Moldura de lagartas

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moldura de lagartas


Copyright © Selo Demônio Negro, 2020. Moldura de lagartas © Susanna Busato, 2020 Editor Vanderley Mendonça Projeto Gráfico e Capa Vanderley Mendonça Ilustrações Ricardo Cavani Rosas Revisão Carol CCS dados internacionais de catalogação na publicação – cip

B976 Busato, Susanna. Moldura de lagartas / Susanna Busato. – São Paulo: Selo Demônio Negro, 2020. ISBN 978-85-66423-78-5 1. Poesia brasileira I. Título.

CDD – 869.91 Índice para catálogo sistemático: 1. Poesia brasileira : Literatura brasileira 869.91

A edição deste livro recebeu o apoio do PROAC - Programa de Ação Cultural, do Governo do Estado de São Paulo. Edital nº18/2019 – Produção e Publicação de Obra de Poesia”. Realização:

selo demônio negro Uma publicação V. de Moura Mendonça Livros Rua Dr. Veiga Filho, 36 / 904 - São Paulo – SP - CEP: 01229-000 selodemonionegro@gmail.com www.demonionegro.com.br


susanna busato

MOLDURA DE LAGARTAS

são paulo

selo demônio negro 2020



Para Marília Beatriz, Lucas e Tainá, minhas molduras. Para Alain, minhas lagartas. À Poesia, minha metamorfose.



Todo pensamento é uma suspensão em epígrafe. Todo pensamento é lagarta. Seu casulo, o livro.

Esta epígrafe tem fome.

E come o próprio rabo.



as molduras

i. Sabe (,) lagarta? / Eu sou / Eu sendo / Ex-centro........ 11 ii. A poesia é fuga ou combate? ....................................... 29 iii. Colíricos......................................................................... 49 iv. Eu exílio / e mefisto / de vermelho............................. 65 v. Alvéolos de ar comprimido........................................... 83 vi. Ex- / pulso / punctum / final....................................... 97


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I Sabe (,) lagarta? Eu sou. Eu sendo. Ex-centro.

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gênesis No princípio era a larva a debulhar seu corpo insone no molusco do nome. Era um músculo rastejante um vínculo minúsculo com a energia vital do ovo. O princípio aglutinador das moneras. O princípio urdidor das células. Larva reprodutora da máquina de produzir outras larvas, asas, patas, antenas.

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fode palavra a palavra fode pode come cava o silêncio de tudo onde tudo é só mais um perdido grito n o e s c u r o

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da poesia e sua outra a Haroldo de Campos, meu professor, e a Carlos Drummond de Andrade, meu poeta das retinas

A poesia é fraca? A poesia é rara. A poesia é festa? A poesia é fresta. A poesia é alma? A poesia é lama. Na piracema da poesia a panaceia perpendicula a pipa. Piram todos. Perdem o caule o cálculo a calma. A maresia derrama o peixe morto na praia. A poesia fraca vive de festa. Busca na alma a prosa da vida.

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A poesia... Não tire poesia das mangas. Deixe o sol cumprir seu trajeto como poesia-objeto. O concreto viço da fibra-fruto em sumo sonha a palavra rara, sua lagarta de voraz dentadura.

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lagarta sendo Uma lagarta atenta passa a maior parte do tempo casta enquanto tece a capa do momento outro: nódulo. Larva transmutada. Um quase nada de um tecido tácito: óvulo. Metamorfose intacta de lagarta transformada em bolha: folha de papel-palavra. Quando uma lagarta sonha sonha um tecido de franjas: frágeis folhas de caderno entre outras tantas finas folhas de papel de seda. Fraturas lascas lâminas: ágeis lembranças sonham a aspereza letras pretas sobre asas brancas.

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Uma lagarta quando sonha sonha a saliva solta e sulca na tela entumecida a sina de ser palavra livre ali ond eno cas ulo é ond a

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enlagarça i Sou um corpo. E isso dói. Um corpo carne um corpo verme um corpo canto um corpo que não um corpo que nem tanto. Um corpo que em carícia e saliva tece a substância com que enclausura o corpo que procura e o que mais não seja corpo usura. E assim a fome devora o que some

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e revela no centro o sendo o corpo com que me sur (acima e através) pre (antes de tudo) endo (seja)

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delírio Por que tudo tem de ser leve como o ar, transparente como o sopro, claro como a chuva que tudo me entrega: o céu e a terra como um corpo desejante?

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apartheid do corpo Este corpo não me pertence. Este não. Aquele outro anseio no espelho, algoz da carne.

Este não. Aquele. E o que não me pertence pertence ao corpo infame em sobreposição de carnes.

Silenciosas ondulações de coxas, braços em polvorosa, barrigas em guerrilhas.

O infame reflexo como um abscesso me acena e ri. 23


enlagarça ii Sou um corpo. E isso dói. Um corpo que insiste. Corpo que a todos diverte. Um cálice de canduras. Uma cálida tortura. Um corpo de abruptas sedimentações de palavra em palavra sem manchar a rota de sua própria revolta. No verso verte no espaço presente a dor de um corpo que fede. Quisera o leitor lamber seu entrementes reavivar a minúscula febre e entumecer as nascentes. Quisera o leitor nos lábios verter da língua pronta o mel e com sorte o meu réptil poder.

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como usar a língua entre uma vír gula e outra vír gula a lín gua enrosca na garganta e agita na ponta do anzol da vír gula a palavra inter romp ida 25


momentos antes da vír gula meter a lín gua entruma eoutra sí-la-ba.

