangrena provocada pelas torturas e deliberadamente não tratada. A morte do Merlino obviamente nos assustou. Teria a ver com a publicação de Pau de Arara? Procurei seus companheiros de organização em Paris para me esclarecer, chegando até o líder máximo deles, o Alan Krivine, mas até hoje não sei quem ou o que levou à prisão de Merlino. Eu nunca fui preso nem antes nem depois da publicação. Fui levado uma vez ao DOPS por envolvimento numa greve e liberado no mesmo dia. Ítalo foi levado duas vezes à Operação Bandeirantes (que depois viraria o sinistro DOI-CODI), e em ambas foi solto no mesmo dia. [W.D.] Qual foi o impacto do livro na opinião pública internacional? [B.K.] Não sei aferir o impacto na época. Denúncias das torturas já circulavam, porém em meios restritos ligados aos exilados e em entidades de direitos humanos como a Anistia Internacional. A denúncia na forma de livro sempre impacta. Sei que a edição mexicana, elaborada pelo Flávio Tavares e publicada pela prestigiosa Siglo XXI, teve muita repercussão no Brasil em meios restritos, acadêmicos. [W.D.] Vocês escreveram o livro quando a ditadura já atingia a fase da máxima violência repressiva. Nesse momento, a resistência armada também se organizava e se intensificava. Ao escrever o livro, você e Ítalo Tronca tinham esperança no sucesso da luta armada? Ou vocês apostavam exclusivamente na denúncia escrita como forma de resistência?


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[B.K.] As duas premissas da pergunta estão equivocadas. A repressão virulenta só atingiria o auge em 72-73, a partir da criação dos DOI-CODI, da Casa da Morte em Petrópolis e posse do general Médici no final de 1969. Procedimentos de sequestro, prisão, interrogatório, tortura e desaparecimento de ativistas passam então a ser operados fora da estrutura legal e em locais clandestinos. Quanto à luta armada contra a ditadura, ao escrevermos Pau de Arara Marighella já estava morto e Guevara havia sido executado dois anos antes. A luta armada – com a exceção da guerrilha do Araguaia, ainda em fase de incubação – já estava derrotada e suas principais ações eram defensivas, tais como sequestro de embaixadores para exigir libertação de presos políticos. Eu não tinha relação direta com organizações de luta armada nem era filiado a alguma organização clandestina, armada ou desarmada (embora tivesse nutrido, por algum tempo, simpatia pela Polop); o Ítalo, que eu saiba, nessa época também não. Eu estava me iniciando no jornalismo, que entendi como vocação e não mera ocupação, e foi com esse espírito de cumprir uma obrigação profissional que escrevi, com Ítalo, o Pau de Arara, assim como reportagens de denúncia de torturas, antes disso, na revista VEJA. O sentimento de estar cumprindo um dever profissional intransferível me conferia uma sensação de imunidade, embora, na situação de então, tudo podia acontecer. Por esse motivo optamos por não assinar os originais. Ítalo já se iniciara no jornalismo um par de anos antes. [W.D.] Como você avalia o trabalho de jornalistas e escritores, na época, na resistência à ditadura? [B.K.] Houve resistência ampla e generalizada por parte dos setores pensantes, intelectuais, artistas, jornalistas, chargistas, escritores e acadêmicos, excetuando-se os economistas convencionais, eternos adoradores do livre mercado. [W.D.] No livro, analisando as perspectivas em 1970, vocês afirmam: “No domínio artístico, impõe-se o puritanismo estreito dos regimes fascistas, embora continuem intocáveis as empresas que geram e alimentam a pornografia” (p. 137). Você considera que a arte, especialmente a literatura, foi capaz de resistir, no período, à imposição do puritanismo e à violência da repressão? De que forma isso aconteceu? [B.K.] A arte libertária esperneou bastante, mas não resistiu à censura, que fez estragos nos roteiros de filmes e originais de teatro muito mais danosos do que se pensava – mostram documentos recém-liberados. A literatura, por ser menos suscetível à censura, nos deu belas obras, como Quarup [de Antonio Callado], A hora dos ruminantes [de José J. Veiga], Incidente em Antares [de Erico Verissimo], entre outras.


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[W.D.] Sua obra literária mais conhecida é K: relato de uma busca, de 2011, em que você trata ficcionalmente da história real do desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa Kucinski, vítima da violência do estado de exceção. Ana Rosa foi sequestrada, torturada e assassinada pelos agentes da ditadura em 1974, poucos anos depois da produção de Pau de arara. Enquanto vocês preparavam a denúncia internacional da ditadura, você já conhecia as atividades de militância de sua irmã? E você já considerava a possibilidade de a repressão agir tão diretamente sobre a vida de sua família? [B.K.] Não. Deu-se aí um equívoco trágico. Minha irmã me alertava contra os riscos que eu corria por arrostar a ditadura, em especial nos textos de Opinião, ao passo que era ela quem corria grandes riscos e sem que eu disso soubesse, pois ignorava sua militância na ALN. [W.D.] O pau de arara, instrumento de tortura escolhido para intitular o livro de 1970, reaparece frequentemente em sua obra literária posterior a 2011. Lembro especialmente o conto “A instalação”, que integra o volume Você vai voltar pra mim e outros contos, de 2014. Nesse conto, uma mulher, que havia sido torturada pela ditadura, visita a casa de uma prima até então desconhecida e lá encontra uma curiosa peça de madeira usada como suporte para cachos de banana. A prima explica que esse vergalhão é, na verdade, um pau de arara deixado por seu marido falecido, um policial aposentado. O encontro assombroso faz a mulher reviver o trauma da tortura. Para você, o que o pau de arara simboliza, tanto na denúncia contemporânea à ditadura quanto na sua obra ficcional desta última década? [B.K.] Os regimes e situações cruéis valem-se de práticas singulares que acabam se tornando símbolos do todo. O símbolo do estalinismo é o Gulag, o símbolo das atrocidades americanas no Vietnam é a Napalm, o símbolo do genocídio nazista é Auschwitz, o símbolo do franquismo é o garrote vil. Você enuncia a palavra e está tudo dito, um universo inteiro de crueldades. O símbolo da repressão na ditadura brasileira é o pau de arara. [W.D.] Na introdução de Pau de arara, vocês afirmam que “a violência é a marca mais profunda da história política brasileira” (p. 17), e que “os tempos modernos não amenizaram a violência no Brasil, ao contrário, aperfeiçoaram-na” (p. 18). Você manteria essa afirmação ainda hoje, a respeito do nosso tempo atual, 50 anos depois da publicação desse livro? [B.K.] Reafirmo com ainda mais convicção. Tornaram-se em “novo normal” as cente-


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nas de estupros, feminicídios e assassinatos de jovens negros pela polícia, as seguidas execuções de lideranças populares do campo. Contra esse pano de fundo, de uma violência quotidiana, cultural mesmo, há os surtos de violência explosiva – as chacinas: Candelária, Eldorado dos Carajás, Carandiru. [W.D.] A tortura continuou a ser praticada no Brasil mesmo depois do fim da ditadura, nas delegacias e presídios, como noticiam frequentemente os jornais e as instituições de defesa dos direitos humanos. Você teme que ela volte a ser adotada como meio sistemático de controle político, como ocorreu durante a ditadura? [B.K.] Não. A tortura servia para extrair rapidamente nomes, endereços e “pontos”. Hoje ela é desnecessária mesmo num novo regime de controle político. O que eu temo neste ano dois da tragicomédia bolsonarista é um Incêndio do Reichstag, seguido de expurgos ideológicos no serviço público e ondas de prisões, pontilhadas por relatos de presos que morreram em “troca de tiros”. [W.D.] Hoje, como você vê a resistência aos projetos autoritários bolsonaristas? A literatura está sendo uma forma eficaz de resistência? [B.K.] Sim e não. Sim, porque estamos tendo muita literatura engajada oriunda de minorias oprimidas – negros, mulheres, sem-teto, gays. É um processo de realimentação em que essa literatura fomenta o ativismo que, por sua vez, gera mais literatura. Não, porque o universo da literatura maior tem sido o indivíduo e não o social. [W.D.] Assistimos diariamente a uma disputa de memória, em que narrativas negacionistas, que hoje geralmente convergem no bolsonarismo, não só tentam apagar as marcas da violência ditatorial, como também louvam o período da ditadura. A literatura pode contribuir na luta pela manutenção da memória viva e verdadeira do passado? Como ela pode fazer isso? [B.K.] Obviamente que pode. A memória é a matéria prima da literatura. Até mesmo uma observação momentânea se incorpora à literatura como memória. A sensibilidade, a inspiração, o talento e a visão de mundo são ferramentas com as quais o escritor e o poeta fazem da memória narrativa literária. Literatura é, essencialmente, uma manifestação artística da memória. Entretanto a literatura maior não tem compromissos com disputas de narrativas, mesmo porque a narrativa literária, por ser invenção e imaginação, é única e verdadeira. [W.D.] O que você considera uma “literatura maior”?


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[B.K.] Penso que foi Derrida quem cunhou o conceito de literatura menor como aquela em que predominam temas da política contingente. Por dedução, chamo de literatura maior aquela em que predominam temas universais da condição humana. [W.D] E como a narrativa literária pode ser “invenção e imaginação”, e, ao mesmo tempo, “única e verdadeira”? [B.K.] Talvez se deva reservar a palavra narrativa para designar relatos com pretensões de verdade, sendo que não passam de construções que se pretendem verdadeiras – daí a expressão conflito de narrativas. A invenção literária, fruto da imaginação humana, por não ter essa pretensão, é intrinsecamente verdadeira. [W.D.] Para concluir: Pau de arara foi o primeiro livro que você escreveu. Somente muito tempo depois você revelou seu talento como escritor de literatura, tendo produzido romances e contos premiados e amplamente discutidos pela crítica literária. Muitos temas de que você trata na ficção já aparecem em Pau de arara. Você considera que o escritor de literatura de hoje já se mostrava no autor do livro-denúncia de 1970? [B.K.] Não. Nada do que eu escrevi antes era ficção, ou indicava essa possibilidade. E nunca me ocorreu virar escritor. [W.D.] Há mais algum aspecto de Pau de arara, não contemplado acima, que você gostaria de comentar? [B.K.] O fato de Pau de Arara somente ter sido publicado no Brasil três décadas depois do fim da ditadura. Referências Bibliográficas KUCINSKI, Bernardo. O fim da ditadura militar. São Paulo: Contexto, 2001. ______ Jornalismo econômico. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2007. ______ K: relato de uma busca. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012. ______ Pau de arara: a violência militar no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013. ______ Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014. ______ Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2018. ______ Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo: Alameda. 2020.


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MODERNISTAS TROPICALISTAS OU: NEM POR ISSO O PÃO FICOU MAIS BARATO NINA NUSSENZWEIG HOTIMSKY 1

Resumo

Abstract

Este artigo analisa o espetáculo A Semana, encenado em São Paulo em 1972, a partir de pesquisa documental, exame da fortuna crítica e entrevistas com atores. A produção do Teatro São Pedro reunia artistas expulsos de outros espaços devido à perseguição política e à crise financeira. Procura-se analisar as condições de produção da obra e conteúdos por ela veiculados, com ênfase na comparação entre Modernismo e Tropicália e no debate sobre o papel social da arte no Brasil. Enquanto o Regime Civil-Militar comemorava o cinquentenário da Semana de Arte Moderna neutralizando qualquer polêmica, a peça retratava transgressões estéticas e comportamentais operadas pelos modernistas, mas também seus limites políticos e históricos.

This paper analyzes the play A Semana staged in Sao Paulo in 1972, based on documentary research, theatrical criticism, and interviews with actors. Sao Pedro Theater´s production brought together artists that had been expelled from other spaces due to political persecution and to the financial crisis. The conditions of production of this work of art and it´s contents, particularly the comparison between Tropicalism and Modernism and the debate concerning the social role of art in Brazil, are discussed. While the dictatorship commemorated the 50th anniversary of Modern Art Week, neutralizing any polemic concerning this event, the play portrayed esthetic and behavioral modernists transgressions as well as their political and historical limits.

Palabras chave: Teatro brasileiro; São Pedro Produções Artísticas; encenação; Tropicália; Semana de Arte Moderna.

Keywords: Brazilian Theater; Sao Pedro Artistic Productions; Staging; Tropicalism; Modern Art Week.

Doutoranda em Artes Cênicas na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre em Artes Cênicas pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (2019). Universidade de São Paulo. email: nhnina@gmail.com 1


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O espetáculo A Semana – esses intrépidos rapazes e sua maravilhosa semana de arte moderna estreou em 1972, na cidade de São Paulo, Brasil. Como o título sugere, a peça tratava da Semana de Arte Moderna de 1922, evento que foi um marco da modernização da arte brasileira, ocorrido cinquenta anos antes. A dramaturgia de Carlos Queiroz Telles (1936 – 1993) foi encomendada pela São Pedro Produções Artísticas, produtora de Maurício Segall (1926 – 2017) que à época arrendava o Teatro São Pedro (localizado na região central da cidade), e acolhia artistas expulsos de outros espaços devido à perseguição política e à crise financeira. A produtora se manteve em atividade entre 1969 e 1975, após a promulgação do Ato Institucional número 5 – período especialmente violento do Regime Civil-Militar brasileiro. Nesse período a censura foi intensificada; a crise econômica e a crise de público assolavam a produção teatral, e as práticas repressivas do governo atingiam alguns dos grandes artistas teatrais em atividade. Para o crítico teatral Décio de Almeida Prado, “com o desaparecimento quase simultâneo do Teatro de Arena e do Teatro Oficina, ocorrido por volta de 1972, terminava um ciclo histórico” (PRADO, 2009, p. 119). Essas duas companhias teatrais, modelos que nortearam toda uma geração, foram esfaceladas. Augusto Boal e Zé Celso (que à época dirigiam, respectivamente, o Arena e o Oficina) sofreram prisões e tortura, e foram obrigados a deixar o país2. Era nesse contexto violento que Maurício Segall buscava dar continuidade à realização de um teatro que fosse ao mesmo tempo profissional e politizado. A ficha técnica do espetáculo A Semana, que será analisado aqui, reunia artistas egressos do Teatro Oficina, como o encenador Fernando Peixoto (1937 – 2012), o cenógrafo Helio Eichbauer (1941 – 2018) e o dramaturgo Carlos Queiroz Telles; e atores que acompanharam o fim do Teatro de Arena, e formaram o Teatro do Núcleo – Celso Frateschi (1952), Edson Santana (1948), Denise Del Vecchio (1951), Dulce Muniz (1947). Por que aquela equipe de teatristas politizados estava interessada em discutir a Semana de Arte Moderna? Um texto no programa do espetáculo justificava: Por dois motivos o São Pedro não poderia estar ausente das comemorações do Cinquentenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Inicialmente por ter sido inaugurado em 1917, mesmo ano em que se realizou a exposição de Anita Malfatti que Monteiro Lobato tornou célebre e transformou em acontecimento renovador como reação a seu excesso de zelo conservador (...). Em segundo lugar porque, por coincidência histórica, atualmente o mesmo São Pedro pertence a um Segall, filho do artista plástico Lasar Segall que em 1913 (...) realizava o que Mário de Andrade denominou “as primeiras exposições de Arte não acadêmicas no país”3.

A história do edifício teatral e o parentesco entre o produtor do teatro e o pintor Lasar Segall não tornavam a obra um puro elogio ao modernismo no Brasil. O


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cartaz de divulgação da peça convidava os espectadores para a “comemoração menos comemorativa do ano”4. Uma rubrica no início da dramaturgia alertava: “É preciso ficar bem claro no espetáculo, que o mesmo não visa “homenagear” os participantes da Semana, mas sim, na medida do possível, apresentar uma visão ao mesmo tempo histórica e crítica dos acontecimentos” (TELLES, 1972, p. 2). A preocupação em diferenciar a peça de uma homenagem está ligada ao seu contexto histórico. O Regime Civil-Militar tinha como uma de suas estratégias ideológicas festejar datas cívicas, afirmando um tipo de nacionalismo reacionário nos costumes e avesso a qualquer forma de questionamento. O slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o” é um marco do período. Em 1972 o Regime comemorava o Sesquiscentenário da Independência do Brasil e o Cinquentenário da Semana de Arte Moderna. O aniversário da Independência gerou por parte do Estado uma campanha propagandística em torno da figura de Dom Pedro I. Em uma moeda comemorativa lançada em 1972, o Imperador figurava ao lado do Presidente Médici – aproximação que glorificava supostos grandes líderes e apagava suas especificidades históricas, silenciando contradições. O dramaturgo Telles era também publicitário, o que o tornava bastante atento aos discursos oficiais veiculados pelos militares. Em resposta a essa campanha, escreveu a peça Frei Caneca. Ela foi escrita para ser encenada no Teatro São Pedro em setembro, mês do aniversário da Independência. Enquanto a Ditadura Civil-Militar homenageava o Imperador, o São Pedro narrava a história de um herói que questionou os seus gestos autoritários, e morreu como mártir defendendo uma República brasileira. Foi após escrever Frei Caneca que Telles recebeu a encomenda de produzir A Semana – que estrearia no São Pedro meses antes, em maio. A dupla de peças tinha em comum a intenção de responder criticamente aos discursos propagandísticos oficiais. Ambas foram criadas a partir de uma pesquisa documental; Telles defendia que “se é para fazer peça histórica você tem que ter o rigor científico” (TELLES apud GUERRA, 1993, p. 121). Entretanto, as opções estéticas das duas dramaturgias eram bastante diferentes. Frei Caneca retratava um herói que lutou pela libertação do povo brasileiro. De certa maneira a peça dava continuidade a procedimentos dramatúrgicos adotados pelos musicais do Arena produzidos na década anterior - Arena conta Zumbi, Arena conta Tiradentes. Já A Semana era uma colagem irônica, na qual o dramaturgo (em suas próprias palavras) precisou assumir o humor e o escracho (TELLES apud GUERRA, 1993, p. 133). Frei Caneca foi escrita para ser encenada na sala principal do Teatro São Pedro, com capacidade para 700 espectadores, em um palco italiano que comportava cenários grandiosos. A Semana foi desde o início pensada para o Studio São Pedro – uma sala para 200 espectadores, com um espaço teatral adaptável para diferentes disposições entre palco e plateia, que comportava montagens mais experimentais5.


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A dramaturgia de A Semana não foi publicada, mas há uma cópia mimeografada disponível na biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). É difícil precisar em que medida o texto foi modificado durante o processo de encenação e a temporada da peça. O próprio autor assume que “é um roteiro, eu não chamaria de uma peça, cujo mérito de realização final se deve indubitavelmente a duas pessoas: Fernando Peixoto e Helio Eichbauer. Foi realmente uma quase criação coletiva” (TELLES apud GUERRA, p. 133). A pesquisa documental realizada até aqui e duas entrevistas com atores que participaram da montagem (Celso Frateschi e Edson Santana) permitem afirmar que a versão mimeografada inclui alguns registros do processo de ensaios. O texto acompanha diversos personagens que participaram da Semana de Arte Moderna: artistas como Oswald de Andrade, Brecheret, Mário de Andrade, Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Anita Malfatti; e também figuras que ficaram mais responsáveis pela organização e patrocínio do evento, como Paulo Prado e Graça Aranha. Ele é baseado em textos produzidos pelos próprios artistas, por críticos e jornalistas. A peça passeia por diferentes tempos. Seu marco temporal inicial são as viagens de estudos da pintora Anita Malfatti à Europa e aos Estados Unidos, iniciadas em 1912, e que culminam em sua exposição de 1917 – ocasião na qual Monteiro Lobato publica uma severa crítica ao seu trabalho. Diversas cenas mostram os encontros entre artistas nos anos anteriores a 1922, e o fervilhar de debates estéticos que resultou na Semana de Arte Moderna. Acompanhamos os preparativos para o evento, inclusive a sua base material: a necessidade de captar recursos com a elite cafeeira para custear o aluguel do Teatro Municipal, por exemplo. A cidade de São Paulo entra como personagem, através de um documentário com imagens da década de 1920, que é projetado em um telão. Mas a própria Semana não é encenada; a representação é interrompida logo após o discurso de abertura proferido por Graça Aranha. Um segundo marco temporal é o ano de 1942: a peça inclui um longo trecho da Conferência “O movimento modernista”, proferida por Mário de Andrade por ocasião dos vinte anos da Semana, no Itamaraty. Trata-se de um balanço crítico a respeito do papel histórico do modernismo no Brasil. Embora o texto não fosse proferido na íntegra, ele foi determinante para toda a concepção da peça (Sábato Magaldi afirmou em crítica da época que o espetáculo evolui, em grande parte, sob a perspectiva dessa Conferência), o que justifica uma rápida síntese. Mário de Andrade retrata o movimento modernista como uma ruptura destruidora com padrões artísticos e intelectuais vigentes no país anteriormente, e lhe atribui três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional (ANDRADE, 1942, p. 45). Ao mesmo tempo, aponta seu caráter aristocrático. Se a burguesia vaiou a Semana, a aristocracia tradicional deu mão forte aos artistas (p. 41), e viabilizou economicamen-


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te o evento. Mário retrata a si próprio e aos seus colegas com uma dose de ironia: “doutrinários, na ebriez de mil e uma teorias, salvando o Brasil, inventando o mundo, na verdade tudo consumíamos, e a nós mesmos, no cultivo amargo, quase delirante do prazer” (p. 42). E termina com um julgamento severo a respeito do movimento, esse sim reproduzido praticamente sem cortes ao final do espetáculo: Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. (...)6 Apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade. Se de alguma coisa pode valer o meu desgosto, a insatisfação que eu me causo; que os outros não sentem assim na beira do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se recusem a fazer arte, ciência, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões. Aos espiões nunca foi necessária essa ‘liberdade’, pela qual tanto se grita. Nos períodos de maior escravização do indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram de florescer. Será que a liberdade é uma bobagem? Será que o direito é uma bobagem? A vida humana é que é alguma coisa a mais que ciências, artes e profissões. E é nessa vida que a liberdade tem sentido, e o direito dos homens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que há de vir (ANDRADE apud TELLES, 1972, p. 66).

A Conferência de 1942 parece ter assumido, na visão dos artistas envolvidos com a montagem, um sentido de atualidade importante. Além de ser parcialmente reproduzida em cena, ela aparecia três vezes no programa do espetáculo. Uma primeira vez em uma página destinada apenas para ela – o trecho publicado foi o mesmo selecionado para a dramaturgia7. Na página vizinha constava o texto que justificava a participação do São Pedro nas comemorações da Semana (o que talvez ajudasse a relativizar o quanto havia para ser comemorado). O texto de Peixoto para o programa começava citando Mário de Andrade, para quem os modernistas “não devem servir de exemplo a ninguém, mas podem servir de lição: não ajudaram o amilhoramento político-social do homem [grifo presente no original]”8. O encenador explicita sua concordância com a dura avaliação. “Mário está certo: a atividade artística e intelectual só tem sentido quando participa da realidade socioeconômica do país, quando se insere num contexto real, quando auxilia os homens na transformação do mundo”9. Por fim, o mesmo excerto é citado pelo dramaturgo Telles para “concluir com sabedoria” seu comentário no programa. Ainda em termos de marcos temporais, participam da peça os últimos anos da década de 1960, através de canções e projeções de filmagens dos Festivais de Música


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Popular Brasileira10. Uma rubrica indica que as cenas selecionadas seriam “especialmente as que mostram vaias consagradoras: Sérgio Ricardo, Caetano Veloso, Chico Buarque (no FIC [Festival Internacional da Canção] em que venceu Sabiá), a apresentação de Disparada e outros” (TELLES, 1972, p. 52). As canções e eventos mencionados sugerem que seriam exibidas no documentário cenas de festivais ocorridos entre 1966 e 1968. A aproximação entre a Semana de Arte Moderna e os festivais está presente desde a rubrica inicial do texto, que indica: “O envolvimento dos espectadores deve ser feito pelos atores, do início ao fim da peça, sem agressão direta e através de um clima de ‘festival de música popular’, que deve predominar em tudo: decoração, trajes, cenário, música” (TELLES, 1972, p. 1). A recomendação por uma não agressão responde a um debate importante para o teatro brasileiro da década de 1960, travado com maior profundidade entre o encenador Zé Celso (por ocasião da encenação de Roda Viva, em 1968, e de uma entrevista a Tite de Lemos) e o crítico teatral Anatol Rosenfeld (que escreveu o texto O teatro agressivo). Não será possível aprofundar esse debate nos limites deste artigo, mas ele já indica uma crítica a certos traços da Tropicália11 no teatro. Havia ainda uma alusão a um evento teatral de 1967. Em dado momento do espetáculo, o coro de atores (que interagia diretamente com os espectadores) lhes perguntava se assistiram O Rei da Vela – texto escrito por Oswald de Andrade em 1933, mas que só foi encenado em 1967, e é considerado o marco inicial da Tropicália no teatro. Para o crítico Edélcio Mostaço, que era aluno de Peixoto à época, “a comemoração dos 50 anos da Semana de Arte Moderna serviu para fazer uma reavaliação do tropicalismo e o espetáculo fazia um contraponto, aqui e ali, à montagem de O Rei da Vela, da qual ele e Helio [Eichbauer] haviam participado” (MOSTAÇO, 2014). É curioso que a Tropicália no teatro parta de uma montagem de um texto escrito pelo modernista Oswald. O Rei da Vela é um dos eventos artísticos que concretiza a afirmação de Peixoto no programa de A Semana: “estamos todos unidos na certeza de sermos filhos da Semana”12. Por fim, entra em cena o próprio ano de 1972. Em primeiro lugar, pela relação direta entre o coro de atores e os espectadores. Diversas cenas aconteciam no espaço da plateia; essa interação direta convidava para a peça o tempo presente. O ano de 1972 também era representado através de um documentário produzido para o espetáculo. Nele, entrevistadores perguntam a pessoas que passavam pela rua São Bento, no centro de São Paulo: “Quem foi Mário de Andrade? O que acha da Arte Moderna? Já ouviu falar na Semana de Arte Moderna?” (TELLES, 1972, p. 13 - 16). Essas entrevistas revelaram o desconhecimento da população a respeito do evento. Houve quem perguntasse: “Semana de Arte Moderna? Quando é que vai ser?” (TELLES, 1972, p. 15). Em texto publicado no programa do espetáculo, o dramaturgo afirmou que esses


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depoimentos foram fundamentais para a produção do texto definitivo13. “Para quem achava que a semana já era, a informação esclarecia que a semana nem sequer tinha sido”14. A opção da equipe criativa passou a ser “mostrar a semana meio como tinha sido (um grande Happening art noveau) e meio como seria hoje (um festival internacional da canção - fase brasileira)”15. O procedimento evidenciado pelo dramaturgo de sobrepor 1922 e 1972 gera implicações críticas bastante interessantes. Modernistas Tropicalistas A aproximação entre o Movimento Modernista e a Tropicália (já apontada na menção à O Rei da Vela) era explícita, em textos e através de opções cênicas. O personagem Mário de Andrade explicava que na década de 1920 o termo “futurismo” era aplicado a “tudo e todos que não se enquadrassem nos padrões vigentes”16, e completava: o nosso Futurismo foi o avô da Tropicália - no conteúdo, nas desconfianças e nas vaias. De um dia para o outro estava nas ruas, na boca do povo, debatido, dialogado, brigado, servindo para rótulos, de qualquer coisa nova que aparecesse; um poema, um político, um filme, uma ideia, uma nova marca de sabão (TELLES, 1972, p. 53).

As vaias feitas aos Modernistas no Teatro Municipal eram aproximadas das vaias “consagradoras” (termo usado por Telles em rubrica já mencionada) presentes nos festivais musicais da década de 1960. Em uma cena de preparativos para a Semana, que começava com Villa-Lobos ao piano tocando acordes iniciais de Alegria, Alegria17, os personagens envolviam o público com perguntas e informações. Diziam: “Tem fila na bilheteria do Teatro! Vai dar certo! Está todo mundo contra nós! Que sorte! Já tem gente dizendo que nós não vamos conseguir abrir a boca! É sensacional! Vai ser uma vaia só! Até batatinhas e rabanetes vão levar para o Teatro! É a glória!” (p. 59). Na versão dramatúrgica disponível, uma rubrica indica que batatas e rabanetes seriam distribuídos para os espectadores de A Semana na entrada do teatro, pelas mãos do personagem Oswald de Andrade. Os atores entrevistados afirmaram que a proposta não foi mantida na encenação. De toda a forma, o gesto imaginado pelo dramaturgo reforçava a ideia de os próprios artistas incentivarem o escândalo em torno do evento. Também ativava uma memória recente associada à Tropicália. Em 1968, na final paulista do Festival Internacional da Canção, a plateia atirou “ovos, tomates e pedaços de madeira contra o palco”18 durante a execução da canção É proibido proibir19 por Caetano Veloso e os Mutantes. Os personagens envolvidos com a Semana também combinavam que, em caso de aplauso na primeira noite, amigos de confiança iriam puxar vaias. O escândalo


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causado pelos artistas de 1922 e de 1972 fazia parte da garantia de sucesso. O critério mercantil desse sucesso, sugerido na dramaturgia pela fila na bilheteria e pela menção a uma “nova marca de sabão”, provavelmente mirava nos problemas da produção artística na década de 1970. O crítico Roberto Schwarz aponta uma zona furta-cor entre cinismo apologético e crítica materialista presente nas atitudes do intelectual burguês de esquerda daquela época: “Vendeu-se, está criticando, ou vendeu-se criticando?” (SCHWARZ, 1992, p. 48). A alegria dos modernistas ao imaginar as vaias se aproxima da alegria de Caetano Veloso ao cantar que toma sua Coca-Cola20 (vista pelas esquerdas como um símbolo do imperialismo) em rede nacional, no III Festival de Música Popular Brasileira, de 1967. A canção Alegria Alegria ao mesmo tempo causava escândalo e expressava o desejo de participar do mundo da mercadoria21. Polêmica e boas vendas caminhavam juntas. A apresentação dessa canção causou escândalo não apenas pela letra, mas pela instrumentação (com a presença da guitarra elétrica, em um momento em que influências estéticas estadunidenses eram comumente associadas ao imperialismo), pela performance e pelos figurinos do cantor (que trocou o smoking utilizado pelos competidores do evento por um blazer xadrez e uma chamativa camisa de gola rolê laranja). O espetáculo A Semana também lançava mão de recursos sonoros, visuais e cênicos ligados à Tropicália. A comparação entre Modernismo e Tropicália não ficava circunscrita às falas dos personagens. Eichbauer projetou figurinos enormes, coloridos e desajeitados, o que fazia os atores parecerem menores e evidenciava a juventude dos personagens – como se a Semana houvesse sido uma grande brincadeira. Os figurinos também eram responsáveis por um dado de erotização bem-humorada, semelhante à trabalhada por Eichbauer em O Rei de Vela. Em uma cena amorosa entre Anita Malfatti e seu professor Homer Boss, definido pela personagem como uma “espécie de precursor dos hippies” (p. 23), o vestido da pintora ocupava o palco inteiro. Seu mestre (interpretado pelo entrevistado Edson Santana) vestia uma roupa de malha com um “pinto-pincel-rabo”22 que explicitava a sugestão sexual. Anita descrevia: “Que alegria! Era a festa das formas e a festa da cor. (...) Durante esses anos de estudo, pintara simplesmente por causa da cor. Devo confessar, não fora para iluminar a humanidade” (p. 24). Seu texto ecoa a avaliação posterior de Mário de Andrade sobre o cultivo do prazer feito pelos modernistas, embora talvez sem o tom de reprovação de Mário. No figurino de Boss, o pincel se confundia com o órgão sexual masculino; mesclavam-se a festa da produção artística e a festa dos encontros corporais. Anos mais tarde, já sob as influências da contracultura, a Tropicália voltava a investir na celebração dos prazeres da existência. Ainda segundo Santana, a cenografia incluía painéis que “achincalhavam” a bandeira do Brasil – em um deles, a bandeira brasileira se confundia com a dos Estados


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Unidos23. Sobrepunham-se os símbolos nacionais do país desenvolvido e poderoso e de um dos países subdesenvolvidos que lhe fornecia matéria prima e trabalho barato. O mercado mundial, afinal, era composto por essa coexistência. A incorporação do Brasil ao mundo moderno era feita na “qualidade de econômica e socialmente atrasado” (SCHWARZ, 1992, p. 77). A crítica ao imperialismo estadunidense operada pela cenografia era feita através de uma operação típica do tropicalismo: a justaposição de elementos arcaicos e modernos resultando em uma aberração melancólica, embora bem-humorada24. Também o programa do espetáculo era visualmente preenchido pela bandeira brasileira entortada e relida das mais diversas maneiras. Em algumas páginas as cores verde, amarelo e azul apareciam em formas curvas, sinuosas. Com alguma licença poética, a imagem da primeira página do programa assumia um aspecto fantasmagórico: a História do país assombrava mais do que seduzia. O fantasma verde e amarelo poderia se assemelhar à imagem do país produzida pela canção Tropicália. Para o compositor, “na minha canção eu descrevia um monstro” (VELOSO, 2004, p. 315). Em outra página, o texto do diretor era diagramado em formato de losango, e o numeral 50 (de “50 anos depois”) preenchia o círculo central que completava o desenho geométrico da bandeira. O título do texto era “Sou um tupi tangendo um alaúde”, citação à Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade, que reforçava o Brasil como tema. Justamente o tema que atravessava as criações de modernistas, tropicalistas, e também dos artistas teatrais de esquerda envolvidos com a montagem daquela peça. O personagem Monteiro Lobato aparecia em cena acompanhado de seu papagaio, e os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo carregavam uma gaiola com galinhas – as aves eram de verdade. Para o ator Celso Frateschi, o galinheiro ajudava a instaurar o clima de festa e algazarra que ligava o Tropicalismo ao “carnaval de 22”25. Também o cartaz do espetáculo e a capa do programa representavam papagaios verde e amarelos. A ave-símbolo nacional tem as cores da bandeira, mas não transmite grande dignidade patriótica. Trata-se de um animal que repete indiscriminadamente o que lhe dizem, mas não sabe falar por si mesmo: uma alegoria pronta de nossa condição culturalmente colonizada. A peça era permeada por uma atmosfera circense; segundo o crítico Magaldi (2014, p. 254), “o clima circense provoca o espectador e o convida a uma participação aberta”. Cinco anos antes, a encenação tropicalista de O Rei da Vela também se inspirara na estética do circo. O espaço cênico do Studio São Pedro foi utilizado na forma de “Palco-Sanduíche”, com plateia de ambos os lados. Mas as cenas não aconteciam apenas neste palco centralizado; a peça começava no hall do teatro e percorria suas escadarias. Boa parte das cenas ocorria nas plateias – vimos que os atores se relacionavam diretamente com os espectadores, como era comum nas encenações de Zé Celso.


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Rubricas indicam que Villa-Lobos deveria tocar guitarra. O instrumento contribuiria para fazer a ponte entre a postura antropofágica dos modernistas e a opção dos tropicalistas por sobrepor elementos nacionais e estrangeiros, arcaicos e modernos. Como observa Schwarz (2012, p. 102), “a antropofagia e o tropicalismo tinham como pressuposto o atraso nacional e o desejo de superá-lo”. Entretanto, para o autor, seus sentidos eram diferentes: enquanto para os modernistas essa perspectiva era cheia de promessas, os tropicalistas já lidavam com a derrota do avanço popular, testemunhando a “renovação da malformação antiga, que portanto não estava em vias de superação como se supunha” (p. 102). Em 1922 a proposta era a de engolir modelos culturais estrangeiros para fortalecer a cultura brasileira. Mas em 1972 Peixoto escrevia em seu texto para o programa: “Culturalmente, como no resto, continuamos colonizados”26. Os delírios de salvação do Brasil descritos por Mário de Andrade não resultaram. O país se modernizava, é verdade. Mas a desigualdade social violenta e a submissão a interesses econômicos estrangeiros não haviam mudado substancialmente em cinquenta anos. Nem por isso o pão ficou mais barato Perguntado em entrevista sobre a presença insistente da Conferência de Mário de Andrade, dita em cena e citada em três diferentes pontos do programa do espetáculo, o ator Celso Frateschi respondeu: “Mário era uma síntese sim. Quase um “Nem por isso o pão ficou mais barato”, do Brecht”27. Essa frase faz parte de A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo, escrita pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht em 1929. Curiosamente, a edição brasileira dessa peça foi traduzida pelo encenador Fernando Peixoto – que também dedicou um livro a estudar o autor: “Brecht – vida e obra”. Frateschi afirma que Peixoto era dos artistas brasileiros que mais tinha se aprofundado nas questões brechtianas, e que o encontro entre o Teatro do Núcleo e Peixoto no Teatro São Pedro foi muito rico para a formação daqueles jovens atores. Frateschi foi um dos artistas que chegou ao São Pedro junto ao Teatro do Núcleo. O grupo havia se formado em um curso oferecido pelo Teatro de Arena, e após o exílio de Augusto Boal ficou responsável pela sede da Companhia, até que a crise financeira precipitou o fechamento do Arena. Quando trabalhava com Boal, o Núcleo realizou as primeiras experiências do Teatro Jornal, que uniam arte e militância. O procedimento de encenar notícias reais dava vazão a críticas diretas a acontecimentos políticos. A repressão e a censura limitaram consideravelmente essa prática, que mesmo assim se espalhou pela cidade. Os membros do Núcleo passaram a coordenar grupos amadores de Teatro Jornal formados por militantes em universidades, igrejas e associações de bairros. Nesses contextos, a linguagem teatral era utilizada como recurso para fazer agitação política28.


