Coisas do Amor
Anne Laurence
Coisas do Amor Kissing Cal
Anne Laurence
Sabrina n. 1438 O trabalho em parceria numa entidade de assistência a animais carentes obriga Madeline e Cal a partilhar cada minuto do dia, cada dia da semana, durante o expediente e também nas horas de folga. Numa comunidade onde o assunto principal das conversas é a vida alheia, a amizade entre um homem e uma mulher precisa ser de fato verdadeira para que eles permaneçam assim... Apenas bons amigos. Madeline e Cal não vêem problema em dormir algumas noites no escritório, o único cômodo da casa que não está revirado com as obras da reforma. Mas o sonho de transformar o local de moradia e trabalho num paraíso, pode levá-los a descobrir que o limite entre amizade e paixão é mais frágil do que eles acreditam e que pode ser transposto por um simples beijo...
Projeto Revisoras Digitalização: Marina Campos Revisão: Evelin Melo Projeto Revisoras
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Anne Lawrence cria histórias de amor com tramas envolventes e personagens marcantes, que aliados a um estilo dinâmico de escrever proporcionam em cada livro uma leitura prazerosa, transmitindo por meio de uma narrativa vivida e romântica, mensagens positivas e úteis lições para a vida real. Romances Nova Cultural
Copyright © 1997 by Sally Pfisterer Originalmente publicado em 1997 pela Kensington Publishing Corp. PUBLICADO SOB ACORDO COM KENSINGTON PUBLISHING CORP. NY, NY - USA Todos os direitos reservados. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. TÍTULO ORIGINAL: Kissing Cal EDITORA: Leonice Pomponio ASSISTENTE EDITORIAL: Patrícia Chaves EDIÇÃO/TEXTO Tradução: Naney de Pieri Mielli Revisão: Giacomo Leone Neto ARTE: Mônica Maldonado ILUSTRAÇÃO: Fernando Bueno/Other Images MARKETING/COMERCIAL: Daniella Tucci PRODUÇÃO GRÁFICA: Sônia Sassi PAGINAÇÃO: Dany Editora Ltda. © 2006 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Paes Leme, 524 - 10a andar - CEP 05424-010 - São Paulo -SP www.novacultural.com.br Impressão e acabamento: RR Donnelley Moore Tel.: (55 11) 2148-3500
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Capítulo I Deveria ser a centésima vez que Madeline acompanhava seu parceiro em uma diligência, mas a impressão que lhe dava era de ser a primeira. Surpreendia-se olhando para Cal por todo e qualquer motivo. Sem motivo também. A verdade era que não precisava de nenhum motivo para se perder em seu charme, em sua masculinidade, na perfeição de seus traços. — Para ser honesto — Cal estava dizendo ao manobrar o carro para entrarem no estacionamento do Deb's Diner, onde eles costumavam fazer as refeições ou simplesmente tomar um café no meio da tarde ou da noite —, estou tão furioso com a condição que Landsbury impôs para nos contratar que sou capaz de dizer exatamente o que penso que ele deve fazer com sua proposta. — Ou onde colocá-la, certo? — Madeline brincou, mas a indignação do parceiro era grande demais para sua tentativa de humor ser assimilada. Ele se limitou a fixar os olhos azuis nos dela com uma seriedade que não deixava dúvida de que pretendia cumprir sua promessa. Cal saltou da viatura e bateu a porta com força. Madeline balançou a cabeça e deu um suspiro antes de segui-lo. Ao passar pela porta do pequeno restaurante, tirou o quepe e olhou ao redor. Após a reforma, o local poderia se enquadrar entre os bons estabelecimentos de St. Louis. O hall envidraçado com plantas se tornara um ótimo cartão de visitas. Com o sol primaveril penetrando pelo vidro, o cenário parecia de um ambiente ao ar livre. Muito agradável. Como de costume, Cal não a esperou para se dirigir ao setor que parecia reservado aos integrantes da força policial da cidade, embora nunca tivesse sido colocado nenhum aviso ou placa nesse sentido. Ele jamais a tratava com cavalheirismo. Só a segurava pelo braço, por exemplo, se ela se desequilibrasse e corresse algum risco de cair. No conceito de Cal, ela não era uma mulher, mas uma parceira de trabalho. Tratava-a como trataria qualquer colega do sexo masculino. O esquema funcionava havia seis meses, desde que Cal viera para St. Louis transferido da polícia de Chicago. Bastara uma única conversa. Estabelecidos os deveres, as responsabilidades e os limites de cada um, nunca surgiu nenhum problema no cumprimento das tarefas. Respeitavam-se como bons profissionais que
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eram e se estimavam como amigos. Tanto Madeline quanto Cal eram pessoas calmas e cordiais. O fato de Cal ser um homem atraente de vinte e oito anos de idade, livre e desimpedido, e ela uma mulher solteira e bonita da mesma idade não fazia diferença. — Tivemos sorte por ainda não terem ocupado nossa mesa favorita. — Cal indicou os outros lugares, inclusive as banquetas junto ao balcão. — Quase meio-dia. Mais alguns segundos, e teríamos de aguardar na fila de espera. Antes que Madeline pudesse responder, Mia, a irmã de Deb se apresentou para anotar os pedidos. Cal retribuiu seu sorriso e conversou com a desenvoltura de sempre, mas bastou a garçonete se afastar para ele recolocar sua máscara de indignação. — Como eu estava dizendo, não consigo parar de pensar no tal advogado e em sua exigência absurda. — O Dr. Landsbury não pode ser um mau sujeito — Madeline argumentou em tom conciliatório. — Ele faz trabalho voluntário como nós nas instituições mantidas pela Sociedade Protetora dos Animais. Não cobra nada por seus serviços de aconselhamento jurídico. — Isso não lhe dá o direito de enviar cartas praticamente indecifráveis a nós dois solicitando comparecimento em seu escritório por motivos de mútuo interesse. O que ganhamos ao irmos até lá? Além de perdermos nosso precioso tempo, saímos da entrevista com uma bomba-relógio nas mãos! — Em resumo, você já decidiu recusar a proposta? — Você, não? Mia interrompeu a conversa mais uma vez e Madeline se sentiu aliviada com sua intervenção. O peito de frango grelhado com salada verde estava com ótimo aspecto. Talvez Cal se sentisse melhor depois de comer seus dois cheeseburgueres besuntados de mostarda e catchup, acompanhados de uma generosa porção de batatas fritas. Porque fosse qual fosse o problema, Cal nunca perdia o apetite nem sua invejável forma. Era um privilegiado. Por mais que comesse, os ponteiros da balança permaneciam inalteráveis. — Então, o que o casal mais simpático da cidade tem a dizer hoje sobre nosso serviço? Eles já estavam acostumados com a interferência. Mia, como a maioria dos colegas e chefes, julgava que a relação não se restringia ao campo profissional. Eles Projeto Revisoras
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desistiram de tentar convencê-los do contrário, pelo simples fato de que ninguém admitia a possibilidade de estarem dizendo a verdade. Que eram apenas grandes amigos. — Excelente — responderam Cal e Madeline em uníssono. Mia agradeceu e se afastou. Não se passaram mais de dez segundos para Cal voltar ao assunto. — Eu simplesmente não consigo entender como ele espera que alguém possa tomar uma decisão tão importante da noite para o dia. Madeline fez uma pausa na refeição ao perceber que o silêncio estava prolongando além do usual. Conhecia bem seu parceiro. Em sua indignação, ele precisava falar até cansar. De vez em quando se detinha para recuperar o fôlego. Ciente disso, ela continuava calada, certa de que o desabafo ainda não havia terminado. Paciência não era o forte de Cal. — Acho um completo absurdo que tenham dado preferência a nós para assumirmos a direção do abrigo, mas que o fato de não sermos casados seja um inconveniente que talvez não possam relevar. Que importância tem nosso estado civil, se somos capazes de dar conta de qualquer tarefa? Não temos provado diariamente, afinal, que fazemos uma boa parceria? Que somos sempre nós que resolvemos os problemas mais difíceis que surgem nas ruas e também no abrigo de animais? Madeline ergueu os olhos apenas o tempo suficiente para apanhar o saleiro e reforçar o tempero da salada. Cal se calou por um instante. Ao ser informado que teria uma mulher como parceira quando chegou a St. Louis, relutara em aceitar a imposição. Logo, contudo, descobrira que poderia contar com ela para o que desse e viesse. Ela não apenas demonstrara ser a melhor parceira que um policial poderia desejar, como a melhor amiga que alguém poderia ter. Como o silêncio se prolongou, dessa vez Madeline decidiu dar sua colaboração à conversa. — Segundo Landsbury, os habitantes de cidades pequenas, como é o caso de Argonne, Missouri, não vêem com bons olhos o fato de um homem e uma mulher morarem juntos sem serem casados. E como a sociedade beneficente fundada pela falecida Maud sobrevive graças às doações e contribuições do público, eles acham Projeto Revisoras