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moto contínuo Eu me repito Eu me repito Eu me retorno Eu me reconto Eu me radico Eu me redondo Eu me ressono Eu me recolho Eu me resguardo Eu me recato Eu me rato Eu me buraco Eu me rasgo Eu me engasgo Eu me caco Eu me impacto Eu me saco Eu me parto Em mil pedaços Em mil cacos Em mil lados Em mil passos Sem norte ou sorte Eu repito o corte Sobre o corte De ontem cedo De amanhã à noite Repito a dose 27


Do remédio certo E durmo direto Como um raio Partido ao meio De escanteio Sem receio Do grito Do gato.

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ii a poesia é fuga ou combate?

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canção de gesta Eu não posso roço apenas os destroços. Sonho que faço o osso bulir e, de dentro da febre, do rastro, o fardo ruir.

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perdida Deixei aos poucos uma vida de rimas e métrica perfeita. Hoje sou uma sintaxe errante (farsa perfeita) sem compasso sem cumulonimbusculhambações.

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entre Dos limites conheço as bordas os prefácios os precipícios as capas as altas ondas as orelhas as quinas pontiagudas das facas estiletes de ar. Dos medos conheço a falta a culpa a partida a solidão de uma janela aberta sobre a noite a mudez de uma parede depois de trancada a porta a página aberta a palavra alerta a luz branca a testa estanque na ruga rente a dividir o corpo antes e depois da sede. 34


academicismo querem que eu seja original que tudo o que eu diga seja original como as flores original como os planetas original como os postes que perfilam sua cinzenta capa concreta na origem das esquinas e ao longo das sarjetas

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desejo Ah poesia! Não queria encontrá-la na arrelia do circo das letras entre bons intencionados oculares narizes a cheirar-lhe as saias e depravar-lhe os lábios onde tantas vezes eu colhi minha feliz rebeldia. Você não merecia entre tantos ser tratada como cortesã de festa.

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método i Se entra aqui vira palavra atada pela pata. Se abre a boca corto a língua finco os dentes, vira rima. Corto entorto meto dentro a metavíbora.

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a poesia é A poesia é tiro no vácuo no vão do espelho desconcerto e bote armado. Quando sangra um pouco eu sinto o gosto dos caninos no meu corpo.

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método ii Para escrever um poema basta meter a mão na massa, os dedos, as pontas curvas das unhas, as dobras da pele suada. No dorso da mão se alongam as palavras. Na concha interna ecoam sons cavernosos. Sílabas. Tudo sibila entre dedos selados. Até sua boca palavra rouca que arrulha sobre os grãos do alguidar.

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cilada Poema de pavio Curto Poema de rabo Longo Um explode No espaço Outro expira De longe Poema curto Tarja preta Poema longo Homeopático Um te engole inteiro O ou tro ao s bo ca do s

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método iii Sobre o colo de uma forma teço outra forma sobre um verso e colo um dorso de letra – não mais – e subo à tona de outra forma in cólume. E na valva concha que lhe encurva a linha, sua forma in sone in terrompe a fala de outro texto que de um terço aflora a outra forma no andar e some. E colo sobre o texto agora outro texto que de um tempo assopra as formas do ar. Sobre o colo dessa forma tenho outra forma sobre um traço e inverto o dorso de antes curvo às costas de outra forma e nele teço um laço cuja ponta se evola até à tona de outra forma em ronda na valva concha que lhe encurva a linha sua volúpia cristalina in sone 41


insulaflama aflorúpia textalina textoflama cantoflora pápilapluma florlápida lúbrica outra flora forma fálica que de um terço aflora a outra forma a cantar agora sobre o texto outro texto que de um terço aflora a outra forma no andar e some.

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sem estante Cada livro que tenho depositado em pilha, em suporte de madeiro, mesa ou tampo, de cozinha ou banheiro, de cabeceira de cama ou gaveteiro, cada livro me olha como quem pede a vida volante de um livro em roda, livre, sem estante.

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suruba na gaveta dos papéis mofados Um ácaro acaricia a sílaba-chama. Na pele da palavra suor em escamas. Um ácaro aguarda a sílaba em pelo. Uma palavra ama um ácaro de joelhos.

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estantes distantes Estantes quadradas, caixas mudas, compactas, exatas. Bocas certas de engolir capas e resmas de folhas presas, coladas, aladas. Estantes ocas. De ar. De caras e bocas. Famintas de tudo, de gatos e porcelana entre lombos de papel e poeira branca. Estantes que não tenho e em cujo corpo guardo as metáforas pessoais: capas de couro espadas do zorro mosqueteiros da justiça piratas salteadores amores impossíveis delicadezas os vermelhos gomos do desejo.

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golpe fatal Nada falha no fio da navalha tudo fala no vão da vala até poesia rala

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fricativa cutuco a carne do poema escancaro mostro os dentes lanço a cuspe a sibilância a fricativa chispa a indiscreta chama vagabunda a carne se p o e m a

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iii colíricos

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moldura de lagartas Olympia nua sua carne ondula na moldura branca espelho de alfaias. Olympia pura baça paira olho nefasto veludo fosco relva verde entre as pernas. Dos colares observa, sossega a negra íris na carne branca e exala no pó dos móveis o vidro embaçado da moldura. Olympia ondula sua pele de nácar e lança pedras na memória intacta da pudica mão que lhe guarda o anjo sem asas. 52


Florescem as pernas de Olympia como pinças de um amor desencarnado e enamoram a aura fescenina dos mamilos esses voláteis látegos do desejo. Não há retornos no ar de Olympia. Seu corpo materializa o nada. Seus brincos vestem a sedutora ordem da beleza, verdade de vidro embaçada na moldura de lagartas. Mijam os gatos no quadro de Olympia moldura quente acesa ferida. Olympia fede na sua beleza de marfim fincado de dentes. Regurgita. A boca mínima lambe as feridas. Engole. Pote vazado para os seus desejos de fonte. Olympia rasteja no vidro como lagarta no cio. Olhos de vaso chinês, pele de laca. E você, indiferença de crayon, aprendiz de galeria, assopra a gordura baça da vida no sonho de vidro da borboleta de negras asas.