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Já durante sua estadia no elenco estável do São Pedro, entre 1972 e 1974, os atores do Núcleo passaram a fazer apresentações nas periferias da cidade. A opção do grupo foi por uma arte ligada a movimentos sociais. Mesmo após a dissolução do Núcleo, Frateschi continuou suas pesquisas artísticas em torno de um teatro politizado, inspirado pelo teatro brechtiano. A importância de sua trajetória e o lugar de onde expressa seu ponto de vista justificam atenção à comparação que fez entre a Conferência de Mário e o texto de Brecht. As peças didáticas de Brecht foram escritas ente 1928 e 1930, durante a República de Weimar, antes da instalação do regime nazista na Alemanha. Esse foi um momento de intensa disputa política; grupos de operários e estudantes estavam organizados e lutavam por direitos sociais. O próprio dramaturgo, à época, entrara em contato com o marxismo. Sua opção foi por produzir obras que não se destinavam a alimentar o mercado artístico, mas sim a incitar a ação e a reflexão daqueles que coletivamente montassem suas peças. Nesse período a Alemanha contava com 14 mil corais de operários (PEIXOTO, 1974, p. 109) e diversos corais estudantis, que buscavam um repertório afinado com suas proposições. Brecht passou a produzir para esses grupos organizados: “os atores de seu teatro didático deveriam ensinar aprendendo e aprender ensinando” (PEIXOTO, 1974, p. 109). Ele também criou peças didáticas radiofônicas, vislumbrando a transformação do Rádio de aparelho de distribuição em aparelho de comunicação: “a tarefa é abalar a base social destes aparelhos, contestar a utilização dos mesmos nos interesses de uma minoria” (BRECHT apud PEIXOTO, 1974, p. 110). Refletindo sobre essas experiências, o filósofo Walter Benjamin escreveu: “Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho de produção sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista” (BENJAMIN, 1996, p. 127). A posição do intelectual e do artista na luta de classes não se resumiria a falar sobre as desigualdades sociais, mas também a socializar os meios de produção intelectual. Em A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo, quatro aviadores acidentados pedem ajuda a um coro. Eles clamam por água e por travesseiros. Os escombros de seu avião estão em cena – a queda acabou de ocorrer. Para decidir como agir em relação aos aviadores, o coro realiza inquéritos para saber se o homem ajuda o homem (“homem”, aqui, se refere à humanidade em geral, não especificamente ao gênero masculino). O primeiro inquérito descreve conquistas científicas e técnicas da humanidade: um de nós atravessou o mar, um de nós construiu uma máquina a vapor, muitos de nós descobriram grandes coisas. Ao que o Coro retruca: Nem por isso o pão ficou mais barato. / Pelo contrário, / A miséria aumentou em nossas cidades, / E já há muito tempo / Ninguém mais sabe o que é


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um homem. / Por exemplo: enquanto vocês voavam, rastejava / Pelo chão algo semelhante a vocês, / Não como um homem! (BRECHT, 2004, p. 194).

Neste primeiro momento a Multidão conclui que o homem não ajuda o homem. Mais adiante, a Multidão afirma que há um estado de coisas que gera a necessidade da ajuda; que ajuda e violência constituem um todo que é preciso transformar. O horizonte de transformação vislumbrado por Brecht, em última análise, é o da Revolução. A União Soviética estava geograficamente próxima, a Revolução Russa inspirava a possibilidade de novas revoluções. Peixoto (1974, p. 112) afirma que Baden Baden carrega uma “pedagogia materialista e francamente comunista”. A peça anuncia que para enfrentar a cruel realidade é necessária uma crueldade ainda maior, e a capacidade de desprender-se de tudo, inclusive da própria vida. O Narrador conta a história de um Pensador que se viu em uma tempestade. Ele abandonou seu carro, tirou seu casacão, deitou-se no chão, e sobreviveu à tempestade “reduzindo-se à sua menor dimensão” (BRECHT, 2004, p. 203). Um Aviador acidentado continua a proclamar seus grandes feitos, não suficientemente enaltecidos, e sua individualidade. Ele é Charles Nungesser, não voou por nada nem ninguém, voou por voar - e ninguém voou tão alto quanto ele. Mas seu rosto se extingue com seu cargo, e Charles morre, mesmo sem saber morrer. Os outros três (que passam a ser chamados de Três Mecânicos Acidentados) aceitam reduzir-se “à sua menor dimensão”. O coro então convida os Três Mecânicos Acidentados: “Nós os / Exortamos a marchar conosco. E, conosco / Transformar não somente / Uma das leis da Terra, mas sim / A lei fundamental (...) / Antes de tudo a desordem / Das classes sociais” (BRECHT, 2004, p. 211). Que o homem pudesse vencer a gravidade era digno de nota; mas de nada serviria essa conquista enquanto outros seres humanos continuassem rastejando pelo chão. Frente à miséria, o preço do pão era assunto mais urgente do que as grandes conquistas do Aviador. Nem por isso os Mecânicos deveriam abandonar seus conhecimentos e seu ofício. Pelo contrário, o Coro lhes pede para reconstruir o avião e aperfeiçoá-lo: “Mas não esqueçam o objetivo na pressa da partida” (BRECHT, 2004, p. 211). Uma técnica avançada deveria coincidir com o “amilhoramento político-social do homem”, como formula Mário de Andrade em sua Conferência de 1942. Talvez essa diretriz tenha escapado aos tropicalistas, ao menos em alguns momentos. Schwarz abre suas Notas sobre vanguarda e conformismo lembrando que “progresso técnico e conteúdo social reacionário podem andar juntos” (SCHWARZ, 1992, p. 43). A Tropicália produziu obras de arte formalmente poderosas, voou muito alto. E o fez sem ignorar a miséria brasileira, a existência de homens que rastejavam. Ao mesmo tempo, o lugar social da arte ocupado pelas obras tropicalistas é muito diferente daquele experimentado por Brecht em 1929, sonhado por Mário de Andrade


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em 1942 ou arriscado pelo Núcleo durante a repressiva década de 1970 (guardadas as diferenças entre as três formulações). Entre 1922 e 1972 houve sim um curto período no Brasil, antes e depois de 1964, em que “a invenção artística radical sintonizou com a hipótese da revolução e fez dela o seu critério. A ligação polêmica e o enriquecimento mútuo entre inovação estética, escolhas políticas e sociedade em movimento conferiam à vida cultural uma luz nova” (SCHWARZ, 2012, p. 56). Houve luta pelas reformas de base, fortalecimento de movimentos sociais, engajamento de artistas no Movimento de Cultura Popular e nos Centros Populares de Cultura. Mas a desilusão vivida após o golpe civil-militar “transformara-se em desobrigação. Esta a ruptura, salvo engano, que está na origem da nova liberdade trazida pelo tropicalismo” (SCHWARZ, 2012, p. 79). A imagem do Brasil produzida pela Tropicália era poderosa, mas fotografava o país do alto, como que de cima do avião do personagem Charles Nungesser. Dito com maior rigor: o efeito tropicalista é “indicativo de uma posição de classe” (SCHWARZ, 1992, p. 76). E Mário convocava os artistas a descerem de seus aviões e marcharem com as multidões; ou, como os Mecânicos de Brecht, a construir aviões com a finalidade de melhorar o mundo. Segundo a leitura de Schwarz, o efeito tropicalista é produzido pela sobreposição de contradições sem que se chegue a uma síntese. Esse procedimento corre o risco de produzir uma imagem congelada, imutável – o Brasil estaria condenado ao absurdo. É talvez para se diferenciar dessa postura que o espetáculo A Semana repisava com tanto vigor a síntese operada por Mário de Andrade. Para o ator Santana, a peça criticava inclusive os seus espectadores, ou a parcela deles formada por artistas e intelectuais de classe média. “Olha vocês aqui se divertindo, fazendo a tal revolução cultural, sendo ousados, sendo tropicalistas, mudando as coisas na superestrutura29, enquanto o povo está sendo asfixiado, perseguido e morto”30, resumiu. Mais uma vez a comparação entre a Conferência de Mário e a peça Baden Baden ganha significado. No momento em que produziu suas peças didáticas, o contato de Brecht com a teoria marxista fez com que desconfiasse da “ilusão de um desenvolvimento autônomo da arte”, e defendesse um teatro “que não apenas procure interpretar o mundo, mas sim que procure transformá-lo” (PEIXOTO, 1974, p. 109). Como os Mecânicos Acidentados, intelectuais e artistas de 1972 (inclusive os que se encontravam no palco e na plateia do São Pedro) teriam de reduzir-se à sua menor dimensão e marchar com as multidões. Mas as multidões marchavam, em 1972? Era tempo de repressão intensa, censura institucionalizada, tortura. Artistas envolvidos com a montagem, como o próprio Frateschi, a atriz Denise del Vecchio e o produtor Segall passaram por prisões no período. O tempo histórico limitava o lugar social possível para a arte. O próprio Brecht, após a ascensão do nazismo, teve de abandonar as experiências com as peças didáti-


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cas e fugir da Alemanha. No exílio, produziu um teatro épico-dialético poderoso, mas que precisou se circunscrever a um modelo mais tradicional de produção profissional de espetáculos. Frateschi fez mais uma observação interessante: A Semana fazia uma “crítica ao próprio tropicalismo, mas usava o tropicalismo”31. Ele contou que os membros do Núcleo achavam o texto frágil, um pouco comemorativo. Viam pouco sentido na montagem, seu desejo artístico e político já estava apontado para um teatro militante feito nas periferias. Só houve paz na equipe de trabalho após a chegada dos cenários e figurinos de Eichbauer – justamente o elemento “muito tropicalista”32 da encenação. O próprio Peixoto, membro do Partido Comunista e estudioso de Brecht, escreveu no programa: “Só podemos hoje traduzir a Semana em termos de brincadeira e provocação. Sabendo que são armas circunstanciais, mas assim mesmo imprescindíveis na luta pela emancipação cultural nacional”33. Naquela conjuntura, a carnavalização tropicalista era uma arma possível. O pão não ficou mais barato, mas a peça ficou mais potente. Sua crítica, o debate sobre o lugar social da arte no Brasil, foram potencializados pelos recursos estéticos trabalhados pela Tropicália. Expressou-se a recusa às comemorações oficiais do Cinquentenário da Semana pela Ditadura Civil-Militar, que homenagearia os modernistas neutralizando qualquer crítica. A peça tornou-se uma festa. A vida ficou um pouco melhor. A preocupação dos artistas era não abandonar um horizonte mais largo de transformação, passada a circunstância da tempestade. Não queriam esquecer os objetivos do voo. Notas 2

Os exílios de Augusto Boal e Zé Celso ocorreram, respectivamente, em 1971 e 1974.

Programa do espetáculo: A Semana, Teatro São Pedro, 1972. Disponível no Arquivo Fernando Peixoto – CEDOC – Funarte. 3

Cartaz do espetáculo: A Semana, Teatro São Pedro, 1972. Disponível no Arquivo Fernando Peixoto – CEDOC – Funarte. 4

A São Pedro Produções Artísticas realizou uma reforma no antigo edifício do Teatro São Pedro, e inaugurou o Studio São Pedro em 1970. 5

Houve aqui um pequeno corte operado pela dramaturgia em relação ao texto original. O trecho suprimido foi este: “O homem atravessa uma fase integralmente política da humanidade. Nunca jamais ele foi tão “momentâneo” como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar pra depois” (ANDRADE, 1942, p. 79-80). Por hora só podemos especular o motivo do corte: é possível que ele tenha sido feito para encurtar uma cena bastante apoiada nas palavras – a fala de Mário vinha após a declamação de diversos poemas. Em suas notas sobre a dramaturgia, disponíveis no Arquivo Fernando Peixoto, o diretor chegou a sugerir: “acho que os textos não deveriam ser ditos; mas, cantados e falados, alternadamente” (PEIXOTO, 1972). É possível 6


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também que Telles pretendesse evitar maiores dificuldades com a Censura. 7

No programa constavam inclusive as três frases cortadas pela dramaturgia, mencionadas na nota anterior.

Programa do espetáculo: A Semana, Teatro São Pedro, 1972. Disponível no Arquivo Fernando Peixoto – CEDOC – Funarte. 8

Programa do espetáculo: A Semana, Teatro São Pedro, 1972. Disponível no Arquivo Fernando Peixoto – CEDOC – Funarte. 9

Os Festivais de Música Brasileira foram concursos de canções veiculados por emissoras de televisão entre 1965 e 1985. Eles conquistaram grande audiência e foram fundamentais para o crescimento da Indústria Fonográfica no país. Ao mesmo tempo, tiveram um papel importante na veiculação de canções de protesto, obras que questionavam o Regime Civil-Militar e a desigualdade social brasileira. 10

A Tropicália foi um movimento cultural brasileiro que marcou o final da década de 1960, e se expressou em diversas linguagens, como a música, o cinema, o teatro, as artes plásticas e a poesia. Artistas ligados a essa corrente mesclavam procedimentos artísticos de vanguarda, influências internacionais (inclusive ligadas à Indústria Cultural), e manifestações populares e tradicionais brasileiras. 11

Programa do espetáculo: A Semana, Teatro São Pedro, 1972. Disponível no Arquivo Fernando Peixoto – CEDOC – Funarte. 12

A menção a esse documentário nas rubricas mostra que a versão dramatúrgica disponível na biblioteca da ECA/USP já havia incorporado propostas geradas durante o processo coletivo de criação. Afinal, o depoimento de Telles relata a importância dessas entrevistas para superar as dificuldades apresentadas pela primeira versão da dramaturgia. 13

Programa do espetáculo: A Semana, Teatro São Pedro, 1972. Disponível no Arquivo Fernando Peixoto – CEDOC – Funarte. 14

Programa do espetáculo: A Semana, Teatro São Pedro, 1972. Disponível no Arquivo Fernando Peixoto – CEDOC – Funarte. 15

Nessa mesma fala, o personagem de Mário diz que o termo “futurismo” pode ser entendido ao ser comparado com outras palavras que vieram depois, “como Bossa Nova e Tropicalismo” (TELLES, 1972, p. 51). Mais adiante ele informa que “Mais do que a bossa-nova, o nosso futurismo foi avô da Tropicália” (p. 52). Embora a comparação com a Bossa Nova tenha um peso menor, é digno de nota que esse movimento da música popular brasileira também apareça. Seria preciso entender o adjetivo “futurista” como algo que rompe com tradições artísticas estabelecidas anteriormente. Em certa medida a Bossa Nova também representou um rompimento, embora menos polêmico do que o rompimento da Tropicália. 16

17

Canção de Caetano Veloso executada no III Festival de Música Popular Brasileira, de 1967.

Trecho da reportagem “É proibido proibir”. Disponível em: http://tropicalia.com.br/v1/site/internas/proibido.php . Acesso em: jul. 2020. 18

Em A Semana, a melodia de É proibido proibir fecharia uma sequência de músicas tocadas pelo personagem Villa-Lobos ao piano durante a projeção das cenas dos festivais. A sonoplastia, nesse momento, fazia a mesma 19


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passagem entre Bossa Nova e Tropicália já mencionada em nota anterior: “Villa-Lobos principia a tocar, em sequência, algumas das principais frases melódicas de músicas populares dos últimos anos, especialmente as que provocaram reações de público, nos festivais de televisão. Pode começar com Berimbau, Desafinado, passando depois da Bossa Nova para a Tropicália, terminando com É proibido proibir. O ‘coro’ vai se manifestando contra, durante a apresentação” (TELLES, 1972, p. 51). Fazemos referência ao verso da canção Alegria Alegria, de Caetano Veloso, citada musicalmente durante o espetáculo A Semana: “Eu tomo uma Coca-Cola / Ela pensa em casamento / E uma canção me consola”. 20

Os comentários a respeito da apresentação de Alegria Alegria no III Festival de Música Popular Brasileira baseiam-se em aula ministrada pelo Prof. Dr. Walter Garcia no dia 5 de maio de 2020, em sua disciplina “Introdução à Crítica da Canção Popular-Comercial Brasileira” (Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB-USP). 21

22

SANTANA, Edson. Entrevista sobre A Semana. Entrevistadora: Nina Hotimsky. São Paulo, mai. 2020.

23

SANTANA, Edson. Entrevista sobre A Semana. Entrevistadora: Nina Hotimsky. São Paulo, mai. 2020.

Agradeço a sugestão de Gustavo Assano para a análise desse aspecto da cenografia, com base no pensamento do crítico Roberto Schwarz. 24

FRATESCHI, Celso. Entrevista sobre o Teatro São Pedro. Entrevistadores: Ademir de Almeida e Nina Hotimsky. São Paulo: jun. 2020. 25

Programa do espetáculo: A Semana, Teatro São Pedro, 1972. Disponível no Arquivo Fernando Peixoto – CEDOC – Funarte. 26

FRATESCHI, Celso. Entrevista sobre o Teatro São Pedro. Entrevistadores: Ademir de Almeida e Nina Hotimsky. São Paulo: jun. 2020. 27

Essas informações foram cedidas pelo pesquisador Ademir de Almeida, que está realizando uma pesquisa de mestrado sobre o Teatro do Núcleo, a ser defendida na ECA/USP sob orientação do Prof. Dr. Sérgio Ricardo de Carvalho Santos. 28

Santana utiliza um conceito de Karl Marx. Peixoto (1974, p.108) o define, ao discutir as peças didáticas de Brecht: “O conjunto das relações econômicas constitui uma infra-estrutura social histórica, base sobre a qual se organiza uma superestrutura que compreende a religião a arte, a ética, a lei, a filosofia, a literatura. Esta superestrutura reflete a natureza econômica e social num determinado período histórico”. 29

30

SANTANA, Edson. Entrevista sobre A Semana. Entrevistadora: Nina Hotimsky. São Paulo, mai. 2020.

FRATESCHI, Celso. Entrevista sobre o Teatro São Pedro. Entrevistadores: Ademir de Almeida e Nina Hotimsky. São Paulo: jun. 2020. 31

FRATESCHI, Celso. Entrevista sobre o Teatro São Pedro. Entrevistadores: Ademir de Almeida e Nina Hotimsky. São Paulo: jun. 2020. 32

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Programa do espetáculo: A Semana, Teatro São Pedro, 1972. Disponível no Arquivo Fernando Peixoto – CE-

DOC – Funarte.


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FERREIRA GULLAR E PAULO EMÍLIO: NO COMPASSO DAS EXPECTATIVAS LORENZO TOZZI EVOLA1 VICTOR SANTOS VIGNERON2

Resumo

Abstract

A proposta deste artigo é realizar uma análise comparativa das trajetórias de Ferreira Gullar e Paulo Emílio Salles Gomes durante a década de 1960. Uma vez que se trata de intelectuais com pouco contato entre si, não se pretende buscar pontos de conexão direta. No entanto, o fato de ambos terem colocado como problema a superação do atraso do país no campo da cultura justifica a comparação. Assim, pretende-se cotejar os elementos de afastamento e aproximação em seus percursos, com vistas a contribuir para o enquadramento geral da intelectualidade brasileira ligada às esquerdas enquanto tema de pesquisa historiográfica, sobretudo quanto ao “horizonte de expectativas” ascendentes que persistiu até o Golpe de 1964, quando paulatinamente tal cenário passa a sofrer um processo de reversão.

This article proposes to accomplish a comparative analysis on the trajectories of Ferreira Gullar and Paulo Emílio Salles Gomes during the 1960s. As it regards two intellectuals with not much contact between them, the intent is not to seek for direct connection. However, the fact that both of them had chosen the problem of overcoming the country’s backwardness within the culture field justifies the comparison. Therefore, this article aims to collate the approximation and estrangement elements within their paths, in an attempt to contribute to the framework of the Brazilian intellectual landscape linked to the ‘lefts’ as a historiographical research subject, mostly in regards to its ascending ‘horizon of expectations’, which lasted until the 1964 coup d’état, when this process starts reverting.

Palabras chave: Ferreira Gullar; Paulo Emilio Salles Gomes; golpe civil-militar; crítica; cinema.

Keywords: Ferreira Gullar; Paulo Emilio Salles Gomes; civil-military coup; cinematography; criticism.

Graduado pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente desenvolve pesquisa de mestrado em História Social, também pela Universidade de São Paulo (USP). https://orcid.org/0000-0002-3089-870X; email: lorenzo.evola@usp.br 1

Formado em História pela Universidade de São Paulo, onde também realizou seu mestrado em História Social. Atualmente atua como professor na rede de ensino fundamental e desenvolve seu doutorado em História Social na USP. email: victor.jousselandiere@usp.br 2


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Introdução As trajetórias de Ferreira Gullar e Paulo Emílio Salles Gomes cruzaram-se brevemente em Brasília, no início dos anos 1960. Até onde se sabe, esse encontro ficou documentado numa única carta, escrita por Paulo Emílio em 28 de abril de 1961 (PE/ CA 0372). Nela, o curador-chefe da Cinemateca Brasileira submeteu à apreciação do então presidente da Fundação Cultural de Brasília (FCB) duas propostas: a criação de um centro de estudos cinematográficos e um projeto de combate ao “analfabetismo cinematográfico” na Escola Parque I. Ambas as iniciativas seriam incorporadas ao projeto, então em tramitação na Câmara dos Deputados, que previa a federalização da Cinemateca (SOUZA, 2002, p. 383-389). Ainda segundo a carta de 1961, Paulo Emílio e Ferreira Gullar já haviam discutido pessoalmente o tema, em presença de Francisco Luiz de Almeida Salles, presidente da Cinemateca. Tratava-se então de formalizar um acerto verbal e, implicitamente, de articular o apoio de Gullar ao projeto que tramitava no Legislativo, o qual consumia boa parte dos esforços de Paulo Emílio na época. No mesmo dia 28 de abril ele enviaria outra correspondência, a Cláudio Mello e Souza, também vinculado à FCB, dando conta dos projetos enviados a Gullar e da necessidade de incorporar os “jovens” que circulavam pela nova capital federal à causa da Cinemateca (PE/CA 0373). Pouco se sabe do encaminhamento dessas conversas, posto que boa parte dela, realizada pessoalmente, não deixou rastros. Mas poucos meses depois, com a interrupção do governo de Jânio Quadros, a equipe da FCB foi substituída, descontinuando-se o contato entre Paulo Emílio e Gullar. A alusão a esse encontro pontual de dois importantes intelectuais brasileiros num momento tão significativo de suas trajetórias não é gratuita. Ela nos remete a duas ordens de questões que gostaríamos de tratar no presente artigo. Em primeiro lugar, as tratativas de Paulo Emílio e Ferreira Gullar apontam para a complexidade do campo intelectual brasileiro dos anos 1960. No cruzamento entre o vaivém político e as trajetórias individuais, tiveram lugar articulações até hoje pouco conhecidas e trabalhadas pelos historiadores, o que atenua — mas não apaga — certas polaridades que se convenciona ressaltar quando se trata do período (RIDENTI, 2014; NAPOLITANO, 2017). Por outro lado, a ocasião serve para delinear os termos de uma análise diferencial, que toma certa distância em relação a uma alusão genérica à “semântica desenvolvimentista” que se espraiou entre os intelectuais dos anos 1960, atravessando suas diferenças. A convergência pontual de Paulo Emílio e Gullar sugere termos concretos para determinar o grau de especificação dos projetos de “desenvolvimento” ou de “superação do atraso” nas trajetórias em questão. Dotados de posições sociais e voltados para linguagens artísticas diversas (o cinema, a poesia e as artes plásticas),


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Paulo Emílio e Gullar construíram, ao longo dos anos 1960, formas alternativas de intervenção no espaço público. Diferenças essas que se tornaram mais salientes após o Golpe de 1964 e o advento do Regime Militar. Considerando essas questões, a proposta deste artigo é apresentar um recorte dos percursos de Paulo Emílio e de Ferreira Gullar, com o intuito de estabelecer uma comparação entre eles. Espera-se com isso indicar as aproximações e diferenças entre dois intelectuais que se posicionaram no campo das “esquerdas”, de modo a contribuir para a compreensão do universo mais amplo da intelectualidade brasileira dos anos 1960. Para tanto, analisaremos a deambulação teórica e as intervenções públicas de ambos os intelectuais ao longo da década. Nosso parâmetro temporal é o aparecimento de obras que carregam a marca das idas e vindas desses autores: Cultura posta em questão (1965) e 70 anos de cinema brasileiro (1966). Antes de passar à análise é importante lembrar que a costura entre determinação social e liberdade autoral deve, de um ponto de vista histórico, tomar como elemento significativo o fato de ambas as obras se inserirem numa época de expectativas ascendentes. De certa forma, a carta de Paulo Emílio a Ferreira Gullar registra esse fato: “Brasília possui essa espécie de virgindade tão excitante para a imaginação e propícia às fabulosas fecundações” (PE/CA 0372)3. Contribuir para a compreensão das diferentes formulações criadas nesse contexto, bem como sua refuncionalização no momento de reversão de expectativas, advindo com o golpe civil-militar4, é um dos objetivos deste artigo. Ferreira Gullar, Cultura posta em questão (1965) O Golpe de 1964 é um tema recorrente nas entrevistas de Ferreira Gullar. Parte do constante retorno ao assunto se dá, certamente, pelo que representou tal acontecimento tanto para sua obra quanto para sua trajetória pessoal. Gullar estava com Cultura posta em questão, seu primeiro livro de ensaios, já impresso e aguardando o evento oficial de lançamento, agendado para o dia 6 de abril de 1964. Tal evento faria parte da inauguração do IV Festival de Cultura Popular, organizado pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da Guanabara (LAGO BURNETT, 1964), cujo presidente era o próprio Gullar. Em 1º de abril, entretanto, os tanques foram às ruas e deu-se o golpe: a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) no Rio de Janeiro — justamente onde estava armazenada a tiragem de Cultura posta em questão — foi incendiada, e logo em seguida a própria entidade seria extinta pelo novo governo, em conjunto com o CPCs de todo o Brasil. O trauma do golpe privou Gullar, quase que ao mesmo tempo, de seu espaço de atuação e de sua própria obra. Um relato do próprio Gullar sobre o ocorrido entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964 foi lançado em formato de livro digital pela Companhia das Letras


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no ano de 2014. Sob o título Antes do golpe, o curto documento se dedica, em maior parte, a uma contextualização histórica dos acontecimentos que levaram ao fim do governo de João Goulart. Nos últimos parágrafos, porém, o autor narra a sequência de eventos derradeira: as notícias confusas sobre a adesão das forças armadas à sublevação do general Olympio Mourão Filho desde Minas Gerais, qual a possibilidade de Jango manter o controle da situação etc. Ao tentar acessar a sede da UNE no dia 1º de abril, a constatação de que o golpe estava em marcha: No Rio, os golpistas ampliavam seu domínio e acabavam de ocupar o forte de Copacabana. Ainda assim, decidimos voltar para a UNE, conforme o combinado. Tomamos o carro, mas quando chegamos à praia do Flamengo, percebemos que algo estranho ocorria ali e seguimos caminho até a Cinelândia, que já estava ocupada por tropas do Exército e tanques de guerra. Decidimos voltar à UNE, mas ao nos aproximarmos percebemos que o trânsito estava muito lento. Foi quando nos demos conta de que um grupo de civis atacava a sede com coquetéis molotov. O pior é que nosso carro ficou parado em frente ao prédio e os agressores passavam junto a nós com as garrafas incendiadas e as lançavam, sem saber, felizmente, que naquele carro estava o presidente do CPC. Deu para eu ver que, no alto do prédio em chamas, alguns companheiros escapavam pelos fundos, pulando para os edifícios vizinhos. Finalmente, o trânsito voltou a fluir e pudemos nos afastar dali. (GULLAR, 2014)

Na segunda metade da década, diante da inviabilização de iniciativas anteriores, Gullar buscaria alternativas. Antes, porém, cabe recuperar alguns passos de sua trajetória, sem os quais a observação de seus rumos posteriores ficaria um tanto descontextualizada. Vamos a eles. O começo da década de 1960 marca um afastamento de Gullar em relação ao Neoconcretismo, vanguarda surgida no Rio de Janeiro que buscava separar-se, tanto a nível teórico quanto plástico, do Concretismo mais centrado em São Paulo. O núcleo neoconcretista orbitava em torno do crítico Mário Pedrosa — considerado por Gullar seu “mestre” (RIDENTI; GULLAR, 2012, p. 10) — e produziu duas exposições entre 1959 e 60, além de dois documentos indispensáveis para a História da Arte no Brasil: o “Manifesto neoconcreto” e a “Teoria do não-objeto”, ambos redigidos por Gullar. Em 1961, com a eleição de Jânio Quadros para a Presidência da República, cria-se o Conselho Nacional de Cultura, do qual Mário Pedrosa é escolhido secretário, juntamente com outros nomes5. É também criada a Fundação Cultural de Brasília, para a qual Gullar é escolhido presidente. A partir de sua atuação, tendo acesso à estrutura burocrática e a verbas para a promoção de atividades Brasil afora, alguns museus recebem recursos, bem como outros tipos de empreitadas culturais, associações etc. Em um dos encontros com membros do meio cultural para tentar viabilizar verbas,


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Gullar recebe Leon Hirszman, que participava da construção de um tal Centro Popular de Cultura no Rio de Janeiro. O projeto lhe desperta tanto interesse que em breve acabaria envolvendo-se pessoalmente com ele. Em 1962, após a renúncia de Jânio, Gullar volta a viver no Rio de Janeiro e mantém-se em contato constante com o CPC. Lá, conhece o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, que lhe solicita um poema em formato de cordel sobre a reforma agrária (BARCELLOS, 1994, p. 209-210), a partir do que Gullar escreveria João Boa-Morte: Cabra marcado para morrer6. Este seria o primeiro dos trabalhos que o poeta maranhense desenvolveria junto ao CPC, onde também se envolveria nas discussões internas sobre os rumos a serem tomados pelo grupo. Do contato com essas discussões, em especial sobre o conceito de “cultura popular”7, Gullar passaria a desenvolver suas próprias reflexões, em geral mais voltadas para sua aplicação prática em relação ao artista e ao “povo”, bem como a análises do momento cultural brasileiro. Parte dessas reflexões seria publicada na imprensa, em especial no Jornal do Brasil e na revista Senhor. Uma seleção desses textos, somada a alguns inéditos, foi escolhida para compor Cultura posta em questão. Originalmente, o livro seria o terceiro título de uma coleção que a UNE vinha desenvolvendo a partir de um novo projeto desenvolvido por eles: a Editora Universitária8. A partir dela, a UNE passaria a imprimir seus próprios panfletos, cordéis, atas de reuniões etc., bem como elaborar um projeto editorial e começar a produzir seus próprios livros9. Cultura posta em questão seria também, portanto, o primeiro livro oriundo da “parceria” entre UNE e CPC, já bastante frutífera em outras áreas, como a poesia de cordel, que já comentamos, e o teatro10. Em março de 1964, Gullar esteve em dois eventos para o lançamento de Cultura posta em questão, um deles em São Luís e o outro no Recife (JORNAL DO BRASIL, 1964). Ambos contaram, conforme relatos da imprensa, com a presença de lideranças da área cultural e, ao menos no caso recifense, com o próprio prefeito (FERREIRA, 1964). O evento seria o já comentado IV Festival de Cultura Popular, agendado para 6 de abril e nunca ocorrido11. Disso resulta que esta edição do livro se encontra num estado de publicação um tanto insólito: ainda que tenha sido impresso e circulado brevemente em eventos fechados, nunca esteve de fato à venda nas livrarias, em função da apreensão ou destruição da tiragem em decorrência do ataque à sede da UNE, anteriormente citado. Sobre as decorrências desses eventos, a coluna de Mauritônio Meira no Diário Carioca de 3 de junho de 1964 assim informa: O poeta Ferreira Gullar lançará, nos próximos dias, seu livro “A cultura posta em questão”, em segunda edição, desde que a primeira fora apreendida pela polícia da GB [Guanabara]. Cada exemplar terá uma indicação na capa com estes dizeres: “Primeira edição esgotada pela DOPS.” (MEIRA, 1964)


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Cabe notar: não apenas não houve outra versão do livro em 1964, como na que de fato foi impressa, já em 1965, não há nenhuma menção a uma edição anterior, seja na capa ou em outro local. Esta edição, agora pela Editora Civilização Brasileira, passa a ser, na prática — ao menos em termos de circulação comercial — a primeira. Com tiragem de, pelo menos, 3.000 exemplares12, é possível afirmar que Cultura posta em questão teve boa vendagem à época, uma vez que figurou na lista de mais vendidos de uma livraria carioca (OS MAIS, 1965) e recebeu uma série de comentários na imprensa. Ainda que curtos, tais comentários são em geral elogiosos à obra. É possível verificar que, se o golpe de 1964 atrasou a publicação de Cultura posta em questão, seu impacto quanto à viabilidade do que o livro propõe enquanto práxis é mais disperso. Isto é importante porque foi justamente contra iniciativas como as teorizadas e realizadas por organizações como o CPC e a UNE que o golpe e o novo governo ditatorial — nos âmbitos artístico e cultural — se orientaram13. O impacto sobre essas entidades foi imediato e simultâneo, porém seus membros, na medida do possível, buscaram prontamente novos espaços de atuação. A própria iniciativa de manter a publicação de Cultura posta em questão apesar da virada política no país é, por si só, um documento importante dessa busca por espaço — e, de certa forma, também o são os debates originados na imprensa a seu respeito. Uma breve resenha no Diário de Notícias do Rio Grande do Sul, de 8 de junho de 1965, assim o define: É um ensaio que equaciona os problemas da cultura nacional dentro do quadro geral dos problemas brasileiros e que deve ser lido necessariamente por todos os que estão empenhados na busca de soluções racionais para as grandes questões ora examinadas pelo ensaísta. (CULTURA, 1965, grifo nosso)

O resenhista não identificado considera os problemas levantados em Cultura posta em questão tão atuais e urgentes quanto o próprio Gullar argumenta no livro, ainda que parte da estrutura necessária para solucionar tais problemas já tivesse sido desmantelada. Este elemento é, inclusive, colocado em pauta de forma sutil na resenha de Thereza Cesário Alvim no Última Hora do Rio de Janeiro em 30 de março de 1965: “[após citar um trecho do livro] As linhas acima foram escritas em 1965. Se Ferreira Gullar publicou seu livro em março de 1965 e não lhe acrescentou nenhum apêndice, é porque seu ponto de vista não sofreu maiores alterações” (ALVIM, 1965). Entretanto, logo adiante, elogia o autor, por manter-se “indagando nesta ‘época de urgência’” e buscando uma “solução brasileira” para os problemas do país. Lago Burnett, na sua resenha publicada no Jornal do Brasil em 4 de abril de 1965, focaliza mais a trajetória de Gullar, “autêntico intérprete das aspirações populares”, cujo livro é “polêmico” porém “provoca o interesse pelo exame de um proble-


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ma que o descaso e a má-fé têm posto de lado”. Chamam a atenção tanto a falta de clareza sobre qual seria tal “problema”, bem como os motivos escolhidos para sua presença reduzida no debate público. Será apenas nos anos seguintes que a percepção sobre a viabilidade das ideias exploradas em Cultura posta em questão, dadas as condições do país, acabará sendo deixada de lado. Tema bastante explorado pela historiografia, o período entre 1964 e 1968 é de paulatina restrição de liberdades, em diversos âmbitos, culminando com a emissão do Ato Institucional nº 5 (AI-5) pelo governo militar, em 13 de dezembro de 1968, e sua aplicação subsequente (NAPOLITANO, 1964, p. 100). Quando olhamos para a recepção de Cultura posta em questão na imprensa nos meses após seu lançamento comercial, entendendo-a como parte da história do livro, passa a ser possível lê-lo como um documento em cuja áspera trajetória se encontram as cicatrizes de seu momento. Após o golpe, portanto, e sem a estrutura propiciada pelo CPC — do qual, a partir de 1962, Gullar se torna o presidente, permanecendo no cargo até o golpe —, seria necessário construir um novo espaço. Junto com outros artistas — muitos deles oriundos do próprio CPC (RIDENTI, 2014, p. 106) —, organizaria o espetáculo musical Opinião, a partir do qual o próprio coletivo acabaria sendo denominado “Grupo Opinião” (PARANHOS, 2012, p. 117-8) e passaria a desenvolver outros tipos de trabalho, em especial peças de teatro. Ainda que a política fosse um tema central nos espetáculos do grupo, tal qual ocorria no CPC, uma diferença fundamental é que, enquanto antes também se levava as produções às ruas — com teatro volante, venda de cordéis a preço de custo em locais de grande circulação (como estações de trem e praças) etc.14—, com o Opinião elas ocorriam em grandes teatros, pertencentes ao circuito comercial das artes. Essa diferença também se mostra com relação ao público, que passa a ser exclusivamente de classe média — o que motivaria parte das críticas posteriores feitas ao grupo15. Havia nos espetáculos promovidos pelo grupo, além da oposição à ditadura militar, um tom de continuidade das lutas pré-golpe, e portanto um sentimento de que essas pautas de alguma forma continuavam no horizonte político. Nas palavras de Gullar em 2012: O show teve uma enorme repercussão; era feito com habilidade, uma coisa engraçada, cheia de música [...]. Ninguém com compromisso político, com marca política nenhuma, mas o conteúdo do show, no meio das brincadeiras, era contra a ditadura, mesmo. No fundo, reafirmar o plano da reforma agrária, a luta de classes, contra a exploração. (RIDENTI; GULLAR, 2012, p. 26-27)


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A partir de 1965, o Opinião encenaria diversas peças e Gullar contribuiria com o texto de diversas delas, em geral em colaboração com outros membros do grupo. Dentre outros, são os casos de Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come (1967, com Vianna Filho), A saída? Onde fica a saída? (1968, com Antônio Carlos Fontoura e Armando Costa) e Dr. Getúlio, sua vida e sua glória (1968, com Dias Gomes)16. Sem avançar nos detalhes de cada texto, o que fica claro neste período, quanto à trajetória de Gullar, é que sua experiência com o Opinião faz com que alguns tópicos gerais do debate sobre cultura sejam recuperados enquanto temas de reflexão, de modo que sua produção crítica — cujo último capítulo fora Cultura posta em questão — seja retomada. Os textos dessa leva serão todos publicados na Revista Civilização Brasileira17 e posteriormente reunidos em um novo livro de ensaios, publicado em 1969 sob o título Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaios sobre arte. Nesse retorno à crítica, as questões envolvendo a “cultura popular”, o papel do “povo”, a aproximação do artista com este — temas pujantes em Cultura posta em questão, inseridos já nos primeiros capítulos — são deixadas em segundo plano, enquanto outras discussões presentes no livro de 1965 são recuperadas e analisadas sob novos prismas. Por exemplo, o caso da relação entre arte e política, que ressurge em Vanguarda e subdesenvolvimento ocupando toda a primeira parte do capítulo homônimo, numa abordagem de maior fôlego do que a executada em Cultura posta em questão. Além disso, já na introdução, aparece uma visão positiva, ainda que também crítica, em relação à produção do CPC (GULLAR, 2010, p. 174). Já a segunda parte do capítulo homônimo, porém, se dedica à definição de “vanguarda”, tema que não é debatido no livro de 1965 — por mais que o termo, em si, seja utilizado —, e retoma, na realidade, uma discussão dos tempos de Neoconcretismo. Um último elemento da trajetória de Gullar a ser levado em conta é a poesia. Foge às premissas do presente artigo uma análise específica desta produção, entretanto cabe uma pequena contextualização18. Com a realização do “Poema enterrado”, em 1959, dá-se por encerrada a “fase” concretista/neoconcretista da obra poética de Gullar. Seu retorno aos versos ocorre a partir de 1962, com o já citado João Boa-Morte, mas também com outros cordéis: Quem matou Aparecida? e A peleja de Zé Molesta com Tio Sam. Todos fazem parte do período com o CPC. À parte um último cordel — publicado sob pseudônimo em 1967 sob o título de História de um valente, e que conta a história dos últimos dias do dirigente comunista Gregório Bezerra —, após o golpe, Gullar passará a escrever alguns dos poemas que virão a compor o livro Dentro da noite veloz, publicado apenas em 1975 — com o autor já no exílio —, sendo o caso, por exemplo, do próprio poema que dá nome ao livro (CAMENIETZKI, 2006, p. 76). Mesmo vivenciando momentos muito distintos da história brasileira, tanto do ponto de vista político quanto do artístico-cultural, um elemento marcante da traje-