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que é essencial nomear um casal casado para a missão. Ou ao menos que se apresentem como se fossem casados! — Eficiência não basta mais? — Cal tornou a protestar. — O que há de errado com duas pessoas amigas, altamente gabaritadas? Não podem ser vistas com bons olhos só porque pertencem a sexos diferentes? Além de tudo, Landsbury não nos deu nem sequer a chance de fazermos uma averiguação prévia no local a fim de estudarmos as condições. Acho que merecíamos essa consideração ao menos. — A questão, Cal, é que impuseram essa exigência e que nada do que dissermos fará qualquer diferença. — Isso é ridículo. — Eu soube que outro casal já havia sido escolhido para a função, mas que desistiram na última hora. A Sociedade Protetora dos Animais está cobrando urgência na substituição antes que o atendimento no abrigo sofra descontinuidade. — Continuo avesso à idéia. Acho que deveríamos insistir em um prazo maior. Há muito em jogo para darmos uma resposta definitiva até amanhã à tarde. Madeline se limitou a encolher os ombros. Ao notar o gesto, Cal ficou estranhamente irritado. — Alguém na polícia já reclamou de nossa atuação por acaso? Não seríamos menos competentes só porque não assinamos uma certidão de casamento diante de um juiz e de um padre! Dessa vez, Cal estava indo longe demais. Madeline deu um suspiro. — Francamente, de que adianta continuarmos com esta discussão? Eles foram categóricos nesse sentido. — Se ao menos pudessem estender o prazo... — Como eu acabei de dizer, de que isso adiantaria? Ou nós aceitamos as exigências impostas ou procurarão outro casal para dirigir o abrigo. Madeline tornou a encolher os ombros e esse gesto o deixou ainda mais furioso. O que sua parceira estava querendo dizer com aquela atitude de pouco caso? Embora fosse sua melhor amiga, de vez em quando ele não conseguia entender seu raciocínio. O que ela pretendia? Deixar a responsabilidade da decisão nas costas dele? Ou ela não se importava em curvar a cabeça ao capricho de Landsbury e das expectativas moralistas da população de Argonne, Missouri, em nome do orgulho Projeto Revisoras
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profissional? Pensando bem, não se lembrava de tê-la ouvido dizer que recusaria a proposta. Então, pela primeira vez desde o início da conversa, Cal olhou realmente para sua parceira e melhor amiga. Evitava fazê-lo. Por um simples motivo. Madeline Scott era a fantasia de qualquer homem. Sentira-se atraído por ela desde que a conhecera. Sua relutância em aceitá-la como parceira não se prendera ao fato de ser mulher, mas uma mulher atraente. Ela usava os cabelos ruivos invariavelmente presos e cobertos pelo quepe. Mas nenhum truque ou artifício conseguia esconder a exuberância dos cachos. Nas raras ocasiões em que a vira sem a farda e sem maquiagem, mas vestida com roupas comuns e com os cabelos soltos, precisara recorrer a seu autocontrole para não trair sua admiração por aquela mulher. Emoldurado pela cascata dos cabelos, seu rosto se tornava ainda mais lindo, seus olhos castanhos mais sedutores e as sardas mais evidentes e adoráveis. Além de tudo, Madeline era dona de um corpo espetacular que a farda não conseguia esconder. E também havia seu sorriso luminoso e contagiante e seu admirável senso de humor. Para não mencionar a sensualidade que transmitia em cada gesto e em cada olhar, sem perceber. O poder de atração de Madeline seria um problema se ele se permitisse sonhar de olhos abertos em tê-la nos braços. Mas jamais se permitia pensar nesses termos e era por essa razão que a parceria funcionava. Agora, sem mais nem menos, um sujeito sem nenhuma noção da realidade queria colocar em risco uma amizade sincera e a continuidade de uma parceria perfeita. Porque já era difícil manter a cabeça fria em situações normais de trabalho. Quanto mais se eles tivessem de fingir que eram casados, vivendo sob o mesmo teto em uma fazenda isolada. Por mais que Madeline conhecesse o temperamento de Cal e que soubesse ouvi-lo sem fazer interrupções até que dissesse tudo que queria dizer, sempre chegava o momento de ela colocar um fim no silêncio e emitir sua opinião. Como naquele instante. — Diga-me. Se eu não tivesse sido convocada para a função e o trabalho pudesse ser feito por uma só pessoa, você aceitaria o convite?
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Por essa Cal certamente não esperava. Olhou para todas as pessoas ao seu redor até encontrar a garçonete e lhe fazer um sinal para que trouxesse mais uma xícara de café. Talvez nunca tivesse admitido que aceitaria o convite sem pensar duas vezes, caso Madeline não insistisse em uma resposta. — Somos pessoas dedicadas — ela afirmou em seguida. — Você pediu transferência dos quartéis de Chicago porque mergulhou fundo demais em suas missões no esquadrão de elite e descobriu que poderia perder a sanidade se não diminuísse seu ritmo de atividade. Adora animais como eu e resolveu dedicar grande parte de seu tempo livre ao abrigo. A verdade é que nos sentimos mais felizes em nosso trabalho voluntário do que na polícia. Recebemos uma oferta que pode significar uma porta para acessarmos uma vida melhor. Tem certeza de que quer fechá-la quando acaba de ser aberta para nos dar passagem? — Os inconvenientes são grandes até mesmo para mim que nasci e cresci no interior. — É verdade — Madeline admitiu com um sorriso. — Nunca vivi no campo, mas a oportunidade de experimentar um novo meio de vida ampliou meu horizonte. Adoro árvores, plantas e flores. Adoro animais e gostei de tratar de cães abandonados. São dóceis e amorosos. Esqueço meus problemas cada vez que me apresento para o trabalho e sou alvo de suas homenagens. Conheci pessoas interessantes e generosas no abrigo. Em suma, acho que as vantagens do emprego superam as desvantagens. Talvez ainda mais com relação a você, que terá a chance de voltar a suas origens. Cal não podia negar nem sequer uma palavra do que sua parceira estava dizendo. Talvez Madeline estivesse certa. Talvez ele devesse refletir mais a respeito durante a noite para ter certeza da resposta que daria. — Não acha que valeria a pena trocar as noites de folga semanais naquele bar feioso vizinho a seu apartamento em Soulard, por passeios ao luar todas as noites ao sabor de uma brisa fresca e perfumada? — Madeline prosseguiu com um entusiasmo cuja fonte ele não conseguia identificar. Seria pelo excesso de café ingerido? Pelo burburinho do local? — Sou sincera em confessar que estou farta de voltar todos os dias para aquele cubículo na Rua Humphrey onde moro. O trabalho no abrigo fundado por Maud McGovern representaria uma mudança em nossa rotina. Para melhor. Nada nos prende aqui afinal. Moramos sozinhos. Não temos família com que nos preocupar. Teremos de agüentar os comentários maliciosos de nossos colegas e Projeto Revisoras
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da população de Argonne, mas, de certa forma, já estamos acostumados com isso, não estamos? — Eu... O modo agressivo com que Madeline reagiu surpreendeu a si própria. Antes que Cal pudesse dizer o que queria, ela estendeu a mão por cima da mesa e o segurou pela camisa. — Vamos aceitar! Landsbury pediu para assinarmos um contrato inicial de seis meses e seis meses passam depressa. Se gostarmos do trabalho, poderemos prorrogar o contrato e se não gostarmos, nada nos impedirá de retomarmos nossa rotina. Tenho certeza de que nossas fardas sempre estarão a nossa disposição. Cal, uma chance como essa pode nunca mais acontecer. Cada um de nós fará uma lista e... — Outra lista? — Cal a interrompeu. — Não há necessidade. — Você disse o mesmo quando iniciamos nossa parceria e depois gostou da idéia. Por que se recusa a admitir? A adaptação se torna mais fácil quando vemos as regras estabelecidas preto no branco. Nem você nem eu apreciamos tonalidades de cinza. Cal acabou rindo das imagens criativas de sua parceira. Sentindo-se motivada, tirou uma caneta e um bloquinho de anotações do bolso. — Do lado esquerdo, anotarei nossas regras atuais e do lado direito, as que teremos de obedecer em nossa próxima função. — Tudo bem. — Hoje obedecemos a horários estipulados pela chefia. Amanhã faremos nossos próprios horários. Agora trabalhamos nas ruas. Amanhã desempenharemos nossas funções em uma linda fazenda. Hoje enfrentamos o trânsito caótico da cidade. Amanhã caminharemos entre flores e árvores. De ar poluído, passaremos a respirar ar puro. — Madeline se deteve e encarou-o entre séria e divertida. — Apenas vantagens até o momento, certo? Cal concordou com um gesto de cabeça e ela não conteve um suspiro de alívio. Não acreditava realmente que fosse convencê-lo a aceitar o oferecimento, mas ainda queria se agarrar a uma esperança. — O salário e os benefícios terão um acréscimo, mas tão pequeno que não poderemos esperar uma melhoria em nossas contas bancárias em curto prazo.