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pintado à mão Não aprendi a pintar telas nem aquarelas, mas enfrento as querelas de uma parede que me olha toda cristalina. Na superfície calma, o rolo que me toma sente o som da lã umedecida pela tinta na parede porosa. De frescor orvalhada a parede muda aveluda o espaço da cor compenetrada e no seu dever sem guardas revela toda a sala da luz ofuscada. Paredes são como peles: estremecem quando a gente chega perto e se despem quando a gente resvala no úmido pincel seus ouvidos clementes...

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lembrança do mundo amaro Antigamente escrevia como os escravos os sonhos que se alojam no corpo da gente e cravam nas linhas o impossível. Antigamente a vida estendia sua pele confortável sob meus pés. Decididamente antes de tudo acontecer eu já sentia e sentir era tudo que eu tinha no desespero de ser a que eu não dizia: a lua arregalada e a noite esparsa a luz atônita e a cegueira repentina. Mirar-me era urgente como a um beco se dirige a seta mais potente para onde a meta é a mente que tange o arco mais solene aquele em que a dor é mais evidente. Não importa a sorte todos os becos se cruzam. Todos os becos calam a seta no âmago do fugitivo rato. 55


a lâmina da manhã A aranha a lã alcança arranha e lança na pele as finas camadas de esperança. Entre uma ponta e outra lanças, traços, tranças. (Amarras. Esquivanças.) Entre uma pergunta e outra a aranha procura um estro, um lance de olhar projétil que tudo arranque e solte a corda livre no ar cristalino. Mas a lâmina da manhã corta o ar o mar e tudo o que navalha a veia salgada escondida no ansiolítico escarpin salto 12.

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dispersa Sem retorno em torno de mim as voltas do tempo voam. Sou som no vento. Sou evento no repente de mim.

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solidão Procuro um sustenido na escala da noite. Claves de fá me aborrecem. Bemóis se multiplicam como pássaros nos postes a esta hora. A lua é uma semibreve aflita. Tudo se anuncia como um apito no meio da noite. Na altura de um semitom, me elevo para além do pentagrama dos corredores. Da capo. Nada, nem uma colcheia de fartos seios e hastes em flamas arpeja sua carne nas grades da janela. Na fálica aflição, um gato repousa sua pata sobre a segunda linha do texto.

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cantiga da espera A saudade boa ressoa como uma vontade louca como uma sede lambida no rosto do tempo deposto. A saudade costura a palavra ainda crua como um dardo na mente a fustigar a espera lenta do encontro nascente.

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o gosto da espera Espero o jantar como um beijo espera os sábios lábios do amante, como o maturado queijo antecipa a boca salivante. Ao jantar o seio espera entre taças o vinho gotejante na boca desarmada do amante imaculado. Entre rodelas de tomate e gotas de azeite o tempo úmido expira no intervalo da espera vão em que se espelham na branca superfície a lâmina da faca e os dentes prontos do garfo.

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das voltas que o mundo dá A cada vez que você volta é como se um novo dia fosse à roda das horas ainda a volta de um claro dia e na revolta fosse um dia à roda do dia ainda em ronda. A cada vez você retorna como encontro e abandono como se na volta o sonho fosse o girassol das horas. A cada vez que você torna sua cabeça no meu peito é como se as formas brotassem do amor este revolto pensamento.

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à mesa Lentilhas nos olhos as linguiças. Sorves do caldo quente seus nódulos, gordura branca nas papilas. Lentamente. Como as horas. Em rodelas. Nos ponteiros, exauridas.

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bandage abobrinhas italianas linguado umedecido cenouras nuas circulam entre laços transparentes de cebolas roxas

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iv eu exílio e mefisto de vermelho.

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nascimento do olhar O pôr do sol avermelha o horizonte. O sol se põe no vermelho do horizonte. O vermelho se horizontaliza no sol. O pôr do sol orienta o vermelho. O horizonte deposita vermelhos no sol. Um sol se põe na vermelhitude ortogonal do horizonte. Um horizonte avermelha ao sol. Em decúbito dorsal o sol do sol avermelha. Horizontalizam vermelhos de sol. Solarizam rubros horizontes vergéis. Vertem vermelhos espelhos de sol. Horrorizontes vesgos vergam-se ao sol. Horrorizontes velhos vertem vespas de sol. Horrorizontes vermelhizam sendas de sol. Vertem rubros vergéis em horizontes de fel ao sol. Um pôr de sol depõe contra o horizonte. Vermelhorror: o sol se con so me. 68


a cidade desejante As lojas estão fechadas Os passos sumiram das escadas Os carros desalojaram as ruas Não se respira no caule das torres envidraçadas (a poesia pura perpendicula nos varais e fios de alta tensão a poesia grita na pausa dos postes sussurra ouvido colado ao chão) Corpos desejantes na cidade muda assistem à lenta morte como um arrebol Emulam a gama de gritos e cores como se deles fossem as gargantas decepadas dos dias A cidade grifa grafa grava n o s m u r o s seu desejo de fêmea: que a última foda venha queira seja a posse do p o e m a 69


arrebol Vermelho o farol. Azul o dia. Amarela a pressa. Os pneus avançam por sobre os ponteiros, queimam o branco das faixas, aceleram a íris do dia. O meio-fio se alonga na corrida. O radar sonolento da esquina não vê o pedestre e a travessia e o destino das ruas. Ninguém ousa parar. Vermelho o asfalto. Azul a sorte. Amarela a vida. Um cigarro aceso ilumina. O celular toca. A mão hesita. É proibido parar na contramão. É proibido estacionar.