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tória de Gullar, ao menos até a decretação do AI-5 — quando Gullar é preso e poucos anos depois forçado a exilar-se —, é o seu envolvimento sempre combinado entre a prática e a discussão teórica. Nos anos 1950, teoria e prática da vanguarda artística, entre o “Manifesto neoconcreto” e o “Poema enterrado”. Na primeira metade dos anos 1960, teoria e prática da “vanguarda da cultura popular” (GULLAR, 1965, p. 6.), entre Cultura posta em questão e João Boa-Morte: Cabra marcado para morrer. E, na segunda metade da mesma década, teoria e prática do subdesenvolvimento na cultura e nas artes, entre Vanguarda e subdesenvolvimento e Dentro da noite veloz, além da produção dramatúrgica: Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. Paulo Emílio, 70 anos de cinema brasileiro (1966) É conhecida a marca deixada pelo Golpe de 1964 no cinema brasileiro. No momento em que apareciam obras mais contundentes em sua crítica social e política, como Vidas secas (1963, dir. Nelson Pereira dos Santos), Deus e o diabo na terra do sol (1964, dir. Glauber Rocha) e Maioria absoluta (1964, dir. Leon Hirszman), o campo cultural foi atalhado pela derrubada de João Goulart e pela perseguição à prática política que alimentava o chamado Cinema Novo19. Em alguns casos, a mudança de regime gerou dificuldades diretas à produção e circulação de filmes, como ocorreu com Os fuzis, dirigido por Ruy Guerra em 1963, mas exibido somente em 1965. Os cinemanovistas acusaram rapidamente o golpe sofrido, e já nesse mesmo ano um filme como O desafio (dir. Paulo César Saraceni), colocava em questão os limites da atuação dos cineastas de esquerda ou progressistas diante do golpe. Mas o Cinema Novo constitui apenas um dos elos que então compunham o campo cinematográfico no país. Também é conhecida a reação imediata de Paulo Emílio Salles Gomes ante o Golpe de 1964 (SOUZA, 2002, p. 417-431). Numa anotação pessoal produzida após o acontecimento, ele começa observando que “os fenômenos propriamente políticos não conseguem mais solicitar minha curiosidade” (PE/PI 0208). O texto está em linha com as decepções acumuladas sob os governos Jânio Quadros e João Goulart, quando viu baldados diversos esforços pela federalização das verbas da Cinemateca. A entidade entraria em depressão profunda nos anos seguintes, restringindo ao mínimo suas atividades. Diante disso, o texto é marcado pela constatação da indiferença do novo regime em relação ao cinema brasileiro, o que indicaria uma triste continuidade. Para exemplificar, Paulo Emílio nota que os dois mais importantes movimentos do cinema, a seu ver, não foram interrompidos pelo golpe. Por um lado, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Cinema se realizou, conforme previsto, logo depois da intervenção civil-militar; o próprio Paulo Emílio contribuiria com os trabalhos da CPI com um depoimento dado em maio de 196420. Por outro lado, ainda segundo o documento, mantinham-se as expectativas alimentadas desde 1962 em torno do Cinema Novo,


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que, de fato, canalizaria para si boa parte das atenções dos intelectuais brasileiros nos anos seguintes, com filmes como Terra em transe (1967, dir. Glauber Rocha) e Macunaíma (1969, dir. Joaquim Pedro de Andrade). Em suma, o golpe teria sido superficial, uma vez que não afetou o aspecto fundamental do cinema brasileiro, isto é, a indiferença da elite e do Estado em relação à produção nacional, que sequer conheceu uma repressão análoga àquela havida no teatro ou na televisão21. Esse documento, de datação relativamente imprecisa, fica contextualizado quando posto em perspectiva com uma carta enviada a Yolanda Leite, antiga funcionária da Cinemateca, em julho de 1964 (PE/CA 0441). Nela, Paulo Emílio reitera o caráter superficial do golpe, que indicaria melhor a fisionomia da modernização brasileira. A observação geral é complementada na carta por um elemento circunstancial que vai no mesmo sentido. O crítico indica ter ido ao casamento de Jean-Claude Bernardet e Lucila Ribeiro, ocasião de encontro com “jovens” impactados pelo golpe. A esse impacto, contudo, Paulo Emílio contrapõe a sensação de se sentir mais à vontade no convívio intelectual e político com figuras como Antonio Candido e Arnaldo Pedroso d’Horta22. Apesar desse distanciamento, consta nos registros dos Serviço Nacional de Informação, que Paulo Emílio pronunciou-se publicamente contrário ao golpe já em 1964 (BR DFANBSB V8 MIC, GNC AAA 77101850). A carta a Yolanda Leite faz referência ainda à situação da Universidade de Brasília, onde Paulo Emílio lecionava — um dos magros rendimentos de sua militância brasiliense no início da década23. A participação de Paulo Emílio na demissão coletiva de docentes da UnB é provavelmente o ponto decisivo da inflexão de sua posição a respeito do Regime Militar. Um pouco a contragosto — uma vez que tinha influência sobre o projeto de implantação do curso de Cinema naquela universidade —, Paulo Emílio participou do movimento que reagiu à perseguição política de docentes considerados subversivos. É eloquente a esse respeito a longa carta endereçada a Antonio Candido em 26 de dezembro de 1965, alguns meses após seu desligamento (PE/CA 0758). Nela, Paulo Emílio compara o acontecimento ao incêndio na Cinemateca, em 1957 — um dos episódios mais traumáticos de sua trajetória —, e relata de forma pormenorizada as diferentes formas de sabotagem que a UnB sofreu por parte dos órgãos do Estado, da sabotagem difusa dos órgãos militares à sabotagem organizada do Ministério da Educação. Assim, em 1965 Paulo Emílio se encontrava numa encruzilhada quanto à sua atuação na esfera pública. Ele, que paulatinamente abandonara a imprensa (seu último artigo no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo seria publicado justamente em 1965, mas sua presença já era escassa desde 1962) e que se distanciara do dia a dia da Cinemateca, via agora sua atuação na universidade restrita ao universo pouco compensador da Universidade de São Paulo (USP). Ali, a estrutura de poder já se encontrava sedimentada há décadas e a parca liberdade que restava era vigiada


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pelos órgãos de informação. Além disso, o Cinema não era uma área universitária com grande reconhecimento, o que explica em parte a institucionalização acadêmica tardia de Paulo Emílio em comparação com seus companheiros de geração, como Antonio Candido, Lourival Gomes Machado e Gilda de Mello e Souza (PONTES, 1998, p. 201-211). Essa situação precária possui reflexos em sua produção escrita. Por um lado, evidentemente, há uma redução acentuada na produção de artigos para jornais (Paulo Emílio só voltaria a ter uma coluna fixa, em 1968, n’A Gazeta; mas a coluna duraria poucos meses) e mesmo na produção de correspondências24. Por outro lado, o ano de 1966 é uma chave na compreensão da reorientação temática e formal da produção escrita de Paulo Emílio. Afinal, é nesse momento que o intelectual se vê absorvido em uma pesquisa mais ampla sobre a história do cinema brasileiro e, por outro lado, aprofunda sua experiência ficcional. Esses dois caminhos, aliás, encontravam-se entrelaçados. É bem verdade que a reflexão de Paulo Emílio sobre a história do cinema brasileiro remonta, como demonstrou Rafael Zanatto (2018), ao menos até 1949, quando de suas intervenções no Congresso de Roma da Federação Internacional de Arquivos de Filmes. Nas páginas do Suplemento Literário, entre 1956 e 1957, Paulo Emílio publicou ainda um conjunto de artigos dedicados a aspectos da história do cinema brasileiro, num momento em que trabalhava na Cinemateca em projetos de prospecção de materiais dispersos pelo país. Esse ciclo de artigos seria interrompido pelo já citado incêndio de 1957 e o fio dos estudos históricos publicados sobre o cinema brasileiro seria retomado de forma mais sistemática apenas em meados dos anos 196025. No ano de 1966, dois núcleos documentais apontam para esse movimento de aprofundamento na história do cinema brasileiro. Por um lado, em função de suas atividades docentes, Paulo Emílio elabora um conjunto de materiais que leva o título geral de “Os filmes na cidade”, que inclui notas, fichamentos e roteiros de aula (PE/PI 0488, 0489, 0490, 0491, 0492, 0493, 0494, 0495 e 0496)26. Esse material aponta para um aprofundamento na análise de camadas mais amplas da “cultura brasileira”, que remontam a uma formação histórica fortemente calcada no século XIX, e enfatiza a centralidade do âmbito extracinematográfico na pesquisa sobre os filmes brasileiros. Daí o estudo das várias manifestações culturais, populares ou de elite, que se desdobram numa compreensão do “tecido social” em que se instalou o cinema no país, ou melhor, em São Paulo e no Rio de Janeiro27. De certa forma, esse passo foi decisivo para a definição de uma abordagem mais ampla da chanchada e do gênero comédia de uma maneira geral, como elemento que se enraíza profundamente no contexto cultural, posição muito diversa daquela de início dos anos 1960, presente em textos como Uma situação colonial? (SALLES GOMES, 2016, 47-54; DOURADO, 2013, p. 184200).


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Paralelamente a essa produção mais articulada à sua atuação acadêmica individual, Paulo Emílio também se integrou a um projeto coletivo organizado por Antonio Candido no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, em 1966, o curso “O cangaço na realidade e na cultura brasileira”. Para esse evento, que abordava o tema do cangaço de múltiplas perspectivas, Paulo Emílio preparou a conferência “O universo fílmico do cangaço”, articulada a um amplo conjunto de materiais preparatórios, sobretudo anotações de filmes (PE/PI 0486). Esse curso foi fundamental por vários motivos, mas sobretudo pela análise da formalização, isto é, da vinculação formal de uma “realidade” (o cangaço) com um universo ficcional (os filmes de cangaço), marcado por constantes (a formação do cangaceiro por disputas de terra ou para vingar sua honra) e variáveis (os filmes paulistas eram mais favoráveis à polícia). Embora não se possa falar de uma “formação”, nos termos que Antonio Candido empregara o conceito na Formação da literatura brasileira, Paulo Emílio analisava um amplo escopo de filmes (que vai de Deus e o diabo na terra do sol a O Lamparina [1964, dir. Glauco Mirko Laurelli]) de modo a definir um “sistema comunicante” entre eles. De uma forma geral, portanto, Paulo Emílio elaborou em 1966 formulações significativas sobre dois dos principais gêneros cinematográficos brasileiros — a chanchada e os filmes de cangaço — através da interação entre formação sociocultural e formulação estético-temática28. Como já demonstrou Zanatto, o material “Os filmes na cidade” pode ser articulado à preparação de 70 anos de cinema brasileiro. O livro resulta de um convite para a elaboração de um álbum relativo à efeméride29, que contava com texto de Paulo Emílio, intitulado “Panorama do cinema brasileiro”, e fotografias retiradas do arquivo de Adhemar Gonzaga30. O “Panorama”, logo se vê pelo título, propunha uma abordagem mais globalizante para a história do cinema brasileiro que, ainda que passasse por sucessivas redefinições (ZANATTO, 2018, p. 467-517), forneceria uma estrutura de base para abordar o cinema nacional em Paulo Emílio até os anos 1970. Ao mesmo tempo, marcava um primeiro rendimento público de um aprofundamento historiográfico produzido num contexto de bloqueio a outras atividades, como a crítica31. O recuo na esfera pública mediada pela imprensa engendra, portanto, um campo discursivo com inédita sistematicidade no interior da obra de Paulo Emílio. Mas é interessante observar que essa nova trajetória em torno das pesquisas históricas vai de par com outra, menos conhecida na sua obra, que é a produção ficcional. Ora, se esse campo havia sido suprimido no início dos anos 1940, quando se deu sua opção pela crítica, ele retorna em 1962, com a produção do roteiro, não filmado, Dina do cavalo branco. Mas o ano de 1966, com a escrita de Capitu em parceria com Lygia Fagundes Telles, marca também aí uma virada fundamental. Pois não apenas Paulo Emílio começa a variar a temática e os instrumentos formais empregados, como também alinha uma forma de tematizar o tempo presente, com os deslocamentos impostos pelo


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regime de exceção. No caso de Capitu, isso se daria através da evocação alegórica do Segundo Império32. Note-se, pontualmente, a concatenação com o esforço temático de “Os filmes na cidade” em torno da compreensão desse período histórico; aliás, o próprio Machado de Assis aparece como objeto de análise nesse material. Ora, a produção subsequente de Paulo Emílio, inclusive nos anos 1970, seria marcada por uma aproximação e mesmo por uma indistinção em certos momentos, da esfera ficcional, da evocação pessoal e da pesquisa histórica. Isso ocorreria num momento de percepção cada vez mais aguda do bloqueio imposto pelo regime militar à sua atuação no espaço público. Nesse contexto, as “fabulosas fecundações”, expulsas até segunda ordem de Brasília, encontrariam terreno fértil numa imaginação cada vez mais determinada pela formação histórica do país e pela trajetória política de Paulo Emílio33. Conclusão Enquanto evento, o Golpe de 1964 deixou marcas muito evidentes nas trajetórias de Ferreira Gullar e Paulo Emílio. Mesmo sendo o caso de dois intelectuais que interagiram pouco entre si, a comparação entre eles levanta, simultaneamente, aspectos de aproximação e de afastamento. Em outras palavras, semelhanças e diferenças que, para aqueles interessados em conceber o “horizonte de expectativas” de determinado campo, compõem, ambas, material de grande potencial. Não se trata apenas, é claro, de constatar onde os autores aqui observados se “esbarram” e onde há pouco em comum, mas de verificar, sobretudo, de que forma isto ocorre, e precisamente o que os aproxima ou afasta, conforme o caso. Aos encontros: é explícita em ambas as trajetórias a restrição à atuação no espaço público, mesmo considerando as circunstâncias geográficas distintas em questão. No Rio de Janeiro, Gullar praticamente assiste à destruição de uma obra sua, junto com o local onde ficava o CPC, para poucos meses depois, somado a outros artistas, tentar reorganizar-se no Grupo Opinião; entre São Paulo e Brasília, Paulo Emílio constata paulatinamente o cerceamento (sentido como sabotagem silenciosa promovida pelas instituições do Estado) às suas atividades universitárias e, anos depois, na imprensa34, rearticulando suas formulações nas pesquisas históricas. É comum a ambos, também, ainda que em medidas distintas, o “horizonte de expectativas” ascendentes no pré-golpe: ainda que progressivamente calejado pelas frustrações em torno da Cinemateca, cuja situação se degradaria ao longo dos anos 1960, Paulo Emílio participou da criação do primeiro curso de Cinema numa universidade pública brasileira, com a possibilidade de pôr em prática problemáticas que havia levantado em seus textos publicados até então; Gullar, por sua vez, via na “cultura popular” o meio mais eficaz de levar consciência de classe ao “povo” Brasil afora, libertando o país de suas


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mazelas — imperialismo, carestia, oligarquias agrárias etc. — e abrindo caminho para um novo momento cultural do país. Quanto às diferenças, é possível dizer que o impacto do golpe, para além dos espaços de atuação dos autores em análise, é percebido com intensidades distintas da parte de Paulo Emílio e Gullar. No primeiro caso, há certo desinteresse inicial pelos acontecimentos políticos — mesmo estando o crítico paulista, um tanto paradoxalmente, não apenas vivendo em Brasília como atuando próximo à administração Jango35 —; embora tenha se pronunciado publicamente contra o golpe, a relativa indiferença dizia respeito a uma frustração já cristalizada ante as poucas ações do Governo Federal na área do cinema. No caso de Gullar, havia um sentimento profundo de envolvimento com os eventos políticos, mesmo sem uma atuação direta junto ao governo: como fica explícito em Cultura posta em questão, o cultural e o político caminham de mãos dadas, de modo que os intelectuais “estão conscientes da complexidade do fenômeno cultural e, por isso mesmo, sabem que só o trabalho contínuo e demorado poderá conduzir a resultados satisfatórios.” (GULLAR, 1965, p. 7) Outra diferença importante é que Gullar rapidamente consegue se recolocar no debate público, conforme mostra a “nova” edição do mesmo Cultura posta em questão cerca de um ano após sua destruição, além das já citadas contribuições para a Revista Civilização Brasileira, a partir de 1966, que viriam a compor Vanguarda e subdesenvolvimento; no caso de Paulo Emílio, o álbum 70 anos de cinema brasileiro não chega a marcar um retorno ao espaço público, que apenas se daria de uma maneira mais consistente a partir de 1968 e, sobretudo, nos anos 1970; da mesma maneira, suas aparições na imprensa, via O Estado de São Paulo, cessarão a partir de 1965, restando-lhe, inicialmente, o espaço um tanto restrito da USP36. Muitos dos elementos aqui citados se devem a fatores conjunturais, que perpassam as escolhas individuais dos sujeitos. Compõem as possibilidades de atuação as conexões com outros agentes do campo ou oriundas de relações pessoais, de trabalho ou familiares prévias, bem como os “círculos”37 que se formam a partir dessas mesmas conexões; além do alcance das organizações nas quais os agentes se envolvem, mesmo que suas atividades tenham sido interrompidas abruptamente. O fato de Gullar atuar dentro do CPC, uma organização em construção porém muito ativa — sem ignorar o período concretista/neoconcretista anterior —, é certamente um fator que contribui com os espaços que lhe seriam abertos posteriormente; ao passo que o vínculo de Paulo Emílio com a Cinemateca — muito mais comprometida, financeiramente e em termos de perspectivas futuras — lhe garantiu pouco espaço de atuação para além do campo cinematográfico; mesmo aí é marcada sua reticência em relação ao Cinema Novo, o que não deixou de gerar desencontros com alguns cineastas desse movimento (PINTO, 2008). Até março de 1964, como vimos, ambos os autores possuíam expectativas as-


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cendentes com relação ao futuro do país, ainda que, cada um à sua maneira, partissem, não apenas de experiências distintas, mas de temas cujos eixos não eram os mesmos. Sem dúvida, a questão do cinema era importante para Gullar, porém compunha parte do quadro geral do “fenômeno cultural”, ombro a ombro com a poesia, a arquitetura, o cordel e a canção, dentre outros; ao passo que, para Paulo Emílio, apesar da amplitude de seus interesses de que é testemunho sua biblioteca pessoal (MENDES, 2013, p. 107-135), seus esforços de erudição eram voltados para a compreensão do “tecido social” em que se situava o cinema brasileiro. É possível dizer que as semelhanças entre os dois, diante do processo de modernização do país, recaem sobre o fato de que tal processo pareceu, num dado momento, dar sinais de que rumaria para um real avanço das condições de vida das classes populares, de modo que fosse fundamental, a partir do desenvolvimento econômico, que também se desenvolvessem as condições para uma produção cultural correspondente. Paulo Emílio já havia percebido que haveria resistência a isso da parte da elite política, visão que seria reforçada pelo descaso das autoridades em relação ao problema da Cinemateca38; Gullar localizava as adversidades muito mais em “forças do atraso” externas ao governo, para cujo combate a produção de “cultura popular” — a orientar o “povo” sobre quem eram seus inimigos — constituía-se em arma fundamental. Em ambos os casos, rumamos para uma posição muito distante daquela assumida no início dos anos 1960, sob os auspícios da inauguração da nova capital do país. No entanto, é importante lembrar que as ambiguidades da modernização já haviam escaldado Paulo Emílio e Gullar, afastando-os, ainda antes de 1964, de uma confiança automática no processo de desenvolvimento do país. Apesar de toda expectativa em torno do caráter “fecundante” de Brasília, estavam no ar os sinais do desajuste que se aprofundariam nos anos seguintes. Coube a Gullar formular esse alerta: Essa incapacidade de manter-se conscientemente situado na realidade está evidente num fato acontecido em Brasília, em 1961, quando lá esteve o astronauta soviético Yuri Gagárin, que chegara num avião Iliuchin-18, turboélice. Momentos depois, quando o avião decolava na pista, uma nordestina que estava no aeroporto, descalça, de roupas imundas e rotas, mas que já vira chegar ali Boeings e Caravelles, exclamou: “Bolas, pensei que o russo vinha de foguete e ele vem num avião mixo desse!” (GULLAR, 2010, p. 38-39)

Após o Golpe de 1964, as expectativas se revertem, ainda que em ritmos distintos. Como demonstramos, para o caso de Gullar, a noção de que ainda havia espaço para, pelo menos, debater a “cultura popular” enquanto conceito perdura na imprensa até o final de 1965. A partir do ano seguinte, ao passo que sua atuação com o Grupo Opinião se intensifica, se não perdura mais o conceito, permanece um clima


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de resistência ao novo governo militar em parte das classes médias mais à esquerda, as quais, por sua vez, garantem excelentes públicos às apresentações. Trata-se, portanto, ao menos ao nível de proposta, local de apresentação e público, de um projeto já distinto do que fazia o CPC. O debate sobre o que passaria a ser a cultura no Brasil se encaminhava para um outro lugar. Paulo Emílio, por seu turno, se voltaria cada vez mais para a evocação de sua trajetória política (a militância de oposição ao Estado Novo39) e para o questionamento de sua posição social como dados reveladores de uma experiência pertinente para o momento de opressão política e social40. Mais que isso, a experimentação formal e o cuidado com a performance pública, sobretudo em seu viés polemista, são medidas práticas que darão o tom de seu engajamento na década de 1970. Notas A ideia de “fecundação”, aliás, já aparecera em artigos de Mário Pedrosa (talvez um intelectual-ponte entre Paulo Emílio e Ferreira Gullar), nos artigos escritos no fim dos anos 1950 em torno da construção de Brasília (PEDROSA, 1998, p. 389-404). 3

Utilizamos a expressão “civil-militar” (NAPOLITANO, 2014, p. 43-67). Ao longo do texto, passaremos a referir-nos apenas a “golpe”. 4

É possível dizer que o Conselho foi, na verdade, recriado, pois de certa forma já existia, ainda que num formato distinto (DUARTE, DUARTE, 2014). 5

Com base nesse cordel seria escolhido o nome do documentário de Eduardo Coutinho que começaria a ser filmado meses depois, ainda que finalizado apenas em 1984. 6

Para uma síntese bastante detalhada sobre este e outros conceitos em discussão, bem como as formas pelas quais esses conceitos adentraram o CPC, cf. GARCIA, 2004. 7

Os dois títulos desta coleção que o antecederam são: A questão da universidade, de Álvaro Vieira Pinto, e A questão da remessa de lucros, escrito a muitas mãos por Aristóteles Moura, Barbosa Lima Sobrinho, Francisco Mangabeira, Roland Corbisier e Sérgio Magalhães. Ambos ilustram bem a aproximação entre intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) com a UNE. 8

Para um detalhamento das discussões em torno da criação e operação da Editora Universitária da UNE, cf. EVOLA, 2019. 9

10

O artigo já citado (GARCIA, 2004) detalha esta aproximação já desde o seu título.

Possíveis exemplares remanescentes desta edição de Cultura posta em questão, portanto, devem ter sido obtidos em São Luís ou Recife. Até a presente data, apesar das buscas em ambas as cidades, não localizamos nenhum. 11

Não há registros do número exato da tiragem. Entretanto, sendo os exemplares numerados, dentre todos os que identificamos até o momento, foi localizado o de número 2.963, a partir do qual é possível presumir 12


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a quantidade citada. “Para os militares, a cultura era subsidiária de uma política de integração do território brasileiro, reforçando circuitos simbólicos de pertencimento e culto aos valores nacionais, ou melhor, nacionalistas. Nesse projeto, cabiam até alguns tipos de nacionalismo crítico, como o da esquerda comunista, desde que esvaziado da luta de classes.” (NAPOLITANO, 2014, p. 99, grifo nosso) 13

É importante, porém, fazer a ressalva de que as expectativas dos membros do CPC, com relação a seu futuro, eram bastante auspiciosas, envolvendo a expansão de muitas das atividades, além da criação de novos espaços de atuação. Um exemplo é o Teatro da UNE, situado no Rio de Janeiro e com inauguração prevista para o mesmo festival onde Cultura posta em questão seria oficialmente lançado. Para uma descrição das vendas de cordéis, cf. BARCELLOS, 1994, p. 450. 14

15

Cf. por exemplo SCHWARZ, 1978; HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 23-24; TINHORÃO, 1997, p. 86.

Cabe ressaltar que tanto a produção do grupo como as contribuições de Gullar adentraram a década seguinte. Para uma análise detalhada do envolvimento do poeta maranhense com o grupo, cf. PARANHOS, 2012. 16

Respectivamente, o capítulo “Problemas estéticos na sociedade de massas” é repartido entre os números 5 a 8 da revista (todos de 1966), enquanto “A obra aberta e a filosofia da práxis” consta nos números 21 e 22 (de 1968) 17

18

Para uma leitura especializada da obra poética de Gullar, cf. CAMENIETZKI, 2006.

Poucos anos depois do Golpe de 1964, a articulação entre Cinema Novo e o “janguismo” ou o “populismo” seria uma peça central na crítica de Bernardet aos diretores do período anterior ao golpe. Nesse contexto, a referência a Cultura posta em questão é central nas reflexões do crítico em Brasil em tempo de cinema, publicado originalmente em 1967 (BERNARDET, 2007, p. 47-64) 19

A CPI foi concebida para discutir os entraves ao desenvolvimento do cinema brasileiro e foi nesse sentido que se deu o depoimento de Paulo Emílio (SALLES GOMES, 2014, p. 106-139). 20

A respeito da situação dos diferentes campos artísticos logo após o Golpe de 1964, cf. NAPOLITANO, 2017, p. 59-98. Não é o caso de argumentar longamente, mas é importante tomar em conta que essa distância afirmada por Paulo Emílio em relação aos fenômenos políticos deve ser vista com certa cautela, pois é no início dos anos 1960 que ele inicia um processo de reaproximação com sua própria experiência política no Estado Novo, que teria um papel nada desprezível na construção de sua posição em torno do cinema brasileiro, sobretudo nos anos 1970. A esse respeito, remeto às considerações de Zulmira Ribeiro Tavares a respeito da célebre tese “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, de 1973 (BERNARDET ET. AL., 1980). 21

É conhecida a vinculação política entre Candido e Paulo Emílio, referida por aquele em mais de uma ocasião (CANDIDO, 1986; CANDIDO 1988). Sobre Arnaldo Pedroso d’Horta, Paulo Emílio escreveria um obituário em Argumento onde retoma certos elementos de sua convivência política (SALLES GOMES, 1986, p. 210-211). 22

A experiência da UnB pode ser abordada desde um ponto de vista curricular (na ênfase dada ao cinema brasileiro e na vinculação do problema cinematográfico com a problemática mais ampla da sociedade brasileira), mas também pela articulação junto à produção cinematográfica corrente (como os debates promovidos em torno de Vidas secas, ocorridos em novembro de 1964) e pela vinculação com a vida cultural de Brasília (com a realização da 1ª Semana do CInema Brasileiro, em novembro de 1965, que daria origem ao Festival de Bra23


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sília). As cartas endereçadas a Ferreira Gullar e Cláudio Mello e Souza, acima citadas, foram feitas no momento de maior produção epistolar de Paulo Emílio, no início dos anos 1960. Nesse momento, ele dispunha de uma estrutura material que facilitava essa produção, mas também a despersonalizava: as cartas eram escritas por um secretário, donde a profusão de duplicatas no arquivo pessoal de Paulo Emílio. 24

Há algumas exceções, como o artigo “Mauro e outros dois grandes”, de 1961, presente numa coletânea dedicada ao cinema brasileiro, publicada na Itália (SALLES GOMES, 2016, p. 236-243). 25

Esse material tem sido objeto de um conjunto de análises por parte de Rafael Zanatto, entre as quais uma encontra-se publicada (ZANATTO, 2020). 26

Um problema básico que já foi abordado por outros autores é o significado dessa “formação cultural brasileira” na obra de Paulo Emílio, manifesta em vários momentos e já analisada criticamente por Maurício Segall (2001, p. 269-284) e Carlos Guilherme Mota (2014, p. 156-164). 27

Importante lembrar, a respeito dessa interação, que Antonio Candido publicou Literatura e sociedade em 1965. O livro consta, nesta edição, na biblioteca de Paulo Emílio. 28

A rigor, a efeméride é duvidosa, uma vez que o surgimento do cinema brasileiro é um ponto pouco pacífico, seja por questões factuais, seja pelos pressupostos envolvidos (BERNARDET, 2008, p. 19-31). 29

O álbum não foi reeditado, mas o texto de Paulo Emílio apareceria, numa versão ampliada, em edições posteriores (SALLES GOMES, 1980; SALLES GOMES, 2016). É importante notar, contudo, que o álbum 70 anos de cinema brasileiro possui uma organização mais complexa, uma vez que o texto de Paulo Emílio convive com as fotografias organizadas e longamente comentadas por Adhemar Gonzaga (GONZAGA; SALLES GOMES, 1966). Esses comentários, por vezes, entram em tensão com o encaminhamento historiográfico dado no “Panorama”. 30

O caminho aberto pelo “Panorama” seria retomado frequentemente nos anos seguintes, em que Paulo Emílio publicaria “Pequeno cinema antigo” (1969), “Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte” (1972-74), “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” (1973), “O cinema brasileiro na década de 30” (1973) e “A expressão social nos filmes documentais no cinema mudo brasileiro” (1974). 31

Essa opção seria consciente por parte de Paulo César Saraceni (CP 1730), diretor que encomendou o roteiro e realizou sua adaptação cinematográfica, lançada em 1968 com o mesmo nome. 32

A trajetória aqui brevemente esboçada deve ser posta em perspectiva com outras constelações em que a obra de Paulo Emílio pode ser integrada, com proveito para a análise de suas diversas facetas. São instigantes, por exemplo, as reflexões de Maurício Cardoso e Leandro Saraiva (2020), em que, aliás, não falta a menção a Ferreira Gullar e seu livro Vanguarda e subdesenvolvimento (1969). 33

Com a interrupção de sua coluna n’A Gazeta, em 1968 e no Jornal da Tarde, em 1973, além da censura geral a Argumento, em 1974. 34

Além de atuar na UnB, Paulo Emílio participou da Caravana da Cultura (idealizada por Paschoal Carlos Magno, então secretário-geral do Conselho Nacional de Cultura) e chegou a ser convidado para trabalhar na Casa Civil da Presidência organizando os programas de TV para autoridades do governo. Por esse motivo, 35


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são relativamente numerosas suas correspondências da época com figuras como Darcy Ribeiro (ministro da educação e, depois, ministro-chefe da Casa Civil), Anísio Teixeira (reitor da UnB), além do já citado Paschoal Carlos Magno. É significativo notar que, embora tenha sido convidado por Alex Viany (CP 1527) para colaborar na Revista Civilização Brasileira, em 1966, Paulo Emílio não tenha contribuído com a publicação. 36

37

Adotamos o termo conforme a reflexão sobre o estudo de “grupos culturais” presente em WILLIAMS, 2011.

É possível acompanhar a formulação teórica desse descaso da elite dirigente, em cuja raiz estão os hábitos de consumo culturalmente construídos ao longo de décadas, em intervenções como “Uma situação colonial?” (1960), o depoimento na CPI do Cinema (1964) e “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” (1973). 38

Diga-se de passagem, um elemento fundamental a diferenciar Paulo Emílio e Ferreira Gullar é o dado geracional. O primeiro nasceu em 1916 e já era ativo na política paulistana em 1935, quando Gullar ainda era criança. 39

Nesse sentido, a produção ficcional de Paulo Emílio abandona rapidamente o tema da “cultura popular” (central no roteiro Dina do cavalo branco), volta-se para a elite em geral (os roteiros Capitu e Em memória de Helena [1967]), para centrar-se enfim na fração decadente da elite paulista (o roteiro Amar, verbo intransitivo [1969] e as novelas Três mulheres de três PPPês [1973-1977]). 40

Referências Arquivísticas Arquivo Nacional, Fundo Serviço Nacional de Informações: BR DFANBSB V8 MIC, GNC AAA 77101850. Cinemateca Brasileira, Arquivo Paulo Emílio Salles Gomes (PE): Correspondência Ativa (CA) 0372, 0373, 0441 e 0758; Correspondência Passiva (CP) 1527 e 1730; Produção Intelectual (PI) 0208, 0486, 0488, 0489, 0490, 0491, 0492, 0493, 0494, 0495 e 0496.

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Consiste na organização do arquivo e do acervo de uma associação clandestina associação brasileira de artistas independentes por sergio augusto medeiros inaugurada em 1978 no centro de Belo Horizonte (MG). Ancorado ao exercício de leitura, foi formado a partir de apro- Divisão administrativa ximações de procedimentos técnicos e associação brasileira de artistas independentes funcionais das áreas administrativas, cainstalação, livro de artista, tabela, organograma e múltiplos tegorizados como: coleta, tratamento, interpretação e análises dos documentos offset sobre papel oficial 75g (dobrado e blocado) da Associação. Durante o processo desse tiragem de 200 trabalho, foram realizadas explorações 2017-2019 documentais em órgãos de registros, como arquivos públicos, secretarias municipais, cartórios regionais e juntas comerciais, com a finalidade de coletar informações adicionais acerca da história documental e organizacional de instituições desse período. Após o procedimento amostral e em decorrência de um acúmulo documental, instaurou-se um processo de triagem, seleção e análise, com critérios e objetivos estabelecidos, que relacionou textos e imagens de diversos formatos e gêneros à história da Associação e dos trajetos dos associados. Durante seus anos de atividades, os documentos e registros foram organizados em grampos e pastas, contendo dezesseis documentos organizacionais e constitutivos, um catálogo de leilão, cinco boletins informativos, dois catálogos de salões de arte e quatro fichários com fichas de associados, posteriormente, registrados digitalmente, através do processo de escaneamento. Esta pesquisa é parte de uma dissertação de mestrado e teve auxílio da bolsa de estudos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAMEMIG), Programa de Pós graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.


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UMA ANÁLISE DE JORNADA DE UM IMBECIL ATÉ O ENTENDIMENTO, DE PLÍNIO MARCOS, ENQUANTO ALEGORIA DO GOLPE MILITAR BRASILEIRO DE 1964 ROBERTA CARBONE1 Resumo Pretende-se uma análise da peça Jornada de um imbecil até o entendimento, de Plínio Marcos. Para tanto, procura-se examinar as referências do autor para escrita da obra, bem como aproximá-la de outras, a fim de uma interpretação das figurações propostas. Por fim, e procurando ler os reflexos do momento histórico, identifica-se, a despeito das intenções do autor, uma alegoria do golpe militar brasileiro, tendo em vista as forças sociais representadas por suas personagens. Palabras chave: Dramaturgia; Teatro Épico-Dialético; História do Teatro; Plínio Marcos.

Resumen

Abstract

Se pretende el análisis de la obra Jornada de un imbécil hasta el entendimiento, de Plínio Marcos. Para ello, se busca examinar las referencias del autor para escribir la obra, así como aproximarla a otras, para una interpretación de las figuraciones propuestas. Finalmente, buscando leer los reflejos del momento histórico, se identifica, a pesar de las intenciones del autor, una alegoría del golpe militar brasileño, teniendo en cuenta las fuerzas sociales representadas por sus personajes.

This article intends to analysis of the play Jornada de um imbecil até o entedimento, by Plínio Marcos. For this purpose, examines the author’s references for writing the work, as well as to bring it closer to others, to interpret the proposed figurations. Finally, and try read the reflections of the historical moment, although the author’s intentions, it is interpreted as an allegory of the Brazilian military coup, in view of the social forces represented by his characters is identified.

Palabras chave: Dramaturgia; Teatro épico-dialéctico; Historia del teatro; Plínio Marcos.

Keywords: Keywords: Dramaturgy; Epic Dialectical Theater; History of Theatre; Plínio Marcos.

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Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo. roberta.carbone@usp.br


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A primeira versão de Jornada de um imbecil até o entendimento foi escrita em 1960 e intitulada Os fantoches, sendo, portanto, a segunda peça de Plínio Marcos, produzida logo depois de Barrela. A inspiração para a criação partira da amiga Pagu: “Tudo começara porque Pagu cobrou nova peça, e fez o marido reler para ele o Esperando Godot. Mais para ‘encher o saco’ de Geraldo Ferraz, Plínio reagiu dizendo que ele poderia escrever dez peças por dia como aquela de Beckett” (CONTIERO, 2007, p. 204). Mas Os fantoches foi ainda reescrita sob o título Chapéu sobre paralelepípedo para alguém chutar. Em comparação à primeira, esta segunda versão praticamente quadruplica de tamanho e tem o acréscimo de uma personagem, a única mulher no enredo de cinco homens. Esta reescrita já é bastante próxima à Jornada..., cuja primeira encenação foi realizada por João das Neves em 1968, no Grupo Opinião2. Sobre a peça, o diretor comenta: O que me fascina em Jornada de um imbecil até o entendimento é a coragem de seu autor. Não a coragem de apresentar de maneira crua, sem meias tintas, os seus personagens e as situações que se veem envolvidos por gregos e troianos na avaliação de sua dramaturgia. O estimulante é que Plínio Marcos, dando um giro de 180 graus em seu trabalho, lança-se a um novo caminho sem temer a que esse caminho possa conduzi-lo (NEVES apud DAVID, 1968b, p. 2).