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— Por outro lado, não teremos tantos gastos quanto temos aqui. — Cal teve de admitir contra sua vontade. — Não arcaremos com as despesas de manutenção da casa. Nossos salários, portanto, ficarão reservados apenas para as despesas pessoais. — O que considero um aumento considerável. Madeline se calou em reflexão. — Quando a falecida Maud nos visitou na sede da Sociedade Protetora dos Animais, tive a oportunidade de conversar longamente com ela. Fiquei surpresa e orgulhosa ao ouvi-la dizer que confiaria a direção de seu abrigo a nós de olhos fechados. Ela parecia estar adivinhando que a idade logo cobraria seu tributo e teria de deixar a administração em outras mãos. Disse também, que nosso trabalho na polícia nos colocava em contato com todos os tipos de pessoas e de situações. Que nosso treinamento era perfeito para o sucesso e a continuidade de seu sonho. — Existe outra desvantagem — Cal citou. — Não teremos condições de estabelecer um horário de expediente, como você mencionou. Seremos chamados vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, pelo simples fato de que nosso endereço de moradia será o mesmo do instituto. — Argonne é uma cidade pequena — Madeline retrucou. — Não acredito em sobrecarga de trabalho. Além disso, tenho certeza de que conseguiremos muita gente para nos ajudar. As pessoas são mais solidárias no campo do que na cidade. — Desde que façamos amizade com a vizinhança. — Mas nada nos faria mais felizes do que a certeza de um trabalho bem-feito — disse Madeline em tom conclusivo. Cal concordou, mais uma vez, com um gesto de cabeça. — Só acho estranho que tenham se recusado a nos levar ao local para que pudéssemos analisar suas condições antes de decidirmos. — Está fora de cogitação. O endereço da fazenda e a chave da casa somente nos serão fornecidos depois que assinarmos os papéis. — Tanta pressa... — Cal tornou a resmungar. Madeline não respondeu. Se lhes fosse dada uma chance de refletirem por um dia, por uma semana ou por um mês, não faria diferença. Tanto ela quanto Cal adoravam fazer trabalho voluntário em assistência a animais. A oportunidade de Projeto Revisoras
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administrarem a instituição e de receberem um salário um pouco maior, inclusive, do que recebiam como policiais, era boa demais para ser desperdiçada. Por outro lado, parecia bom demais para ser verdade e a vida lhe mostrara desde cedo que tudo que era bom acabava logo. — Não sei — Madeline murmurou, subitamente insegura e pessimista. — Talvez você esteja certo. Talvez seja melhor Landsbury procurar outro casal. — O quê? Pretende desistir, depois de tudo que me disse? — Cal indagou perplexo. — Talvez seja a medida mais acertada. Não acha que poderemos nos arrepender de mudar de profissão e de cidade de um dia para outro? — O contrato é de seis meses, como você acabou de dizer. Se ao final do prazo, optarmos pela não renovação, tudo que teremos de fazer é voltar para St. Louis e reorganizarmos nossa velha vida. — Sinto que estou sonhando, que não é real. — Sonhos podem se realizar. Madeline olhou para o parceiro. Seria possível que as posições tivessem invertido? Que fosse ele agora que tentasse convencê-la a aceitar a proposta? Confusa como nunca se sentira antes, Madeline fechou o bloco e guardou-o no bolso. Em seguida colocou o quepe e se levantou. — Pode ser uma loucura, mas é uma oportunidade única em nossas vidas. — Cal estendeu a mão e desafiou-a com o olhar. — Estou disposto a correr o risco. E você? Madeline não conteve o riso. De repente, resolveu jogar tudo para o alto. Esquecer o medo e a insegurança. — Eu também. Cal não se conteve. No momento que eles selaram o acordo com um aperto de mãos, levantou-se e beijou-a na boca. Aconteceu tão inesperadamente que Madeline não teve tempo nem sequer para pestanejar. — Entregarei minha carta de demissão hoje mesmo à chefia. As duas semanas que eles exigem de aviso prévio serão o bastante para prepararmos nossas
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mudanças. — Eu moro em um apartamento maior do que o seu — disse Madeline. — Temo que duas semanas não sejam suficientes. — Tenho certeza de que contaremos com a ajuda de nossos colegas assim que a novidade se espalhar. — Não sei, Cal. De repente, estou em dúvida. Acho melhor conversarmos mais a respeito. Temos até amanhã à tarde para darmos a resposta. Cal pediu a conta e fez questão de pagá-la, ao contrário das ocasiões anteriores em que sempre dividiam a despesa. Em seguida tornou a apertar a mão de Madeline por cima da mesa e no momento de se dirigirem à saída, segurou-a pelo cotovelo até chegarem à viatura. O coração de Madeline batia forte. Se aquilo era um sonho, ela não queria acordar. Cal havia providenciado o aluguel de um pequeno caminhão para transportar os móveis. Ele, com a ajuda dos colegas, Bob e Reno, já haviam esvaziado seu apartamento e o de Madeline. Parecia incrível que fossem terminar aquele dia em outra cidade, que marcaria o começo de uma nova vida. As duas semanas de aviso prévio haviam voado. A correria fora tanta que não dera tempo para refletir sobre a brusca tomada de decisão que transformaria o resto de seus dias por completo. Madeline olhou para o quarto e para a sala vazios após sete anos de residência e não conseguiu controlar uma onda de emoção. Mais ainda ao ser chamada por sua senhoria, uma viúva afro-americana que ela chamava de Senhora Cee. — Parece que Cal, Bob e Reno finalmente conseguiram acomodar todos os seus móveis e suas caixas no caminhão, querida. Duas lágrimas deslizaram pelas faces de Madeline. Para tentar disfarçar, ela se dirigiu à janela, passou as mãos pelos cabelos e ajeitou as mechas que haviam se soltado do coque. — Estou horrível. — Não, querida. Você está bonita como sempre, apenas um pouco abatida e ansiosa pela agitação dos últimos dias. Projeto Revisoras
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Incapaz de continuar se fingindo de forte, Madeline abraçou a velha senhora. — Obrigada por todo o apoio que tem me dado. Considero-a como minha avó. Sabe disso, não? — Ora, ora, nada de choros. Continuaremos em contato. O telefone é o melhor amigo da saudade. E você não deixará de me visitar sempre que vier a St. Louis, eu tenho certeza. Impossibilitada de falar por causa da emoção, Madeline se limitou a fazer um movimento afirmativo com a cabeça. Era o mês de maio e o dia estava claro e fresco. Perfeito para uma viagem. Cal estava fechando a porta traseira do caminhão naquele momento, auxiliado por Reno, o colega com quem tinham maior afinidade. Bob já havia se despedido dela porque precisava encontrar a noiva, Nancy. O casal também estava atribulado com a aproximação da data de seu casamento. — Ele é bonito de qualquer jeito — elogiou a Sra. Cee, apontando para Cal. — De farda, de roupas esportivas e também de bermuda surrada e camiseta desbotada como hoje. Madeline deu uma risadinha. Costumava trocar confidencias com sua senhoria. A confiança fora mútua desde o início. A amizade nasceu e se fortaleceu durante os sete anos de convivência. Assim que Cal chegou de Chicago e foi designado para se tornar seu parceiro, ela contou a Sra. Cee que ele era um colírio para os olhos. — Não é à toa que toda a polícia de St. Louis pense que existe algo mais do que amizade entre nós — Madeline admitiu. — Mas a senhora sabe que não é verdade. — Vocês formam um belo par. O futuro dirá. Por enquanto, só posso dizer que vocês são duas pessoas de sorte. Seus colegas certamente os estimam. Imagino que não tenha faltado ninguém à festa de despedida. Esses dois rapazes que ajudaram a carregar a mudança certamente são amigos de verdade. Subitamente, Cal olhou para cima e Madeline não conseguiu mais se concentrar na conversa. Voltou a si com o gatinho da proprietária do apartamento lhe pedindo colo. E com os latidos de Duffy, a cadela preferida de Cal entre todos os outros animais do abrigo em que haviam trabalhado como voluntários até duas semanas antes. Igg se pôs a latir também. Ela havia se afeiçoado tanto ao cãozinho, Projeto Revisoras