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crisálida paisagem A paisagem não é o meu país a paisagem não é o meu feliz cartão-postal de viagem. A paisagem não sorri a paisagem não me diz nada. A paisagem paira com seus olhos de concha. De meus poucos alvéolos se arvora a movência (miragem?) dos órgãos internos: inalam o ar das grandes manifestações de cachoeiras matas montanhas e falésias. A paisagem alada dos pulmões resvala no sopro com que encarna as molduras verdes do lago do paço municipal do átrio monacal andanças do sábio repouso que sabe da paisagem o lado de dentro da crisálida face das coisas.

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ícaro no asfalto se tudo ainda é pouco se tudo ainda é lento se tudo quanto calo raro arrebento se tudo é partida golpe buzina se tudo é café com pão ao meio-dia se tudo o mais é filé com aspirina na poça d’água do meio-fio eu ao meio partida ouso o impossível: um fio de prumo na janela entre o pôr de sol e a lua esgarça a fina camada do dia (e isso ainda é pouco o mais ainda me alucina)

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no vidro fosco da janela o sorriso de Ariadne me vigia nas suas níveas mãos a noite e nas minhas às minhas expensas apenas ases e copas e janelas abertas de ar

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à paisana Eles eram muitos. Eles eram fortes. Eles eram belos. Carregavam na ponta do fuzil das línguas a morte. Guardavam balas na boca e cuspiam sonhos que afogavam na terra com uma pisada de pé sujo de terra. Era para reprimir a vida, diziam. Para a dispersão do mundo. Para a mordaz vingança. Engatilhavam a foice negra do tempo real como uma arma serena. Eles eram o inferno. Eles eram o centro. Eles eram o seu próprio intento. Sua astúcia e repúdio: lance de guerra. Contra si mesmos os dados rolavam dos copos. Aquilo bulia aquilatava aqui lá aquilo calava.

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ando moderna Ando moderna. Me dei ao luxo de respirar o ar fresco do agora. Logo saberei do que é feito o oxigênio das massas o vidro fosco dos automóveis o projétil que escapa da arma do policial o temor que habita o Planalto o terror que abala o asfalto o horror que sacode as armas o hemisfério esquerdo do cérebro da direita o hemisfério direito do cérebro da esquerda o hemisfério Norte e Sul do planeta e suas querelas de fogo o negro que corre da polícia o branco que finge não ver o amarelo do retrato em que brancos e negros posam para a fotografia indiferente. Logo saberei do vermelho que assusta do verde que inflama o braço que brada no ar atônito o açoite do tempo e o azinhavre do hálito dos homens.

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caminhada Pela calçada meus óculos vão sobre o nariz que vai mais à frente. Pensam na inutilidade das lentes na falta de abrangência na sobriedade armada sobre o nariz que vai mais à frente. Este talvez pense no olfato que encerra a sabedoria que falta às armações: de ser puro fingimento óptico do que vai sempre à frente.

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deambulações Para onde vai aruaruarua ? Para onde vai toda a sua passadalarga em fuga ? De onde vem a sua descalçada humana desventura ? Para quem você tece o destino dos que habitam as ondas pluviais de suas pedras as soleiras que lambem sua sujeira? ruaruarua suasuasua sob o sol / sob o mal

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chanson d’hiver a Jacques Prévert

Je m’en vais par la rue qui m’enlace qui me parle qui me suit. Et je cherche par des traces de son corps les yeux gris de la pluie.

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cantiga de roda Toda São Paulo a que volto me volta, pálpebras baixas, uma nuvem vaga. Toda São Paulo a que volto deságua no confronto a última lágrima.

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balada invernal para mário de andrade na cidade de oswald São Paulo é tão fria. São Paulo é tão minha. São Paulo me alucina. E nessa baladinha, meu corpo adoece, empalidece, se enternece. A multidão é tão vasta. A multidão é tão farta. A multidão é tão rasa. E, no entanto... as magnólias úmidas olham as puras ondulações-lazúli da tarde de azaleias nos edifícios enfileirados como porteiros de plantão. São Paulo é uma vala no planalto e me vigia com seus olhos de águia. São Paulo é uma paulada no coração da noite um tapa na contramão do coro das magnólias que olham tolas os bancos e seus velhos de jardim. 80


Choros de luz acendem os postes da noite. – Não. Eu não vou ficar como a velhinha do quarto andar que mora no edifício de azaleias que nunca findam de brotar e que visita o Sacolão ao meio-dia invernal e sai com seu queijo branco sem sal sem ar.

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terminatum est Dia termina no estupor sol e pavor vento e buzina. De membros tensos escapamentos comem as pistas.

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v alvéolos

de ar comprimido

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condição humana para René Magritte

Do ovo o artista prima a matéria pura e fina imitar. Do que envolve a vida o plano da asa agita na oblíqua humana condição e grita do retrato o traço e arrisca no ar o ar do artista

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sólida Sólida como um cubo de aço finco os vértices no ar. Respiro fundo com os pulmões de bolhas. Ensaio um voo azul. Sou agreste e sou estaca calada na câmera e na luz.

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com o fole na garganta 1. na garganta entumecida o ar se aninha ave louca ave gorda ave que não para de respirar 2. da garganta entumecida um ar de asas se avizinha ave louca presa às grades dos pulmões de ar 3. com a garganta entumecida falo em boca distraída o mais não grita engole aflita a sua sina

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socorro Ao menos uma fresta, um ar, uma réstia, uma salva de promessas. Qualquer coisa qualquer que salve bem depressa.