Como fala João das Neves em depoimento ao Correio da manhã citado acima, Jornada de um imbecil até o entendimento mostra-se muito diferente das peças que até então tinham alçado Plínio Marcos ao autor revelação da década de 19603. Este repertório, de acordo com Augusto Boal (1968), representava uma das vertentes do teatro de esquerda no pós-1964, cujo principal objetivo era “mostrar a realidade como ela é”. E, por isso, enfrentava o obstáculo da transcendência do “nível de consciência da personagem” e da empatia dos espectadores (BOAL, 1968). Jornada..., por sua vez, afasta-se do caráter realista das demais obras do autor e, em decorrência do assunto em pauta, assume uma estrutura épico-dialética, como se verá. Porém, se isso pode ser detectado em relação à sua proposta estético-política, o mesmo não pode ser dito quanto à censura, já que Jornada... não se revelou diferente das demais peças do autor neste quesito. Ainda sob o título Chapéu sobre paralelepípedo... e conforme pedido de liberação encaminhado por Plínio Marcos à Divisão de Diversões Públicas da Secretaria da Segurança do Estado de São Paulo em 1966, ela foi proibida em todo o Estado de São Paulo. No documento, alega-se que “trata a peça em tela, em seu particular sentido, da exploração do homem pelo homem, cabendo ao símbolo CHAPÉU a posição empírica da questão social”. Ao que se acrescenta: “De aspecto ambíguo, ela também não serve para identificar o homem, nem para resolver a vida”, até porque “acreditamos que compete aos governos dar solução aos proble-


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mas sociais, pois eles melhor sabem disso, do que outros querem, abordar os mesmos problemas sem condições para isso, mas tentando, isso sim, exaltá-los somente4”. Coadunando Brecht e Beckett Como bem observado pelo censor, a exploração do homem pelo homem dá o tom de Jornada de um imbecil até o entendimento, que os críticos da época interpretaram como uma “alegoria da história humana, das relações capital-trabalho-salário, patrão-empregado, religião-Estado, esmiuçadas numa fábula de comicidade ardilosa” (DAVID, 1968a, p. 2). A peça apresenta um grupo que sobrevive de pedir esmolas (Manduca, Pilico, Popô e Totoca). Não detendo seus “instrumentos de trabalho”, os chapéus, estes acabam submetendo-se ao dono dos “meios de produção”, Mandrião – aquele que mandria, que se mostra preguiçoso para trabalhar ou estudar –, para o qual se vêem impelidos a alugar sua “força de trabalho”. Teco, aliado de Mandrião, é o responsável pela coibição moral dos trabalhadores, ao se autoproclamar porta-voz do deus Orongon. Depositário do poder espiritual, Teco institui ser anti-higiênico pedir esmolas sem os chapéus, o que justifica a subordinação a um “patrão”. A peça trata, portanto, da exploração do trabalho e é fundamentada na abordagem materialista da economia tal como teorizada por Engels e Marx, estabelecendo sua crítica ao escancarar todas as arengas e estratégias de dominação dos trabalhadores usadas pelos patrões, que não se furtam de desmedida violência em favor de seus interesses. No entanto, Plínio Marcos ambienta este esquema em circunstâncias um tanto atípicas para o sistema de produção capitalista, como demonstra o diálogo abaixo: MANDUCA – [...] Com que chapéu você pede esmola? POPÔ – Com o do Mandrião, é claro. MANDUCA – E o que você ganha? Nada. Você trabalha de graça. POPÔ – De graça, não. Ele me dá 10% do lucro. MANDUCA – Que lucro, animal? Tudo é lucro na profissão de pedir. POPÔ – E o emprego de capital? MANDUCA – Que capital? POPÔ – O chapéu. Por isso ele tira a taxa de conservação do chapéu todos os dias. O que sobra é o lucro5.

A despeito da anomalia facilmente detectada: “Não podemos esquecer de que classe não é uma questão só de propriedade jurídica abstrata, mas da capacidade de exercer poder sobre terceiros em benefício próprio” (EAGLETON, 2012, p. 143). E é justamente esta capacidade que é exposta na peça, o que a estranheza da situação só faz evidenciar. Neste sentido, Jornada... faz lembrar o negócio de Peachum em A


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ópera de três vinténs, de Bertolt Brecht. Sua empresa, a Jonathan Jeremiah Peachum & Companhia, além de cobrar pela “licença” para a atuação nos diferentes distritos de Londres, também aluga roupas e equipamentos para a mendigagem, classificada de acordo com os cinco tipos básicos da miséria6 capazes de comover o coração humano. Com o intuito de despertar a piedade dos homens, são usados meios espirituais, e o efeito das convenientes frases retiradas da Bíblia – “É melhor ventura dar que receber” (BRECHT, 2004, p. 16) – visa ao público-alvo do negócio, já que os trabalhadores têm total consciência desta estratégia e compactuam com ela. Em Jornada..., o negócio de Mandrião e Teco é menos estruturado do que o de Peachum, mas os métodos apresentam-se de modo muito semelhante: Entram Manduca, Pilico, Popô e Totoca. Vão cantando. Cada um tem um disfarce de mendigo. Manduca faz o aleijado, usa muletas (precisa de apoio). Pilico faz o homem de um braço só (quer estender o outro). Totoca faz a possuída da moléstia de São Guido (dança sempre). Popô faz o cego (não vê nada). Chegando no palco, tiram os disfarces e voltam a ser pessoas normais.)

Logo após a entrada do grupo, tem-se ainda um diálogo que reforça a indicação das ações acima: TOTOCA – Essa doença de São Guido me cansa bastante. MANDUCA – E eu então com meu aleijão. POPÔ – Pior sou eu, de cego. Não vejo nada. Não tenho distração alguma. E não me queixo.

Porém, se a peça de Plínio Marcos aproxima-se da de Bertolt Brecht em determinado ponto, há ainda outro que a distância, como a representação dos patrões. Enquanto Peachum se mostra um hábil administrador de seu negócio e muito esperto, Mandrião e Teco não passam de dois paspalhos confusos, que mais se assemelham a uma dupla de palhaços. Quando Mandrião vai contar a Teco que se escondeu para ouvir uma conversa entre Manduca e Pilico, tem-se o seguinte diálogo: TECO – Como você sabe que foi atrás da árvore? Poderia estar na frente. MANDRIÃO – E onde é a frente da árvore? TECO – Do lado oposto ao montinho de cocô. MANDRIÃO – Como você sabe? TECO – Elementar, meu caro Watson, todo mundo caga atrás da árvore.

Como este, a peça está repleta de jogos dialógicos que os desviam do assunto em pauta. Estes são desencadeados por divergências alheias ao tema estruturante da peça, como se vê acima, ou por complementações de frases adjetivas, que motivam


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ações alheatórias. Neste ponto, pode-se observar a filiação de Plínio Marcos ao que ficou conhecido como “estilo becketiano”, em que as palavras não “geram a ação” e nem mesmo têm “finalidade explícita” (ANDRADE, 2001). Em contraposição a esta caracterização da dupla, é explicitada com extrema lucidez a perversidade das estratégias de dominação da relação capital-trabalho. Já na primeira cena da peça, que é dividida em dois atos, Mandrião e Teco expõem de modo até didático e, em alguns momentos, usando-se de recurso épico e falando diretamente para a plateia, o talento de seus artifícios para a manutenção de seu papel de exploradores: MANDRIÃO – Então trate de criar uma regra que mantenha as distâncias. Alguma coisa que faça com que eles achem justo não terem nada e eu ter tudo. (Para o público.) Afinal de contas, eu tenho quatro chapéus e eles, nenhum. Se eu não emprestar os meus chapéus, eles não podem pedir esmolas. TECO – E fui eu que criei a convenção de que é anti-higiênico pedir esmolas sem chapéu. MANDRIÃO – E como sou bom negociante, vi que era ótimo negócio eu mesmo vender a comida, forçando-os a comprarem de mim, sob pena de dispensá-los do meu serviço, caso fossem comprar mais barato em outro lugar. TECO – E eu criei a imagem do deus Orongon, que impõe castigos terríveis, horripilantes, e que faz arder para sempre as almas desobedientes e, principalmente, os ladrões de chapéus. MANDRIÃO – E todos nós progredimos. TECO – Todos.

Esta operação dramatúrgica, que une habilidade com parvalhice, parece fruto de uma perspicaz articulação de Plínio Marcos entre a referência becketiana que lhe fora apresentada – em que ação e fala acarretam duas camadas de significação distintas – e a concretização das relações entre as personagens, que são desenhadas de acordo com o seu papel de classe. Assim, a dupla caracterização de Mandrião e Teco acaba por criar um expediente formal capaz de produzir um efeito crítico, remetendo a um sistema que exige a reprodução de certos métodos para sua perpetuação, independente da genialidade – ou até mesmo apesar dela, como no caso – dos indivíduos que deles lançam mão. Outra referência explícita a Beckett encontra-se na seguinte passagem: MANDRIÃO – Diga alguma coisa inteligente! TECO – Dada a existência, tal como é exposta nos recentes trabalhos públicos de Poisson e Wattman, de um deus pessoal quá-quá-quá de barbas brancas quá-quá-quá, fora do tempo sem extensão, que do alto da sua divina apatia, sua divina atambia, sua divina fantasia, nos ama entranhadamente, salvo algumas raras exceções. Por motivos ignorados, mas que o


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futuro revelará... MANDRIÃO – Mas isso é outra peça! Você esqueceu o texto? TECO – Esqueci o cacete! O autor da peça é o Plínio e a única forma que ele tem de dizer uma coisa inteligente é plagiando, o que por sinal está muito na moda.

Este expediente faz lembrar outro, análogo, usado por Oduvaldo Vianna Filho (1981, p. 260) em A mais valia vai acabar, seu Edgar, em que o autor é chamado de principiante pela própria personagem, mobilizada para entrar em cena e dar três pulinhos para “fazer graça”, executando esta função de forma bastante canhestra. Porém, ironicamente, esta colocação de Teco corresponde a um trecho quase literal de uma das falas de Lucky na peça Esperando Godot (BECKETT, 2017, p. 48). E mais uma vez Plínio Marcos transforma sua referência inicial e acaba por criar um procedimento de efeito diferente do suscitado pela peça citada. Ao escancarar a autoria do texto, o dramaturgo revela também o caráter ficcional da obra. Este momento, somado a outros em que as próprias personagens se lembram da matéria de que provém (“MANDUCA – Popô, não se meta a ter ideias. Você precisa só dizer o que está no texto.”), mostram que, embora o autor tenha partido de uma obra becketiana, as demandas inerentes à própria matéria social representada em seu trabalho acabaram por conduzi-lo pelos caminhos épico-dialéticos do teatro. A politização do autor A conversa inicial dos “patrões” põe o espectador/leitor a par das razões que dramaturgicamente mobilizam as personagens e, no campo ficcional, revela que há algo ameaçando os negócios de Mandrião e de Teco. Pilico, único que detém o seu próprio chapéu, anda oferecendo condições de trabalho mais justas, com divisão igual de renda, do tempo da jornada e “Chegou até a falar em estabilidade!” Ao mesmo tempo, Manduca, que “se pôs a pensar”, tem espalhado ideias libertárias entre os companheiros. Com a chegada do grupo, os patrões se escondem para ouvir a conversa – uma constante de suas traiçoeiras ações –, e vê-se confirmadas suas preocupações em uma tentativa de diálogo da “classe trabalhadora”. MANDUCA – Eles não estão. POPÔ – É mesmo. TOTOCA – Aonde será que eles foram? MANDUCA – Provavelmente estão pescando na beira do rio, ou batendo papo à sombra de uma árvore. TOTOCA – Vida boa. MANDUCA – Enquanto a gente se mata de trabalhar. [...]


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MANDUCA – Não é justo a gente trabalhar para eles se divertirem. Não é justo. POPÔ – Está certo, os chapéus são deles. MANDUCA – Está certo nada, seu idiota! PILICO – Se vocês trabalhassem comigo, também sobraria tempo para vocês pescarem. MANDUCA – Vocês são sempre iguais. No princípio dão vantagens, depois nos exploram.

No trecho acima, tem-se uma amostra do materialismo histórico como referência para o autor, atestando a ideia de que a teoria da economia de Engels e Marx fundamentou a sua escrita. Plínio Marcos serve-se aqui de uma clássica formulação materialista, da qual toma de empréstimo um dos exemplos citados sobre a crítica à fixação da atividade social, um dos baluartes do sistema capitalista. De acordo com um excerto de A ideologia alemã, a alternativa comunista “me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico” (ENGELS; MARX, 1986, p. 44). O exemplo da pescaria, muito presente na fala de alguns marxistas, não parece, por isso, casual e é citado na peça por Manduca para evidenciar os privilégios dos patrões que, tendo quem trabalhe por eles, podem desfrutar de atividades mais aprazíveis. Além disso, há também informações textuais retiradas de O Capital, que tornam inegável a referência do autor, como uma fala elaborada a partir do título que dá nome ao segundo tópico do capítulo 23 da sétima seção – “O processo de acumulação do Capital” – do primeiro livro (MARX, 2013, p. 845), proferida por Teco: “A prática apoia a minha teoria, pois há uma relativa diminuição da parte variável do Capital, simultaneamente com o progresso da acumulação e da concentração que acompanha isto.” Do diálogo supracitado, pode-se também observar as divergências em relação ao modo como entendem suas condições de trabalho e a disparidade das alternativas que propõem, neste caso, Pilico e Manduca, para a insatisfação expressa. Pilico caracteriza-se como um reformista, defendendo melhores condições de trabalho, mas tendo em vista seu próprio proveito e não uma reivindicação da categoria. O fato de deter o seu próprio chapéu o alinha aos interesses dos patrões, o que já aponta para sua traição futura, como se verá. Manduca aposta na ação revolucionária e pede a cabeça dos patrões, pelo que será considerado um extremista: MANDUCA – Creio que a hora não é de propostas comerciais. A hora é de criar condições para que cada um tenha o seu próprio chapéu. PILICO – Mas isso é utópico. MANDUCA – Não é, não. Você não conseguiu o seu?


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PILICO – Bem, mas no meu caso... MANDUCA – Você é melhor do que os outros? POPÔ – O Teco disse que perante Orongon todos os homens são iguais. TOTOCA – Seria ótimo que cada um tivesse o seu chapéu. PILICO – Teoricamente isso é lindo. Mas a prática nos aconselha a deixarmos isso para outra etapa. MANDUCA – Depois que eu explicar o meu plano, você verá que já existem as condições objetivas.

Ao ouvirem o diálogo acima, Mandrião e Pilico, que estavam escondidos, entram em cena, interrompendo a conversa. É hora então de “apurar os lucros” que, comprovando as preocupações dos patrões, foram muito baixos. Fica-se sabendo que as conversas de Pilico e Manduca acabaram distraindo os empregados durante suas horas de trabalho. Como castigo, Popô, o mais temente ao deus Orongon e, por isso, o mais subserviente, será castigado e ficará sem comer no jantar. Nesse momento, Manduca lidera o grupo e compromete a comida de todos: se Popô não puder comer, ninguém comerá. Pilico então assume o papel da concorrência explícita e anuncia que “Há Vagas”. Pressionados por todos os lados, Manduca e Pilico cedem às reinvenções dos trabalhadores, que começam a planejar novas mobilizações, como a campanha “melhor e mais comida”, tendo em vista sua primeira conquista. A preocupação dos patrões aumenta, e eles se veem impelidos a frear as influências de Pilico sobre os demais e a punir Manduca como uma forma de exemplo. Na calada da noite, Mandrião e Pilico vão coagir cada um dos trabalhadores, que demandam diferentes abordagens. Mas com todos, os patrões recorrem ao apelo individual, coibindo qualquer tipo de mobilização coletiva, a começar por Pilico, que é convencido pelo argumento de defesa de sua classe: MANDRIÃO – E precisa existir. TECO – Convênio entre os da mesma categoria. MANDRIÃO – Ou nos defendemos mutuamente, ou eles assumem o controle das coisas. PILICO – Acho que vocês têm razão.

Comprovando ficcionalmente a formulação materialista de que “a aliança entre os capitalistas é habitual e produz efeito” (MARX, 2004, p. 23), Pilico concorda com a negociata, mas não sem tirar vantagens materiais dela, e o dia de folga de Popô e Totoca lhe é “cedido”. Pilico, assim, aceita não mais fazer concorrência a Mandrião e Teco e compactua com a punição de Manduca. Na sequência, a próxima a ser abordada é Totoca e a primeira estratégia da dupla é sensibilizá-la a ouví-los, para o que recorrem a vários elogios sobre sua aparência, tática sexista que já havia sido anteriormente usada por Pilico.


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Mas o plano da dupla para Totoca cumpre uma dupla função, eles a cooptam com a oferta de uma promoção: ela agora será assistente dos dois, com a missão de fazer com que Popô se conforme. E aqui, além das vantagens pessoas envolvidas, é também empregada a vigilância entre os próprios trabalhadores. Em seguida, Madrião e Teco acordam Popô e o chantageiam com a graça do deus Orongon. Desde o início da peça, Popô repete frases ditas por Teco, como “Cruz credo!”, o que revela a dominação do pensamento e de ideias. Por isso, ele se apresenta como o mais devoto e ingênuo de todos, o que o leva a concordar com a condenação de Manduca com medo da desaprovação divina. Com o esquema todo armado e as alianças estabelecidas, o último a ser abordado é o próprio Manduca, para ser comunicado que está dispensado, sem mais. Manduca, ao saber de sua demissão, recorre imediatamente a Popô e Totoca, buscando apoio junto aos da sua classe e, por último, a Pilico, devido ao interesse pela vaga antes ofertada. Mas o terreno já fora cuidadosamente preparado por Mandrião e Teco, e cada um deles, cooptados e aliados agora aos patrões, não lhe dá mais ouvidos. Neste momento, pode-se observar a precária condição do trabalhador que, sem alternativa, barganha sua força de trabalho por um prato de comida. E uma incipiente união da classe trabalhadora, mobilizada por proposições reformistas, como o direito de comer de todos e a melhora da comida – o que haviam planejado como próxima pauta de suas reivindicações –, mostra a violenta reação da classe dominante, que se usa do assédio moral e até mesmo físico para desmontar qualquer mínima ameaça de organização. Os fracassados apelos de Manduca o levam à desesperada tentativa de roubo de um dos chapéus de Mandrião. Pilico então o surpreende e o detém, a que os outros o cercam. A sentença a ser aplicada é debatida por todos e Mandrião pede a pena máxima, sendo apoiado por Teco. Popô parte em defesa de Manduca, mas com a ajuda de Totoca é convencido a passar para o lado dos patrões. O julgamento é então marcado para o dia seguinte, e Popô fica de guarda. Vê-se aqui uma última tentativa de diálogo da classe trabalhadora, em que Manduca expõe a Popô as estratégias dos patrões, como uma espécie de síntese didática do que fora exposto ao longo da peça. Porém, Popô não cede, e todos acordam para o julgamento fraudado, posto que a sentença já estava certa. Uma alegoria do pré-64 Em Plínio Marcos: Uma biografia, Lucineia Contiero (2007, p. 348) faz o seguinte comentário sobre Jornada...:


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Comparada a Barrela, Dois perdidos e Navalha, Jornada perde na tessitura e no pique dramáticos. Popô, Mandrião, Teco, Pilico e Manduca são personagens amorfos, frouxos no desenho psicológico, cinco miseráveis “a beira de um abismo”. Plínio tentou em parte o modelo de Barrela situando esses personagens no submundo, como “mendigos profissionais”. Mas a dimensão metafórica (alguns miseráveis a beira do abismo) amaina o realismo desses qualificativos.

Ainda que cite a peça aqui analisada, a autora parece ter como referência sua primeira versão, intitulada Os fantoches, em que a rubrica inicial situa o grupo à beira de um abismo, circunstância já excluída de sua próxima reescrita, Chapéu sobre paralelepípedo para alguém chutar, e também ausente em Jornada... De qualquer forma, a observação sobre a frouxidão do “desenho psicológico” das personagens parece uma opção formal deliberada de Plínio Marcos nas três versões, dado que os papéis que as compõem não se constroem a partir dos preceitos dramáticos de confecção. Concernente com seu objetivo temático, as personagens de Jornada... são antes tipificações, que exaltam certos traços de personalidade e figuram forças sociais em ação. Cada desenho de personagem proposto estabelece uma relação dentro do esquema de exploração de uma classe por outra e cumpre funções específicas nas interações com os membros de uma mesma classe social. Teco, por exemplo, representa a instituição religiosa e é responsável pela sustentação moral dos trabalhadores. Neste sentido, ele exerce forte coerção ideológica para a manutenção dos privilégios da classe dominante enquanto um “braço do Estado” no sistema capitalista, o qual existe, “entre outras coisas, para defender a ordem social corrente contra aqueles que buscam transformá-la” (EAGLETON, 2012, p. 165). Assim, enquanto forças sociais em interação, a parceria entre Mandrião, o proprietário dos meios de produção, e Teco pode ser interpretada como a aliança entre o capital e a |Igreja ou o Estado. Dados os expedientes dramatúrgicos utilizados por Plínio Marcos, Jornada... também pode ser lida como uma alegoria, tal como observaram os críticos do período. Mas seu caráter alegórico, entendido como construção ficcional assentada em formulações críticas do materialismo histórico, enseja ainda ser apreciado como representação do processo político-econômico que culminou no golpe militar de 1964, tendo em vista as forças sociais figuradas pelas personagens da peça. Deste modo, Mandrião, enquanto tipificação da classe dominante, espelha também suas aflições: MANDRIÃO – Só você não percebe que essa tomada de posição por parte dela tem origem nessa doutrina dissolvente que ultimamente se espalhou por aí. TECO – Absurdo! Não existe doutrina alguma. MANDRIÃO – É verdade o que te digo. Falo com base. TECO – Maior absurdo nunca escutei. Você confunde insatisfação dessa


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gentalha com movimento organizado. MANDRIÃO – O Manduca anda com coisa na cabeça. E eu posso garantir que não é chapéu. (Teco ri com malícia.) Também não é isso, sua besta! Ele nem casado é. Ele anda tendo ideias.

O diálogo acima parece aludir, principalmente pela fala de Mandrião, ao pensamento que se aclimatava em nossas elites no pré-64. A “doutrina” a que a personagem se refere cabe ser examinada a partir do que ficou conhecido como “perigo comunista”, e o temor de Mandrião reflete a reação da classe proprietária frente à grande agitação pela qual passava o país, na cidade e no campo, bem como a comunidade internacional depois de Cuba, em 1959, se declarar uma república socialista. Este quadro foi traduzido pelos conversadores como os indícios de uma transformação político-econômica indesejada ou o “fantasma socialista”, contra o qual deveriam garantir o capital e o continente. Mandrião e Teco, em outros momentos da peça, chegam mesmo a repetir certos slogans conversadores que fazem referência a movimentos e partidos adeptos de governos autoritários. Bradando “Deus, Pátria e Família!”, Teco revive a trilogia que marcou a trajetória do Movimento Integralista, a faceta nacional do fascismo da década de 1930, fundado por Plínio Salgado. Por sua vez, Mandrião apregoa o antigo bordão britânico “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, conhecido entre nós como emblema da União Democrática Nacional, a UDN, um dos sustentáculos políticos do golpe militar. Se a referência direta aos militares não passaria pela censura, Plínio Marcos opta pela representação de pensamentos e propostas afiliados ou pela referência a personagens já consideradas secundárias no jogo político do contexto de escrita da peça. Por uma ou outra via, é clara sua intenção, que remete aos slogans propagados pelos apoiadores do golpe de 1964 e faz lembrar a “Marcha da Família Com Deus pela Liberdade”, organizada pelas senhoras católicas e “de bem” em apoio aos militares. Não obstante o temor expresso por Mandrião, a peça contrapõe esta interpretação à concretude dos fatos, que os anos posteriores ao golpe militar permitiram verificar. A lúcida avaliação de Teco, que assinala a confusão entre “insatisfação” e “movimento organizado”, fora comprovada pela história, bem como representada por Plínio Marcos, como uma síntese do pré-64. Neste sentido, cabe também analisar a classe trabalhadora tal como representada na peça. Manduca, Pilico, Popô e Totoca têm visões, objetivos e comportamentos totalmente distintos e quase nunca conseguem entrar em acordo, com exceção de uma organização pontual em relação à condição primária de sobrevivência, a comida. Começando por Popô, de acordo com seus traços de personalidade destacados pelo dramaturgo, ele se mostra como o reprodutor oficial da ideologia dominante


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dentro deste esquema de análise. Dramaturgicamente, como se procurou exibir, isto se revela na devoção ao deus forjado pelos patrões e no medo do castigo divino, como expresso na seguinte fala: “POPÔ – Manduca, não fala mais a palavra explora. O Teco disse que quem fala essa palavra perde a graça de Orongon.” Nesta passagem, vê-se claramente como a crença no deus Orongon é, portanto, usada pelos patrões em benefício da manutenção de seus privilégios. A dominação ideológica de Popô também se manifesta na linguagem, já que ele passa a peça toda a repetir frases ditas por Teco, o representante da instituição religiosa. A ingenuidade e a subserviência de Popô não caracterizam Totoca, assediada pelos patrões em detrimento de outras particularidades desenhadas por Plínio Marcos. Ao longo da peça, há indicações de que ela mantém relações sexuais com Manduca (“MANDRIÃO – Eu, por ser mais rico, conquistei a Totoca.”). Esta “conquista” é, no entanto, desmascarada quando Mandrião a usa como estratégia para controlar Manduca: “MANDRIÃO – Naquela noite, depois que o Manduca conversou com o Pilico, eu percebi que ele estava muito excitado e achei que não era bom. Para aliviar a tensão, mandei a Totoca... ter com ele. Golpe tático.” Ainda que se saiba que seu plano não tenha tido êxito, ele clarifica a objetificação da personagem, que, enquanto mulher, é tomada como uma propriedade de Mandrião e, por isso, sujeitando-se a seus mandos e desmandos. Mas, pode-se também concluir que isto lhe renda algumas vantagens materiais, como não precisar mendigar em troca de abrigo e de comida. E é justamente uma “tomada de posição” em favor de certa independência econômica, de acordo com algumas reinvindicações pleiteadas pelo movimento feminista que ganhavam vulto no período, o que motiva a conversa de Mandrião e Teco, como se pode ver: TECO – [...] vamos impedir que eles falem com o Pilico MANDRIÃO – Não posso. Não tenho forças. Até a Totoca está fora da área das minhas influências. TECO – Não creio! A Totoca sempre foi fiel ao nosso culto. MANDRIÃO – Pra você ver como nosso culto está bagunçado. TECO – Cruz credo! Porém não creio que a Totoca seja contra nós. MANDRIÃO – Ela não é contra nem a favor, muito pelo contrário. TECO – Lamentável. MANDRIÃO – Hoje ela pegou um chapéu e saiu por aí. (Suspira.) Foi trabalhar com os outros. TECO – Com que alegação ela cometeu tal desatino? MANDRIÃO – Disse que quer ganhar o seu próprio sustento.

A despeito desta tentativa de emancipação de Totoca, quando Mandrião e Teco a abordam na calada da noite, ela acaba por aceitar vigiar Popô e trair Manduca, bem como sua classe, ao desistir da campanha “melhor e mais comida” planejada para o


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dia seguinte. Após certa resistência, é o traço distintivo de sua personalidade, a vaidade, o que a faz ceder: “TOTOCA – Foi muita gentileza da parte de vocês virem me acordar para dizer que eu fico linda de papelotes.” Mas, ainda que os elogios sejam a porta de entrada para a cooptação da personagem, novas vantagens lhe são oferecidas, a que ela aceita ficar ao lado dos patrões: MANDRIÃO – Você vai ganhar mais. TECO – E trabalhar menos. MANDRIÃO – Terá tempo para se divertir. TECO – Para rezar... para cuidar da sua beleza... (Pausa.) TOTOCA – Aceito.

Já Manduca, como fora apontado, representa os ventos pré-revolucionários que sopravam nos anos anteriores ao golpe, de acordo com as diretrizes e limitações da esquerda militante do período. Suas falas e argumentos trazem sempre aspectos da crítica materialista, e é ele quem tenta elucidar aos colegas o caráter exploratório da estrutura de trabalho a que estão submetidos. Manduca, em princípio, defende “a ideia de que cada um deve ter seu chapéu” e acredita que já existam as condições objetivas para isto, contrariamente a Pilico. Julgando a visão de Manduca utópica, os interesses e perspectivas de Pilico visam à sua ascensão econômica e social, revelando sempre vantagens comerciais. Ele é um representante da classe trabalhadora que, pelo fato de deter o seu próprio instrumento de trabalho, diferencia-se dos demais. Enquanto representação de forças sociais, ele configura-se como um pequeno proprietário ou um pequeno burguês, que almeja ser um capitalista com o poder de explorar a atividade de outros. Ainda assim, será a Pilico que Manduca recorrerá com o intuito de unir forças para efetivar seu plano “revolucionário”. Neste sentido, a investida de Manduca, enquanto representação da esquerda militante do pré-64, guarda estreitas semelhanças com as diretrizes do Partido Comunista Brasileiro no período, que aposta na aliança de classes – burguesia e proletariado – em favor do avanço econômico do país e do fortalecimento da nação frente às grandes potências mundiais e à transferência de capital nacional para o estrangeiro. Para tanto, e a despeito de seus ideais revolucionários, Manduca acaba por mobilizar os colegas em razão de melhores condições de trabalho, como o caso da comida, já citado anteriormente, abandonando temporariamente a luta pelo direito de todos terem seus chapéus. Isto aponta para o caráter reformista da ação que Manduca passa a defender e espelha o papel desempenhado pelo PC brasileiro, que assume tal diretriz na sua Declaração de Março, aprovada em 1958: “A revolução no Brasil [...] não é ainda socialista, mas anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática7.”


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Neste sentido, Manduca ainda afirma outros aspectos que orientam a política do PCB: MANDUCA – Perdi essa batalha, porém a luta continua. O amadurecimento das condições objetivas fatalmente chegará. A classe operária triunfará e assumirá o poder, quer queira, quer não a decadente burguesia. O imperialismo norte-americano e seus títeres internos serão esmagados pela dialética irreversível da História. Amém.

O trecho acima é proferido por Manduca antes da execução de sua sentença e aproxima-se de uma oração antes do fim, haja vista se concluir com um “Amém”. Ao mesmo tempo, sua exposição caracteriza-se como um testamento e revela a filiação de seus pensamentos e convicções. O par combinado “imperialismo norte-americano e seus títeres internos”, sendo que os últimos devem ser entendidos como a estrutura agrária nacional ou os latifundiários adeptos da política de privatizações, não deixa dúvidas de que a fala da personagem, neste momento, refere-se às apostas políticas do PC. Se o PC teve o grande mérito de difundir a ligação entre imperialismo e reação interna, a sua maneira de especificá-la foi seu ponto fraco, a razão do desastre futuro de 1964. Muito mais anti-imperialista que anticapitalista, o PC distinguia no interior das classes um setor agrário, retrógrado e pró-americano, e um setor industrial, nacional e progressista, ao qual se aliava contra o primeiro. Ora, esta oposição existia, mas sem a profundidade que lhe atribuíam, e nunca pesaria mais do que a oposição entre as classes proprietárias, em bloco, e o perigo do comunismo. O PC entretanto transformou em vasto movimento ideológico e teórico as suas alianças, e acreditou nelas, enquanto a burguesia não acreditava nele. Em consequência chegou despreparado à beira da guerra civil (SCHWARZ, 1992, p. 64-65).

Assim como o PC, Manduca acreditou em uma aliança com o pequeno burguês Pilico, que o trairia no final, e, do mesmo modo que o Partido, chegou despreparado ao momento de sua condenação. De acordo com as posições de Manduca ao longo da peça, que expressam as aclimatações dos comunistas no pré-64, ele é derrotado, espelhando o movimento da histórica com o desfecho do golpe militar. Refletindo também os fatos, na peça de Plínio Marcos, a classe trabalhadora é superestimada em sua força de organização. Suas figurações cênicas, Popô e Totoca, não apresentam qualquer tipo de consciência de classe, como se pôde observar. Totoca, diferentemente de Popô, parece entender melhor a sua condição e tenta sobreviver valendo-se de alguma esperteza, que visa apenas a seu próprio benefício. Assim, as tentativas de ação coletiva, liberadas por Manduca, apontam para a frágil capacidade de organização da classe trabalhadora, mal avaliada pela esquerda e pela classe dominante, tanto na ficção como na realidade. Neste sentido, as manobras


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de Mandrião e Teco, que se alarmavam com a mobilização dos trabalhadores e se precaviam, contrapostas à efetiva potência de intervenção de Popô, Totoca e Manduca, bem como a aposta deste na associação com Pilico e sua condenação, parecem sintetizar as forças em jogo no período. Somadas, estas forças integram um quadro que, enquanto representação do processo político e econômico que levou o país às mãos dos militares, acredita-se alegorizar o golpe de 1964. No entanto, a análise que se faz aqui de Jornada de um imbecil até o entendimento enquanto alegoria do golpe militar não pretende de modo algum afirmar que esta tenha sido uma intenção deliberada de seu autor. Antes, ela mostra como os artistas do período estavam em intensa sintonia com o momento histórico e que, por isso, seria quase impossível suas produções não revelarem algo sobre o seu tempo, a despeito até mesmo da consciência dos produtores. Nesse sentido, Jornada... faz parte do processo de autocrítica vivido pelos comunistas no pós-64, ainda que seu autor, Plínio Marcos, nunca tenha se filiado ao Partido. Mas, na medida em que ele elege, como matéria para sua peça, uma temática político-econômica de extrema atualidade, sua forma de representação foge ao estilo de sua produção e, ao mesmo tempo, torna-se inevitável a revisitação do recente processo social como uma tentativa de interpretar criticamente a situação brasileira. Notas Para mais informações sobre o espetáculo, consultar: CARBONE, Roberta. Um Plínio diferente do que se habitou a aplaudir: A encenação de Jornada... por João das Neves no Opinião. XXV Encontro Regional de História da Anpuh-SP – História, desigualdades & diferenças. São Paulo: Anpuh-SP, 2020. Disponível em: <https://www.encontro2020.sp.anpuh.org/resources/anais/14/anpuh-sp-erh2020/1591367530_ARQUIVO_ 15c150dd3e952121bb8f57b7f1844adb.pdf>. Acesso em 22 dez. 2020. 2

No ano de 1967, em especial, as seções de divulgação de peças dos jornais traziam toda semana duas ou mais montagens de seus textos: Dois perdidos numa noite suja; Navalha na carne; Homens de papel; Dia virá e Quando os navios atracam, rebatizadas Jesus-homem e Quando as máquinas param respectivamente. 3

Trechos do documento assinado pelo censor Geraldino Russomano em 29 de abril de 1966, emitido pela Divisão de Diversões Públicas da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, que consta no processo de censura da peça, cedido à pesquisa em maio de 2017 pelo Arquivo Miroel Silveira, pertencente à Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e recolhido, em 2018, para o Arquivo Público do Estado de São Paulo. 4

As citações da peça não serão seguidas de referência, posto a versão aqui analisada não ter sido publicada e cedida à pesquisa por Ricardo Barros, filho do autor. 5

Conforme expõe Peachum, são estes: “Equipamento A: vítima do progresso dos meios de transporte. O aleijado bem-humorado, sempre alegre [...], sempre despreocupado, exacerbado por um toco de braço. Equipamento B: vítima da arte da guerra. O treme-treme inoportuno, molesta os transeuntes. Inspira repulsa [...], atenuada por condecorações. Equipamento C: vítima do progresso industrial. O cego digno de piedade 6


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ou A Escola Superior da Arte de Mendigar. [...] Equipamento D [...]. Neste caso, são as machas que inspiram piedade. [...] Equipamento E: jovem que conheceu dias melhores, isto é, cujo berço não lhe prometia tanta desgraça.” Em BRECHT, Bertolt. Teatro Completo. v.3. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 18-19. Em acervo digital da Fundação de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais Dinarco Reis. Disponível em: <http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=5:declaracao-sobre-a-politica-do-pcb-marco-de-1958&catid=3:temas-em-debate>. Acesso em: 6 dez. 2020. 7

Referências bibliográficas Livros ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Becktt: O silêncio possível. Cotia – SP: Ateliê, 2001. BECKETT, Samuel. Esperando Godot. São Paulo Companhia das Letras, 2017. EAGLETON, Terry. Marx estava certo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1986. BRECHT, Bertolt. Teatro Completo. v.3. São Paulo: Paz e Terra, 2004. MARX, Karl. O Capital – Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013. ___________. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Oduvaldo Vianna Filho/1: Teatro. Rio de Janeiro: Edições Muro, 1981. SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

Artigos publicados em jornais DAVID, Carlos. Jornada com graça e verdade. Correio da manhã, Rio de Janeiro, Segundo Caderno, p. 2, 18 jun. 1968a. _____________. Um novo Plínio Marcos. Correio de manhã, Rio de Janeiro, Segundo Caderno, p. 2, 14 jun. 1968b.

Dissertações e teses CONTIERO, Lucinéia. Plínio Marcos: Uma biografia. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras. Universidade Estadual Paulista, Assis – SP, 2007.

Documentos eletrônicos BOAL, Augusto. O que pensa você da arte de esquerda? São Paulo, 1968. Disponível em: <http://augustoboal. com.br/2018/01/17/o-que-pensa-voce-da-arte-de-esquerda/>. Acesso em: 14 dez. 2020.


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CARBONE, Roberta. Um Plínio diferente do que se habitou a aplaudir: A encenação de Jornada... por João das Neves no Opinião. XXV Encontro Regional de História da Anpuh-SP – História, desigualdades & diferenças. São Paulo: Anpuh-SP, 2020. Disponível em: <https://www.encontro2020.sp.anpuh.org/resources/anais/14/ anpuh-sp-erh2020/1591367530_ARQUIVO_15c150dd3e952121bb8f57b7f1844adb.pdf>. Acesso em 22 dez. 2020. DECLARAÇÃO de Março. Fundação de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais Dinarco Reis. Disponível em: <http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=5:declaracao-sobre-a-politica-do-pcb-marco-de-1958&catid=3:temas-em-debate>. Acesso em: 6 dez. 2020.

Documentos não publicados Documento emitido pela Divisão de Diversões Públicas da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo e assinado pelo censor Geraldino Russomano em 29 de abril de 1966, que consta no processo de censura da peça, cedido à pesquisa em maio de 2017 pelo Arquivo Miroel Silveira, pertencente à Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e recolhido, em 2018, para o Arquivo Público do Estado de São Paulo. MARCOS, Plínio. Jornada de um Imbecil Até o Entendimento.