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que resolveu adotá-lo. Cal fez o mesmo com Duffy. No dia anterior, haviam pedido à direção do abrigo permissão para levá-los. Duffy e Igg, portanto, também estavam começando uma nova vida. Igg era manso e dócil como Duffy. Apenas um pouco maior. A Sra. Cee tinha razão ao dizer que eram pessoas de sorte. A esposa de Reno fora um amor ao se oferecer para cuidar dos cachorros para que pudessem providenciar a mudança. Ela havia acabado de chegar e estacionara seu carro atrás do caminhão. Felizes pela oportunidade de ganharem a rua, os cães saltaram sobre Cal e Reno assim que a porta foi aberta. Madeline sorriu consigo mesma diante do bom humor com que Cal os acompanhou até o gramado na calçada em frente. Gostava quando ele sorria. Nos últimos dias, pensando bem, desde que assumiram o compromisso de dirigirem o abrigo de Argonne, Cal quase não sorria, nem conversava com ela. Deveria estar arrependido, provavelmente, embora não quisesse admitir. — Sentirei muito sua falta e de Cal — declarou a Sra. Cee. — Espero que não se esqueçam de me convidar para conhecer sua nova morada. — Está prometido — afirmou Madeline. Bill, o gatinho, resolveu apressar a despedida. Deu um salto do colo de Madeline e desapareceu em direção à cozinha para lembrar sua dona de que estava na hora de ganhar sua ração. Madeline continuou olhando pela janela. Cal e Reno estavam se despedindo com um abraço e tapinhas nas costas. Estavam dizendo que prezavam sua amizade sem usarem palavras. Uma atitude tipicamente masculina. Enfim, Reno subiu em seu carro e foi embora com a esposa. Cal trancou a cabine do caminhão e subiu para o apartamento. Chegou no exato momento que a Sra. Cee voltava para a sala, trazendo um buquê de rosas silvestres. — São para você — a senhora entregou as flores a Madeline. — E para você também. Deve estar exausto. — Outro dia como este em seqüência e eu terei de ficar de cama — ele respondeu com um olhar significativo para Madeline que deveria colecionar o maior número de objetos de que jamais tivera notícia, a julgar pela quantidade de caixas que tivera de carregar. — Quanta delicadeza, Sra. Cee! — Madeline exclamou com voz embargada. Projeto Revisoras
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Não fora exagero comparar sua senhoria com sua falecida avó. Ela a conhecia tão bem que sabia como estava se sentindo sem que tivesse de lhe dizer. Viera morar naquele apartamento logo depois que se graduara na faculdade. Parecia estar deixando ali um pedacinho de seu coração. — Para dar boa sorte em seu novo lar. — Obrigado — Cal agradeceu e Madeline acreditou detectar uma nota de emoção também em seu parceiro. — Ligarei assim que chegar — Madeline prometeu. — Não perderemos o contato. Eu juro. Trocaram um último abraço à porta. No andar térreo, antes de saírem para a rua, Madeline deixou escapar um soluço. — Ela foi como uma mãe para você, não foi? Madeline fez que sim com a cabeça. Pensou que Cal fosse confortá-la, enlaçando-a pelo ombro ou pela cintura. Após a tomada da decisão naquela noite no restaurante, ele não tornara a segurar sua mão, quanto mais beijá-la, ou lhe dar um abraço de consolo. Na verdade, mal vinha olhando para ela. Os latidos de Duffy e Igg serviram de distração por alguns segundos. Finalmente, Cal se colocou atrás do volante, Madeline se sentou com Igg no colo, e Duffy se deitou entre ela e Cal. Partiram sem dizer nada. Meia hora mais tarde, o silêncio na cabine começou a incomodá-la. Uma sensação estranha se apoderou de seu peito. — Não tenha medo — falou consigo mesma. — Você está com Cal, não com um desconhecido. Seu emprego e seu endereço mudaram, mas você continuará trabalhando com a mesma pessoa com quem partilhou cada um de seus dias nos últimos seis meses. — Por um minuto, esse pensamento tranqüilizou Madeline, mas em seguida outra voz a lembrou de que eles nunca haviam ficado a sós. Realmente a sós. E que o beijo que ele lhe dera fora um mero detalhe inexplicável em meio a uma experiência mais inexplicável ainda. Enfim, o silêncio já havia se prolongado demais e ambos estavam cansados. Talvez ela devesse iniciar uma conversa para garantir que o sono não pusesse a segurança da viagem em risco. — Cal?
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Ele a fitou como se estivesse tão concentrado na estrada e em sua própria mente que chegara a esquecer sua presença. O sol estava se pondo e seus últimos raios incidiram sobre o perfil moreno emprestando um tom de bronze aos cabelos e sobrancelhas. Os olhos azuis adquiriram um tom diferente. Se tivesse uma câmera ao seu alcance, Madeline o teria fotografado para perpetuar aquela imagem. — Sim? — O que seus pais disseram quando você lhes contou sobre o novo emprego? Sei que moram muito longe e que você quase não os vê, mas que telefona para eles todas as semanas. O modo como Cal a encarou a fez perceber que não conseguira enganá-lo com a observação acrescentada às pressas. — Eles sempre aprovam minhas decisões. Desejaram sucesso e felicidade a nós dois. Sabem que nossa parceria funciona. — Exatamente. Cal franziu o rosto. — Exatamente o quê, Madeline? Ele tornou a fitá-la. Uma rajada de vento penetrou por uma fresta da janela e despenteou-o. Sem o quepe, sem a farda, Cal parecia outro homem. Perigosamente atraente. Madeline engoliu em seco. — A casa. — O que tem a casa? — Disseram que é um sobrado de três quartos, mas com apenas um banheiro. — Então era isso que a estava preocupando? — Não se trata de um problema, mas achei que deveríamos conversar a respeito para evitar contratempos desnecessários. — Podemos estabelecer horários para o uso, se isso a faz se sentir melhor. Madeline percebeu que estava exagerando. Ela sabia que podia confiar em Cal. Mas do modo como estava agindo, acabaria ofendendo-o. — Não, não será necessário. Eu só quero que nos sintamos à vontade um com