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sem fole Na gaiola das costelas, o fole inchado resfolega na cruel aspereza desse ar sem correnteza... Ar que me arranha as arestas, porta cerrada, ar como pedra. Ar, te desejo: verbo flexionado nos alvéolos, implorando pra voar pulmão afora.

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sopro Queria o ar como um rio na correnteza. Queria o ar como um riso aéreo cortante, como asa arisca. Com o seu olhar queria soprar nos meus lábios de ar a vida.

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espartilho

Espartilho por dentro das grades a carne a fole e ventrículos.

desejam desejam desejam

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as asas o ar o ar o ar

as asas as asas


no compasso da falta a cada vez que respiro um ar se apruma e nas asas se evola o desejo de res pirar no fogo se aninha o receio de não poder mais res pir ar

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asma ar rebenta ar ruína ar que chega de p ar t ida

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engenho Nenhum átomo se atreve sob os poros do olhar breve somar-se ao que ainda pode respirar o leve. Respirar é como triturar ossos até a carne explodir em camadas. Respirar é buscar nos veios o sopro que não volta quando a boca engolfa a camada aérea do oxigênio.

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o último exílio no colete que encarcera este ar de caverna guardo o desejo iminente do voo de asas do voo de falhas do voo a farfalhar as gralhas as aras e tudo mais que cheira a ar

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vi expulso punctum final

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pés alados a Pietroforte, o Vicente Como medir a dor em breves pés atados em três pares dispostos à força em si atroz? O mestre dá à dor, bem sei, seu sol maior. Dá sua picadura ao poro o laço cru. Finca na carne pura o aço dos homens nus. Pelos seis pés escravo da dor do acento longo, em breve sorte, o amor nos vãos da pele cobre. E lá se vão os nós dos pés à luz mosqueados. Curvam-se ao sol da mestre lâmina enamorados. Dos homens nus os laços rebentos enternecem. À dor dos pés alados, reluz o sol ardente. 100


Mas em campos atado o ardor de sol nascente dá voz amordaçado à grata escravidão: seis pés remanescentes encravam puro amor nos versos que d’outrora cantavam servidão.

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das incompreensões diárias Você não entende o que são as dores internas colapsos de células derivas e quedas. Você não entende o que sente este corpo derramado rio obediente ao vento remo resistente à onda.

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se você diz que levo tudo a sério Se você diz que levo tudo a sério e teimo que não e se você acha que tudo nem é tão sério pra levar assim tão na teima tão na queixa eu me rebelo e digo a sério que você é que teima em me deixar assim então dispara a sua tara sobre tudo que me leva e me revela tudo o que me deixa assim à beira da miséria.

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preparação para a morte Tudo em mim demora. Tudo em mim deshora. Tudo em mim desdobra aos poucos, nos fios soltos, as linhas do texto. E lenta a hora passa, arrasta e se enrola, novelo tenso, como uma corda, como a gola do rei, plissada, como uma lagarta envolta, eclipsada, pelo óvulo de tecido denso, alimento, que gera e vomita as mínimas gotas de texto, palavraslarvas com que lavro as ilhargas das palavrasasas largas ilhas de sal sonoramente luminosamente textualmente fartas. Em mim tudo se evola e ronda o tempo que me assola todas as voltas do fio do fim do sim do mim. 104


dobram os sinos Um último látego do sol e basta. A noite dobra-se.

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solo para pagu

para Augusto de Campos

Solange Sol Soluça salamandras de cristal Solangira Lenta lúcida agonia Só ao longe respira Solange solarium Sol longe corolarium Girassol gema-luz rouxinol Centro gira rumoreja Lentas notas de arrebol

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outra pedra do sono para João Cabral

Você não descobriu a pedra. A pedra de antes a pedra em transe medra desde a era das anfíbias zonas intersticiais da sua arquitetura de cabras e salinas. Primitiva a pedra abriga a cabralina sina da pedra que o habita. O desnudo poema percorre as entranhas e descobre nas rústicas bolhas a espessura concreta de mundo, de homem, pedra bruta para quem quiser soletrá-la. Nas artimanhas da sintaxe, da semântica que se mira, você transforma o som que ecoa no rio, na viagem, na espessura das facas, 107


na dura camada do desejo, esse que estranha o mundo e entranha-o como se gozar fosse.

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da morte, fodas mínimas

a uma lagarta chamada Hilda

Na morte estamos todos envolvidos e de acordo. Morremos um pouco diante do outro, um pouco mais diante do espelho, relevo do tempo que rompe na pele os contornos. Cria por dentro os nós. Cria no centro a mó, pedra fincada no eixo deste relógio-roda martelo formão bigorna. E tudo agora em líquido modo zarpa chispa se pica tu do em bo ra na da so bra nem es ta fo da

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POSFÁCIO

Olympia é um quadro de Edouard Manet. Na primeira vez que foi exposto ao público (1865), causou polêmica. “Olympia” é a primeira palavra do poema “Moldura de lagartas” (p. 52) deste livro de Susanna Busato, poema que provavelmente não causará polêmica, mas poderá gerar alguma sensação de estranhamento no leitor que não teve acesso à pintura de Manet. Mas quem conhece o quadro, se cometer a imprudência crítica de comparar a descrição literária com a pictórica, sentirá que o olhar da poeta procedeu a uma transfiguração descritiva, um modo diferente de discurso ecfrástico. Essas observações iniciais me bastam como síntese que ilustra as características dominantes dos diferentes poemas do livro: o pendor descritivo, a polifonia textual, o domínio da imaginação com impulsos para a fantasia ditatorial, a compulsão para fazer do imanente uma força transcendente. Enfim, Olympia, de Manet, exemplifica um modo de antecipação criadora do poema de Susanna, antecipação (mas também retomada) expressa por Merleau-Ponty no finalzinho de seu denso ensaio O Olho e o Espírito quando assevera que nenhuma pintura encerra ou conclui a pintura, ou, até mesmo, se nenhuma obrade-arte se conclui ou se fecha absolutamente é porque cada criação artística (poema, quadro, escultura, filme etc.) “transforma, altera, ilumina, aprofunda, confirma, enaltece, recria ou cria previamente todas as outras”. Afirma ainda esse filósofo que as criações artísticas não