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NOS BASTIDORES E NOS PALCOS: A RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA BRENDA MARIA RODRIGUES DOS SANTOS1 AMANDA BEATRIZ SILVA DE GODOI2

Resumo

Abstract

A resistência feminina ao golpe civil-militar brasileiro de 1964-1985 é abordada neste trabalho em dois espaços, o primeiro se refere ao engajamento das mulheres em partidos políticos ditos de esquerda que, com o golpe de 1964, passaram a serem considerados organizações clandestinas. E o segundo se refere às cantoras que por meio das músicas que interpretavam e/ou em entrevistas, se manifestaram contrárias ao governo ditatorial, como foi o caso de Nara Leão, Gal Costa e Elis Regina. O intuito desse artigo é destacar a participação feminina em ações contestatórias durante o período histórico delimitado.

The female resistance to the Brazilian civil-military coup of 1964-1985, is addressed in this work in two spaces, the first refers to the engagement of women in left-wing political parties that with the coup of 1964, became considered clandestine organizations, and the second refers to singers who through the songs they played and/or in interviews, demonstrated against the dictatorial government, as was the case of Nara Leão, Gal Costa and Elis Regina. The purpose of this article is to highlight the participation of women in contesting actions during the defined historical period.

Palabras chave: Ditadura militar; Mulheres; Militantes; Política.

Keywords: Military dictatorship; women; Militant; Political.

Graduada em História ( licenciatura) pela Universidade Estadual de Goiás - Campus de Ciências Socioeconômicas e Humanas (2015- 2018). Mestranda em Sociologia na Universidade Federal de Goiás. email: brenda_maryr@hotmail.com 1

Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás. Possui graduação em História pela Universidade Estadual de Goiás (2018). email: godoiamanda2016@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-1607-7913 2


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Introdução A participação feminina na política mundial, de acordo com Moraes et al. (2014) tende a estar relacionada aos níveis de democracia do país, ou seja, quanto maior a qualidade da democracia, maior é a porcentagem de cadeiras ocupadas por mulheres no parlamento. O Brasil entre 2004 e 2013 possuía 8,7% de mulheres no parlamento, enquanto entre 2008 e 2013 seus scores de democracia era de 62,45%. De acordo com o estudo de Moraes et al. (2014) os países que mais possuem mulheres ocupando cargos no parlamento são os que têm a pontuação no ranking de democracia maior que 70. Levando em consideração a baixa participação feminina na política brasileira em tempos democráticos, este trabalho tem como intuito compreender a participação feminina na luta pela democracia em tempos ditatoriais, ou seja, o papel exercido por mulheres na resistência à ditadura. A ditadura civil-militar no Brasil ocorreu entre os anos de 1964 e 1985, e foi marcada por perseguição, tortura, morte e desaparecimentos, “foram sucessões de atos institucionais, atos complementares, leis de segurança nacional e decretos-leis. Um regime forte, destinado a conservar a ordem, entendendo como desordem qualquer manifestação de opinião contrária à sua” (COLLING, 1997, p. 21). Apesar de ser comum que liguemos o golpe de 1964 somente aos militares, é importante lembrarmos que durante esse período não foram apenas os militares que ocuparam cargos de chefia no país, como ressalta Colling, Os presidentes da República deste período foram todos militares, é verdade, mas os civis não só colaboraram no golpe, como também ocuparam funções importantes e até estratégicas durante o período. Como por exemplo, o Ministério do Planejamento, que foi sempre ocupado por homens sem farda (COLLING, 1997, p. 23).

O fim da década de 1950 e início de 1960 foi marcado por vários acontecimentos, tais como a vitória da revolução cubana, em 1959, entre outros, como os processos de independência nacional na África, o que conferiu novo alento aos movimentos nacional-estatistas latino-americanos. De acordo com Reis (2002) no contexto internacional, surgiu uma conjuntura de lutas sociais, que até o momento, não havia existido na história do Brasil República. A renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961, marcou a nação. A década de 1960 foi então marcada por transformações políticas, culturais e sociais em todo o mundo, e a radicalidade e a rebeldia foram características fortes da juventude desse período. É nesse contexto que o movimento feminista inspirado na Europa e nos Estados Unidos explode no Brasil, tendo como uma de suas pautas a luta


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pelo voto feminino, valendo ressaltar que eram as mulheres mais cultas que tinham acesso às notícias internacionais que levantavam essa bandeira. A mulher rompe com o seu papel socialmente constituído de mãe, esposa, dona de casa e filha dedicada – estabelecido no âmbito privado e que implicava em uma participação política não tão expressiva. Toma-se a decisão de enveredar pela arena política – leia-se espaço público – que era considerado o cenário de atuação masculina. Tal decisão corresponde à vontade de se dedicar ao projeto de transformar a sociedade (INSUELA, 2011, p. 46).

Considerando esse momento internacional de reivindicação feminina ao direito de votar, ou seja, escolher seus representantes políticos, entre outros direitos, este trabalho cujo recorte temporal ocorre em um momento ditatorial, onde não há nenhum tipo de voto civil, aborda como mulheres contrárias ao governo se manifestaram e lutaram pela retomada da democracia no Brasil. Para isso, observamos a participação feminina em organizações clandestinas e no campo musical. Este trabalho realiza um estudo bibliográfico sobre a resistência feminina à ditadura civil militar no Brasil, no âmbito da militância em organizações políticas clandestinas e militância cultural realizada por intérpretes femininas da música brasileira. Nesse sentindo, consultamos trabalhos sobre a Ditadura civil-militar no Brasil, e sobre a participação feminina em partidos ditos de esquerda no período de 1964 a 1985 que compreende a ditadura militar no país, e sobre a contribuição de Nara leão, Gal Costa e Elis Regina. É importante ressaltar que o objeto deste trabalho é a participação feminina em ações políticas contrárias ao regime estabelecido, e não a participação a favor. “Puta comunista” a participação feminina em organizações clandestinas Após o golpe militar em 1964, os partidos ditos de esquerda passaram para o status de organizações clandestinas, segundo Colling (1997). Além de lutar contra o regime ditatorial, a esquerda brasileira também lutava entre si. A participação feminina na luta contra a ditadura civil-militar se deu em duas frentes, “na luta contra a repressão e na luta contra as desigualdades entre homem e mulher’’ (COLLING, 1997, p. 43). A esquerda brasileira estava preocupada apenas com o que considerava ser a maior contradição existente, ou seja, a oposição entre proletariado e burguesia, e não abria espaço para as discussões referentes à gênero. Além disso, nas questões ligadas à moral e comportamento, a esquerda era conservadora e recebia as mudanças de comportamento muitas vezes como sinônimo de retrocesso, um exemplo disso é “o caso da militante do PCB que eleita delegada para um congresso do Partido, foi vetada


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por duas bases do Recife porque não era virgem” (COLLING, 1997, p. 33). Ou seja, Impunha-se às mulheres a negação de sua sexualidade como condição para a conquista de um lugar de igualdade ao lado dos homens. As relações de gênero diluíam-se na luta política mais geral. As mulheres assexuavam-se numa tentativa de igualarem-se aos companheiros militantes (COLLING, 2004, p. 8).

Era raro que mulheres chegassem a ocupar postos de liderança nas organizações, apesar de ser comum que fossem encarregadas das ações mais perigosas, posto que os dirigentes acreditavam que elas eram menos visadas pela ação das forças repressoras. Apesar das dificuldades em encontrar espaço na luta, muitas mulheres tiveram papel de destaque em combates armados contra o exército, como por exemplo Criméia Schimdt, estudante de enfermagem que atuou na Guerrilha do Araguaia, e ainda Luzia Reis, Helenira Resende, Dinaelza Santana, Elza Monnerat, Maria Lúcia Petit, etc. A participação feminina na luta armada, de 1969 a 1974, não foi bem aceita por seus rivais e nem mesmo por seus companheiros de causa, como aponta Dyniewicz (2017). Elas sofreram discriminações tanto pela superproteção, como pela subestimação de sua capacidade física e intelectual. As mulheres não eram compreendidas enquanto sujeitas autônomas, que podiam escolher participar e agir dentro de uma luta política, sendo tratadas como pessoas a serem tuteladas, que não deviam adentrar o espaço público. Era comum que a ação feminina junto a militância fosse reduzida à sombra masculina em suas vidas. Nos documentos da repressão, as mulheres que aparecem como, Amásias e amantes sucedem-se nos documentos do DOPS. É Benedita, Rosa, Sonia, Vera... Todas com atividades subversivas, segundo a repressão. Mas estas atividades aparecem em segundo plano. Em primeiro lugar está o seu envolvimento com homens subversivos. Muitas vezes nem seu envolvimento político aparece (COLLING, 1997, p. 97).

Mas isso não é novidade, posto que: Historicamente o feminino é visto como subalterno e analisado fora da história, porque a sua presença, embora constatada muitas vezes, não é registrada, diluindo-se na homogeneidade do todo unitário, e não nas suas particularidades. Nesta homogeneidade o seu discurso se perde, é considerado insignificante e até divisionista (COLLING, 1997, p. 94).

A repressão durante o período ditatorial no Brasil, atuou por meio do DOPS, DOI-Codi,


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OBAN, e organizações paramilitares, muitas vezes localizadas em casas no subúrbio, “tudo era feito às escuras, longe da sociedade e de qualquer sistema de proteção legal” (COLLING, 1997, p.79). As violências praticadas pelo sistema repressivo através das torturas tiveram significados diferentes entre os gêneros. Um exemplo disso, são as diferentes percepções entre mulheres e homens sobre as torturas que envolviam nudez. Esse tipo de prática tem um significado profundo para as mulheres, Simone explica que o fato de deixarem a mulher nua e sem poder ver faz com que ela fique só consigo mesma, pois ninguém a vê e ela não vê ninguém” (...) Segundo Simone: “Isto é um horror que não tem imaginação que possa alcançar, tu terminas assim em posição fetal, porque tu começas a te tapar, não tem como nem o que tapar, tu não sabes o que eles estão olhando, tu queres te tapar toda e aí tu vais te encolhendo, te encolhendo, vira um feto (COLLING, 1997, p.83 e 84).

A mulher não era vista pela repressão enquanto sujeito político, e tampouco era tratada em pé de igualdade por seus companheiros de resistência. Ao invés disso, era comum que se utilizasse o termo “puta comunista” para se referir a elas, “pois além de serem desviantes – por serem contra o regime- já que são comunistas, são também “putas”, pois se relacionariam com vários parceiros e praticariam o “amor livre” (INSUELA, 2011, p. 60). Os torturadores na maioria homens, fizeram da sexualidade feminina objeto especial de suas taras, A bancária Inês Etienne Romeu, 29 anos, denunciou: (...) A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais. “Márcio” invadia minha cela para “examinar” meu ânus e verificar se “Camarão” havia praticado sodomia comigo. Este mesmo “Márcio” obrigou-me a segurar o seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante este período fui estuprada duas vezes por “Camarão” e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidade, os mais grosseiros (...) (Arns, 2001, p. 47).

As torturas praticadas contra as mulheres tinham como objetivo fincar na cabeça das mulheres que poder e política rimam com masculinidade, e não feminilidade. A insurreição dos homens naquele contexto era um pecado, no entanto “a mulher cometia dois: o de lutar juntamente com os homens e o de ousar sair do espaço privado, a ela destinado historicamente, adentrando no espaço público, político e masculino” (COLLING, 1997, p.80). Segundo Arns (2001), embora a tortura seja instituição muito antiga no país e no mundo, ela ocupou, no Brasil, a condição de instrumento rotineiro nos interrogatórios sobre atividades de oposição ao regime. As mulheres gestantes também eram


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torturadas de formas cruéis, não só física como psicológicamente, o que muitas vezes ocasionavam o aborto, Mulheres abortaram em consequência das torturas físicas sofridas, como foi o caso da secretária Maria Cristin Uslenghi Rizzi, de 27 anos, que, em 1972, denunciou a justiça militar de São Paulo: (...) sofreu sevícias, tendo inclusive, um aborto provocado que lhe causou grande hemorragia, (...) (Arns, 2001, p. 50).

De acordo com Insuela (2011), as sevícias passavam pela conotação sexual, com abusos, humilhações físicas e verbais, durante a tortura. A repressão não diferia homens e mulheres, não as poupando da violência. Segundo Priotto, As mulheres após serem presas passavam por rituais de tortura que incluíam abuso sexual por parte de guardas e comandantes, xingamentos, choques elétricos, sendo que estes eram aplicados com o corpo molhado para acentuar ainda mais sua potência. Ressalta-se que entre as torturadas havia grávidas. Tais atos de violência eram realizados principalmente nas madrugadas, e eram justificados como forma de conseguir informações sobre as organizações clandestinas de resistência à Ditadura. Além da violência física e psicológica, houve também a prática do exílio. Essa violência estava voltada ao emocional das mulheres extraditadas e aos seus familiares atingidos, mas também às mulheres que tinham parentes extraditados (PRIOTTO, 2015, p. 10).

A participação das mulheres militantes na luta contra a ditadura militar ainda é um assunto pouco abordado pela historiografia. Ainda de acordo Priotto (2015), essas mulheres que participaram ativamente das lutas contra a ditadura militar no Brasil foram “apagadas” da história. As hipóteses que poderiam explicar esse “apagamento” podem ser aqui elencadas pela pouca importância atribuída a essas mulheres, por elas estarem fora do espaço que lhes era reservado de acordo com a sociedade da época ou mesmo pela própria posição historiográfica, até pouco tempo não interessada nas histórias das mulheres. A relação entre os militares da repressão e as mulheres era baseada por poder, na tortura, humilhação e violência. Durante os anos de ditadura no Brasil, os preceitos estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos não foram respeitados, “tal situação se ratifica com afirmação de um agente do DOI-CODI, relatada por uma militante presa e torturada: Aqui não existe nem Deus, nem pátria, nem família. Só você e nós” (MEDEIROS; LEMANSKI; MEDEIROS; p. 3). A violência foi materializada na tortura, principal relação que se estabeleceu entre a repressão e as mulheres militantes na prisão. Os objetivos fundamentais dos torturadores eram de fragilizar, amedrontar e coibir essas mulheres, deixando-as em


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posição de inferioridade em relação ao poder repressivo. Cantar é resistir! O engajamento feminino no campo cultural A arte assumiu no período ditatorial a missão de levar a mensagem que os artistas buscavam transpassar, e que era compreendida pelos amantes da arte, havia artistas contra e artistas pró regime militar. Neste trabalho, falaremos um pouco sobre três artistas, cantoras, intérpretes, mulheres, que obtiveram destaque ao cantar músicas com cunho protestatório. A censura infligida pelos militares teve seu período mais terrível entre os anos de 1968 e 1974, e isso ficou pior durante o Ato Inconstitucional nº 5 (AI 5), decretado pelo General Costa e Silva que fez com que a censura aplicada às artes em geral fosse mais rígida. Com a música, que era naquele cenário a manifestação cultural contrária ao regime ditatorial mais forte, a censura foi ainda mais dura e repressiva. Mesmo com tantas restrições causadas pela censura, houve artistas que se posicionaram contrários ao regime, e utilizaram as manifestações culturais para espalhar ideais democráticos, e tentar modificar a situação político-social do país. Diante desse cenário repressor que abatia o país, surgiram os festivais de música popular brasileira. A Música Popular Brasileira (MPB) nesse contexto se projetou nacionalmente, criando estruturas para apresentações em grandes espaços físicos e tendo como temática principal a situação política brasileira. As canções ou músicas de protesto que eclodiram no período de ditadura civil-militar no Brasil, se apresentaram como ícones e símbolos de luta e resistência. Assim, como a MPB, e o tropicalismo as canções de cunho protestatório tiveram espaço para surgir ou se fortalecerem durante as décadas de 1960 e 1970, que foram palco de grande produção cultural, na qual a música foi grande destaque. O “show de Opinião” que estreou em 1964 no Teatro Arena foi o primeiro protesto artístico nesse sentido, com teatro, música e poesia, denunciando a pobreza e a injustiça social no país batizado em homenagem ao pau brasil, A cultura foi o calcanhar de Aquiles durante o regime militar, sendo expressão de grandes impasses e contradições durante o período. Segundo ele, se a direita golpista tinha tecnocratas brilhantes e magistrados respeitados, faltavam-lhes humanistas (SARAIVA, 2015, p. 81).

O processo complexo de criação do Tropicalismo se deu em um contexto antagônico, o qual foi mal aceito pela direita e pela esquerda. O projeto foi interrompido subitamente, com o exílio de Caetano e Gil, que procuraram abrigo em Londres, entre 1969 e 1972. Gal assumiu nesse momento o papel de figura central na resistência contra a repressão militar no cenário musical brasileiro (CONTENTE, 2021).


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Por falar em Gal Costa, não podemos esquecer de Nara Leão e Elis Regina, três intérpretes da música brasileira, que durante o período de vigência do Estado de exceção, em momentos diferentes e em meio a um turbilhão de acontecimentos e sentimentos, foram porta voz da resistência ao regime ditatorial. As cantoras utilizaram a música como um meio de divulgação de informações, de conscientização da população, além de utilizarem de melodias como forma de protesto contra a ditadura e a censura implementada sobre o meio musical (ARAÙJO, 2018, p. 17). O trabalho delas foi diretamente influenciado pela censura, tendo que recorrer em suas performances musicais a elementos interpretativos para expressar seus posicionamentos políticos-ideológicos. Inicialmente representante da Bossa Nova, Nara Leão lançou Zé Keti e João do Vale, o show de Opinião em 1964, no qual ela difundiu o Samba de Morro. Foi considerada musa da Bossa Nova até 1964, quando passa a ser chamada de musa da oposição, momento em que “começa a tomar conhecimento de outros temas, em suas palavras começou a descobrir um Brasil que ela não via do seu apartamento na zona sul” (SARAIVA, 2015, p. 83). A cantora fez várias críticas ao regime ditatorial, como à política econômica, à censura, entre outras. A proclamação do AI-5 afetou fortemente o meio artístico e a carreira de Nara, que após o decreto do AI-5, pronuncia em entrevista que, sem liberdade era impossível fazer arte; portanto, naquele momento, não tinha como prosseguir com a carreira. Mesmo que de forma implícita, a cantora sempre frisava a importância da liberdade, democracia, igualdade. Seja em suas músicas, espetáculos, entrevistas. Portanto, a “Musa da Bossa Nova” era considerada uma subversiva, comunista, inimiga do estado. Isso tudo gerava um grande incômodo entre os militares; mas, talvez o fato que causava ainda mais repulsa era o de ter como uma das referências de resistência ao Regime Militar uma mulher (SARAIVA, 2015, p. 108).

Já Gal Costa começou a cantar no estilo bossa novista, inspirada em João Gilberto, e posteriormente se vinculou ao Tropicalismo. Ficou conhecida como “rainha do desbunde” no auge de sua militância, até 1974 momento no qual Elis Regina assume o posto, Elis Regina construiu sua carreira mesclando influências nacionais (samba, forma de cantar inspirada nas cantoras do rádio, etc) a aspectos claramente identificados como estrangeiros, como o jazz utilizado em seus discos, além do instrumental para executá-lo, dentre outros elementos, demonstrando que sua obra se configurou através de uma complexa construção cultural, diálogos, referências e influências. Na prática, essas contradições se configuram enquanto organizações simbólicas viáveis e possíveis, uma vez que fazem parte de comportamentos humanos e, por isso mesmo, nada


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naturais. Elis foi uma das artistas, dentre inúmeros outros mediadores, que também contribuiu para a construção de uma identidade brasileira, no caso dela, através da música (FANTINI, 2011, p. 17).

O marcante engajamento de Elis, na música de protesto durante o período ditatorial brasileiro, pode ser explicado pelo “intuito denunciar as situações vividas pelo povo, pelas minorias, além de demonstrar a grande revolta por parte da juventude esquerdista contra tudo que estava sendo estabelecido no país por meio da ditadura militar”, que a música tinha naquele contexto (ARAÙJO, 2008, p.16). Um ponto importante na carreira da cantora foi o fato de ter sido escolhida, nacionalmente, a cantora do ano. Elis ganhou o festival e ainda foi indicada ao prêmio de melhor intérprete, conquistando-o: “com o tempo, Elis foi abandonando a bossa nova e se inclinando para o novo gênero que estava sendo produzido no país, a chamada MPB, adotando um caráter mais nacionalista” (ARAÚJO, 2008 p. 53). Embora os discos e espetáculos de Elis Regina não demonstrassem posição contrária à Ditadura Militar até o início dos anos 1970, o posicionamento contrário acabava surgindo em algumas entrevistas. Essa postura fez com que a intérprete recebesse duras críticas da imprensa e de parte do público, sendo acusada por uma suposta conivência com o regime. Mesmo que seu posicionamento até esse momento não tenha sido tão marcante e escancarado como o de outros artistas, “uma artista ligada às artes como Elis Regina não podia deixar de se posicionar politicamente, nem que fosse, tão somente, como cidadã, o que acabava provocando a vigilância” (LUNARDI, 2011, p. 240), os serviços de segurança pública e política pública a vigiavam assim como a todas as cantoras e cantores que defendiam a democracia e a liberdade naquele longo período brasileiro de trevas. Apesar de ter dado voz a canções de cunho político e social atreladas à estética nacional-popular, entre 1965 e 1968, Elis não foi propriamente tida como uma voz política do período. Seu conservadorismo musical, que lhe valeu a alcunha de defensora da música brasileira, apontava para outras preocupações que não a resistência contra o regime militar. Já a aderência de Gal às propostas tropicalistas abriu caminhos para que ela obtivesse um reconhecimento protagonismo político, dentro do campo cultural brasileiro contra a ditadura (CONTENTE, 2021, p.25).

Foi atribuída à Gal e Elis, a figura voz política feminina durante a vigência do regime de exceção. A passagem de bastão entre elas ocorreu de forma gradativa e simbólica entre 1945 e 1975. Inicialmente Gal foi a porta bandeira da resistência no início do regime e nos anos que seguiram à promulgação do AI 5. O posto foi ocupado por Elis apenas no fim dos anos 1975 até pouco antes de sua prematura morte aos 36


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anos (CONTENTE, 2021). As produções dessas artistas durante o período já delimitado, foram pensadas visando seus respectivos público consumidor, constituído majoritariamente por indivíduos de classe média, intelectualizados. A canção foi um veículo para discussão de questões ideológicas e identitárias. As composições musicais interpretadas por Elis, que nesse momento atuava como porta-voz de uma intelectualidade brasileira que chegava a questionar a legitimidade do regime militar, acabava trazendo debates sobre a identidade nacional e questões sociais urgentes (CONTENTE, 2021). Elis e Gal são intérpretes de canções de terceiros. Elis é coautora de apenas uma canção, Triste amor que vai morrer, com Valter Silva, nunca gravada por ela. Já Gal é creditada por duas composições: Love, try and die, com Jards Macalé e Lanny Gordin, e Quando, em parceria com Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil. As artistas, no entanto, são autoras de suas obras, pois tanto o processo de seleção de repertório quanto a escolha de como interpretar uma canção contribuem para que elas sejam assim consideradas. (CONTENTE, 2021). Gal, estava amparada por uma rede de músicos, compositores, cineastas, poetas e artistas plásticos que nutriam a contracultura pós-tropicalista, e se valia da repressão como mote criativo para compor narrativas críticas ao regime militar, através de discos e espetáculos que lançou no período (CONTENTE, 2021, p.25)

Houve um posto na gravadora Philips nesse período, destinado a uma voz política feminina. Nara Leão foi a primeira ocupante deste entre 1964 e 1967, após sua bem-sucedida estreia pela Elenco, lançando também em um curto espaço de dois anos, ao menos seis discos com músicas de protesto. O repertório engajado e as declarações públicas contrárias ao regime colocaram Nara na mira dos militares, a artista foi se retraindo até, sentir a necessidade não só de tomar outros rumos na carreira, como também de se exilar na França até que a perseguição contra ela se atenuasse. Diante dos desdobramentos culturais e políticos que se sucederam, como o próprio AI-5 e o exílio de Caetano e Gil, em fins de 1968 passaria a ser Gal a ocupante do posto de voz política feminina da Philips. Esse espaço seria paulatinamente transferido para Elis Regina, na segunda metade da década seguinte (CONTENTE, 2021, 32).

Esse posto de voz política feminina permaneceu fixo na gravadora até o fim da década de 1970. A ocupação desse papel simbólico e cultural foi revezada pelas artistas Nara, Gal e Elis.


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Gal adotou uma postura reservada na mídia. A imprensa até tentou inseri-la na teia de intrigas e fofocas que alimentava o mercado editorial, mas a cantora não deu espaço para essas narrativas. A projeção criada sobre ela foi a de uma pessoa carismática e descontraída que transitava em diversos ambientes da MPB. Isso possibilitou que suas aparições em colunas sociais na transição entre a década de 1960 e 1970 fossem frequentes. Sobre a construção da carreira internacional de Elis, esta coincidiu com a união matrimonial da intérprete com Bôscoli. Deste momento até a instauração do AI-5, é onde se localiza o período mais próximo da existência de posicionamento conservador na sua trajetória. Isso porque ela se engajou na passeata contra a guitarra elétrica, desaprovou publicamente o Tropicalismo e concedeu algumas declarações controversas à imprensa. Uma dessas declarações foi a revista Manchete (17 jun. 1967), sobre Nara Leão, ex-noiva de Bôscoli e cantora que então via como grande concorrente. Elis afirmou que Nara havia traído os movimentos musicais dos quais participara, atuava de acordo com suas próprias conveniências. (...) A mesma matéria registra que “tanto Bôscoli como Elis consideraram o Tropicalismo avançado demais” (CONTENTE, 2021, p.88).

Simbolicamente enterrada por Henfil, Elis só foi ressuscitada em entrevistas com destaque em 1980, momento que marca o auge de sua participação política a favor da redemocratização do país, em 1979, ou seja, um ano antes ela havia lançado O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, que marcou a concessão da “anistia”. Gal Costa e Elis Regina foram figuras presentes e atuantes em momentos estratégicos para o desenvolvimento da música popular brasileira, sob vigilância da ditadura civil-militar. Nara Leão também foi importante nesse contexto, mesmo com ações contraditórias. Elas atuaram em momentos distintos, e de formas diferentes. Considerações finais As mulheres que realizaram alguma ação de resistência à ditadura civil-militar brasileira sofreram vários tipos de repressões, desde as mais bárbaras e escancaradas como as torturas, até a repressão mais velada que ocorria no âmbito das organizações ou da vida em família. A participação dessas mulheres foi de grande importância no contexto de resistência ao período ditatorial, e é importante para que possamos refletir sobre a participação feminina na política. A música teve nesse cenário grande importância enquanto espaço de reflexão e representação dos problemas nacionais, e contou com grandes nomes femininos,


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que tiveram papel fundamental na luta pela liberdade do país. Assim como foram exemplo de luta para outras mulheres, as quais se fortaleciam e questionavam a sociedade através das canções de protesto e das ações de cantoras e intérpretes como Nara Leão, Gal Costa e Elis Regina, as quais tratamos de forma breve nesse trabalho, dentre outras figuras femininas que atuaram no âmbito cultural e não foram citadas, mas que deixaram seu legado na história da luta pela democracia no Brasil. Ainda existem muitas lacunas a serem preenchidas acerca deste tema, no entanto, apesar de ser um tema pouco discutido, é inegável a relevância de se debater o papel exercido pelas mulheres enquanto sujeitos políticos na ditadura. As mulheres como já discutido no decorrer do trabalho tiveram que empreender uma luta dupla, e sofreram violências voltadas especificamente para sua condição de gênero em uma sociedade patriarcal. Referências bibliográficas ARAUJO, Bruna Alvez de. NARA, GAL E ELIS: Uma análise interpretativa durante os anos de censura. Orientador: Carlos Roberto Ferreira de Menezes Júnior. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Música, Universidade Federal de Uberlândia. ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais. Editora Vozes. Petrópolis, 2001. CASTRO, Tarzan de. Vida, lutas e sonhos. Goiânia: Kelps, 2016. COLLING, Ana Maria. As mulheres e a Ditadura Militar no Brasil. Universidade de Coimbra. Portugal, 2004. COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. CONTENTE, Renato. Não se assuste, pessoa! As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar. 1. ed. São Paulo: Letra e Voz, 2021. DINYEWICZ, Letícia Garcia Ribeiro. Vozes silenciadas: Apontamentos sobre violações de Direitos Humanos contra mulheres na Ditadura civil- militar brasileira. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X. FANTINI. Débora. O Nacional-popular na obra de Elis Regina (1961 - 1974). Dissertação (Mestrado em MESTRADO EM HISTÓRIA) - Universidade Federal de São João Del-Rei, 2011. INSUELA, Julia Bianchi Reis. Visões das mulheres na luta armada: repressão, imprensa e (auto) biografias (Brasil 1968/1971). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. LUNARDI. Rafaela. Em busca do ‘Falso Brilhante’: performance e projeto autoral na trajetória de Elis Regina (Brasil, 165-1976). 2011. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade de São Paulo, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. MAIA, Adriano Valério; STANKIENWICZ, Mariese Ribas. A música popular brasileira e a ditadura militar: Vozes de coragem como manifestações de enfrentamento aos instrumentos de repressão. 2015. Universidade Tec-


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nológica Federal do Paraná. MEDEIROS, Lisiane Alonço de; LEMANSKI, Rosana Moretto; MEDEIROS, Valquíria Trezciac. Mulher: Militância, ditadura e repressão. ULBRA, Guaíba. MORAES, Thiago Pérez Bernades et al. Mulheres, política e sub-representação. Um estudo sobre a correlação entre qualidade da democracia, ideologia e mulheres nos parlamentos. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5472577> Acesso em: 07 de agosto de 2020. NASCIMENTO, Ingrid Faria Gianordoli; TRINDADE, Zeidi Araújo; SANTOS, Maria de Fátima de Souza. Mulheres brasileiras e militância política durante a ditadura militar: a complexa dinâmica dos processos identitários. Interam. j. psychol. v.41 n.3 Porto Alegre dez. 2007. PRIOTTO, Marleide. Ditadura civil militar no Brasil: mulheres militantes. Guarapuava, 2015. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/cadernospde/pdebusca/producoes_pde/2014/2014_unicentro_hist_artigo_marleide_priotto.pdf> Acesso em: 02 jul. 2019. REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Editora: Zahar, 2000. Disponível em: <https:// edoc.site/ditadura-militar-esquerdas-e-sociedade-daniel-aarao-reis-pdf-free.html>. Acesso em: 18 jun. 2019. SARAIVA, DANIEL LOPES. A música brasileira em pessoa: Trajetória, Engajamento e Movimentos Musicais na obra da Intérprete Nara Leão. 2015. Dissertação de mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São João del-Rei.


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“REPENSANDO O CAMPO: UMA DISCUSSÃO SOBRE A HISTORIOGRAFIA DOS ESTUDOS CULTURAIS DURANTE AS DITADURAS LATINO-AMERICANAS” ANA MARÍLIA1 NATÁLIA BATISTA2

Miliandre Garcia de Souza: Licenciou-se em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), concluiu mestrado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com a dissertação "Do Arena ao CPC: o debate em torno da arte engajada no Brasil" (19591964), doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a tese "Ou vocês mudam ou acabam: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985)" e concluiu os estágios pós-doutoral em História pela Universidade de São Paulo (USP), com o trabalho "Políticas culturais na ditadura militar: a gestão de Orlando Miranda no Serviço Nacional de Teatro (1974-1979)" (2010) e na Universidade Federal Fluminense (UFF) com a pesquisa "Afinidades eletivas entre a Música Popular Brasileira (MPB) e o teatro engajado na década de 1960" (2017). Em 2007, publicou o livro "Do teatro militante à canção engajada: a experiência do CPC da UNE (1958-1964)", pela Fundação Perseu Abramo. De 2008 a 2009, desenvolveu uma pesquisa financiada pela Fundação Biblioteca Nacional que resultou no trabalho "Um intervalo entre dois atos: a censura teatral no Rio de Janeiro na transição das ditaduras (1945-1964)". Em 2019, publicou o livro, em parceria com Silvia Cristina Martins de Souza, "Um caso de polícia: a censura teatral no Brasil dos séculos XIX e XX, pela Eduel. Em 2021, organizou com Carlos Fico dois volumes da coletânea "Censura no Brasil Republicano", publicado pela editora Sagga. Foi professora adjunta da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), campus de Diamantina/MG. Integrou, também como professora adjunta, os departamentos de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Atualmente, é professora associada do Centro de Artes da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), campus Curitiba I. Atuou como secretária da Associação Nacional de História - Seção Paraná (Anpuh-PR). Transita pelos seguintes temas: arte e cultura, engajamento artístico, ditadura militar, censura e autoritarismo, resistência cultural. (Fonte: Currículo Lattes)


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[Ana Marília e Natália Batista] Nós gostaríamos que você falasse um pouco sobre a sua trajetória acadêmica e as razões/motivações que te levaram a pesquisar temas relacionados à cultura. [Miliandre Garcia] Ana Marília e Natália, antes de responder às perguntas sobre assunto tão instigante e oferecer um panorama da minha trajetória acadêmica, gostaria de agradecer imensamente o convite de vocês e também a equipe da revista Sures, do Instituto Latino-americano de Artes, Cultura e História, da Universidade Federal de Integração Latino-americana (Unila), para participar desse conjunto de reflexões dedicado ao tema da resistência. Embora minha formação universitária tenha sido realizada em várias instituições, minha trajetória acadêmica é orgânica em dois sentidos: todas essas etapas foram realizadas na área da história e, dentro nesta, contemplando as interconexões entre arte, cultura e política, autoritarismo e resistência no Brasil contemporâneo. No mestrado, pesquisei o Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes (CPC da UNE), com ênfase no departamento de música dirigido por Carlos Lyra. Nesse trabalho, orientado por Marcos Napolitano na Universidade Federal do Paraná (UFPR), com bolsa de estudos da Capes, procurei revisar a literatura produzida na década de 1980 com objetivos precisos como de promover uma autocrítica em relação à atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) diante do golpe de 1964, e tudo relacionado a ele direta e indiretamente, e sua defesa do programa de “resistência democrática”, ao contrário de outras dissidências de esquerda que optaram pela luta armada. Defendi a tese de que o “manifesto do CPC”, documento que centralizou essa discussão, não passava de uma “carta de intenções”, expressão utilizada por Marcos Napolitano na sua tese de doutorado. Esse manifesto foi originalmente publicado em maio de 1962 na revista Movimento e escrito por um filósofo que participou ativamente dos debates iniciados no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)e na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas não tinha nenhuma formação artística. Ao buscar outras referências que não apenas o “manifesto do CPC”, entre elas obras dos artistas envolvidos com as atividades do CPC, constato que nenhum deles seguiu ao “pé da letra” o “manifesto do CPC”, principalmente as recomendações de “adestramento artístico”. Alguns como Carlos Lyra, por exemplo, discordaram desta abertamente, tanto no momento em que ela foi apresentada e discutida por integrantes do CPC da UNE nos anos 1960 como também em entrevistas concedidas posteriormente. Esse trabalho, que me deu muita satisfação realizá-lo no início dos anos 2000, foi publicado pela editora Perseu Abramo em 2007, com o título Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE (1958-1964). Também me conduziu ao tema de pesquisa que desenvolvi na tese de doutorado, esta dedicada às especifi-


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cidades da censura teatral na ditadura militar. Nesse trabalho, sob orientação de Carlos Fico na UFRJ, com bolsa de estudos do CNPq, parto de duas variáveis. A primeira: embora houvessem leis para regulamentar a censura de diversões públicas, nesta a censura teatral, e o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), posteriormente transformado em Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), um órgão existente desde 1946, no regime ditatorial foi ressignificado, juntamente com a legislação, para atender às demandas dos governos, que variaram consideravelmente ao longo dos 21 anos de ditadura militar, bem como apresentaram avanços e retrocessos. Considerando, claro, que todo indício de “avanço” num regime de exceção traz consigo vícios de origem. A segunda: embora houvesse a intenção de se legitimar como instrumento pedagógico a serviço da sociedade, o SCDP/DCDP e seus agentes atuaram como uma espécie de blindagem dos governos vigentes e, para tanto, lançaram mão da censura política, mesmo não reconhecendo isso publicamente. Ao fazê-lo, atuaram como reprodutores e como agentes na construção de um imaginário anticomunista (objetivo imediato), este integrado às características autoritárias e conservadoras da sociedade brasileira (de longa duração), manipulando para tanto, indiscriminada e simultaneamente, elementos morais e políticos. Como o desenvolvimento e resultado da tese acabaram abrindo muitas frentes de trabalho, dividi o projeto de publicação em duas partes. A primeira, já publicada, reuniu uma pesquisa realizada na Biblioteca Nacional sobre censura antes e depois da ditadura militar, respectivamente nos períodos de 1945-1964 e 1985-1988, que resultou na reescrita e publicação, em parceria com Silvia Cristina Martins de Souza, referência em censura teatral no Império, do livro Um caso de política: a censura teatral no Brasil dos séculos XIX e XX, pela Eduel em 2019. Quando entrei no doutorado em 2004, o projeto de pesquisa tinha como um dos objetivos centrais analisar também uma outra face dessa dinâmica que era as políticas culturais implementadas na ditadura militar. Em virtude do problema priorizado na tese, bem como o excesso de fontes sobre censura, isso só foi possível de ser desenvolvido posteriormente, no estágio pós-doutoral na Universidade de São Paulo (USP), com bolsa de estudos da Fapesp e sob orientação de Marcos Napolitano. A resistência cultural, que também aparece na tese de forma muito incipiente, é o tema que venho desenvolvendo atualmente como projeto de pesquisa na universidade e que será publicado em breve com o título “Contra a censura, pela cultura”: a resistência cultural no teatro na ditadura militar brasileira. [AM e NB] Você tem várias pesquisas na área do teatro, da censura, da música, entre outros. O que você está pesquisando nesse momento? [MG] Como disse acima, no momento estou me dedicando ao tema da resistência cultural. Este que, de várias formas, reúne pesquisas que já realizei anteriormente, al-