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o outro. — Eu estou me sentindo perfeitamente confortável. Feita essa afirmativa, Cal deu a conversa por encerrada. Madeline mordeu o lábio e olhou para as flores e para Igg que dormia enrolado em seu colo. Ela também deveria estar se sentindo confortável, mas a impressão que tinha era de que poderia explodir a qualquer instante de tanta tensão. — Tudo que quero é que dê certo — murmurou. — Não mais do que eu. Estavam cansados. As últimas semanas haviam sido atribuladas e eles ainda teriam de descarregar o caminhão antes de se acomodarem. Ela sabia que deveria esperar por um momento mais oportuno para terem aquela conversa, mas simplesmente não pôde. — É importante que nossa amizade prevaleça sobre quaisquer circunstâncias que possam surgir. De outra maneira não poderá dar certo. Cal pareceu querer dizer algo. Pensou em parar no acostamento, mas apenas diminuiu a velocidade. — Se está preocupada com a possibilidade de eu perder o controle porque estaremos vivendo sob o mesmo teto e dividindo o mesmo banheiro, então você não aprendeu nada a meu respeito. Alguma vez eu me comportei de forma a merecer essa desconfiança? — Sim. Quando me beijou no restaurante. Um brilho de reconhecimento surgiu nos olhos azuis. — Ah, então você está assim por causa daquilo? — Sim, daquilo — Madeline confirmou aliviada, por finalmente reunir coragem para discutir o assunto. — Porque não pode tornar a acontecer. — Está se referindo ao beijo? — Claro que estou! A que mais eu poderia estar me referindo? Uma risada cristalina ecoou na cabine. Foi tão inesperada que até mesmo os cachorros se viraram para Cal e levantaram as orelhas. — Não se preocupem, vocês! — Ele brincou com os cachorros. — Não pretendo faltar com a palavra dada. Farei tudo que estiver ao meu alcance para que a Projeto Revisoras
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experiência seja um sucesso. É uma promessa e vocês podem cobrá-la. Ao menos pelos próximos seis meses. Ele não estava mentindo. Não arriscaria sua amizade com Madeline por nada no mundo. E também como sua parceira e sócia, ele queria fazer do novo abrigo de animais uma referência. O amor tanto poderia fortalecer a relação quanto aniquilá-la. Quantos casais trocavam alianças e juras de amor eterno para depois acabarem em escritórios de advocacia especializados em divórcios? Fora com esse argumento, aliás, que conseguira convencer o Dr. Landsbury a concordar que Madeline e ele assumissem a direção do abrigo, e que os dispensasse de apresentar uma certidão de casamento. Ninguém em Argonne precisaria saber a verdade. Poderiam pensar o que quisessem sobre seu estado civil e de Madeline. O importante seria desenvolver um trabalho com competência e equilíbrio e uma convivência amigável com a comunidade local. Em vista das circunstâncias, restava saber o porquê de ter colocado uma situação perfeitamente estável em risco e cedido ao impulso de beijá-la... Fizera essa pergunta a si mesmo dezenas de vezes e tinha certeza de que acontecera o mesmo com Madeline. Ela não podia culpá-lo. Talvez devesse lembrá-la do modo como se inclinara sobre a mesa e o agarrara pela camisa. E também do modo como correspondera ao beijo dele, nesse caso. Mas por que fazer uma tempestade em um copo d'água? Um beijo não significava grande coisa. Ambos eram adultos e vacinados. Já haviam recebido beijos de outras pessoas antes. E o beijo que trocaram fora uma reação natural de alegria pela concordância mútua em aceitarem um emprego que marcaria uma renovação em suas vidas. Não esperava que Madeline fosse se retrair por causa de um simples beijo. Certamente não era algo que ele planejava repetir. Sua parceira estava visivelmente perturbada. Parecia vulnerável como nunca se mostrara antes. Envolta no raio dourado do sol crepuscular, segurando seu cachorrinho e o buquê de rosas silvestres, ela estava linda. Continuava a ser a amiga e companheira independente e confiável que ele conhecia havia seis meses, mas ao mesmo tempo não conseguia reconhecê-la tão pálida e frágil. A placa indicando a saída para Argonne surgiu à frente e Cal se sentiu aliviado pela necessidade de redobrar a atenção. A pista agora se apresentava mais estreita, sinuosa e de mão dupla. A paisagem também mudou. A atmosfera se tornou tipicamente rural com pequenos regatos à margem da estrada e árvores de floração Projeto Revisoras
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branca e rosa. Algum tempo depois, uma buzina insistente fez Cal diminuir a velocidade e encostar para dar passagem. — Por que tanta impaciência? — Cal resmungou. — Não estão vendo que o caminhão está carregado? — Talvez o motorista esteja com pressa. — Com pressa e raiva de mim, eu diria — Cal retrucou. De fato, ao ultrapassá-los com sua picape preta, o motorista buzinou com mais ênfase. — Era um garoto ao volante — Madeline notou. — Não parecia ter idade suficiente para dirigir veículos. Havia outro jovem a seu lado e mais outro no banco de trás. Acha que beberam? — Como podemos saber? — Cal deu de ombros e afastou uma das mãos do volante para acalmar Duffy que não parava de latir por causa do barulho. Logo depois a paisagem mudou com o surgimento de algumas casas. O céu já estava se tornando púrpura e lâmpadas iluminavam as varandas. Ao contrário do que ele esperava, não conseguiriam chegar ao abrigo ainda com a luz do dia. Pouco, aliás, andava correndo ultimamente conforme suas expectativas. Uma sensação de que algo estava errado se apoderou de Cal à medida que se aproximavam do local indicado. A noite ainda não caíra de todo e deu para ver que o mato estava alto. E que não havia nenhum animal junto ao portão. A casa estava às escuras. A porta da frente fora lacrada com duas tábuas em cruz e também uma das janelas laterais. — O Dr. Landsbury afirmou que o Sr. Titch estaria a nossa espera. Ele vive aqui desde que Maud McGovern fundou o abrigo e se tornou uma espécie de zelador. O que será que aconteceu para ele não vir nos receber? — indagou Madeline. — E por que o abrigo se encontra neste estado de abandono? — acrescentou com o rosto franzido. Antes que Madeline manifestasse sua conclusão de que não contariam com a ajuda de voluntários a julgar pelas evidências, Duffy e Igg saltaram do caminhão e se apressaram a fazer o reconhecimento do lugar. Pareciam ser os únicos animados com Projeto Revisoras
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o final da viagem. Madeline, Cal podia notar, estava tão decepcionada quanto ele. Encontrar o abrigo em tal situação de negligência era o oposto do que precisavam para terminar um dia que não fora dos mais agradáveis. — Vamos com calma — ele murmurou ao tirar o molho de chaves do bolso. — Uma coisa de cada vez. Quase não dava mais para ver a casa de pedra de dois andares. E na impossibilidade de usarem a porta principal, deram a volta para entrarem pela cozinha. O chão de madeira da varanda estalou sob seus pés. Ele olhou para trás e viu Madeline com a respiração suspensa. Introduziu três chaves na fechadura antes de encontrar a correta. Pareciam estar estrelando um filme de terror. A porta finalmente abriu com um ruído. Cal ergueu a mão e pressionou o interruptor. A luz acendeu de imediato. Ele olhou para Madeline e sorriram um para o outro. — Parece bem melhor agora, não acha? Ela fez que sim com a cabeça, sem parar de sorrir. Animado, como não se sentia nas últimas duas semanas, Cal empurrou a porta e deu um passo para dentro da cozinha. Deteve-se, porém, e tornou a se virar. — Céus! Que cheiro insuportável é esse?
Capítulo II Madeline se pôs a rir de puro histerismo. A cozinha estava forrada de sacos pretos de lixo amontoados uns sobre os outros. Como se não bastasse, Duffy e Igg se adiantaram a eles e se puseram a subir nos sacos e a latir. Mas nem eles suportaram o cheiro e saíram sem que seus donos precisassem repetir a ordem. — Precisamos abrir todas as janelas para arejar a casa. Novas gargalhadas sacudiram Madeline. — Receio que teremos de fazer mais do que isso! Cal suspirou.