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são conquistas definitivas, e não as são porque passam como todas as coisas passam, mas porque têm diante de si mesmas quase toda a vida inteira. Essa afirmação procura, sob forma hipotética, dar resposta a uma das estupefações românticas diante da realidade e dos meios pelos quais os homens tentam descrevê-la, compreendê-la, explicá-la, transfigurá-la. A totalidade ou a plenitude, embora seja o alvo perseguido, está sempre aquém de cada cientista, de cada filósofo, de cada artista, de cada arte: pois entre as metas e os meios, entre estes e o desejo da verdade ou da beleza absoluta, se estabelece o angustiante vazio, que a própria atividade criadora, em sua historicidade, vai tentando preencher, e, paradoxalmente, confirmando. Por outro lado, quando busca fornecer as respostas (que se dispõem, no referido ensaio, como numa arte de fuga), Merleau-Ponty sinaliza que essa história da criação humana nos situa diante de um diálogo peculiar: aquele que se estabelece entre as obras de arte e, mais amplamente, entre as diversas artes, um diálogo que se faz no tempo e ao longo do tempo. Diálogo que não comporta apenas aquelas retomadas, sob outras condições e outro espírito, de obras, de técnicas, de motivos e de estilos, de modo a permitir aos críticos, aos teóricos e aos historiadores de arte tecerem o tapete interminável das leituras e releituras, das influências e das escolas, das afinidades eletivas e das imitações, dos plágios e das paráfrases, das reminiscências inconscientes e das estilizações e, quem sabe, das superações. Trata-se também da atração crítica e constante de uma produtividade artística por outra, de 111


uma espécie de consciência operante que se manifesta, na passagem de uma para outra obra e de uma para outra arte, atravessando-as. E se trata, acima de tudo, como se dá neste livro de poemas, da experiência da tradição como matéria viva da expressão poética. Aqui vale aceitar, na esteira do filósofo francês, que um poema, como obra-de-arte, por mais que ateste, por sua existência mesma, uma autonomia, relacionase ativamente com outras obras, ou porque as remata, ou porque as antecipa, ou porque as critica, ou porque nelas se apoia. Mas também tenho que lembrar, agora na linha de Etienne Souriau, que as diferentes obras de arte se identificam pela sua natureza de arte, ou seja, pelo seu fazer, sua promoção anafórica, por aquela atividade que faz com que um ser saia da não existência para a existência. Quero dizer com isso que todo belo poema, por sua natureza-arte e por seu vínculo experiencial com a tradição, se situa num sistema que, sendo maior que ele e sua garantia real ou histórica, também se nutre desse poema e se sustenta com este. Posso dizer, portanto, que, à medida que fui lendo este Moldura de Lagartas, o livro, senti-o constituído por poemas que me remeteram seja a outras artes, seja a outros poemas, alguns dos quais remissivos (graças à vontade consciente da poeta) ou remissíveis (graças à perquirição crítica) a outras artes ou obras-de-arte. Se sigo à risca as lições do autor de O Olho e o Espírito e, usando o procedimento da redução eidética, não me custa interpretar que a pintura de Manet, Olympia, antecipa o texto de Susanna Busato, “Moldura de 112


Lagartas”, o qual, ao contrário de quase todos os outros poemas do livro, é relativamente longo. A poeta parece propor uma leitura do quadro; realiza, neste sentido, um tipo de écfrasis: descrever o que vê, isto é, proceder a uma duplicação. Podemos supor que a poeta redige seus versos enquanto contempla a pintura ou a foto que a reproduz; teria feito assim uma imitação. Comparando, porém, as duas obras, verificamos que o procedimento icástico não existe: o que existe é uma espécie de recusa da realidade do quadro, como se a poeta (o eu lírico) não estivesse diante da pintura, ou, pelo contrário, estivesse diante da memória daquilo que contemplou, aquilo que lhe ficou como recordação do visto: a mulher nua reclinada, sua pele de nácar, o colar, o vidro embaçado da moldura, o gato preto, tudo não como está no quadro de Manet, mas apresentado em frações, em pedaços que a recordação recorta ou distorce. Desse modo, o leitor do poema não tem acesso, pela descrição poética, à totalidade do quadro, mas a elementos que o constituem como se fosse, esse leitor, guiado por um analista que vai chamando sua atenção para cada detalhe; a moldura, o vidro que protege a pintura, um vidro embaçado (pelo pó ou pelo calor da respiração da mulher meio deitada?), alfaias, mão sobre o sexo, olhos, íris, brincos, colares que no quadro é apenas um), mamilos, gatos (que no quadro é somente um e quase fundido na sombra negra). Entretanto, poesia não aceita a mera descrição. O olhar poético transfigura a imagem por meio de vários procedimentos: suprime a serviçal negra com o cesto de flores, elimina o ornamento da flor 113