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gumas publicadas na forma de artigo, e também abre para outras frentes de trabalho que pretendo desenvolver nos próximos anos. [AM e NB] Como você avalia a produção historiografia brasileira e latino-americana no que tange a essa temática? [MG] Com algumas exceções – a mais importante delas a tese de livre-docência de Marcos Napolitano, publicada com o título Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) – ensaio histórico (2017), a maioria dos trabalhos sobre resistência – aqui não me refiro aos que a contemplam a partir de estudos de casos que são em maior, mas que consideram seus aspectos conceituais – versa ou parte da experiência europeia no contexto da Segunda Guerra Mundial e nesta a formação das forças contrárias à ocupação nazifascista. Nesse trabalho que estou desenvolvendo, tomo noções gerais envolvendo essa experiência, bem como todo debate historiográfico que se constituiu em torno dela, apenas como ponto de partida para o entendimento de outras formas de resistência que ocorreram antes e depois dos anos 1930 e 1940, na Europa ou em outras partes do mundo. Portanto, ao partir de uma acepção mais abrangente do conceito de resistência procuro com isso considerar características comuns que atravessam os fenômenos históricos sem, contudo, ignorar as especificidades que as inúmeras possibilidades de resistência podem apresentar. O que as aproxima e o que as distancia são elementos que devem ser igualmente levados em consideração. Nesse trabalho sobre a formação da resistência cultural no teatro, no contexto da ditadura militar brasileira, procuro argumentar que o que inspirava artistas e intelectuais era mais a luta contra o subdesenvolvimento, seus agentes internos e externos e suas formas de opressão e dominação, que atravessavam os limites temporais e espaciais na história da humanidade e do Brasil, e menos a experiência da Resistência nos países aliados contra as potências do Eixo. Se havia um componente nacional como estratégia de resistência, que aproximava países ligados pelo subdesenvolvimento da Ásia, da África e da América Latina, isso não se estendia a países considerados desenvolvidos da Europa e também da América do Norte, dos velho e novo continentes. [AM e NB] Podemos apontar que ainda persiste uma memória que cruza a “memória de esquerda” a noção de “resistência democrática”, presente nos movimentos sociais, na mídia, mas também nas artes. Como você interpreta esta conexão, e qual a importância de pesquisar categorias como conservadorismo, colaboracionismo, acomodação ou cooptação no campo da cultura? [MG] Agradeço muito essa pergunta de vocês porque toda vez que um pesquisador


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menciona que investiga algo relacionado à resistência, principalmente na ditadura militar, por pressuposto se define que a pesquisa trabalha na chave resistência versus cooptação e, portanto, desconsidera as nuances do processo. Não se negligencia o fato de que o tema da resistência, em suas múltiplas dimensões, é um assunto controverso e por vários motivos. Um deles porque a historiografia que procura defini-lo como conceito não é de modo algum consensual e toda opção nesse sentido é permeada por riscos e apostas. Outro porque no Brasil o tema da resistência está diretamente associado à construção de uma narrativa que situa, de um lado, a sociedade como expressão da democracia, vítima da ditadura, de outro, os militares como encarnação do mal que se impôs sem consentimento sobre a população, quando pesquisas acadêmicas e farta documentação informam que parcela significativa da sociedade brasileira, numérica mas também representativamente, apoiou o golpe de 1964. Atualmente, os historiadores da ditadura militar brasileira estão empenhados em evidenciar a construção dessa memória por diferentes grupos, que deu (e dá) sustentação a essa análise polarizada da realidade. Nesta, um único grupo é exclusivamente responsável por inaugurar no Brasil um período de trevas que durou mais de duas décadas. Não que essa versão esteja diametralmente em descompasso com a realidade, em alguns campos da vida social, não em todos, foi realmente isso que aconteceu. Enquanto outro resistiu bravamente a todos os mecanismos autoritários impostos pelos militares, muitas vezes colocando em risco a própria vida, o que também e em alguns casos foi isso que realmente aconteceu. Mesmo considerando a validade parcial dessas interpretações, ainda assim são visões circunstanciadas de um complexo processo, que no caso aqui estudado envolveu inúmeras variáveis, internas e externas. Portanto, procura-se também situar esse trabalho no campo dessa historiografia mais atual, preocupada em desconstruir os artifícios dessa memória construída em torno da ditadura militar e, sendo assim, não se tem o menor interesse em reforçar a construção dualista resistência versus cooptação, mas contemplar a resistência cultural como objeto de pesquisa, tomando o cuidado de mostrar que esta, de modo algum, se caracterizou pela via do consenso, pela uniformidade das demandas. Também não se desconsidera experiências de silenciamento social diante da violência (física e simbólica), as medidas tomadas para impô-la nem as reinvindicações de recrudescimento destas por parte da sociedade. [AM e NB] Como as pesquisas sobre o campo cultural podem contribuir para a compreensão histórica dos regimes militares? [MG] O golpe civil-militar de 1964 e a consequente implementação da ditadura militar teve consequências dramáticas para a sociedade brasileira, em todos os campos da vida nacional. Algumas dessas consequências são perceptíveis já nos momentos


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iniciais da ditadura, tais como a ofensiva militar e paramilitar que estendeu os ataques às entidades estudantis e sindicais também aos grupos e eventos artísticos, com casos de atrizes e atores que foram espancados, sequestrados, humilhados e teatros pichados, destruídos e bombardeados. Os responsáveis por tal ofensiva chamavam isso de “terrorismo branco”, seu propósito era aterrorizar as pessoas, criar pânico, porém sem fazer vítimas fatais. Ao menos no início, pois bem sabemos que, posteriormente, a tortura se tornou prática amplamente empregada pelo Estado ditatorial. Outros, no entanto, impactaram a sociedade brasileira a médio e longo prazos. De qualquer forma, imediatamente ou não, também consciente disso ou não, toda sociedade sofreu e ainda sofre as consequências perversas da ditadura militar. Investigar, portanto, como isso se deu no campo da cultura e da produção artística e intelectual é também uma maneira de evidenciar a perversão desse processo como um todo, buscando apresentá-lo à sociedade, aos jovens que não viveram esse momento, mas também aos mais velhos que viverem e eventualmente compartilham de muitos juízos de valor. Ao apresentá-lo como pauta de discussão a todo tecido social, busca-se também relacioná-los, com as devidas preocupações, inclusive teórico-metodológicas, a outras experiências de obscurantismo que por ventura almejem se impor em outros contextos históricos. Se, como historiadores, não somos capazes infelizmente de impedi-las de acontecer, que ao menos tenhamos instrumentos necessários para denunciá-las. [AM e NB] Qual a importância de repensar as categorias de repressão e resistência quando se fala de ditaduras? [MG] Penso que a primeira precaução é não relacionar automaticamente repressão e resistência, como se a repressão fosse consequência da resistência e, portanto, justificá-la em função da organização e ação desta como se fez na ditadura militar, cujo golpe inaugural foi chamado de “contragolpe”, “contrarrevolução” e “redentora” ou se justificou a repressão e o emprego da violência a partir de uma suposta ofensiva das esquerdas. Pesquisas acadêmicas indicam, dispondo de farta documentação, que não existiu relação de causalidade entre repressão e luta armada na ditadura militar, nem mesmo em decorrência do AI-5, mesmo que essa relação por oposição seja apontada pela literatura memorialística e, eventualmente, por analistas do período. Essa, penso, deve ser a primeira distinção. A segunda diz respeito a outra associação que condiciona resistência ao seu provável resultado, à sua eficácia direita. A iniciativa de resistir não só não se pauta por nenhuma garantia, como sabemos, na maioria das vezes, resiste-se porque é necessário, não porque há evidências de vitória. Como pesquisadora das artes e da cultura na ditadura militar, deparei-me com centenas de manifestos, abaixo-assinados, petições, moções e cartas de repúdio. Todos eles tiveram um significativo papel simbólico, já que os regimes autoritários não só não costumam dar voz aos cidadãos, nesse caso a artistas e intelectuais, como fazem


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de tudo, valem-se de todos os instrumentos para silenciá-los. O fato de não serem ouvidos, no entanto, não tinha mais importância do que deveria ter, o que importava efetivamente era resistir de alguma maneira. Portanto, a organização da resistência nos regimes de exceção não deve se pautar por prováveis resultados, embora a derrota do inimigo esteja no horizonte de expectativas, muito menos deve-se esperar deles sucesso absoluto, uma vez que a validade da resistência se dá mais pela persistência das ações, do que pela sua vitória imediata. Acreditar num resultado rápido não só desmotiva os agentes da resistência bem como mina por dentro suas ações. [AM e NB] O tema do dossiê é “Arte, repressão e resistência nas ditaduras do Cone Sul”. Qual a importância de pesquisar esses temas no presente e qual a relevância de abordar esse assunto na sala de aula? [MG] A história não tem a obrigação de prever o futuro nem a de ter qualquer utilidade, finalidade ou função. Mesmo assim, continua necessária. Necessária porque é da condição humana, como indivíduo ou organizado em comunidade, sociedade, conhecer o passado e como este foi construído e consequentemente construí-lo, valendo-se, cada sociedade a seu modo, da mitologia, da religião, da filosofia, da ciência, entre outras. Nesse sentido, não só o tema da resistência como qualquer tema envolvendo a história do Brasil e do mundo tem relevância como devem ser abordados também em sala de aula. No caso da resistência em particular e das experiências organizadas enquanto tal porque oferece aos estudantes, e por meio destes à toda sociedade, a oportunidade de conhecer outras formas de resistência, por consequência outras formas de imposição, restrição, controle vivenciadas em outros momentos, e com isso evidenciar que, independentemente do contexto histórico/geográfico e dos governos totalitários/autoritários, resistir é preciso...


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EL QUEHACER TEATRAL INDEPENDIENTE URUGUAYO CONTRA EL CONSENSO CULTURAL DE LA DICTADURA: RADICALIDAD, LIMINALIDAD Y SUBVERSIÓN LUCIANA SCARAFFUNI1

Resumen

Abstract

Este artículo aborda las estrategias y astucias de resistencia de tres agrupaciones independientes uruguayas durante el período pre dictatorial (1968-1973) y el período dictatorial (1973-1985). Se centra específicamente en las astucias que los teatreros y las teatreras independientes emplearon en respuesta a los embates represivos del régimen. Lo cual denota un despliegue y un repliegue en el campo teatral independiente. Para comprender esas astucias se aborda la importancia que tuvo Bertolt Brecht y su paradigma en el quehacer teatral independiente, como herramienta pedagógica y como herramienta política. El análisis de la configuración del quehacer teatral independiente y la resistencia está enmarcada en dos bloques históricos que responden a las características que fue adoptando el régimen de profundización represiva y de censura, un primer bloque (1968-1973) y un segundo bloque (1973-1985).

This article deals with the strategies and cunning of resistance of three independent Uruguayan groups during the pre-dictatorial period (1968-1973) and the dictatorial period (1973-1985). It focuses specifically on the cunning that independent theater workers used in response to the regime’s repressive attacks to the cultural field. Which denotes a deployment and a retreat in the independent theatrical field. To understand these strategies, this article focus on the importance of Bertolt Brecht and his paradigm in independent theater work, and it’s usage as a pedagogical tool and as a political tool. The analysis of the configuration of independent theatrical work and resistance is framed in two historical blocks that respond to the characteristics of repressive deepening and censorship that the regime was adopting, a first block (1968-1973) and a second block (1973- 1985).

Palabras chave: Astucias; Resistencias; Teatro Independiente.

Keywords: Cunning; Resistances; Independent Theater

Docente e investigadora, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de la Republica Oriental del Uruguay (Udelar). Montevidéu, Uruguai. email: lucianascaraffuni974@gmail.com 1


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Introducción Mediante diferentes estrategias represivas, el régimen dictatorial uruguayo (1973-1985) permeó todas las esferas de la vida cotidiana de los individuos; no solo de los teatreros, sino de todos los ciudadanos, de diversas formas y a diferentes niveles. Al replegarlos hacia la vida privada y hacia la socialización restringida a los núcleos de amigos y familiares más cercanos, confiables e íntimos, el régimen buscó fragmentar la posibilidad de disidencia y acallar a las personas. Las familias se convirtieron en el núcleo “más seguro” de diálogo e intercambio. El análisis de las resistencias o astucias no sólo visibiliza diferentes niveles de las mismas, sino que también intenta dar cuenta de sus “tonalidades grises”. Si bien el régimen controlaba todos los aspectos de la vida diaria, también se enfrentaba a ciertos bloqueos, a ciertas restricciones, desde el campo cultural en este caso por ejemplo, en sus intentos porque los ciudadanos se adhirieran al consenso cultural y político que se quería imponer (Kershaw & Sierra, 2004), como veremos. Aquí es necesario tener en cuenta las ambivalencias y ambigüedades de las resistencias bajo una forma de dominación como un régimen dictatorial, ya que debemos considerar las intrincadas redes de articulación y desarticulación que se generan. No sólo me referiré a la interacción del movimiento teatral independiente y el autoritarismo, sino a las redes de articulación establecidas dentro del propio movimiento teatral independiente. Allí también hay complejidades y tensiones en las formas de actuar y de definir el quehacer teatral, las que a su vez generan desencuentros entre los teatreros y sus formas políticas de acción. Me detendré entonces en las astucias desarrolladas por los teatreros en las diferentes situaciones o niveles interrelacionados: la cárcel, el exilio y el ámbito público. El quehacer teatral se puede contextualizar a través de dos bloques que sirven de contexto al quehacer teatral independiente. Dichos bloques estarían caracterizados y determinados por el auge de un teatro político y militante en el período que va desde el año 1968 a 1973; el cambio en los recursos discursivos y dramatúrgicos, debido a la instauración del golpe de estado y el quiebre de la escena teatral, que durante los años 1973 a 1976 año caracterizado por la proscripción del Teatro El Galpón y a partir de ahí hasta 1984 hay una reconfiguración del campo teatral independiente. Los teatreros configuran la producción teatral con base en marcos sensibles compartidos, mediante los cuales definen experiencias comunes, gestos, emociones, que forman parte de su identidad, tanto como teatreros como militantes de izquierda, en su mayoría del partido comunista. En este sentido se torna muy difícil disociar el arte de la militancia política. Esto sucede con su participación y adhesión a varios eventos o actos políticos. Durante el segundo bloque histórico que marca el evento del golpe de Estado


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(1973-1985), se gesta un cambio en los recursos teatrales utilizados, y los teatreros crean estrategias para decir lo que no se podía decir, para definir lo que no se podía hablar a viva voz. Es así como las resistencias y astucias van de la mano del habitus dado por el “ser teatrero comunista”. Es decir, la producción teatral que realizaban grupos como El Galpón o el Teatro Circular (principalmente la de El Galpón) estaba emparentada no sólo con la formación artística que los teatreros fueron adquiriendo a lo largo de su profesionalización, sino por su pertenencia a la izquierda, especialmente al ser de izquierda, que en el caso de los galponeros está fuertemente determinada por el ser comunista. Las resistencias del teatro independiente son resistencias que involucran sutilezas, en el sentido de que el repertorio durante el segundo bloque o período historiográfico establecido (1973-1985), fue un repertorio de arte marcado por la clausura del teatro El Galpón (en el año 1976). Este repertorio va a incluir obras de Arthur Miller, de Molière y de Goldoni. El repertorio también va a incluir obras del teatro nacional, ya que la dramaturgia del autor nacional tenía un papel fundamental. Se destacan las obras de Jacobo Langser con La gotera y Esperando la carroza; Doña Ramona de Víctor Manuel Leites; Campamento y El combate de la tapera de Mari Vázquez. Las decisiones acerca del repertorio se realizaban colectivamente, por ende esto determinará que las resistencias también sean configuradas por el colectivo, considerando que estas son formas disfrazadas de disenso frente al régimen establecido, es decir, son decisiones que llevan a los teatreros a realizar actos carismáticos donde se dejan entrever los discursos ocultos en los márgenes del poder (Scott, 1990:20). La resistencia no se ve como algo monolítico, aunque muchas veces los actos fueran llevados a cabo en bloque. La resistencia dista de ser una mera relación lineal de dominación versus resistencia. Esto es aún más importante en lo concerniente al campo cultural, en las tensiones entre el campo cultural y el régimen dictatorial y dentro del mismo campo cultural, entre las agrupaciones teatrales. El término resistencia resulta útil aquí, dado que implica la presencia de un juego de poder, es decir, la presencia del poder impuesto por el régimen en todas las formas de relacionamiento de la vida de los individuos, que permea las actividades que estos realizan (Scott, 1990; Ortner, 2006). También debemos tener en cuenta que aquellos que están siendo controlados tienen agencia y conocimiento y pueden encontrar las formas de evadir y resistir, lo cual implica momentos de despliegue de procesos de agencia, tanto individual, como colectiva. Teniendo en cuenta que la hegemonía nunca es total en el sentido psicológico, ya que la gente tiene cierto grado de penetración en las condiciones de su dominación (Ortner, 2006). Antropólogas como Ortner y Abu-Lughod han hecho llamados para evitar la romantización del concepto de resistencia. Particularmente me interesan las ideas de Abu-Lughod, cuando plantea que la resistencia no sólo surge debido a imposiciones


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de poder, sino que puede ser vista y analizada como un cierto diagnóstico del poder (1990). Es decir, por esto también ha sido importante la definición de los bloques históricos en los cuales se desarrolla el quehacer teatral independiente, debido a que las producciones del campo artístico responden a las formas de relacionamiento que este campo ha tenido con el Estado antes, durante y posterior al régimen. En la siguiente sección se analizará el relacionamiento entre la militancia política de los teatreros de las distintas agrupaciones teatrales aquí expuestas, con las opciones o métodos estéticos y teatrales optados en los diferentes bloques, enfatizando en el protagonismo visible de Bertolt Brecht en la configuración del campo teatral independiente uruguayo. Las formas de resistencia en torno al “ser teatrero” Cada institución teatral que aquí se aborda, presenta perfiles de teatreros y teatristas que si bien no son excluyentes ni exclusivos de cada grupo, son característicos y delimitan un quehacer teatral. El Galpón y el Teatro Circular de Montevideo (TCM) tenían un funcionamiento similar, las decisiones se tomaban en asambleas, que fue la vía para la elección del repertorio, tal como lo planteó en su relato Luis Vidal. Esa forma de proceder se encuentra emparentada con la militancia político-partidaria de izquierda que tenían la mayoría de sus miembros y que los entrenó a actuar en bloque. Casi en su totalidad, quienes integraban la comisión directiva de El Galpón, pertenecían al Partido Comunista, mientras que varios miembros del TCM fundaron el 26 de Marzo, un sector de izquierda perteneciente al Frente Amplio, fuerza política que aglomera todos los partidos y sectores de la izquierda uruguaya hasta hoy y que fue fundada en 1971. El Teatro Uno no tenía las mismas características que las dos agrupaciones anteriores, si bien uno de sus fundadores, Alberto Restuccia, fue miembro del Partido Comunista desde muy joven. Restuccia había trabajado como obrero portuario, dentro del campo teatral y entre los propios teatreros de izquierda tendrá divergencias fuertes por elecciones estéticas y artísticas. Más allá de que no todos los teatreros asumen abierta y públicamente su militancia comunista, ésta determinó marcos sensibles y experiencias comunes. Las decisiones no sólo con respecto al repertorio sino también con respecto a las posturas político-ideológicas que toman las agrupaciones teatrales están configuradas en base a ese aspecto. Si bien El Galpón no surge en el seno del Partido Comunista, sus vinculaciones con el partido son esenciales. Desde la forma en que conciben el quehacer teatral, hasta la forma en que se plantean las resistencias o estrategias que les permitían se-


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guir construyendo un campo cultural. Con respecto a la pertenencia partidaria, destaca el galponero Juan Manuel Tenuta: Sí, tuve militancia, yo era comunista, porque en aquella época todos los jóvenes éramos comunistas, sobre todo cuando yo me formé..., en la guerra mi abuelo era anarquista, y... pero muy abierto, demasiado abierto ahora visto con mis ojos (...) Ya me hice ahí sin saber, lo que iba a ser el Frente Amplio porque yo nunca fui sectario, mi abuelo tampoco, me enseñó eso que el sectarismo no sirve para nada2.

El ser teatrero comunista se manifiesta en varios aspectos. Por un lado, en la concepción del teatro que se estaba construyendo no sólo artísticamente sino social y políticamente. También en las elecciones del repertorio y en las demandas que como campo cultural los teatreros realizaban, acompañando horizontalmente los procesos históricos del pueblo. Esto se encuentra relacionado con la politización del teatro. Las agrupaciones examinadas no realizaban espectáculos teatrales solamente, sino – como lo he venido argumentando a lo largo de la disertación –las puestas en escena tenían un objetivo político y una funcionalidad social. Esto involucraba posicionamientos ideológicos determinados, posturas estéticas, formas de concebir el campo cultural y el modo de ser teatrero. Tanto El Galpón como el TCM concibieron al arte como una herramienta para la transformación social. Parafraseando a Yáñez, el quehacer teatral estaba pensado como instrumento de cultura popular, democrática y nacional y este campo cultural pensado como un instrumento para el pueblo uruguayo (Yáñez, 1984). Los teatreros independientes buscaron construir el campo cultural de forma vanguardista, para lo cual Bertolt Brecht fue un artista de influencia fundamental. Tanto Atahualpa del Cioppo como Rubén Yáñez, directores emblemáticos de El Galpón, se apropiaron de Brecht de formas muy particulares, personales y políticas. La institución fue una de las primeras que junto con la Comedia Nacional (cuando estaba Rubén Yáñez) pusieron en escena las obras de Brecht en América Latina. Como director, Yáñez supo proporcionarle sustancia y coherencia a ese quehacer teatral. Dentro de las estrategias utilizadas por Brecht para la puesta en escena de sus obras era importante des-familiarizar la representación de lo que se mostraba, combinado esto con una imitación de la realidad social (Mumford, 2009). Siempre dejando entrever las relaciones de poder, Brecht también fue un hombre del Partido Comunista, pasó por diferentes etapas de compromiso en torno a su relación con el Partido, si bien es un dramaturgo que estaba ideológicamente posicionado, no necesariamente su protagonismo en el teatro independiente uruguayo, llevó a que se generara un mero fanatismo mecánico, ni a realizar espectáculos panfletarios. Ya que sus métodos fueron utilizados de diversas maneras en diferentes puestas en escena.


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Los teatreros asumen su condición de disidentes frente a las imposiciones del régimen, para lo cual el paradigma Brechtiano cumple una función primordial. Ésto no sólo aparecía cuando la puesta en escena era acerca de una obra del propio Brecht, sino cuando se ponían en escena otras obras y adaptaciones. Esta, fue una marca distintiva durante el primer bloque que corresponde (1968-1973) y hacia el segundo bloque (1973 -1985). En definitiva, esta fue la marca registrada de los galponeros, en tanto herramienta política de exposición de la realidad social. Durante el primer bloque propuesto, lo anterior se evidencia en la realización de la adaptación de la obra de Lope de Vega, Fuenteovejuna, adaptada por Antonio Larreta y Dervy Vilas. Aunque la esencia de la obra de Lope de Vega se mantenía, los teatreros Larreta y Vilas buscaron que la obra fuera significativa para la época que se vivía en Uruguay. Esta obra fue estrenada en la temporada de 1969, cuando ya se habían instaurado las Medidas Prontas de Seguridad bajo el gobierno de Jorge Pacheco Areco, y las movilizaciones eran fuertemente reprimidas bajo el estado de sitio. Aquí se da un juego visible entre el “discurso público” y el “discurso privado”, discursos distinguidos por Scott. Un ejemplo de esto es Fuenteovejuna y Libertad. En ambas obras se hace presente el paradigma Brechtiano y su forma de representar en escena. En el caso de Fuenteovejuna y de acuerdo a las notas de campo realizadas, esta obra puede catalogarse - como lo recuerda Dervy Vilas - como un “acto cívico”, un acto de resistencia, tal como lo consideraba Atahualpa del Cioppo. Esto es señalado por Dervy, quien afirma que el final de la obra es distinto, ya que tanto Larreta como Vilas lo hacen fiel a la postura ideológica que tenía el teatro, es decir, bajo la idea de que el pueblo fuera el protagonista de principio a fin3. La obra de Lope de Vega correspondía a su época. Se refería a la fidelidad al rey, como referente del poder real, de la encarnación del Estado. Por su parte Larreta y Vilas realizaron cambios contundentes en su libre adaptación, suprimieron aquello que para la época en Uruguay no era interesante poner en escena, reestructuraron y reorganizaron algunas escenas con el fin de que fuera funcional a los objetivos políticos que buscaba tener la obra4. En su adaptación libre, el pueblo tiene mayor protagonismo. El paradigma Brechtiano se hace presente debido a que no es la obra la que impone las soluciones; se busca que los individuos lo hagan y, por este motivo, al finalizar la obra se pone en escena el final de la adaptación de Vilas y Larreta y luego el final original de la obra de Lope de Vega: el pueblo pide la absolución al Rey por haber tomado la justicia por mano propia frente a los abusos de poder del comendador. El recurso brechtiano utilizado en esta adaptación consiste en plantear una estructura de hechos, no importa donde sucedan estos. Lo que sugiere esta estructura son hechos que el espectador puede estar viviendo sin haberse dado cuenta y que lo posicionan frente a una crítica de la realidad social. Se trata de métodos de acción a


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través de los cuales el dramaturgo y teatrista busca educar y hacer pensar al espectador (Weideli, 1969; Cuadernos de arte dramático, 1953) A su vez, la puesta en escena de estos hechos estuvo acompañada de coros y de la música del director de orquesta Federico García Vigil. También se emplearon carteleras que acompañaban las acciones de los personajes. Todo esto era parte del recurso del teatro épico de Brecht, el cuál permitía que los hechos se representaran de forma más fácil; el centro de este tipo de teatro no era la estética (Cuadernos de arte dramático, 1953). El crítico teatral Gerardo Fernández destaca para este primer bloque (19681973) las siguientes producciones realizadas bajo este paradigma teatral: Operación masacre, basada en la novela de Rodolfo Walsh, versión de Jorge Curi y Mercedes Rein realizada por el TCM en el año de 1973. Fuenteovejuna, dirigida por Antonio Larreta y adaptada por Larreta y Dervy Vilas para el vigésimo aniversario de la fundación de El Galpón en el año 1969. Los Fusiles de la patria vieja, versión libre de Los Fusiles de la Madre Carrar de Bertolt Brecht dirigida por Omar Grasso en el año 1971, con un elenco de teatreros de teatros independientes. La Resistible Ascensión de Arturo Ui de Bertolt Brecht, realizada en el año 1972 y dirigida por Rubén Yáñez para el teatro El Galpón. Finalmente, Los días de la comuna de París de Bertolt Brecht, dirigida por Omar Grasso en el Teatro Circular en 19725. Estas piezas son exponentes del teatro Brechtiano, aquí los teatreros desempeñan una función didáctica, dado que los individuos pueden o no conocer los hechos, lo que importa es que los representen y los presenten en escena de manera de que los propios individuos puedan formarse una opinión acerca de lo que presencian(Cuadernos de Arte Dramático, 1953). En este teatro se buscaba desarrollar un diálogo entre un discurso público, que es lo que se presenta en escena, y el discurso “oculto”, que es el trato de la realidad a través de una crítica social, a través del distanciamiento, donde los teatreros se alejan de sus personajes; esto era lo que le permitía al público posicionarse frente a lo que estaban viendo (Mumford, 2009). La idea aquí no era dotar a los individuos de soluciones, sino poner en escena una interpretación de la realidad, para así otorgarle a los espectadores las herramientas para buscar soluciones mediante la acción (Cuadernos de Arte Dramático, 1953). El paradigma brechtiano es una de las estrategias del teatro independiente uruguayo, que se convierte en una herramienta por excelencia en su quehacer teatral. Este paradigma no sólo se manifestaba en las propias piezas de Brecht que fueron llevadas a escena por los independientes en Uruguay, sino y como se expuso líneas arriba, en los métodos brechtianos que se utilizaban para poner en escena diferentes piezas y que fueron apropiados, como hemos visto, tanto por El Galpón, como por el Teatro Circular, Teatro Uno, Club de Teatro, entre otros. Esta astucia corresponde a la forma de plantear los hechos en escena, es decir, la forma en que se busca desenmascarar las contradicciones sociales, posicionar al espectador frente a eso para que la


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realidad pueda ser transformada a través del accionar de los propios individuos que son representados en escena6. Este proceso genera un juego dialéctico donde los “discursos ocultos”, utilizando los conceptos de James Scott (1990), se escenifican y se hacen públicos de cierta forma, mediante un proceso didáctico y artístico, adaptando los discursos al contexto, es decir, generando cierta funcionalidad. Es una astucia en el sentido de que las puestas en escena seleccionadas eran correspondidas con el momento histórico que vivía la sociedad uruguaya. Durante el año 1972, El Galpón presenta dos obras en el teatro IFT de Buenos Aires, Ricardo III de Shakespeare y La Resistible Ascensión de Arturo Ui de Bertolt Brecht. Esta puesta en escena de Brecht, realizada por Rubén Yáñez, tiene una significación importante para este año, primero porque es una obra que refiere al ascenso del nazismo en Alemania, y es comunicada y puesta en escena por Yáñez, de forma que para los uruguayos, tenía simbólicamente que ver con el advenimiento del régimen dictatorial, el cual ya iba en ascenso7. Las puestas en escena tanto de Bertolt Brecht como aquellas donde se aplican métodos brechtianos apropiados por los teatreros, son, desafiantes, no lo “dicen todo” en la cara del poder (parafraseando a Scott), pero no dejan de exponer las relaciones de poder. No obstante, realizar una obra de Brecht cuando las bandas u organizaciones de extrema derecha ya estaban operando y atentaban inclusive contra la propia institución teatral, fue asumir una postura política que implicaba un gran riesgo. Sin importar las condiciones en las que les tocara actuar o representar, los teatreros independientes asumieron esa tarea como parte de su militancia y su vocación artística. Lo teatreros pensaron el campo cultural de forma vanguardista, en el sentido de que ellos también hicieron propias las discusiones que se generaban en el seno del partido acerca de la postura del comunismo internacional, en torno a las vías de la revolución, es decir, si la revolución es a través de la lucha armada o no, esto los posicionó en la construcción del propio campo cultural, entendiendo que la vanguardia no pasa por la guerrilla. En esa construcción del quehacer teatral buscaron que las capas medias se acercaran a la clase obrera, ya que el arte debía servir para movilizar, para esto las obras debían comunicar eficazmente, comunicar que no es lo mismo que convencer. Brecht como estrategia era importante para el propósito de exponer críticamente la realidad y brindarle herramientas a los individuos para que pudieran analizar la realidad y cambiarla con sus propias acciones. Brecht caló hondo en las estrategias teatrales que configuraron el quehacer teatral de los independientes, sobre todo en el cometido de acercar a la clase media a la lucha obrera, hacerle comprender sin embanderarse, ni fanatizarse, sino mediante la adopción de elementos críticos de la realidad. Esto


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le permitía a los individuos ver críticamente las desigualdades e injusticias sociales. Aunque a medida que la profesionalización del teatro independiente uruguayo se hizo mayor, se vio la necesidad de construir una dramaturgia nacional, el objetivo era crear un teatro nacional escrito por uruguayos para uruguayos. Desde allí que se gestaran los seminarios de dramaturgia tanto del TCM como de El Galpón. Los teatreros pretendían dar cuenta de lo que estaba ocurriendo en el país, sobre las relaciones de poder que se estaban configurando, denotando “la red” o los intersticios a los que se refiere Schechner, que presentaban cierta porosidad, donde se tejía en diálogo entre lo que sucedía afuera con la instauración del autoritarismo y lo que se ponía en escena en los teatros independientes. Hay una evidente transgresión de las fronteras de un lado a otro, una porosidad que permite que dialogue “lo micro”, los montajes, la estética, las posturas ideológicas de los teatreros, con “lo macro” materializado en el orden socio-político autoritario que vivía el Uruguay. Esto está relacionado con el concepto de liminalidad desarrollado por Víctor Turner (1979; 1982) y luego apropiado por la investigadora teatral Ileana Diéguez (2007) para analizar la teatralidad y el hecho cultural en sí; así como también por Diana Taylor (2003) en sus estudios sobre el performance. Es decir, que la liminalidad es eso que se comunica en un mismo espacio, en los intersticios, es el agua intersticial, si bien hay una separación física entre donde se realiza el “ritual” teatral, el hecho cultural en sí, con el resto de la sociedad, la porosidad se ve reflejada en que ambos espacios están comunicados y en la representación teatral se pone en escena lo que estaba sucediendo en la vida social. Para Víctor Turner la vida social tiene un potencial teatral y está permeada por “dramas sociales”; las sociedades tienen siempre dos caras, una cara que involucra la paz y otra que involucra el conflicto, la sociedad lleva el conflicto en sí misma (1982). Es aquí donde las sociedades trabajan sobre ese drama social haciéndolo público, es a través del teatro en este caso, que la sociedad tiene las herramientas para realizar un examen profundo de sí misma (1982). La liminalidad en este caso involucra el despliegue de un quehacer teatral que produce intersticios, más allá de que se realice en una sala teatral o en una fábrica ocupada, intersticios abiertos a las posibilidades creadoras de la red, esa red que al mismo tiempo separa y uno espacios, lo que termina configurando un in-between, y en ese umbral es donde se encuentra la liminalidad (Schechner, 1993). En la situación de indeterminación social característica de lo liminal, la interacción entre lo público puesto en escena y el orden social y político se puede transformar. La investigadora teatral Ileana Diéguez, en su texto Teatralidades liminales. Escenarios y campos expandidos lo caracterizaría como una constitución metafórica, una situación fronteriza, perecedera y relacional (2007). Esto está relacionado con que el quehacer teatral, ya que implica poner en es-


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cena la propia experiencia de los teatreros como individuos pertenecientes a una sociedad que se estaba configurando y re-significando en relación con la represión, la persecución, la tortura y la censura. El quehacer teatral independiente se inmiscuye en los espacios, en las salas teatrales vigiladas por el oficial de inteligencia Alen Castro, pero también en espacios de reunión políticos como comités de base de izquierda, en las fábricas ocupadas cuando se establece formalmente el golpe de estado y con él la Huelga General de los trabajadores en contra del mismo, pero más importante en las mentes y en los mundos de vida de los individuos que asistían a este ritual, aquí es donde ubico la resistencia. Es el propio Turner que define esa liminalidad, que en el caso bajo análisis es el de la teatralidad de los independientes, como el umbral donde el orden social establecido se da vuelta (la situación de indeterminación social) y emergen formas de sátira y parodia social, que permiten atravesar los conflictos, subvertir el orden establecido y generar una forma de catarsis social. En el entramado de escenas que se montan en el espacio teatral, un espacio inmerso en la liminalidad de la teatralidad en ese momento histórico, se pueden ver como procesos creativos de disidencia, que apelan a lo lúdico y a la parodia para generar afinidades y solidaridades. Es en este espacio liminal en donde ubico la resistencia; es un espacio de experimentación, de creación, un espacio donde el orden político es subvertido. Este espacio de resistencia se re-significa en función del quehacer teatral y del accionar político y militante de los teatreros, se reinventa a medida que se afianza un lenguaje teatral como el Brechtiano. Cabe destacar que los diferentes grupos aquí analizados realizan usos de los espacios y puestas en escena distintas, más allá que utilicen algunas estrategias o recursos similares. En este sentido, el Teatro Uno siempre buscó ser innovador y subvertir el orden a través de adaptaciones y versiones especiales de ciertas obras. Teatro Uno tradujo dramaturgos franceses al español, tuvo su escuela de formación dramática y estuvo a cargo de las clases de teatro dictadas en la Alianza Francesa de Montevideo, las cuáles estaban vigiladas de cerca por el régimen. El quehacer teatral: liminalidad y subversión En el año de 1972, año anterior al golpe de Estado (27 de junio de 1973), se realizaron varias puestas en escena, no sólo de obras de Brecht, sino de otras obras que utilizaban los recursos y el lenguaje Brechtiano. Entre éstas se encontraban, de acuerdo con las obras destacadas del año del semanario Marcha: Los días de la comuna de parís dirigida por Omar Grasso para el TCM; La resistible ascensión de Arturo Ui dirigida por Rubén Yáñez en El Galpón y Ubú rey dirigida y versionada por Alberto Restuccia realizada en el TCM (29 de diciembre de 1972: 27).