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— Não sei se me atrevo a acreditar que o tal zelador limpou ao menos o andar de cima. Acho que nunca vi tanto lixo amontoado. — De qualquer forma, ele não completou a faxina. O que pode ter acontecido para que tivesse abandonado a tarefa pela metade? E o mais importante, o que faremos agora? — Ainda não sei. Mas será impossível dormirmos aqui esta noite. — Estamos exaustos. Precisamos descansar um pouco. Eu não suportaria dormir sentada no caminhão. — Fique calma. Daremos um jeito. Era assim que a parceria funcionava. Eles se ouviam e se consolavam. Quando um deles estava nervoso, o outro mantinha a serenidade e tratava de sugerir uma solução para o problema. — Podemos voltar para o caminhão e procurar um hotel na cidade. — E arriscar sermos roubados? Qualquer um poderá entrar no caminhão e pegar nossas coisas. Não confio em deixar tudo que compramos com sacrifício em um estacionamento durante uma noite inteira. Além disso, precisamos pensar em Duffy e Igg. Duvido que nos permitam levá-los para o quarto. — Acho que Landsbury mencionou a existência de um pequeno escritório fora da casa. — Eu não me lembro. — Não custa dar uma olhada pelos arredores. Cal retirou o molho de chaves da fechadura e eles se embrenharam pelo mato, seguidos pelos cachorros. De fato, havia uma cabana a pouca distância, e sua aparência os deixou mais otimistas. A porta foi empurrada com cautela. Era como se, de repente, eles temessem detonar uma bomba. Cal fez sinal para que Madeline aguardasse. Espiou o interior e se virou para ela com um largo sorriso. — Sem lixo e sem mau cheiro! Madeline deixou a cautela de lado e avançou cabana adentro. — E teremos onde dormir! — Ela apontou para dois pequenos sofás dispostos contra duas paredes e arrematados no canto por uma mesinha com um abajur. Projeto Revisoras
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O escritório também contava com um banheiro, uma mesa com telefone e computador, duas cadeiras e várias gaiolas. Eles abriram uma porta nos fundos e fizeram uma nova descoberta. Havia uma mesa com uma cafeteira e um armário com alguns medicamentos veterinários. — Uma geladeira também! — avisou Cal. — Parece que temos tudo de que precisávamos para passar a noite. — Menos uma televisão — Cal lamentou. — Gosto de dormir com a televisão ligada. — Sério? Eu nunca poderia imaginar. — Acho que devemos nos preparar para algumas pequenas surpresas. O diaa-dia sempre nos traz revelações. — Espero não descobrir no meio da noite que você ronca — Madeline brincou. — Afinal, ao menos hoje, teremos de dividir este escritório. Os sofás não traduziam uma imagem de conforto, mas ao menos eram forrados em tecido lavável e estavam limpos. Eles não haviam encontrado nada do que esperavam em matéria de beleza e repouso. Apesar de estar no campo, a propriedade parecia abandonada. Dava para entender, agora, a razão de Landsbury ter insistido na assinatura do contrato sem que Cal e ela verificassem o estado em que se encontrava o abrigo. Duffy já havia pulado sobre um dos sofás, mas Igg continuava em sua empreitada de reconhecimento. — Acho que alguém foi mais rápida do que eu na escolha do local onde passar a noite — disse Cal com humor. — Tudo bem. Confesso que prefiro dormir no chão, caso tenha a sorte de encontrar meu saco de dormir e meu colchão inflável no meio das caixas. — O que nos remete ao próximo desafio, que será encontrar as coisas necessárias para passarmos a noite. — Uma missão quase impossível levando em consideração a quantidade de caixas que você trouxe. — Daria para você parar de reclamar de mim? — Madeline protestou. — Sou uma pessoa normal. Não entendo como alguém pode viver apenas com uma cama, uma cômoda, um sofá e uma televisão. Morei durante sete anos naquele apartamento Projeto Revisoras
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e montei-o aos poucos para me cercar de todo o conforto que meu salário permitiu. Cal não respondeu. Podia ver que Madeline estava tremendo de indignação. Aproximou-se dela, pegou as flores que milagrosamente não haviam murchado, levou-as até o banheiro e colocou-as dentro de um copo com água. Madeline se sentiu melhor instantaneamente. Agradeceu com um movimento de cabeça e concordou quando Cal sugeriu que fossem até o caminhão. Localizado o colchão de inflar e a televisão, Cal recuperou o humor. O dia não estava acabando tão mal quanto ele antecipara. Além disso, Reno ficara de vir ajudálo a descarregar o caminhão logo pela manhã e levá-lo de volta para St. Louis para que não precisassem pagar o aluguel de mais um dia de uso. Mais tranqüilos depois de terem encontrado um lugar para passar a noite, Cal e Madeline resolveram inspecionar o galpão que ficava a poucos metros de distância do escritório. Pararam surpresos, com a grande quantidade de caixas empilhadas no centro da área. Cal olhou para o teto. Não havia manchas nem sinais de goteiras. — De qualquer modo, passarei em uma casa de ferragens amanhã e comprarei uma lona plástica para protegê-las. — Trabalho aqui não falta. — Pode apostar que não. — Cal concordou e consultou seu relógio de pulso. — Uma hora. Vamos encerrar o expediente por hoje? — Uma hora!? Já!? — Madeline se surpreendeu. — Quando a diversão é boa, não vemos o tempo passar. Os dois se entreolharam e riram. — Eu adoraria tomar uma ducha. — Eu também. — Infelizmente, acho que terei de me satisfazer apenas com uma troca de roupa. — E eu de me livrar desta. Desculpe, mas eu não esperava que fôssemos dormir juntos. Não tenho pijama. Espero que você não se importe que eu durma de cueca. Madeline encolheu os ombros e disse que tudo bem. Mas não era verdade. Cal não podia calcular como ela estava se sentindo. O ar parecia ter escapado Projeto Revisoras
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completamente de seus pulmões. Quando ela saiu do banheiro, Cal já havia se acomodado dentro do saco de dormir e ligado a televisão. Caminhou em silêncio e se deitou no sofá. Seu corpo inteiro doía. Não imaginara que estivesse tão cansada antes de se colocar naquela posição. Os músculos pesavam como chumbo. Assim mesmo, duvidava que fosse conseguir adormecer sob tão inusitadas circunstâncias. Seu olhar pousou nas flores. Nem sequer um dia se passara e ela já estava com saudade da Sra. Cee. Por outro lado, precisava ter em mente que não estava sozinha. Apesar dos silêncios prolongados, Cal fora uma ótima companhia. Duffy estava dormindo no segundo sofá, mas Igg preferira o chão. Estavam em paz e acomodados, embora precariamente. Enfim, não havia de que se queixar. Madeline estendeu a mão e desligou o abajur. A claridade, entretanto, persistia por causa da televisão. Não seria fácil abstrair. Não estava acostumada a dormir com luz nem com som ligado. Nem com os ruídos do campo. Mas o que mais a estava perturbando era a presença de Cal. Eram colegas, apenas. Não havia intimidade entre eles. O fato de ele dormir de cueca não lhe saía do pensamento. Não podia se queixar, contudo, de falta de consideração e de respeito por parte dele. Cal a prevenira da situação e procurara se deitar enquanto ela estava no banheiro. O problema estava na força de sua imaginação. Cal, deitado no mesmo cômodo que ela, praticamente despido... Madeline virou-se de um lado para o outro umas cem vezes. Eram duas e meia da madrugada quando decidiu se levantar e desligar a televisão. Cal já havia conciliado o sono e não perceberia. E ela, talvez, conseguisse finalmente dormir. Estava se preparando para se levantar quando viu Duffy se colocar em alerta, com as orelhas em riste. Um arrepio lhe percorreu as costas. Estava ouvindo um som abafado. O que poderia ser? Um facho de luz penetrou pela fresta da janela e percorreu as paredes antes de incidir sobre seus olhos justamente quando tentava se sentar. A essa altura, Igg também havia acordado. Ela deu um salto e correu para a porta a fim de alcançar o interruptor. Os cachorros começaram a latir. — O que está acontecendo? — Cal resmungou quando ela tropeçou em seus pés. — Tem gente lá fora! Projeto Revisoras
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Cal a impediu de abrir a porta. — Fique aqui enquanto eu verifico. A luz do pátio estava acesa, mas não dava para ver ninguém. O visitante noturno deveria ter se escondido ou fugido do local. Para impedir que os cães saíssem, Madeline se abaixou e segurou-os, mas não perdeu Cal de vista. Descalço e apenas de cueca, ele não se encontrava em sua melhor forma para empreender uma perseguição. Restava esperar que não estivessem correndo perigo e que o intruso tivesse decidido visitá-los movido apenas pela curiosidade. — O que foi que houve? — Cal perguntou, ressabiado. — Não há ninguém lá fora. A casa, o depósito e o caminhão parecem estar em ordem. — Eu vi uma luz. A pessoa me focalizou com a lanterna. Com o susto, fugiu às carreiras. Cal passou uma das mãos pelos cabelos curtos e despenteados. Estava nu, basicamente, e se comportava com a maior naturalidade do mundo. Madeline se sentou no sofá e se pôs a afagar os cães para se distrair e evitar encará-lo. — Não vejo necessidade de chamar o xerife. Quem quer que tenha bisbilhotado por aqui agora sabe que o local voltou a ser habitado e em breve voltará a funcionar. Não duvido que tenha sido algum adolescente ansioso por contar aos amigos sua grande aventura. Madeline estava tentando prestar atenção às palavras de Cal, mas o modo como ele estava se curvando e examinando a unha do dedão que machucara ao tropeçar em uma pedra a impedia de afastar os olhos de seu corpo. Os músculos eram fortes e salientes. Dava para notar que seu parceiro praticava exercícios físicos. — Madeline, você está escutando? — Eu... — Desculpe. Está tão cansada que mal consegue abrir os olhos! Por que não esquecemos essa história e tratamos de continuar dormindo? Amanhã será um longo dia... Igg acordou Madeline com um rosnado. Ela olhou ao redor, desorientada. Após as peripécias do dia e do meio da noite, acabara conseguindo dormir profundamente, e foram necessários alguns segundos até que se recordasse de onde Projeto Revisoras
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estava, Duffy mudara de sofá durante a madrugada e estava deitada encostada nela. Mal conseguia se mover. Não havia cortina na janela e dava para ver que ainda não havia amanhecido. O segundo rosnado lhe deu a certeza de que havia alguém do lado de fora do escritório. Tornou a olhar em direção à janela e dessa vez deparou-se com um homem de cabelos brancos, usando uma capa e um boné xadrez, com o nariz encostado ao vidro. — Deve ser o zelador mencionado por Landsbury — Madeline falou consigo mesma. — O que houve? — Cal se sentou de um salto ao ser atropelado mais uma vez por Madeline que se encaminhava para a porta. Ela precisou conter o impulso de tocá-lo no ombro e de cochichar em seu ouvido para que voltasse a dormir. Ainda estava escuro. Estava pensando em se apresentar ao zelador e pedir que ele retornasse mais tarde para conversarem. — Pela descrição, acredito que seja o Sr. Titch que finalmente se apresenta. Embora estivesse descalça, despenteada, e de pijama, Madeline não hesitou em abrir a porta. Igg se colocou a seu lado, de guarda. Duffy, que morria de medo de estranhos e de barulho, foi se esconder. Pelo canto dos olhos, Madeline viu que Cal estava vestindo a calça. — Bom dia. Como já deve ter sido informado, sou Madeline Scott. — Scott? Landsbury me deu outro nome. Wheat. Madeline indicou Cal as suas costas. — Ele é Cal Wheat. Não somos casados. Por isso não temos o mesmo sobrenome. O homem não respondeu, mas mudou de assunto. — Preciso de ajuda para levar o lobo. Cal e Madeline entreolharam-se, aturdidos. — Lobo? Este não é um abrigo exclusivo para cães? — Deveria ser até nossa falecida diretora encher o lugar de gatos. Ela os levava consigo para a casa. Acho que levará um longo tempo até o mau cheiro se dissipar.