sobre a cabeça da mulher nua, mostra colares e gatos no plural e progressivamente modifica, pela metáfora, a realidade que a pintura representa: a mão da mulher, que encobre seu sexo, guarda pudicamente o “anjo sem asas”, os mamilos se tornam “voláteis látegos do desejo”. Quando o leitor (pelo menos o que escreve este posfácio) está suspenso pelo enlevo da estranha beleza feminina, a poeta (seu eu lírico) cobre de sarcasmo a figura e seu entorno: “os gatos mijam no quadro”, “Olympia fede na sua beleza de marfim”, “a boca mínima lambe as feridas”. O ponto alto dessa visão fantástica encontrase nos dois versos que compõem o penúltimo bloco rítmico: “Olympia rasteja no vidro como lagarta no cio. / Olhos de vaso chinês, pele de laca”. A metamorfose da mulher nua (a do quadro) em lagarta no cio (a do poema) transcende para a etapa final, por assim dizer, biológica: a da borboleta. O poema realiza então uma reviravolta que, aliás, vinha sendo sutilmente preparada com as imagens conceituais do embaçamento, da leitura superficial intermediada pelo vidro que, encaixado na moldura, dificulta a apreensão do objeto artístico: E você, indiferença de crayon, aprendiz de galeria, assopra a gordura baça da vida no sonho de vidro da borboleta de negras asas. O leitor fica perguntado quem é esse “você”. Seria o eulírico que se distancia e se torna alvo de crítica da poeta, conforme se nota em muitos poemas modernos que se valem da técnica da heteroscopia, pela qual o eu lírico 114


se coloca na posição de um outrem indiferente? Seria o leitor incauto do próprio poema que está acabando de ler ou o leitor que se contenta com a “aprendizagem” proporcionada pelos guias de galeria? Qualquer que seja, a ironia é forte no verso penúltimo; “assopra a gordura baça da vida”. Demorei-me um pouco na análise (incompleta, por certo), deste poema porque nele encontro o espírito que anima o livro inteiro bem como o estilo dominante, que é o do discurso ecfrástico, que logo comentarei, pois preciso acrescentar que a remissão a obras-dearte (aí incluindo as poéticas) ou a seus autores, como homenagem ou não, pode ser observada em outros poemas do livro: “A Condição Humana (para René Magritte), “Solo para Pagu” (para Augusto de Campos), “Outra pedra do sono” (para João Cabral), “Da morte, fodas mínimas” (a uma lagarta chamada Hilda), “Balada invernal para Mário de Andrade na cidade de Oswald”. Eles parecem sinalizar possíveis vestígios daquele diálogo proposto por Merleau-Ponty, vestígios que se notam em muitos outros poemas, afora aqueles que, desses e de outros autores (Carlos Drummond, por exemplo) se podem vislumbrar durante a leitura. Essas remissões apontam para uma das tendências marcantes da poesia brasileira contemporânea: a de voltar-se o texto poético criticamente para si mesmo, de modo ora explícito ora latente, aqui francamente referido, acolá sugerido, alternando os dois modos poéticos que Mallarmé definia: mostrar ou sugerir, mais sugerir do que mostrar. 115


Não escapa ao leitor que os poemas da primeira parte deste livro constituem, em sua maioria, textos cujo assunto é a poesia, desde a tentativa de definir ou de sugerir uma poética, ou seja, uma aproximação conceitual do que seria essa arte da palavra, até a expressão em ato de como a poesia se manifesta no próprio fazer do poema, isto é, em sua performatividade ou, na proposta cunhada por Luigi Pareysons, em sua formatividade. Textos que ilustram a primeira direção: “Da poesia e sua outra” (dedicado a Haroldo de Campos e a Carlos Drummond de Andrade) “Academicismo”, “Desejo”, “A poesia é”, “Cilada”, “A cidade desejante”. A direção da performatividade pode ser sentida nos textos seguintes: “Gênesis”, “Lagarta sendo”, “Enlagarça II”, “Como usar a língua”, “Perdida”, “Método I”, “Método II”, “Método III”, “Golpe fatal”, “Fricativa”. Esses poemas exemplificam em parte aquela orientação que se observa nas chamadas estéticas da construção que foram se desenvolvendo desde Kant e que, passando por Schiller, encontra as formulações mais ricas em Paul Valéry (Eupalinos), John Dewey (Art as Experience) e Luigi Pareyson (Estética). No caso dos poemas citados podemos verificar a ação da consciência operante, isto é, a realização artística como critério para si mesma; com outras palavras, a produção do texto que é linguagem e, ao mesmo tempo, a invenção de seu código regulador. Dizendo isso, posso dar a impressão de que a poeta trilha somente esse caminho da identificação da poesia com sua construção poemática. Tal não acontece nas quatro molduras seguintes, onde vamos encontrar o 116


predomínio do discurso ecfrástico, o qual pode parecer muito original e próprio da contemporaneidade (pois agora se costuma indicar como o discurso poético que se vale da descrição do que se vê em obras de arte pictóricas), mas tem suas raízes na antiguidade. Chamo a atenção para este aspecto por me parecer o mais relevante quanto ao vinculo deste livro com a tradição. O termo “ékphrasis” (ou écfrasis) aparece na retórica grega, com os textos da primeira sofistica (séculos IV e V. a. C.), tendo perdurado até a segunda onda sofística. Designava uma descrição viva, uma representação realista das personagens e das coisas, como se o autor do discurso pretendesse que o ouvinte as palpasse com as mãos, as visse, desculpem-me a redundância, com os olhos. A “ékphrasis”, procedimento discursivo voltado para a função suasória, incidia sobre a natureza física (o mundo mineral, o vegetal, o animal e espaços respectivos) e sobre as aparências físicas das pessoas, inclusive sobre aqueles aspectos que propiciassem a percepção das reações psicológicas, como podemos ler nos tratados de Retórica de Fontanier e de Lausberg . Usado pelos teóricos e praticantes da oratória sofística até o século IV d. C., sua legitimidade como descritor de um procedimento discursivo só perdeu força graças à atuação de Santo Agostinho, o qual percebeu com clareza que a “ékphrasis” havia se transformado numa espécie de entidade autônoma, sem vínculo com a persuasão doutrinária, pois dava às palavras um valor em si, semelhantemente a muitos textos de hoje que se representam a si mesmos, se enrolam sobre si mesmos 117