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De estas obras haré referencia a Ubú rey de Teatro Uno, debido a que sobre las anteriores he hecho referencia en distintos momentos del análisis realizado en esta disertación doctoral. Así pues, me centraré en esta obra debido a que es un acto de resistencia. Por su adaptación de la misma, Alberto Restuccia fue vetado en un comienzo. La agrupación Teatro Uno no tenía una sala teatral propia para esta época y realizaba sus obras en las salas de los teatros independientes. El TCM invitó a Restuccia a realizar una puesta en escena allí; el texto escogido en asamblea fue el de la obra Ubú rey. La obra de Ubú rey es una obra teatral de Alfred Jarry, versionada por Alberto Restuccia como desafío a la asamblea del Teatro Circular que se opuso a la realización de la obra. Fue el teatrero Villanueva Cosse de El Galpón, quien en ese momento se encontraba trabajando en una obra en el TCM, quien intercedió para que la asamblea dejara a Restuccia realizar su versión con otro elenco. Esta obra es una representación de la tiranía, dado que Ubú es convencido por su esposa para derrocar al rey de Polonia Venceslao y deja expuesta la corrupción del poder de Ubú. Que el teatro fuera circular era importante para la puesta en escena de Restuccia, con la escenografía de Osvaldo Reyno. Para entender la transgresión que representaba esta obra y las obras que realizaba Teatro Uno, es necesario entender que Alberto Restuccia es una bisagra entre las generaciones que lo perciben como un vanguardista, quien construye un quehacer teatral contracultural, y es “contra” inclusive al propio quehacer teatral de izquierda como el de El Galpón o el de el Teatro Circular por ejemplo. Alberto es más joven (1942) que teatreros como Atahualpa del Cioppo (1904) por ejemplo, pero ha aprendido de ellos también y ha compartido espacios con Atahualpa. Este es el caso de su militancia en el Partido Comunista. La vida de Alberto, a diferencia de la vida de otros teatreros, siempre fue contra corriente en términos sexuales, artísticos, culturales. Si bien fue padre de distintos hijos, que tuvo con sus distintas parejas mujeres, su pareja por cuarenta años fue Luis “el bebe” Cerminara, con quien fundó Teatro Uno (en los años 1961 y 1963, ya que el propio Restuccia afirma que tienen dos fechas de fundación) y con quien trabajó artísticamente codo a codo. Como vemos, muchos quehaceres teatrales se entrecruzan y aunque todas son agrupaciones independientes, presentan diferentes concepciones de ese quehacer teatral y de sus estéticas. Si bien no entro en los detalles profundos del debate relacionado con el término épico escogido por Brecht para designar su teatro, quiero aclarar que el término épico denota una poética marxista, ya que presenta al individuo, al sujeto, como determinado por fuerzas económicas y sociales a las cuales responde y en virtud de las cuales actúa (Boal, 2013). Esto iría en correlación con las elaboraciones de Marx en el Manifiesto del Partido Comunista, quien planteaba que no es la conciencia de los


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hombres lo que determina la existencia, sino la existencia social lo que determina la conciencia social (1948). Analizando lo que he venido planteando a lo largo de esta disertación, considero que el que los galponeros principalmente, se hayan apropiado del método Brechtiano implicaba que concebían su quehacer teatral, la construcción de este, a través de un materialismo dialéctico. Siguiendo a Brecht, se torna necesaria “una técnica que permita al teatro disfrutar en sus representaciones, del método de la nueva ciencia social, la dialéctica materialista; que para concebir la sociedad en su movimiento, considera las condiciones sociales como procesos y los determina en sus contradicciones, para la cual todo existe en cuanto se transforma o sea en cuanto está en contradicción consigo mismo” (Brecht, 1963:20). Me interesa plantear la importancia de una racionalidad en la práctica artística, un teatro con un fin social, de actitud crítica, productiva y creadora. Esto generó una clara disidencia con el régimen. También se integraron otras técnicas o procedimientos de otros directores como Stanislavski, quien enfatizaba el carácter colectivo y performativo de las obras y creaciones. El Galpón logró poner en escena diferentes obras de forma vanguardista para la época. Esto va a provocar que el régimen dictatorial “los ataque” y logre clausurar el teatro como se verá a continuación. El cierre de El Galpón: la proscripción de la cultura Después de la instauración del golpe de Estado el 27 de Junio de 1973, la cultura, de por sí un campo en disputa, se ve atravesada por mayor conmoción y por el aumento de la vigilancia al resto de las agrupaciones, posterior a la clausura del teatro El Galpón y la prohibición que recayó sobre sus integrantes. Al emitir el decreto de clausura hacia la institución teatral, el día 6 de mayo de 1976, aquellas astucias o estrategias que antes habían servido para hacerle frente al poder, en este segundo bloque (1973- 1985) no surtieron el mismo efecto. Se dio una fuerte modificación del lenguaje y los recursos y procedimientos utilizados por los teatreros independientes. Las estrategias pasaron a ser otras, ya que los teatreros habían sido buscados en sus residencias familiares, habían pasado un tiempo detenidos en la Dirección Nacional de Información e Inteligencia (D.N.I.I.) y habían sido torturados. El quehacer teatral que venían desarrollando se interrumpió. El espacio físico de la institución fue intervenido por fuerzas policiales y las pertenencias del teatro fueron confiscadas y repartidas entre las dependencias y oficinas militares, donde se quedaron hasta con el piano de cola. El galponero Dervy Vilas me preguntaba incansablemente sobre si yo no había visto el piano entre los archivos y objetos que reposaban en inteligencia. Esto incluyó el vestuario, el piano de cola, las actas de las asambleas, la lista de los afiliados al teatro, entre otras cosas. Cuando la agrupación volvió del exilio e intentó recuperar sus pertenencias, la respuesta que recibieron fue:


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“el vestuario se apolilló”. Esta fue la frase que utilizó el director galponero César Campodónico para titular su libro acerca de la historia del teatro. Según el historiador Álvaro Rico (2009), en la primera etapa del autoritarismo, es decir, desde el año 1967 a 1973, las prácticas gubernamentales represivas no llegaron a ser totalizadoras, ni a permear todos los ámbitos de la sociedad, sino que ocurrió una coexistencia entre una oposición política y una resistencia visible. En el año de 1971 se creó el Frente Amplio, única organización política que agrupaba a los sectores de izquierda del país (entre estos al Partido Comunista), y que modificó la escena política del bipartidismo existente en el país hasta el momento, el cual estaba compuesto por las dos divisas políticas originarias del Estado uruguayo, el partido blanco y el partido colorado (este último al cual pertenecía Jorge Pacheco Areco y también el dictador Juan María Bordaberry). En el año de 1971 todavía se daban movilizaciones callejeras; también había actividad parlamentaria. Si bien el movimiento sindical recibía amenazas, aún estaba vigente y legal. Con el golpe de estado el 27 de junio de 1973 se disolvió el parlamento uruguayo (se suprimieron las dos cámaras en el parlamento), se volvió ilegal la Convención Nacional de Trabajadores (CNT), la Universidad de la República fue intervenida por los militares, fueron proscritos e ilegalizados los partidos de izquierda, así como también todos los partidos políticos. Igualmente, se prohibieron todas las actividades de la Federación de Estudiantes Universitarios del Uruguay (FEUU). Por otra parte, los trabajadores ocuparon las fábricas en un proceso de Huelga General contra el régimen que duró quince días. No obstante, entre los años 1975 y 1978, el “terrorismo de estado” terminó por permear todos los niveles de la cotidianeidad (Rico, 2009). Esto no se dio solamente a nivel institucional. El día a día de los ciudadanos era vigilado de diferentes formas. En la calle, por ejemplo, las personas debían tener un comportamiento adecuado a la hora de cruzar la calle, respetar las esquinas. Mi madre me contaba esto. Ella es del interior del país y vino a vivir y a estudiar a la capital montevideana; al cruzar la calle por la mitad de ésta y no en la esquina, un militar parado en la acera de enfrente le pidió el documento de identidad y la forzó a cruzar nuevamente la calle, aludiendo a que él le iba a enseñar a cruzar la calle. A situaciones como la descrita se sumaba el hecho de que las personas no podían reunirse en números de más de dos para conversar en una esquina, ya que era un comportamiento dudoso; todo aquel que resultara sospechoso podía ser requisado e incluso podía ser detenido. En este contexto, donde la comunicación era vigilada, donde los movimientos estaban controlados, cuando El Galpón había sido clausurado, la escena teatral debía re-organizarse. El quiebre se produce no solo por la clausura de un teatro y la censura en el campo cultural, sino por el quiebre de un espacio de socialización, de comunicación y de reunión, un espacio donde todavía se podían representar y expresar los


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desacuerdos y las críticas para con la realidad que se vivía. Frente a este hecho las agrupaciones independientes tuvieron que sortear el miedo y la posibilidad de que el régimen clausurara más teatros y elaborar nuevas estrategias para permanecer abiertos. El TCM adapta su discurso con el fin de mantenerse abierto y desarrollando su actividad teatral, es decir, como lo plantea Payrá, se convierte en una institución “ajustada en lo externo para una acción subterráneamente resistente” (Payrá, 1994:128). Esto, en términos de James Scott, se ubicaría en ese “fuera de escena”, es decir, ese espacio o ese intersticio que está en los márgenes del poder totalizador, donde la disidencia es posible (1990), en ese contexto de la liminalidad caracterizado por Turner (1982). Los recursos giraban en torno a metáforas, alegorías, alusiones indirectas, cuadros con militares que se caían, una llamada a la jefatura de policía planteando la ausencia de autoridad al no encontrar al comisario a cargo, cambiar ciertas palabras que no se podían utilizar como por ejemplo, no se podía decir que alguien estaba preso, entonces se decía no había libertad tampoco, entre otras cosas. Se ponían en escena comedias con cierto significado, tal como se mostrará más adelante, nada comercial. Pero también se retoman obras de escritores nacionales que aluden a historias tradicionales uruguayas, atravesadas por una crítica al Uruguay del momento, el cual antes se había construido con base a una idea de cercanía de las clases sociales, es decir, no existía una brecha de separación entre clases sociales, así como también en esa búsqueda por una dramaturgia nacional que refleje lo que se vivía. Inspirada en la conceptualización de Scott, planteo entonces con relación a las estrategias de acción de los teatreros independientes que hubo una depuración y una recodificación de los “hidden transcripts” (los discursos ocultos) que se expresaban en el discurso público de los teatreros (1990). El Circular y los independientes: Insilio(s) y astucia(s) La sala del teatro El Galpón, que el régimen había incautado pasó a llamarse la Sala “18 de Mayo”. Dicho nombre hacía alusión a la fecha histórica de la Batalla de las Piedras, el primer triunfo de Artigas contra el ejército de la corona Española el 18 de Mayo de 1811, durante el proceso de independencia. Mientras se convocaba públicamente a los conjuntos nacionales para que usaran la sala y dictarán clases de teatro, los teatreros independientes asumieron la postura de no pasar ni siquiera por la puerta del teatro El Galpón. Durante este tiempo el TCM estrenó algunas piezas importantes en medio del insilio que se vivía en la ciudad de Montevideo. Dentro de estos estrenos es importante resaltar la obra Esperando la Carroza, escrita por el dramaturgo nacional Jacobo Langsner y dirigida por Jorge


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Curi. Esta pieza se mantuvo cuatro años en cartel. Se estrenó primero en 1974, luego en 1976 y se repuso en 1979; todas las reposiciones fueron dirigidas por Jorge Curi y todas se realizaron en el TCM. Esta obra que es una comedia de autor nacional, es una obra que supo atraer al teatro a una audiencia distinta, que tal vez no había ido antes. La importancia de la obra para este momento, una época de aislamiento y reclusión, donde el teatro buscaba integrar, se configura como convivio o reunión social, tal como lo caracteriza Dubatti (1999). Este tipo de obra como la de Jacobo Langser, quien también fue el autor de La gotera, congrega en torno a eso que se perdió, y que se manifiesta en la decadencia del Uruguay, en la decadencia de la clase media uruguaya. Es en ese espacio liminal donde se pone en escena el drama social, en este caso la desintegración de un país, pero se realiza a través de una puesta en escena con personajes que se identifican con lo popular. Bajo el derrotero de crear una dramaturgia nacional, un teatro nacional hecho por escritores nacionales, Langser y el teatro independiente buscan reflejar lo que se vivía en ese momento. Se añora ese Uruguay construido siguiendo la doctrina Batllista, a los logros de José Batlle y Ordoñez con el Estado de Bienestar y el Uruguay de las cercanías, de las clases sociales integradas y sin mayores conflictos. Aspectos importantes que marcaron una impronta estética y artística para el TCM, en torno a dos grandes figuras, que con sus decisiones influenciaron el quehacer teatral de esta agrupación como Jorge Curi y Omar Grasso. Jorge Curi, quien estuvo en la dirección de Esperando la Carroza obra del autor nacional Jacobo Langsner busca retratar la decadencia de la clase media y de la vejez; en este caso es un teatro grotesco en dos actos. El teatro grotesco se vuelve una marca registrada del teatro rioplatense, caracterizado por lo tragicómico. Ese teatro rioplatense que se posiciona en el retrato de las cotidianeidades, de las experiencias de las familias rioplatenses, de las leyendas del campo con Juan Moreira, del retrato de la familia de clase media como lo que logra Langser o como Gregorio de Laferrer con Las de Barranco, es un teatro que involucra puntos geográficos como Buenos Aires y Montevideo específicamente. Así es que Esperando la Carroza, pone en escena temas propios, uruguayos, en este caso “el problema” de la vejez dentro de la clase media, tema que no deja de ser doloroso, pero lo aborda a través de la comedia, entre otros aspectos, como el de la desintegración social, la decadencia económica de la clase media, entre otros8. Esta pieza fue vigilada de cerca por Alen Castro, dado que pidió el libreto de la obra y asistió a verla. Había una frase que fue la que llamó la atención del oficial de inteligencia que Walter Reyno pronunciaba en la obra, era la siguiente: “Ah, el comisario no está. Siempre lo mismo. Bueno deme con el segundo. ¿Cómo? ¿Él tampoco está?”, mientras que la otra frase que también llamó la atención pronunciada por Nidia Téllez era la siguiente: “Pero es tanta mentira como decir que vivimos en un país libre” (Payrá, 1994:132). Estas expresiones denotan el desprestigio y la imagen que


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los uruguayos tenían acerca de las fuerzas del orden, que en ese momento tenían un papel central en esa reorganización de “la casa”, es decir, del país que se proponía el régimen. Esta vigilancia obligaba a los teatreros a buscar alternativas en las formas expresivas y en los procedimientos, algo que debían construir entre todos, ya que el teatro seguía funcionando en modalidad de colectivo de trabajo y creación. Esta búsqueda y construcción de formas de expresar no fue solamente realizada por el teatro independiente. En el ámbito del canto popular, en el que los artistas eran arduamente perseguidos y asediados. Cuando un cantante estaba prohibido en una agrupación o dúo, esa silla se dejaba vacía simulando la ausencia de esa persona y su prohibición (Alencar Pinto, 2013). Bajo la vigilancia y el “acorralamiento”, en los márgenes del autoritarismo, los teatreros en formación en la escuela de El Circular estrenaron en esa época una obra que fue su “graduación”, El Acero de Madrid. Esta pieza es un clásico de Lope de Vega y fue realizada una adaptación a cargo de Jorge Curi y Mercedes Rein. Contrario al supuesto “apagón cultural”, concepto con el cual se caracteriza usualmente esta época y hasta el año 1978 donde habría un “repunte” en la actividad teatral, el Teatro Circular con la sola representación de esta pieza ya estaba haciéndole frente a la vigilancia del régimen, personificada en Alen Castro. Esta vigilancia obligó a los directivos del teatro a irse del país. A través de esa comedia de amor que el director Jorge Curi realizó con los jóvenes egresados, quienes se encontraban poco fogueados aún en el quehacer teatral independiente, lograron posicionarse frente al control, pero más que nada frente al exilio de la directiva del teatro, como forma de no dejar el espacio vacío. Dentro de esta cultura autoritaria y de disciplinamiento (Moraña, 1988), se reconstruye el campo cultural independiente y las formas teatrales se van adaptando a las estrategias y medidas represivas y de vigilancia impuestas por el régimen. Si bien esta época no se caracteriza por una renovación en procedimientos o métodos de actuación (Verzero, 2013), se destaca que las opciones acerca de las obras o puestas en escena buscaban de diferentes maneras, ser reflejo del país en el que se vivía, dado que el teatro independiente fue la función que asumió a través de su quehacer teatral. Se puede considerar a los teatreros como intelectuales del campo cultural. No fueron únicamente teatreros, sino que pensaron, construyeron y re-significaron un campo cultural que respondía al momento histórico y ofrecieron una posición crítica frente a los hechos sociales que estaba ocurriendo. Mediante los repertorios (tragedias, comedias, etc.), los directores adoptaron varias estrategias para conseguir el objetivo de representar las problemáticas del ser humano. En esta etapa dictatorial, los directores Jorge Curi y Omar Grasso con el teatro el Circular, fueron intrépidos con la utilización de acompañamiento musical para


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diferentes cuadros. No solamente los teatristas debían depurar sus discursos puestos en escena; esto se trasladaba a todo el campo cultural de izquierda. Por ejemplo, en el carnaval los textos estaban fuertemente censurados. El carnaval uruguayo está compuesto por una serie de agrupaciones o conjuntos como las murgas, los humoristas y los parodistas, que basan sus representaciones y textos en potpurrí en torno a lo que ocurrió durante el año. En la época estudiada, se aplicaba una censura previa a los textos, a las palabras que utilizaban; por ejemplo, estaba prohibido el uso de la palabra “clandestino”, también se prohibía la palabra “pueblo” (Masliah, 1987). En 1976 se prohibió la transmisión de las canciones de Joan Manuel Serrat “por haber participado este en festivales internacionales anti-dictadura uruguaya” (Masliah, 1987:119). En este contexto en el que primaba la censura, el régimen además se confió mucho en la autocensura, la que estaba ya internalizada por los propios exponentes del campo cultural. El silencio se volvió una obligación. Según la autora Elena Payrá (1994), esto tuvo como consecuencia que se comenzara a revalorar la palabra en el hecho teatral, apelando a obras que rescataban las convenciones y las tradiciones familiares uruguayas, “para que el espectador se reconociera, reaccionara y tomara postura colectivamente, haciendo al teatro más político, más ideológicamente eficaz” (p.131). Se pusieron en escena piezas como Esperando la Carroza y Doña Ramona, entre otras. Para controlar mejor los contenidos, el régimen impuso censuras; por ejemplo en el canto popular se prohibían canciones específicas así como a artistas e incluso espectáculos enteros (Alencar Pinto, 2013). Carlos Demasi (2009) categoriza los años entre 1976 y 1978 como los años “del golpe dentro del golpe” (2009), ya que se produjo un enfrentamiento entre Bordaberry y los militares golpistas por el rumbo que debía seguir el régimen. Es importante insistir que no se trataba de bandos “democráticos” ya que: “Bordaberry y los comandantes coincidían en la necesidad de suspender las próximas elecciones, en mantener por el momento la prohibición de las actividades políticas, y en proscribir definitivamente al marxismo. Bordaberry reconocía el lugar que ocupaban las FF.AA (...) y no cuestionaba las operaciones represivas (...)” (p.44)

Para la temporada del año 1978, el Teatro Circular puso en escena la obra Los Comediantes (Venturas y desventuras de cómicos, pícaros y malandantes), una adaptación de Jorge Curi y Mercedes Rein, la cual recorría algunos textos clásicos del teatro español y se refería, a través de la comedia, a la falta de libertad de expresión con que debían trabajar en el campo cultural. Esta pieza reunía y alternaba canciones, diálogos, textos, parlamentos que, según Mirza (2007), formaban un modelo de “collage” brechtiano pero respetando la tradición del teatro español.


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Ahora bien, las transformaciones no solo se dieron en el plano teatral y en los textos depurados que se debían escenificar, también en las cotidianeidades de los teatreros, que cambiaron y se resignificaron en torno a la vigilancia y al control del régimen. En la vida cotidiana también se generaban formas de oposición parciales o formas de solidaridad en red, las cuales se entretejían en los barrios, con los vecinos, en momentos de miedo, de represión, momentos en los cuales había que replegarse. La vida de los teatreros que estaban en Montevideo se resignificaba, entre las adaptaciones en el teatro y en la cotidianeidad, debían buscar estrategias para sobrevivir y para comunicarse con los otros. Los gestos, las pequeñas acciones, los discursos generan contra-cultura debido a que involucran mensajes opuestos a la cultura impuesta por el régimen. La contra-cultura buscaba seguir manteniendo y tejiendo las redes de solidaridad entre los individuos, retando el aislamiento y las prohibiciones del régimen. Los escenarios tanto del teatro como de la vida cotidiana se entrelazaban; había que saber eludir a la dictadura en todos los ámbitos y seguir manteniendo cierta unidad. Es así que el teatro se vuelve un espacio de socialización “de una forma de conocimiento de la realidad efectivamente alternativa con respecto a la dominante” (Moraña, 1988:101); a su vez, este espacio se transforma en posibilidad de participación popular frente a los lineamientos y discursos del régimen. Durante todo este período, el Teatro Circular mantuvo el espacio teatral contra la censura, la prohibición, el exilio y el propio insilio. El papel principal que jugó el Circular lo posicionó como el teatro independiente que tuvo una influencia decisiva en la demarcación de un teatro de resistencia, así como también en la reorganización del campo teatral independiente, luego de la clausura de El Galpón. Asimismo, tuvo un papel importante en la promoción de autores nacionales, mediante los seminarios de dramaturgia que organizaba el teatro. Esta era una forma de elaborar y expresar lo que se estaba viviendo, apelando a autores nacionales y de textos que tenían que ver con el Uruguay del momento. Estas obras buscaban guiar al espectador hacia una reflexión y un posicionamiento crítico con relación a la realidad que se vivía. El teatro, la puesta en escena y análisis del proceso conjunto es un análisis de la vida misma y de las propias experiencias que se ponen en escena. Es decir, el teatro refleja la experiencia y lo que se ha buscado con este análisis es dar cuenta de que, como alguna vez lo plantearon Turner (1982, 1987), Schechner (1993) e inclusive Grotowski (2009), que el querer realizar una antropología del teatro es hacer una antropología de la experiencia. Dado que debemos considerar que el teatro también es investigación, los personajes que los teatreros ponen en escena requieren una determinada empatía; las obras se adaptan para que sean significativas para el pueblo, son obras que tratan sobre temas cotidia-


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nos de la época. Es decir, el teatro independiente buscaba trabajar sobre realidades concretas, ponía en escena experiencias y reflexividades de los teatreros que se consideraban parte del pueblo. Y de cierta forma el éxito que alcanza a desarrollar el teatro independiente, es debido a que es un teatro realista, el cual es espejo de las cotidianeidades del Uruguay de la época. Lo que estas piezas pusieron en escena en esa época fueron las dinámicas de la propia cotidianeidad uruguaya, las cuales habían sido afectadas y transformadas por un régimen autoritario que tenía por objetivo eliminar todo aquello que fuera una amenaza a la patria, entendida ésta dentro del proyecto de país del régimen. Las piezas teatrales interconectaban un pasado que para el Uruguay había sido exitoso en términos de derechos, igualdad, justicia social, legislación laboral. El imaginario de la nación se había construido en torno a esa idea de una supuesta Suiza de América, y dicha idea se había desintegrado. El teatro independiente, que no empezó profesionalmente, sino con gente común y corriente dedicada a trabajos como la docencia, el empleo burocrático en bancos, entre otros, tomó la iniciativa de crear un campo teatral independiente en la cultura uruguaya. Estas personas se entrenaron de modo tal que adquirieron la formación necesaria para profesionalizarse e inclusive obtener un reconocimiento internacional en torno a sus producciones. Pero sobre todo cumplieron un papel como teatro independiente. Más allá de conformar meras instituciones o compañías, los teatreros fueron creadores y constructores. Su trabajo estaba basado en principios de hermandad, colectividad y solidaridad hacia el pueblo. En una época donde la sociedad estaba fragmentada y aislada, el campo teatral independiente promovió y trabajó en pro de mantener la unión, de reavivar emociones y sentimientos de una utopía de mejor sociedad o de un ideal de recuperar lo que se había perdido. Configuraron ese espacio liminal donde se ponía en escena el drama que la sociedad uruguaya estaba viviendo, respondiendo a las etapas históricas que vivía el propio pueblo. Se movieron así en los márgenes e intersticios del poder para seguir construyendo cultura alternativa a la que imponía la dictadura. El teatro nunca se rindió; los teatreros siguieron poniendo en escena discursos que no se podían decir, a través de las estrategias y los procedimientos que he analizado. Desarrollaron estrategias y tácticas para comunicar lo prohibido. Incluso durante la etapa de mayor represión (1976-1978), se comunicaron mediante metáforas, alegorías y recursos lúdicos. Los teatreros fueron fieles a sus principios fundadores, a la idea de que debían hacer teatro sin importar las condiciones en las que se encontraran, porque esa era su militancia de izquierda, era la herramienta que tenían para, junto con el pueblo, generar espacios alternativos, contra-culturales, que fueran molestos para el régimen, y que a la vez fueran catárticos y esperanzadores para la gente; que sirvieran para poder


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construir y tejer por detrás del discurso público del poder una red de pensamientos, emociones, experiencias. El público que asistía se encontraba en un espacio de socialización alternativo y descontracturado; a pesar de la vigilancia, este era un espacio donde se re-construía un encuentro que estaba prohibido. El régimen trabajaba diariamente por la adhesión a un “consenso cultural” a través de una tradición y visión fundamentalistas de la cultura nacional (Marchesi, 2001). Al igual que en Argentina, esto se dio en el campo audiovisual y mediático, por ejemplo, a través de los contenidos de los informativos y noticieros. Con algunas imágenes se buscaba forjar un “nuevo imaginario” basado en la exaltación de los valores patrios, a través de lo que las FF.AA. significaban para el país, por ejemplo. Mediante paradas y desfiles se involucraron a los niños de las escuelas y a los jóvenes. El régimen se volcó por completo a una apuesta simbólica de las tradiciones, de un folclor patrio centrado además en las comidas tradicionales (torta fritas, mate, asado, busecas). La música era interpretada por grupos folclóricos con vestimentas y colores alusivos a los colores del pabellón patrio. La vestimenta gaucha se exhibía como una muestra del patrimonio nacional (Marchesi, 2001). Estas tradiciones exaltadas buscaban ser la esencia de “la Orientalidad” a la cual apuntaba el régimen (Cosse y Markarian, 1996; Marchesi, 2001). Buscando en la exaltación del interior del país y de la ruralidad un elemento inédito que hacía énfasis en la poca atención que le habían dado gobiernos anteriores. El organismo de la DINARP, resaltó estas tradiciones, como las tradiciones que enmarcaban la esencia nacionalista de Uruguay (Marchesi, 2001). Siguiendo en la línea de los planteamientos novedosos de Marchesi, la cultura terminó siendo así antónimo de dictadura, dado que el régimen utilizó este supuesto consenso cultural en torno a las tradiciones nacionalistas para promover un habitus, es decir, acciones, prácticas y tradiciones que estuvieran en sincronía con el orden autoritario (Marchesi, 2009). En esa relación micro-macro, entre las astucias cotidianas y las prácticas audaces, la intención de los teatreros era tener un impacto no solo en lo micro (rompiendo los problemas de aislamiento social, creando esperanza de cara al insilio, etc.), sino también en lo macro, en lo estructural, en la posibilidad de abatir simbólicamente el régimen establecido. NOTAS 2

Relato de vida de Juan Manuel Tenuta, entrevistado por la autora, Abril 2013, Buenos Aires.

Archivo Institución teatral El Galpón: “De cómo adaptar un clásico. Fuenteovejuna: nuestro llamado a la reflexión”, Montevideo lunes 20 de octubre de 1969, Página 56, De Frente. 3


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ibídem.

Fernández, Gerardo, “De la más alta y noble estirpe”, semanario MARCHA, 27 de julio de 1973, página 25, versión digital 5

6

Para profundizar en torno a las representaciones realizadas ver http://bertoltbrecht.org.uy/.

Archivo de la Institución teatral El Galpón, “Brecht y Shakespeare a través del grupo uruguayo El Galpón”, Buenos Aires miércoles 11 de octubre de 1972, Página 39, Diario Clarín, Espectáculos. 7

Archivo del Teatro Circular de Montevideo, Recorte de prensa “Jacobo Langsner o la puntería para el éxito: De carrozas, agujeros y toboganes” por Dardo Billotto. Sin fecha, ni medio de prensa. 8

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ENTRE ENGAJAMENTO, CENSURAS E CONSENSOS: A CENA CULTURAL DURANTE A DITADURA CIVIL- MILITAR (19641985) LEONARDO FETTER DA SILVA1 LARA COLETTO2 MARIANA CANAZARO COUTINHO3

Resumo

Abstract

A historiografia tem se dedicado a estudar, em grande profundidade, a resistência e o engajamento contra a ditadura civil-militar, porém, nos últimos anos se evidenciou um aumento de pesquisas que se dedicam a compreender as múltiplas relações entre a sociedade civil e o regime, principalmente aquelas onde se presenciou o consenso e a ambivalência em suas ações. Sendo assim, o presente artigo busca superar a dicotomia entre resistência e repressão no âmbito cultural trazendo um diálogo que reflita o engajamento, a censura e os consensos e consentimentos, abordando, desta forma, as diversas relações que se desenvolveram no período. Este estudo propõe realizar um breve balanço historiográfico em torno da arte engajada e da resistência no campo cultural, da censura aplicada sobre os produtos culturais e, por fim, dos aspectos que envolvem os consensos no âmbito da cultura.

Historiography has dedicated itself to studying, in depth, resistance and engagement against the civil-military dictatorship, howerever, in the last few years it has evidenced an increase in researches dedicated to understanding the multiple relationships between the civil society and the regime, mainly those where it has been witnessed consensus and ambivalence in their actions. Therefore, the present article aims to overcome the dichotomy between resistance and repression in the cultural field bringing in a dialogue that reflects upon engagement, censorship and consensus and consent, addressing, in this way, the different relationships that developed in the period. This study proposes to produce a brief historiographical balance surrounding the engaged art and the resistance in the cultural field, the censorship applied to cultural products and, finally, the aspects that involved consensus in the cultural sphere.

Palabras chave: Ditadura civil-militar; cultura; resistência; consenso; censura.

Keywords: Civil-military dictatorship; culture; resistance;consensus, censorship.

Licenciado em História (2017) pela PUCRS, mestre (2019) e doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUC. Email: leonardofetter.lf@gmail.com 2 Licenciada em História (2019) pela PUCRS e mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. Email: lara.coletto@ acad.pucrs.br 3 Bacharel of Arts (Hons) in English and History pela Carlow College St. Patrick's (Irlanda) (2013), Licenciada em História (2019) pela PUCRS e mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. Email: mariana.coutinho@acad.pucrs.br 1


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Introdução A chegada do petebista Jango, como era conhecido João Goulart, ao cargo da presidência da República, em 1961, engajou as esquerdas em uma campanha por reformas de base no Brasil, que incluíam as reformas agrária, educacional, fiscal e política. Ao mesmo tempo, setores conservadores e militares tentaram impedir a posse de Jango e, ao fracassarem, passaram a se articular para desestabilizar o seu governo por meio de manifestações e amplas campanhas, que resultaram no golpe civil-militar de 1964 e em uma ditadura de 21 anos. Essas mobilizações, em um país que se encontrava polarizado, não ficaram restritas ao aspecto político. Mesmo assim, as ações que foram promovidas pela ditadura civil-militar a partir de 1964, com a repressão aos movimentos opositores e às esquerdas, também não se limitaram ao político. O âmbito cultural brasileiro encontrou forte florescimento no final da década de 1950 e durante a década de 1960, com destaque para a arte engajada que, instalada na ditadura, também passou a ser reprimida. Pensando nisso, o presente trabalho propõe uma breve análise da cena cultural durante a ditadura civil-militar por meio de um levantamento e debate historiográfico, buscando, em um esforço reflexivo, propor um diálogo entre as temáticas da arte engajada, a censura sobre as produções culturais e os consensos e/ou consentimentos presentes na cultura do período. O nosso esforço se concentra em buscar superar uma análise dicotômica entre resistência e repressão no âmbito cultural, propondo compreender ações e comportamentos mais complexos, como aqueles encaixados nos consensos e consentimentos. Nesse sentido, buscamos uma reflexão em conjunto com questionamentos iniciados em 2000 pela historiografia, com o livro Ditadura militar, esquerdas e sociedade de Daniel Aarão Reis Filho (2000), onde o historiador questiona a memória e a imagem que a sociedade construiu de si no processo de abertura política da ditadura: de resistência e antagonismo ao regime e aos militares. A partir desses questionamentos da colaboração e os avanços historiográficos em torno dos consensos presentes na sociedade brasileira, buscamos pensar o âmbito cultural em sua complexidade, dialogando com aquela arte de esquerda anterior ao golpe e que se fez como resistência à ditadura, assim como a repressão aplicada pelo Estado ditatorial na forma de censura. A partir disso, esse trabalho está dividido em quatro momentos: compreender a cena cultural anterior ao golpe e o fortalecimento das esquerdas em projetos e discursos culturais; a denominada arte engajada no período pós-1964; as ações empreendidas pela ditadura na cena cultural, em especial, a censura aplicada sobre as diversões públicas; e, por fim, um esforço de compreender aspetos de consensos presentes em ações culturais. Esses quatro momentos serão realizados a partir de trabalhos e pesquisas de autores referências nas temáticas, como: Alexandre Ayub Stephanou,


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Carlos Fico, Denise Rollemberg, Janaína Cordeiro, Marcos Napolitano, Marcelo Ridenti, Miliandre Garcia, Tatyana de Amaral Maia, Rodrigo Patto Sá Motta, entre outros. Cabe ressaltar que não temos a ambição de esgotar as discussões historiográficas sobre as temáticas, mas propor um diálogo, uma reflexão. Além disso, esse estudo acaba se concentrando na década de 1960 e início da de 1970, pelo fato de os anos iniciais da ditadura serem considerados o auge da arte engajada e o momento em que a repressão do regime contra essa produção cultural se intensificou e causou maior impacto entre os artistas, essencialmente após 1968. Também é válido o recuo analítico anterior a 1964, tendo em vista que os diversos discursos que circulavam na cena cultural na primeira metade da década de 1960 influenciaram os projetos e discursos da arte de esquerda que predominou após o golpe. A arte brasileira passa a se engajar Ao analisar a cultura brasileira entre os anos 1955-1964, Marcos Napolitano, no artigo A breve primavera antes do longo inverno: uma cartografia da cultura brasileira antes do golpe de Estado de 1964, afirma que este foi um momento crucial no “surgimento e afirmação de valores ideológicos, estéticos e culturais que marcaram a vigorosa cena cultural brasileira” (NAPOLITANO, 2014a, p. 419), em que se destacou o engajamento na busca pela modernização cultural, econômica e social do país. Para Napolitano (2014a), na segunda metade dos anos 1950, cultura e política passaram a se articular no Brasil, momento em que os diversos grupos de esquerda passaram a influenciar, também, os intelectuais e os artistas. A aproximação de um projeto político ao projeto cultural desenvolveu a ideia de que a cultura engajada tinha o dever de preparar a população para uma libertação nacional. Desta forma, no início dos anos 1960, os temas e categorias fundamentais da cultura brasileira se apresentavam em torno da “autenticidade” e do “nacional popular”, contra a “alienação” (NAPOLITANO, 2014a, p. 421). Napolitano (2014a) propõe que diferentes projetos culturais, protagonistas do cenário cultural brasileiro na segunda metade dos anos 1950, interagiam e se tensionavam neste momento até o golpe, verificando-se, então, um “predomínio das correntes engajadas alinhadas com a cultura nacional-popular de esquerda” (NAPOLITANO, 2014a, p. 423)4. A cultura da esquerda comunista concentrava-se na construção de um discurso que conscientizasse a população contra a alienação e a cultura imperialista. Napolitano, no artigo Esquerdas, política e cultura no Brasil (1950-1970): um balanço historiográfico (2014b), afirma que as ações culturais da esquerda comunista privilegiaram o teatro, o cinema e a música popular dos anos 1960. Essa arte se tornou, portanto, um espaço central para difundir os ideais políticos e, também, para trabalhar a estética. Além disso, a arte ligada ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) foi marcada pelo na-


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cionalismo. O projeto nacional-popular, que “ganhou corpo no final dos anos 1950”, trouxe os temas de reforma e revolução e se afirmou na política e na cultura como uma possibilidade de mudança para o país (NAPOLITANO, 2014b, p. 40)5. Em 1962, com o surgimento do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), a produção cultural se modificou e a arte produzida pelos comunistas passou a predominar no cenário. Miliandre Garcia (2004) argumenta que as produções cepecistas estavam vinculadas a uma “cultura popular”, entendida através da conscientização e intelectualização das camadas populares como uma forma de modificar a realidade da população brasileira. Assim, com essa associação entre “cultura popular” e “consciência revolucionária”, os CPCs, e a UNE, se assumiram como os promotores dessa cultura na luta contra a alienação e contra a dominação imperialista. Desta forma, como evidenciado por Napolitano (2007), a arte engajada da primeira metade dos anos 1960 se centra em uma ideia de revolução nacionalista, algo que se modifica com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 1968, e o aumento da repressão, quando ela passou a fazer parte da “resistência democrática” (NAPOLITANO, 2007). A partir de diversos projetos culturais que começaram a se formar no período anterior ao golpe, percebemos como o campo cultural passou a se destacar nas esquerdas, buscando um engajamento da produção artística e do público em relação aos problemas políticos e sociais do país. É este engajamento que se sobressaiu no pós-golpe e trouxe a relevância cultural da esquerda dentro da resistência à ditadura. A arte de esquerda após o golpe de 1964 No capítulo A combatividade e a militarização das artes do livro Censura no regime militar e militarização das artes, Alexandre Ayub Stephanou (2001) desenvolve um debate em torno das diferentes produções artísticas e correntes da cultura de esquerda que se militarizam e se destacaram como resistência à ditadura. Segundo o autor, na década de 1960 observou o florescimento de uma arte que protestava contra a repressão e a violência impostas pelo autoritarismo do regime. Essa arte conscientizadora, que denunciava e combatia a ditadura, assumiu o papel de resistência “promovendo a ideia da necessidade de luta” (STEPHANOU, 2001, p. 113) e ajudou a difundir ideais anti-imperialistas e antimilitaristas, que eram contrários ao regime e contestavam, também, seu alinhamento ao capitalismo internacional. O regime ditatorial, a partir de uma influência direta dos Estados Unidos, implementou a Doutrina de Segurança Nacional6 que colocou em risco os direitos do cidadão em defesa da nação. Desta maneira, o discurso do combate ao inimigo, personificado pelo comunismo, legitimou ações que violaram os direitos humanos e reprimiram qualquer demonstração de oposição. Portanto, é neste contexto opressivo que


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a cultura engajada adquiriu uma maior relevância e se destacou entre o público como uma forma de expressão que se posicionava como resistência. Segundo Stephanou (2001, p. 137), a “ cultura de protesto e a arte engajada buscavam resolver o grande dilema da intelectualidade: conscientizar, gerar indignação, colaborar para criar um clima de revolução e um desejo por mudança”. Stephanou (2001) trata as produções da arte engajada abordando o teatro e o cinema, a intelectualidade e a música, o mercado editorial, os temas e correntes circulantes no campo cultural, bem como os debates e discussões em torno das formas de representação. A arte engajada que disseminava seus ideais para um público que, de certa forma, também buscava alguma maneira de resistir, acabou por envolver intelectuais e estudantes intensamente. O teatro, considerado a primeira forma artística a se mobilizar contra a ditadura, procurava ensinar um caminho para a mudança e desalienar sua audiência. Esta classe artística foi fundamental na organização de uma resistência. O Grupo Opinião, com origem no Teatro de Arena e no CPC, inaugurou o Show Opinião em dezembro de 1964, o qual foi visto como a primeira resposta ao regime. O show, que apresentava uma posição política neste esforço por desalienar a sociedade em relação aos problemas sociais e políticos do país, cativou o público mais politizado, principalmente os estudantes, e “ultrapassou os palcos” (STEPHANOU, 2001 p. 121). Já o Teatro de Agressão do Oficina, que tinha como ideia central a “libertação através da violência” e a intenção de “transmitir o caos da realidade brasileira” (STEPHANOU, 2001 p. 127-128), criticava a sociedade e a burguesia de maneira geral, “agredindo” a plateia para que se percebesse os seus privilégios e benefícios, e, como o Opinião, também atraiu um público um pouco mais amplo. Podemos dizer que, devido ao clima político do período, o teatro passou por ondas de produções e presença de público nos primeiros anos do regime. O ano de 1964 viu uma diminuição na produção desta forma artística, devido ao clima pós-golpe, e 1966 foi um momento de “calmaria” e autocrítica. Por outro lado, em 1965, observa-se uma recuperação do teatro, 1967 se torna o ano da “euforia cultural” e em 1968 se vê uma produção significativa. Este período é também marcado pelo crescimento do Teatro Universitário como consequência de os estudantes serem um dos públicos principais das produções teatrais engajadas do período (STEPHANOU, 2001). Na década de 1960 presenciou, também, a canção de protesto, sendo interpretada por artistas de diversos países e se tornando um fenômeno mundial. No campo da produção musical engajada brasileira, Stephanou (2001) afirma que os festivais de música popular levavam as canções para um público de milhões. Bem como o teatro, a música buscava a desalienação e a nacionalização de seu público, ao mesmo tempo que se utilizava de estratégias linguísticas para denunciar o regime. Apesar de existir um debate em torno da industrialização capitalista da música e sua mercantilização