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Cal e Madeline tornaram a olhar um para o outro. — Cães e gatos são animais domésticos, mas não somos especializados em animais selvagens. — Foi o que tentamos dizer a Maud, antes de nos deixar. Mas ela ficou com pena do animal quando o viu acorrentado à maçaneta de sua porta ao acordar. Alguém o capturou quando ainda era pequeno e resolveu abandoná-lo quando começou a crescer. Enfim, ele foi alimentado e tratado. Agora que Maud se foi, o Dr. Moore, o veterinário local, se ofereceu para doá-lo a um zoológico. Disse que tomará todas as providências, mas que teremos de levar o animal até sua clínica. — Jamais entenderei por que as pessoas insistem em tirar os animais de seu hábitat. Na maioria das vezes, isso só lhes traz sofrimento — Cal protestou. — Dê-me cinco minutos, está bem? Vou terminar de me vestir. — Esqueceu que Reno virá nos ajudar a descarregar a mudança? — disse Madeline. Cal consultou o relógio que não tirara do pulso para dormir. — Ainda são apenas cinco e meia. Reno não chegará antes das nove. Madeline procurou não demonstrar sua perplexidade. O velho homem estava olhando para ela com reprovação. Seria possível que tivesse de se acostumar a acordar de madrugada, inclusive aos domingos, só porque aceitara um emprego no campo? — Tive muito prazer em conhecê-lo, Sr. Titch. Sei que foi o braço direito de Maud McGovern por longos anos. Espero que possamos trabalhar juntos por outros tantos. — Estarei à disposição, senhorita, desde que todos desempenhem suas funções sem se intrometerem nas atribuições dos outros. Os voluntários sempre cuidaram do escritório e Maud zelava pela casa, pelo depósito e pelos veículos. Minha tarefa é limpar o canil e o pátio e dar água e comida aos animais, os sete dias da semana. Faço questão, contudo, de ter meu horário de almoço respeitado e também meu descanso à noite. — Recebemos ótimas referências suas — afirmou Madeline. — Sabemos que é um funcionário de total confiança e saberemos respeitar seus horários. Não se preocupe.
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Madeline estendeu a mão para cumprimentar o velho homem. Ele estranhou seu gesto. Encarou-a por um instante e algo em seus olhos azuis suavizou, mas não o bastante para ela sentir que já fora aceita. — Só mais uma informação — Madeline pediu, antes que o zelador se afastasse. — A porta da casa foi lacrada. — A casa não é de minha responsabilidade. — Sim, mas... — Os irmãos Cahill tentaram arrombá-la na semana passada. Eu avisei Shirley Steinman, a única voluntária que continua aparecendo por aqui de vez em quando. O marido dela chamou o xerife e ele pregou as tábuas para que a casa não ficasse devassada. Os garotos já apareceram diversas vezes por aqui depois que Maud nos deixou. Foram eles que quebraram a janela lateral. Imagino que tenham desistido de invadir a casa por causa do cheiro. — O senhor os conhece? — Esta é uma cidade pequena. Todos se conhecem. São filhos de Booth Cahill com quem Maud vinha brigando em defesa de seus animais. — Eles moram perto? — No lote vizinho. Até dois anos atrás, o sujeito nunca nos deu problemas, mas a esposa o deixou nessa época e ele se tornou irascível. Não tardará a conhecê-lo. Os filhos estão sempre por aí em uma picape preta provocando todo o mundo. Estava solucionado o mistério dos visitantes noturnos. E também identificados os autores da ultrapassagem na estrada, Madeline pensou enquanto observava o zelador indo ao encontro de um cachorro branco e grande que permanecera obediente, sob o carvalho em frente da casa. Parecia tão inteligente que só faltava falar. Alguns minutos depois, de banho tomado e barba feita, Cal estava irresistível. Vestia calça e colete de brim e camisa xadrez. Ao passar ao lado dela fez com que se lembrasse dos encontros todas as manhãs na delegacia. Sentir o perfume de Cal era um de seus prazeres secretos. — Se esse homem voltar a nos espionar, terei uma conversa séria com ele — Cal declarou, irritado. — Precisamos nos mudar para a casa com urgência — sugeriu Madeline. — Projeto Revisoras
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Na verdade, o Sr. Titch não tem culpa. Este lugar parece um aquário. Quer ajuda com o lobo? — Não será um trabalho dos mais agradáveis. — Eu sei. — Agradeço sua oferta, mas prefiro que fique. — Nesse caso, tomarei algumas providências. O café estará pronto quando voltar. — Forte e sem leite — Cal avisou. — Quero ver se consigo chegar antes de Reno. Madeline se sentiu aliviada pela oportunidade de ficar sozinha por algumas horas. Sua vida dera uma guinada. Por mais que tivesse procurado se preparar para a mudança, sabia que levaria um longo tempo até que se adaptasse à nova rotina. Era exigente por natureza. E controladora. A tendência ao perfeccionismo aumentava em direta proporção à falta de controle. Esperou que Cal se afastasse para deixar os cachorros saírem e darem uma volta pela propriedade. A van com a identificação do abrigo pintada na porta do motorista parecia estar em bom estado, apesar de suja. O dia amanhecera esplêndido. O canto dos passarinhos ecoava por toda a parte. Esse era um dos aspectos que tornava o campo mais alegre do que a cidade. As árvores e as flores também pareciam mais coloridas. Sorriu consigo mesma porque não sabia para onde olhar. A vida pulsava em cada partícula daquela imensa paisagem. E embora tivesse consciência do muito que havia por fazer, também não sabia por onde começar. Precisaria se acostumar à idéia, principalmente, de que a cohabitação tornaria sua parceria com Cal mais íntima. Ao menos até que se transferissem para a casa e se instalassem em quartos individuais. Pedir que Cal evitasse ficar à vontade a sua frente apenas aumentaria seu constrangimento. Ele se colocaria em defensiva e pensaria nela como uma mulher reprimida ou puritana. Seria ainda pior se caçoasse de seu comportamento. Não. Sua adaptação teria de começar por aí! Aprendera a ignorar a atração que Cal exercia sobre ela, vestido da cabeça aos pés, em nome de formarem uma parceria de sucesso. Agora aprenderia a ignorar a imagem de Cal apenas de cueca. Embora já tivesse ficado gravada como uma foto em sua mente.