e constroem a chamada “densidade poética” resistente à comunicação ou, usando a simbologia deste livro de Susanna, uma espécie de lagarta que não chega a borboleta. Santo Agostinho, como G. Lukács tentou propor séculos depois para a narrativa literária, passou a se exigir, como pregador cristão, que houvesse uma motivação entre o mostrar e o assunto dos sermões, entre o mostrar e a argumentação e sua finalidade persuasiva. Podemos afirmar que o De Doctrina Christiana do pensador cristão matou e enterrou a “ékphrasis”, como denominação de uma técnica. O termo desapareceu, mas a coisa por ele designada, não. Que tenha desaparecido ou ocupado os cantinhos da ciência retórica antiga, são testemunhas os dicionários de termos literários publicados até pouco tempo. Que a coisa designada não tenha desaparecido, lembremos, para comprová-lo, que, no começo do século XIX, a “ékphrasis” já estava substituída, conforme se lê em Fontanier, por cinco denominações diferentes: “topografia”, “cronografia”, “prosopografia”, “etopeia” e “retrato”. Muito recentemente a “ékphrasis” ressuscitou e tenta legitimar-se outra vez, mas com um significado bem restrito: o da descrição que tem por objeto as qualidades sensíveis perceptíveis por meio da contemplação das obras de arte visual, especificamente das obras pictóricas e escultóricas. Aqui, neste posfácio, eu a substituo pelo discurso descritivo, ou melhor por aquele discurso que se orienta pelo olhar e, como se trata de poesia, pelo olhar criativo, um dos parâmetros que T. S. Eliot considerava o maior refinamento da imaginação poética. 118


O leitor do livro deve ter percebido que muitas das descrições poéticas se desviam do modo linear. Não referirei todos mas destaco “Pintado à mão” (p.54), “Nascimento do olhar” (p. 68), “Arrebol” (p.70), “Crisálida paisagem” (p.71), “Espartilho” (p. 92) e “Dobram os sinos” (p. 105). Este último, minimalista no tamanho, vale por mil imagens:

Um último látego do sol e basta. A noite dobra-se.

O segundo, “Nascimento do olhar” (p. 68), nos remete ao modo minimalista de composição musical à maneira de Philip Glass ou Steve Reich. Sua base é a frase inicial que se desdobra depois graças a variações mínimas até o final. É assim o começo:

O pôr do sol avermelha o horizonte. O sol se põe no vermelho do horizonte. O vermelho se horizontaliza no sol. O pôr do sol orienta o vermelho.

E, depois de 17 versos ou variantes, assim termina:

Um pôr de sol depõe contra o horizonte. Vermelhorror: o sol se con so me. 119


Para concluir, tenho que destacar três fatos. O primeiro: não é por acaso que Susanna Busato deixa escrito na página 78 um poema em língua francesa, “Chanson d’hiver” dedicado ao poeta surrealista Jacques Prévert. Não se trata de apenas um tributo à língua em que ela se formou, mas uma sinalização para um modo especial de ver a realidade a fim de dar relevo ao irrelevante, àquelas coisas comuns que estão presentes em nosso quotidiano mas que costumam passar desapercebidas. A escolha de uma lagarta como um ente com múltiplas simbologias está dentro desse universo. E estão dentro desse universo as coisas maiores como a cidade, e as menores como os bancos de jardim, os postes, os sacolões, as pistas, as buzinas, a caminhada, os óculos sobre o nariz, o celular, o queijo, o vinho, as rodelas de tomate, as abobrinhas, os atos corriqueiros. O segundo fato é que a poeta não prescinde da primeira pessoa nem recusa as confissões sobre suas preferências e sobre suas angústias, o que traz para dentro de seus textos aquela ambiguidade entre o ficcional e o biográfico e o apagamento das fronteiras entre o subjetivo e o objetivo. Em resumo não tem medo do amor, não tem medo da vida, mesmo quando afronta a possibilidade da morte. O terceiro e último fato é a tematização do corpo, que aflora constantemente, de uma forma sem idealizações. O corpo como espaço inalienável de identidade individual, como ponto físico onde se define a experiência da dor ou a potência de prazer e do erotismo, o desejo da perfeição e da plenitude. O corpo, que em outros poetas 120


é tratado ou pensado como objeto, neste livro se exprime como vivência ou experiência dramática intransferível. Tratar desse tema, tal como se verifica com grande complexidade nos poemas de Susanna, exige um ensaio que transcende os limites deste posfácio. antonio manoel dos santos silva professor de Literatura Brasileira

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susanna busato é poeta e professora de poesia brasileira (unesp). Autora do livro de poemas Corpos em Cena (2013), Ed. Patuá, SP, com o qual foi finalista do 56º Prêmio Jabuti de Literatura, categoria poesia, em 2014. Publicou a plaquete Papel de Riscos, pelo Centro Cultural São Paulo, em 2013. Ganhadora do Mapa Cultural Paulista, categoria Poesia, em 2010. Tem poemas publicados em vários sites e revistas de poesia e literatura. Participou da Mostra “Poesia Agora” no Museu da Língua Portuguesa (2015), na Caixa Cultural do Rio de Janeiro (2017) e na Caixa Cultural de Salvador (2017). Como declamadora, participou do Recital Multitudo Haroldo de Campos, no Itaú Cultural (2011), em São Paulo e do Recital Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros (homenagem a Oswald de Andrade), na FLIP em Paraty (2012), com patrocínio do Itaú Cultural.

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Realização:

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