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e de haver uma crítica aos projetos musicais não engajados, o desenvolvimento da música como uma forma de resistência foi considerável neste momento. A produção cinematográfica do período, para Stephanou (2001, p. 170), foi marcada pela diversidade estética, “porém no requisito temática, enredo, a predominância do cinema denúncia, do filme crítico, foi esmagadora”. Similar às outras formas de cultura engajada do período, o cinema também pretendia levar ao público os problemas sociais da realidade brasileira, retratar as dificuldades vividas pela população, criticar os privilégios das camadas mais altas e denunciar a estrutura político-social do país (STEPHANOU, 2001). O Cinema Denúncia, que retrata tais problemas sociais do país – como a miséria, o egoísmo das elites e a desigualdade –, de acordo com Stephanou (2001), pode ser reconhecido em três movimentos: no Cinema Verdade, no Cinema Novo, e no Cinema Marginal. O Cinema Novo foi o movimento de maior destaque do cinema brasileiro do período. O “compromisso com a verdade” e a “denúncia social” evidenciaram o debate político nas artes e distinguiram o Cinema Novo, e a estética da fome, no campo cultural brasileiro e levaram o movimento ao reconhecimento internacional (STEPHANOU, 2001). A tiragem de revistas de esquerda e de livros e romances libertários também foi notável, com os livros se esgotando rapidamente. Percebemos, portanto, que os livros de denúncia dominaram o mercado editorial brasileiro do período. É interessante ressaltar que, além das denúncias políticas e sociais, o campo editorial foi um espaço para a autocrítica da esquerda em relação a sua reação contra o regime. Assim, os romances, ensaios e trabalhos acadêmicos que abordavam a situação do país naquele momento dominaram o interesse dos leitores engajados, sobressaindo-se nesse mercado os autores, nacionais e estrangeiros, que tratavam de questões político-sociais (STEPHANOU, 2001). Portanto, com o golpe, que trouxe uma ditadura com uma política autoritária, a cultura e arte de esquerda passaram a enfrentar novas questões, iniciando-se a formação do frentismo cultural que contou com diversas correntes ideológicas, inclusive algumas apoiadoras do golpe que acabaram se afastando do regime. Com o final do AI-5, em 1978, e o início de uma abertura no âmbito político, o campo da resistência viu surgir novos atores e projetos e a arte engajada deixou de ser a protagonista principal em uma resistência democrática e pública (NAPOLITANO, 2017). Percebemos, desta maneira, que a cena cultural começou a se modificar no final dos anos 1970 e, como consequência, a importância e o espaço da arte engajada como oposição diminuíram. As questões que surgiram se relacionam mais ao lugar que a arte politizada, uma arte engajada, e popular, que era produzida para as massas, teria no mercado das grandes corporações. Logo, os artistas da oposição se mantiveram atuantes, ao lado dos novos atores da resistência democrática que surgiram do


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campo político até o fim do regime, ao mesmo tempo que passavam a se inserir em um novo mercado que se desenvolvia (NAPOLITANO, 2017). Essas obras e discursos produzidos sobre a arte engajada no período da ditadura civil-militar demonstram como se deu uma certa “evolução” do engajamento e da militarização da cultura. A tentativa de conscientizar a população e desalienar o público foi o núcleo da cultura engajada, que procurava difundir elementos anti-imperialistas, inserir um discurso político-social em suas produções e apresentar a realidade da sociedade brasileira para alcançar este objetivo. Por fim, o engajamento da cultura nos mostra como ela foi relevante no movimento de resistência. A cultura resistente foi marcante no momento em que o país se encontrava em um regime com uma política repressiva, porém, é importante considerar que a cultura mais conservadora e a arte não engajada também circulavam no país – ponto que iremos abordar mais adiante. Ditadura e a censura no âmbito cultural Ao falar do âmbito cultural na ditadura civil-militar é indispensável entender a dimensão da censura, para além daquela aplicada à imprensa. A censura aplicada aos periódicos ficou mais conhecida pela sociedade brasileira no processo de abertura política do regime, de modo que, ao falarmos de censura de forma ampla, ela é comumente associada à imprensa no período ditatorial. Porém, a historiografia aponta que a censura sobre as diversões públicas nunca deixou de existir no Brasil de forma legal, portanto, conforme Carlos Fico (2002), não era uma novidade e exclusividade da ditadura, mas ganhou feições próprias durante o período. Segundo o historiador Stephanou (2001), a censura (ligada às questões morais) era uma atividade legal do Estado brasileiro desde a Constituição de 1934, que introduziu a censura prévia aos espetáculos de diversões públicas e que teve sua área ampliada na Constituição de 1937, passando a incluir a radiodifusão durante o Estado Novo. Além disso, em 1945, foi criado na esfera federal o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), subordinado ao Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP). Conforme as historiadoras Garcia e Souza: Diferente da censura à imprensa, a censura de diversões públicas não foi ocasional nem restrita a regimes ditatoriais, mas era praticada fundamentalmente desde os tempos de Império, estava arraigada no imaginário social e, provavelmente por isso, encontrou resistência à sua extinção e só definitivamente extinta em 1988. (GARCIA; SOUZA, 2019, p. 158)

O regime ditatorial instaurado com o golpe de 1964 entendeu que o campo cultural era predominado pela esquerda e com potencial de subversão (aqui pode ser en-


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tendido o aspecto moral e político), encarando essa área como de atuação em nome da segurança nacional – conforme já apresentado. Stephanou (2001) coloca que, nos primeiros anos da ditadura, os Inquéritos Policiais-Militares (IPMs) eram responsáveis pela censura, já que não existia uma base legal ou direção dos procedimentos a serem tomados. Esses instrumentos eram responsáveis por investigar pessoas envolvidas na subversão e na corrupção, acabando por englobar e determinar a apreensão de livros e a proibição de peças teatrais, mesmo sem poder legal. No que tange os livros ou periódicos, o historiador destaca que havia apenas a proibição, pela Constituição de 1946, quando esses constituíam propaganda de guerra, de subversão à ordem ou de preceitos de raça ou classe (STEPHANOU, 2001). Para atender a censura que já era realizada pelos IPMs e uniformizá-la, tendo em vista que as ações censórias eram muitos díspares e confusas no âmbito da cultura, a ditadura passou a ampliar a legislação responsável. Uma das bases fundamentais do projeto de censura das diversões públicas no período da ditadura foi a centralização em Brasília, frente aos órgãos censórios dos estados. Apesar de ser uma proposta do governo de João Goulart, conforme Garcia e Souza (2019) apontam, a centralização se efetivou e ganhou novos traços durante o período, apesar da resistência por parte dos estados7, e foram realizadas importantes medidas para a sua concretização entre 1964 e 1965. Essa censura recém centralizada, orientava os órgãos censores em instâncias regionais, que conviviam simultaneamente (muitas vezes em conflitos), e era responsável pela censura de filmes com projeção nacional. Para Garcia e Souza (2019), até esse momento não havia indícios de politização da censura no regulamento do DFSP, apesar da vinculação com a estrutura policial e a possibilidade de suspensão do certificado de censura, estabelecido por decreto em 1965. Apesar de posta em um segundo plano durante o governo de Castello Branco, segundo as autoras, a censura foi bastante aplicada pelos órgãos censores regionais, sendo empregada sem grandes travas e com excessos pelos seus chefes. Para Stephanou (2001), a inovação a partir de 1965, com a construção de uma legislação censória, foi a competência exclusiva da União na censura das diversões públicas, que passou a ser considerada de segurança interna. Nesse momento, ainda não se estabelecia a censura prévia, apenas punições posteriores para diversas ações proibidas de forma genérica e sem definições precisas nas normas e leis. Segundo Stephanou (2001), o Ato Institucional nº. 2, de 1965, também se caracterizou de forma genérica no que tange a modificação do sentido da liberdade de expressão, tornando a subversão da ordem como qualquer processo não-violento, ou seja, qualquer crítica – que incluía diversos produtos e ações culturais. No ano seguinte, 1966, se estabeleceu a censura prévia aos espetáculos públicos, que passaram a ser obrigados a obter a aprovação do programa ou função com devida antecedência, assim como enviar ingressos permanentes ao serviço de censura.


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O ano de 1967 foi decisivo para a censura de diversões públicas, momento em que a centralização se consolidou e, ao mesmo tempo, as censuras regionais perdiam espaço de atuação. No mesmo ano, foi criado o Conselho Superior de Cultura, que viria a ser instalado efetivamente na década seguinte e fazia parte de um projeto de racionalização das ações censórias. Segundo Garcia e Souza: A centralização da censura das diversões públicas correspondeu à necessidade premente de os governos militares assumirem o controle nacional sobre a produção artística-cultural, supostamente transgressora dos princípios ético-morais e também político-ideológicos. (GARCIA; SOUZA, 2019, p. 142-143)

Além disso, a Constituição de 1967, aprovada pelo Congresso Nacional, expandiu a competência da União na censura de diversões públicas: além de filmes cinematográficos e peças teatrais, também foram incluídos os programas de rádio e televisão, publicações periódicas e letras musicais. A partir desse momento, o governo federal assumiu o controle nacional da censura sobre as diversões públicas, implementando várias regulamentações. Dentre essas, foi realizada a normalização de critérios da censura teatral, que incluía uma fixação da faixa etária para as peças, assim como para o cinema. Para completar o ano, Castello Branco transformou o DFSP em Departamento de Polícia da Federal (DPF), onde o serviço de censura era vinculado. Essa centralização e mudanças realizadas pela ditadura sofreram diversas críticas por parte dos artistas e intelectuais segundo Garcia e Souza (2019), sendo que as mais fortes vieram do meio teatral, o mais prejudicado entre os setores artísticos. No ano de 1968, de acordo com Stephanou (2001), além da criação da lei que dispõe da censura de obras teatrais, cinematográficas, novelas televisivas e radiofônicas, ocorreu um maior aprimoramento e qualificação da atuação censória, como: estabelecimento de prazos, regularização das faixas etárias, exigência de curso superior para os censores e a fixação explícita das punições. Na segunda metade de 1968, o serviço censório destinou atenção especial às peças teatrais que fizessem alusão ao comunismo, seja de crítica ou indução. Nesse mesmo momento, para Garcia e Souza (2019) – com a Lei n. 5.536/68, de 21 de novembro, e com o AI-5, ambos de 1968 –, a proibição de peças teatrais por motivos de questão política se sobrepôs à alegação moral. Cabe destacar que, segundo as autoras, a questão política nunca deixou de existir nessa censura, mas, a partir desse momento, se consolidou para as instituições e os agentes da censura o dever de defesa da sociedade brasileira da “subversão” e do comunismo. Em 1970, com o decreto-lei nº. 1077, ficou posto que não seriam tolerados conteúdos de ofensa “à moral e aos bons costumes”, à “instituição da família”, aos “valores éticos” e à “dignidade da mocidade” no campo diversões públicas, em publicações


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periódicas e na televisão, apontando que “o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional” (BRASIL, 1970). A partir desse decreto, os agentes da censura de diversões públicas passaram a relacionar o sentido político com as questões morais, segundo Garcia e Souza (2019), e, em seus pareceres, os censores justificavam a censura moral relacionando-as com atos de subversão e/ou ações comunistas. O historiador Stephanou (2001) buscou fazer uma análise acerca desses agentes da censura de produtos culturais durante a ditadura. Para o autor, a representação da centralização do serviço de censura foi o prédio do DFSP em Brasília, inaugurado em 1965, em que foram deslocados funcionários de outras repartições e ministérios para atuar como censores, devido ao pequeno número de servidores interessados em se mudar para a capital. Dessa forma, conforme Stephanou (2001), criou-se censores totalmente desqualificados e improvisados, que foram acompanhados de críticas do meio cultural e intelectual pela falta de formação e seus baixos níveis culturais. Segundo o historiador, o despreparo dos censores foi um grande problema enfrentado pelo SCDP, que, em um primeiro momento, realizou diversos cursos rápidos, mas que não foram suficientes. Além disso, conforme já apresentado, nos primeiros anos da ditadura não havia critérios e normas claras sobre o que deveria ser censurado, fato que resultou em pareceres de censura repletos de subjetividades (STEPHANOU, 2001). Mesmo com a falta de preparo, havia uma tentativa de realizar pareceres técnicos, buscando uma análise das obras e produções em si, para que não se configurem apenas como uma atividade punitiva e restritiva. Em função disso, a censura, em seus primeiros anos, foi marcada pela inconsistência, onde, muitas vezes, se liberava um filme ou espetáculo e depois, após segunda avaliação ou mudança de orientação, o proibia (STEPHANOU, 2001). Com a regulamentação e melhor organização do serviço censório com o passar dos anos, os agentes responsáveis pela censura também passaram a se profissionalizar. Esses censores foram formados dentro das premissas da segurança nacional, com disciplinas como a de “Democracia e Segurança Nacional” dedicada à propaganda comunista (STEPHANOU, 2001). Nessa lógica, ao proibir uma música ou cortar um filme, os censores estavam não apenas controlando o que chegava até o público, mas combatendo a expansão do comunismo internacional. Beatriz Kushnir (2014) destaca que havia uma preocupação com o desempenho dos censores e que todos eram reciclados periodicamente em cursos de aperfeiçoamento e especialização na Academia Nacional de Polícia – práticas criadas em 1966 e que existiram por quase 20 anos. Esses cursos também visavam sanar a demanda dos censores em fundamentos legais para os seus pareceres, na busca de legitimar suas ações. Conforme a historiadora Kushnir (2014), havia uma preocupação na formação desses censores como um técnico, ao mesmo tempo que se tornaram defensores da


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moral e da tradicional família. No final dos anos de 1980, segundo a autora, ainda era difícil para uma parcela mais conservadora da sociedade brasileira abrir mão do censor, como “síndico” da moral e dos bons costumes (KUSHNIR, 2014, p. 47). Essa análise apresentada por Kushnir, aponta que a defesa da moralidade, além de justificar as ações da censura, encontrava grande apoio de camadas sociais. Ademais, o historiador Carlos Fico (2002) apresenta diversas cartas recebidas pelos órgãos de censura cobrando algum tipo de restrição a filmes, programas de TV e outros espetáculos. Essas cartas, que eram assinadas por cidadãos e cidadãs que se colocavam como porta-vozes de um determinado grupo (mães, avós etc.), abordavam questões propriamente morais em sua maioria. Por fim, cabe ressaltar que o processo de centralização da censura, colocado em prática pela ditadura, se consolidou em junho de 1972, quando foi criado a Divisão de Censura de Diversões Públicas – acabando com os resquícios das ações descentralizadas e unificando as atividades censórias. No momento de abertura da ditadura que viria em seguida, a partir de 1974 com o discurso de abertura política do ditador Ernesto Ernesto Geisel, o serviço de censura encontrou recuos e avanços, como no início da década de 1980 quando se intensificaram as ações. As historiadoras Garcia e Souza (2019) destacam que no período de 1975 e 1978 persistiu ainda a censura política, mesmo com o processo de abertura. Nesse momento, passou-se a promover uma descentralização da censura, que ocorreu na medida que os órgãos regionais deveriam seguir as diretrizes do órgão central, assim como relatar para ele. No período pós-1980, a censura moral foi assumindo um papel central das ações, mesmo com a manutenção relativa da censura política até o final da ditadura civil-militar. A censura, em si, só foi extinta com a Constituição de 1988 e, até aquele momento, ela foi cercada de confrontos entre os setores que a defendiam, em defesa da moral e dos costumes, contra os setores de artistas e intelectuais que pediam liberdades. Dessa forma, buscamos destacar como a censura foi estruturada como forma de atuação da ditadura no âmbito cultural, tendo em vista a predominância das esquerdas nesse espaço. Apesar da censura no âmbito das diversões públicas ser justificada por questões morais, inclusive respaldada por setores sociais, a censura política predominou durante a ditadura, conforme aponta a historiografia apresentada. Em mesma medida, é importante considerar que o âmbito cultural, mesmo que bastante dominado pelas esquerdas no período estudado, não foi exclusivo desta. Diversos intelectuais e artistas que apoiaram, ou que de alguma forma consentiram com o golpe e a ditadura, também participaram ativamente no espaço da cultura e da intelectualidade.


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Entre apoios, consensos, consentimentos e ambivalências Sabe-se que muitos grupos oriundos de bases conservadoras que compunham o empresariado, a Igreja, movimentos de mulheres, imprensa e até mesmo entidades representativas – como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – foram importantes para a derrocada do golpe, demonstrando iniciativas de uma direita que não era hegemônica em sua construção, mas partilhava de uma "cultura política". Essa cultura política representava os valores sociais, os elementos que unificam a população em torno de um projeto de nação, englobava tanto a esquerda quanto a direita e intensificava a busca pela conciliação, pela ambivalência – o ser um e outro ao mesmo tempo, resistir e apoiar (MOTTA, 2014, p. 12). Dessa forma, busca-se pensar e exemplificar os momentos em que diferentes grupos sociais se relacionam de maneira diversa com o Estado ditatorial a partir de três eixos: as comemorações cívicas caracterizadas pelos usos políticos do passado; as ambivalências, que demonstram conflitos silenciosos dentro das próprias organizações, que ora apoiavam ora discordavam do regime; e o(s) consenso(s) que [...] denota a existência de um acordo entre os membros de uma determinada unidade social em relação a princípios, valores, normas, bem como quanto aos objetivos almejados pela comunidade e aos meios para alcançá-los. (SANI apud CORDEIRO, 2015, p. 14)

No ano de 2018, Marcelo Ridenti contribuiu para o livro 1968 em movimento, organizado por Angélica Müller, com o artigo A 'relativa hegemonia cultural de esquerda' e a revista Cadernos Brasileiros na época de 1968. Neste trabalho, em um primeiro momento, Ridenti buscou debater a suposta hegemonia da esquerda, proposta por Roberto Schwarz em trabalho escrito em 1978 e, por fim, a relação da revista Cadernos Brasileiros criada no ano de 1959 e ligada diretamente ao Congresso pela Liberdade da Cultura (CLC), que teve seu início no ano de 1950 na Europa e se relacionou com a ditadura civil-militar brasileira. A crítica ao autoritarismo e a defesa da liberdade de criação uniam intelectuais conservadores, liberais, socialistas democráticos e até radicais de esquerda agrupados pela instituição, com ênfase no questionamento do comunismo. O Congresso chegou a ter escritórios em 35 países e criou uma rede intelectual e artística significativa, patrocinando exposições, conferências, premiações e, em especial, um conjunto de mais de 20 revistas [...]. (RIDENTI, 2018, p. 52)

Segundo Ridenti (2018), uma dessas revistas era a Cadernos Brasileiros, diri-


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gida, inicialmente, pelo brasileiro Afrânio Coutinho e pelo romeno Stefan Baciu, que faziam dela um espaço cultural e anticomunista. Em seu início, a revista angariou pouco interesse da comunidade intelectual, já que as ideias de esquerda predominavam no Brasil e na América Latina. Nesse momento, a Cadernos Brasileiros, orientada pelo CLC, abriu espaço para a agenda reformista, porém mantendo seu anticomunismo. Deferido o golpe que instalou a ditadura civil-militar no Brasil, em cartas ao alto escalão do CLC, os diretores da revista Cadernos Brasileiros apoiaram fortemente a iniciativa militar e civil, a qual ambos denominavam "revolução". Afrânio Coutinho, inclusive, "qualificava o governo como de 'centro democrático, com tendências progressistas e moralizador da administração', até mesmo reformista, mas “ sem a agitação demagógica e populista ou viés comunista'" (RIDENTI, 2018, p. 57). Para Coutinho, o golpe surgiu da insatisfação e foi uma "contrarrevolução" para banir o totalitarismo que Goulart supostamente significava, assim como afastou a corrupção e trouxe paz ao Brasil (RIDENTI, 2018). A cúpula internacional do CLC discordava da direção da Cadernos Brasileiros, enxergando claramente a instauração de uma ditadura à mercê da vontade militar, podendo durar um ano ou, como de fato ocorreu, 21 anos. O editorial da revista seguiu essa mesma lógica, deixando para as opiniões individuais de seus diretores o apoio total ao golpe. Porém, ao longo dos anos que se seguiram, a Cadernos Brasileiros passou a tratar de temas que não agradavam totalmente o regime militar. Em 1966, a Cadernos Brasileiros perdeu certa simpatia das classes militares ao produzir um dossiê sobre a casta em questão. Já no ano de 1968, o cristianismo de esquerda ganhou um dossiê. Nesse mesmo ano a revista voltou seus olhos aos estudantes e seus protestos, abrindo dois números que visavam tratar da juventude e dos problemas educacionais, e criou um dossiê sobre questões raciais. Livre da análise da censura, a revista passou a debater a questão do militarismo, que poderia acabar com a liberdade de pensamento majoritariamente através da força (o que, de fato, a ditadura já executava). Importante analisar que os diretores da Cadernos Brasileiros eram advindos da classe média e compartilhavam ideais liberais, porém, diante de conflitos políticos, tomavam direções mais conservadoras, partilhavam de um anticomunismo característico do CLC e, ao temer um avanço comunista, apoiaram totalmente o golpe alicerçados na ideia da proteção do país. Esse tema é por nós analisado enquanto um exemplo importante do consenso social nos anos de 1964. O acordo social que comporta o "consenso" foi aceito através do "consentimento", elemento que designa as múltiplas formas pelas quais o acordo é conformado e se expressa socialmente (CORDEIRO, 2015, p. 14). Ou seja, na busca pelo fim da corrupção, do anticomunismo e do governo Jango, parte da sociedade brasileira consentiu com a ditadura e seus aparatos repressivos.


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Outro importante exemplo da participação intelectual conservadora, se deu através do Conselho Federal de Cultura (CFC). Em 2012, a historiadora Tatyana de Amaral Maia publicou a obra Os cardeais da cultura nacional: o Conselho Federal de Cultura na ditadura civil-militar (1967-1975), onde buscou tratar das zonas cinzentas de ambivalência8 que cercavam a intelectualidade conservadora ativa dentro do governo ditatorial, que ora discordava de medidas governamentais (como a censura), ora concordava, inclusive contribuindo em órgãos estatais de cunho normativo. O Conselho, que teve início em fevereiro de 1967, contava com quatro câmaras, sendo elas destinadas às Ciências Humanas, Letras, Artes e ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, focando nas áreas vistas como essenciais para a "cultura nacional" (MAIA, 2012, p. 27). Elementos como cultura regional, identidade e memória nacionais foram elencados como primordiais na busca pela intensificação do civismo. Portanto, a participação de uma intelectualidade que já havia colaborado na construção das políticas culturais durante o primeiro governo Vargas se fez de extrema importância para que se pudesse intensificar a chamada "consciência cívica", elemento visto como a radicalização do "espírito da nacionalidade" vivenciado durante o Estado Novo (1937-1945). A importância do trabalho de Maia (2012) se dá para que possamos compreender que os membros civis contribuíram na construção da legitimidade da ditadura civil-militar brasileira. Além disso, auxilia para que nos atentemos ao fato de que essa participação não se deu de maneira linear e sem conflitos, por isso, se compreende através do conceito de ambivalências. No ano de 2015, Janaina Cordeiro publicou o livro Ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento, no qual buscou compreender a participação popular durante o Sesquicentenário da Independência, no ano de 1972. Em 1971, se iniciaram os preparativos quando da criação de uma comissão para programar e coordenar as comemorações em nível nacional e, em janeiro de 1972, surgiu a Comissão Executiva Central (CEC), que possuía a função de dirigir e coordenar as comemorações dos 150 anos da Independência do Brasil. A CEC era formada por militares e civis, comportando também membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), CFC, Liga de Defesa Nacional e as associações de rádio e TV (CORDEIRO, 2015). As comemorações iriam do dia 21 de abril, data em homenagem a Tiradentes, e se estenderam até o dia 7 de setembro. Em nível estadual, surgiram comissões que deveriam organizar as comemorações das efemérides locais, buscando respeitar as especificidades regionais e integrá-las a esse novo Brasil, grande e desenvolvido. Sendo assim, no ano de 1972 se deveria comemorar o passado e a figura de Dom Pedro I, visto como "príncipe da autoridade" (CORDEIRO, 2015, p. 10), cujo corpo percorreu o país para, por fim, descansar na colina do Ipiranga em São Paulo. Durante esse


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ano, diferentes grupos sociais compareceram à festa cívica, interagindo de maneira diversa: desde a simples presença até mesmo enviando cartas à Comissão querendo contribuir na construção da festividade (CORDEIRO, 2015). É através das efemérides que se possibilita compreender os usos políticos do passado. Assim, ao se utilizar de um ano de grandes comemorações que se encerram no dia da Independência, buscou-se não só glorificar o passado, mas também o presente, construindo uma ponte entre os dois tempos. Alicerçado nos conceitos de consenso e consentimentos, podemos compreender os usos políticos do passado como maneira de criar continuidades e também de colocar os agentes militares construtores da ditadura como representantes de valores e tradições sociais já presentes no imaginário social. A articulação entre civis e militares integrantes da Comissão Executiva é um importante elemento para compreender como o regime soube articular o apoio civil. Ademais, demonstra a maneira ampla como ambos os lados dialogam, construindo o conceito de "ditadura civil-militar", já que, não só no golpe, mas no período pós-1964, a parcela civil esteve presente de diferentes formas. Através desse trabalho, Janaina Cordeiro constrói importantes debates para o futuro da pesquisa sobre o regime militar, demonstrando o quão complexa é a construção social sob ditaduras. De acordo com a autora, [...] compreender a ditadura como produto da sociedade brasileira, reconhecendo, para tanto, que houve apoios declarados, engajados, militantes, mas também os silenciosos; aqueles que faziam parte de uma espécie de engrenagem do consentimento, ou seja, uma lógica de pensamento de acordo com a qual aquela determinada situação é a única escolha possível ou, ao menos, a mais razoável, restando, portando, a obediência. (CORDEIRO, 2015, p. 25)

Dessa forma, pensar os grupos diversos que participaram da festa cívica durante os anos de chumbo possibilita entender que, para além de reações intencionalmente políticas, há também aquelas individuais. Isso colabora para que, enquanto pesquisadores, possamos compreender como a ditadura civil-militar brasileira perdurou por 21 anos e que esse processo ocorreu de maneira multiforme. Tendo em mente esse debate, seguimos para o último eixo que compõe essa análise: as ambivalências. Em obra organizada conjuntamente com Samantha Viz Quadrat, Denise Rollemberg compôs o livro com o capítulo intitulado As trincheiras da memória: a Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). Lembrando que a memória coletiva fixada no período da redemocratização foi a de uma sociedade resistente, a autora expõe que, ao se enfatizar que a abertura política havia sido levada a cabo pela sociedade, certos sujeitos políticos, como a OAB, a CNBB e a


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Associação Brasileira de Imprensa (ABI), se apropriaram do processo. A OAB e a CNBB, apoiaram o golpe logo em sua derrocada, já a ABI buscou se ausentar de opiniões (ROLLEMBERG, 2010). Em suas atas e boletins, a ABI defendia a liberdade de imprensa, era contrária à censura e atuava em defesa dos jornalistas presos. Por outro lado, em 1967 foi proposta, durante assembleia, a publicação de um voto de pesar pelo falecimento do presidente-ditador Castello Branco. A proposta possuiu apenas uma objeção. Já durante o governo de Costa e Silva, o presidente-ditador foi convidado para participar de um jantar em comemoração aos 60 anos da instituição. A ocasião gerou debates profundos entre os integrantes da casa, já que muitos jornalistas haviam sido presos em seu mandato. O AI-5 viria naquele ano e a passagem de Costa e Silva pelo jantar da ABI se deu a partir de elogios e críticas. No ano de 1969, o discurso proferido por Médici durante sua posse, comoveu os membros da instituição, dando um sopro de esperança sobre o futuro da imprensa, da liberdade de expressão e dos rumos da nação. Em carta assinada pelo então presidente da ABI, Danton Jobim, ressoavam entusiasmados elogios ao suposto alinhamento democrático do novo presidente: [...] Repercutiu entre nós favoravelmente o reconhecimento, por V. Eca., de que para formulação de uma política eficaz de desenvolvimento será preciso reabrir o diálogo com "homens de imprensa, os operários, os jovens, os professores, os intelectuais, as donas de casa, enfim, todos o povo brasileiro". Bem assim a declaração que se segue, de que "esse entendimento requer universidades livres, partidos livres, sindicatos livres, Igreja livre", o que pressupõe a eliminação da pressão ilegítima de certos grupos radicais minoritários. (JOBIM apud ROLLEMBERG 2011, p. 110)

Todo esse discurso compunha uma busca por legitimação, não por acaso que o governo Médici é conhecido como os anos do milagre econômico e dos anos de chumbo, constituindo-se em um dos presidentes-ditadores com maior popularidade durante seu mandato, mas também marcado pela forte repressão. O clima de esperança fez com que a instituição debatesse e construísse mensagens positivas a respeito da figura e do governo de Costa e Silva, acometido por uma doença. O ano de 1972 veio com a proposta da ABI compor a Comissão Executiva Central, responsável pela organização dos eventos comemorativos do Sesquicentenário da Independência. Assim como a efeméride, a Associação procurou tratar de temas do presente, ancorados na história, e buscou, dessa forma, discorrer sobre a censura vivenciada pela imprensa ao longo do tempo, sendo, por fim, homenageada pelo próprio governo pela importante participação durante as comemorações dos 150 anos da Independência. Outra participação importante da ABI em instituições governamentais


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foi no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Instalado em 1968, o órgão tinha como função “assegurar a plenitude de tais direitos por meio do funcionamento de um órgão específico” (CONSELHO ADMINISTRATIVO DA ABI apud ROLLEMBERG, 2010, p.122). Essa participação também foi cercada de debates proporcionados pelos membros da ABI. Apesar de ver importância em questões como a Anistia, a ABI procurou manter um caráter conciliatório, buscando a união de todos os brasileiros e a pacificação do país. Entretanto, anistia e liberdade não foram questões unânimes nas reuniões da instituição, principalmente no tocante aos posicionamentos. No que diz respeito aos posicionamentos individuais, a análise se torna ainda mais complexa, devido ao fato de, por exemplo, Celso Kelly, presidente da ABI, retirar-se da instituição em 1966 para assumir cargo no Departamento Nacional de Ensino, pertencente ao Ministério da Educação (ROLLEMBERG, 2010, p.127). Assim, a ABI torna-se um elemento importante para compreender as ambivalências que se configuram no apoio e na crítica ao mesmo tempo. Debates, reflexões, discursos e jantares compõem a maneira multiforme com a qual a Associação interagiu com o regime. Para Rollemberg (2010), é exatamente nessas zonas cinzentas, no espaço que compõem apoio e rejeição, que os regimes autoritários se sustentam. Considerações finais O período que compreende os anos finais da ditadura civil-militar brasileira foi de extrema importância na construção e direcionamento das pesquisas que visam tratar do tema. Durante a redemocratização, alicerçou-se a ideia de que a sociedade brasileira do pós-1964 foi exclusivamente resistente ao regime ditatorial, entretanto, hoje compreendemos que essa relação se deu de maneira muito diversa. A pesquisa relacionada aos estudos do tempo presente, em certos casos, pode se confundir com as demandas de memória. Denise Rollemberg (2010), ao tratar das diferentes linhas que, terminada a ditadura, buscam elencar uma memória como hegemônica, traz as dificuldades de pesquisas que visam tratar de temas sensíveis. Sendo assim, a memória de uma sociedade brasileira resistente no pós-1964 já não supre as demandas dos novos debates historiográficos para que possamos compreender a complexidade de uma sociedade sob uma ditadura. De maneira nenhuma buscamos desvalidar os trabalhos que visam compreender a resistência, pelo contrário, se faz de extrema importância produzi-los e compreendê-los. O que se almeja, na verdade, é compreender as diferentes facetas dessa sociedade no período da ditadura civil-militar, englobando resistência, ambivalências, apoios e colaborações, compreendendo que a sociedade e sua relação com o Estado foi (e é até os dias atuais) muito mais ampla e rompendo com a "tipologia binária re-


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sistência versus colaboração" (MOTTA, 2014, p. 13). Tendo isto em vista, nosso trabalho buscou se servir de um momento de reflexão, demonstrando o quanto a diversidade de pesquisas acerca da ditadura civil-militar brasileira pode e deve conversar. Ao apresentar a resistência, a atuação de censura e, por fim, as colaborações e ambivalências, buscamos construir uma narrativa que não costuma dialogar, demonstrando que todos esses temas estão interligados e que devem ser pensados em conjunto, visto que eram vivenciados pela mesma sociedade. Por fim, compreendemos que é preciso cada vez mais ampliarmos os debates acerca da ditadura, atentando ao fato de que a relação Estado versus sociedade é ampla e que a ditadura não se manteve apenas pelo medo. Apesar dos atos repressivos, os discursos que alinhavam diferentes grupos sociais colaboraram para que a ditadura civil-militar brasileira se tornasse a mais duradoura do Cone Sul, portanto, compreender sua estrutura se faz de extrema importância para que possamos entender seus mecanismos de manutenção. Consequentemente, a breve pesquisa aqui proposta buscou demonstrar a vasta possibilidade de trabalhos sobre a ditadura, a qual, em tempos de retrocessos e negacionismos, se constrói como um assunto delicado e importante, que não deve ser esquecido ou apagado. Notas Cinco projetos são evidenciados por Napolitano (2014a): arte engajada de esquerda; movimento folclorista; reformismo desenvolvimentista; correntes católicas de esquerda; e correntes neomodernistas de vanguarda. 4

É importante destacar que o autor considera este nacionalismo utilizado pelas esquerdas como diferente daquele dos discursos da direita, por ser um “nacionalismo crítico e seletivo” e não integrador. 5

Ver mais em: PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-americanas. In: FICO, Carlos et al. (orgs.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. 6

Nem todos os estados atenderam a decisão de centralização de forma imediata, como o caso dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Garcia e Souza (2019) apontam para as vantagens da arrecadação local como motivos de resistência dessas censuras regionais com a centralização, tendo em vista as taxações e multas aplicadas pelos órgãos estaduais. 7

Ver mais em: LABORIE, Pierre. 1940-1944. Os franceses do “pensar-duplo”. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz. (Orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX - Europa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 8

Referências Bibliográficas BRASIL. Decreto-Lei nº. 1077, de 26 de janeiro de 1970. Dispõe sobre a execução do artigo 153, § 8º, parte final, da Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Diário Oficial da União, 1970.


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CORDEIRO, Janaína Martins. A ditadura em tempos de milagre. Comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015. FICO, Carlos. 'Prezada Censura': cartas ao regime militar. Topoi (Online): revista de história, Rio de Janeiro, v. 3, p. 251-286, 2002. GARCIA, Miliandre. A questão da cultura popular: as políticas culturais do CPC (Centro Popular de Cultura) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Revista Brasileira de História (online), São Paulo, v. 47, n. 47, p. 127162, 2004. GARCIA, Miliandre; SOUZA, Silvia Cristina Martins. Um caso de polícia: a censura teatral no Brasil dos séculos XIX e XX. 1. ed. Londrina: Eduel, 2019. KUSHNIR, Beatriz. Da tesourinha ao sacerdote: os dois últimos chefes da censura brasileira. In: João Roberto Martins Filho. (Org.). O Golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas. 2ed. São Carlos: EdUFSCar, 2014, v. 1, p. 47-66. LABORIE, Pierre. 1940-1944. Os franceses do “pensar-duplo”. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz. (Orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX - Europa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. MAIA, Tatyana de Amaral. Os cardeais da cultura nacional: o Conselho Federal de Cultura na ditadura civil-militar (1967-1975). São Paulo, Itaú Cultural: Iluminuras, 2012. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. NAPOLITANO, Marcos. Forjando a revolução, remodelando o mercado. Arte engajada no Brasil (1956-1968). In: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão. Nacionalismo e reformismo radical (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (coleção: As esquerdas no Brasil, vol. 2) NAPOLITANO, Marcos. A breve primavera antes do longo inverno: uma cartografia da cultura brasileira antes do Golpe de Estado de 1964. História Unisinos, v. 18, p. 418-428, 2014a. NAPOLITANO, Marcos. Esquerdas, política e cultura no Brasil (1950-1970) um balanço historiográfico. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 0, 1-16, 2014b. NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985). São Paulo: Intermeios, 2017. PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-americanas. In: FICO, Carlos et al. (orgs.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. RIDENTI, Marcelo. A “relativa hegemonia cultural da esquerda” e a revista Cadernos Brasileiros na época de 1968. In: MULLER, Angélica. 1968 em movimento. Rio de Janeiro: FGV, 2018.


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ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memória: a Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (19641974). In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz. A Construção dos Regimes Autoritários: legitimidade, consensos e consentimentos no século XX - Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. STEPHANOU, Alexrandre Ayub. Censura no regime militar e militarização das artes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.


Editora Responsável Michele Dacas Conselho Editorial Jorgelina Ivana Tallei (UNILA) Paulo Renato da Silva (UNILA) Diana Araujo Pereira (UNILA) Organizadoras da Edição Ana Marília Carneiro Natália Batista Projeto Gráfico e Diagramação Sharlon F. de Fraga Revisão Gramatical Angélica Santamaría Alvarado Carlos Eduardo do Vale Ortiz Cristina Pinilla Duverly Joao Incacutipa Limachi Giovanna Sampaio Juliana Tonin Sônia Cristina Poltronieri Thiago Augusto Lima Alves


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