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Os móveis já se encontravam no depósito e Reno, que viera de ônibus, já havia providenciado a devolução do caminhão. Cal e Madeline estavam na varanda da casa com os cachorros. — Você acha que o Sr. Titch estava certo sobre o cheiro dos gatos ter espantado os garotos? — Madeline perguntou. Antes que Cal pudesse responder, os dois se entreolharam de maneira significativa. O lixo já havia sido retirado e todas as janelas e portas estavam abertas para arejar o ambiente. — Talvez devêssemos seguir o conselho que o veterinário deu, quando você lhe entregou o lobo, e nos livrar de todos os móveis e utensílios que não possam ser lavados com água e sabão e desinfetados. — Nesse caso, teremos de chamar Reno novamente para nos ajudar — Cal concordou. — Ligarei para ele e pedirei que volte aqui amanhã mesmo, se puder. Cal conhecia bem sua parceira. Quando Madeline se punha a morder o lábio inferior, era por motivo de tensão. Podia adivinhar qual era. A necessidade de dormirem no escritório mais uma vez aquela noite. — Vou à cidade — ele disse na tentativa de aliviar o constrangimento. — Quero comprar o material necessário para consertar a porta e a janela lateral e também os produtos de limpeza e desinfetante que o Dr. Moore recomendou. Quer que eu traga mais alguma coisa? — Muitas coisas, mas eu mesma farei uma viagem à cidade assim que preparar uma lista. — É uma bonita cidade. Apenas fui alertado para redobrar a atenção quando estiver dirigindo. O Dr. Moore concorda com Titch sobre os Cahill serem encrenqueiros. Principalmente o pai quando dá para beber. — Pretendo fazer o mesmo que você se encontrar a picape preta no meu caminho — disse Madeline. — Diminuirei a velocidade e encostarei para lhes dar passagem. E por falar em carro, um veículo estava entrando naquele instante na propriedade. Madeline cogitou ansiosa, quem poderia ser o visitante. Ficou gratamente Projeto Revisoras
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surpresa ao descobrir que o carro pertencia a Shirley Steinman, a mais dedicada das voluntárias que o abrigo já havia recebido. Ela lhes ofereceu um sorriso tão lindo quanto o buquê que carregava. — Sejam bem-vindos! Não podem imaginar como estavam sendo esperados. Esta cidade precisa muito de vocês. — A mulher indicou a casa e suspirou. — Peço que me desculpem por não ter deixado o lugar em condições de recebê-los. Não houve tempo. Titch e eu pretendíamos retirar o lixo, mas o xerife lacrou a casa devido a uma tentativa de arrombamento. Um súbito mal-estar se apoderou de Madeline. Para um abrigo funcionar era essencial contar com a colaboração de voluntários. Em St. Louis, fábricas doavam rações, laboratórios doavam medicamentos e vacinas, e veterinários ofereciam seus préstimos gratuitamente. Pessoas generosas dedicavam algumas horas de seu tempo livre para cuidar dos animais e brincar com eles. Grande número de famílias procurava o abrigo para adotá-los. Alguns pet shops também se ofereciam para doálos. Mas o modo como Shirley Steinman se referira ao problema da casa a fez temer o pior. — Digam o que poderei fazer para ajudá-los, por favor. Não podemos perder vocês. À primeira vista parece que será impossível reerguer o lugar, mas aos poucos tenho certeza de que dará tudo certo. — Os outros voluntários...? — Cal traduziu em palavras a preocupação de Madeline. — Todos se afastaram. A organização se desfez.
Se a única voluntária que restara lhes dera uma má notícia no domingo, ao fim da quarta-feira, ela os havia compensado brilhantemente. Shirley conseguira trazer duas voluntárias de volta. O aspecto da casa mudara por completo. Todos os cômodos haviam sido limpos e o madeiramento pintado. O papel de parede se apresentava um pouco desbotado, mas Madeline decidiu conservá-lo. Preferiu investir o saldo de caixa em cortinas de renda. Estava certa. Tanto a sala quanto os quartos ficaram claros e aconchegantes. Finalmente teriam seus próprios quartos, Cal pensou, e ele teria sua velha e querida parceira de volta, alegre e bem-humorada. E não precisaria mais recorrer todas as noites a banhos frios. Porque dormir a um metro de distância da única
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mulher por quem se interessava havia seis meses estava se tornando uma tortura. Não que isso o surpreendesse. Sentira-se atraído por Madeline desde o primeiro momento. De farda. Imagine agora que a tinha diante de seus olhos as vinte e quatro horas do dia, de short e camiseta, com a ponta do nariz salpicada de tinta. Adorável! Mas conhecendo-a, como a conhecia, não tinha nenhuma dúvida de que Madeline seria capaz de desistir do empreendimento se viesse a suspeitar que ele a queria mais do que a uma amiga e parceira de trabalho. — Cal! Como se tivesse detectado sua presença, Madeline o chamou para lhe mostrar uma imensa cama de dossel que havia encontrado no depósito. Estava em bom estado. Uma limpeza enérgica, uma demão de verniz e um colchão novo, e estaria pronta para servir à realeza. — Não é demais? — Madeline perguntou, orgulhosa. Cal engoliu em seco. Não podia nem sequer pensar no que poderiam fazer em uma cama como aquela. Temia que seus olhos o traíssem. Por sorte, Duffy se pôs a farejar uma caixa em um canto e o distraiu. — O que será que ela encontrou de tão sedutor? — Lembranças de Maud — Madeline respondeu. — Shirley e eu já esvaziamos todas as caixas que estavam guardadas aqui. Essa é a última. Contêm retratos, velhos documentos e recortes de jornal sobre o trabalho que foi desenvolvido aqui no passado. Não sei o que fazer com tudo isso. Cal foi até a caixa, afagou Duffy e apanhou o retrato que estava por cima das outras coisas. — Maud aos vinte anos com a mãe, o pai e o avô. Diz aqui que ela nasceu nesta casa em 1922 e que aqui viveu toda a sua vida. Pelo que eu soube, foi a última de sua família e não restou ninguém, portanto, para assumir o legado. Talvez você pudesse entregar essas recordações à sociedade histórica local. A família de Maud fez parte de Argonne durante três gerações. — É exatamente o que farei — Madeline declarou, entusiasmada. A casa estava ficando um brinco. Reno voltara para ajudá-los e trouxera consigo dois colegas. E estavam terminando de pintar o andar de baixo. — Decidi trocar minha cama por esta. Você se importa de transportá-la para meu novo quarto?
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Cal precisou pigarrear. — O que fará com a sua? — Você a quer? — Eu trouxe a minha. — Nesse caso, poderemos colocá-la no terceiro quarto para algum hóspede que possa aparecer. — Madeline parou de falar. — Cal, tem alguma coisa errada? De repente você deu por falar por monossílabos. Justo quando tudo parece estar ficando em ordem, chego a pensar que não está gostando daqui! Cal se obrigou a colocar um sorriso nos lábios. Desejava Madeline, mas se o preço a ser pago custasse o comprometimento do projeto, preferia se calar a perdê-la. — Estou cansado. Só isso.
Capítulo III Parecia incrível que tivessem se mudado para Argonne apenas uma semana antes. Embora os reparos na casa ainda não tivessem sido concluídos, as condições já eram favoráveis para possibilitar a transferência do escritório. Com a brisa soprando em seus cabelos e inebriando-a do perfume dos lilases em flor, Madeline sentiu renovarem-se as esperanças de que sua parceria com Cal voltaria a ser como antes, mais leve e descontraída. Porque se eles tivessem de continuar compartilhando a minúscula sala que mais parecia um aquário, mais cedo ou mais tarde acabariam fazendo tolices por causa da tensão que estava se acumulando dia a dia. A falta de privacidade estava afetando-os ao limite do insuportável. Mal se falavam. Empenhavam-se de corpo e alma no trabalho de maneira a não lhes sobrarem forças para se manterem acordados após o jantar. Vinham evitando, inclusive, fazerem as refeições juntos. Madeline diminuiu automaticamente a velocidade ao pensar nas inúmeras vezes que acordara durante aquela semana, com os movimentos cautelosos de Cal para se levantar, sem nunca ter imaginado que ela apenas fingia dormir. O campo estava repleto de margaridas. O horizonte parecia lhe sorrir. Projeto Revisoras
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De repente, algo lhe chamou a atenção. Encostou o carro ao ver uma bicicleta tombada no acostamento. Estava acostumada a ver um garoto pedalando pela região, sempre acompanhado por um cão da raça collie e pensou imediatamente neles. Por causa do terreno em desnível não dera para ver da estrada, mas o cachorro estava deitado e o menino ajoelhado ao seu lado. — O que houve? — Madeline se ajoelhou ao lado dele. — Goldie estava correndo atrás de mim como faz todos os dias. Mas então eu olhei para trás e ela estava parada. Até que eu voltasse, Goldie já estava assim. Eu não quero que ela morra. Madeline franziu o rosto. — Há um veterinário aqui perto. Posso levá-la em meu Carro. Onde você mora? Precisamos avisar seus pais. Assustado, o menino não respondeu. Madeline tirou a jaqueta que estava usando e pediu que o menino fizesse o mesmo depois de se apresentar a ele. — Vou amarrar seu casaco ao meu de modo a improvisarmos uma maca para Goldie. Juntos carregaram a collie e a acomodaram no banco de trás do carro. O garoto se sentou ao lado para poder vigiá-la. Em baixa velocidade para evitar solavancos, Madeline olhava a cada instante pelo espelho retrovisor. Como voluntária de um abrigo de animais, passara por várias experiências. Nem sempre fáceis. E ver alguém sofrer sempre a entristecia. — Você precisa dar um jeito de avisar seus pais — ela insistiu. — Se o problema for sério talvez tenhamos de levar sua cachorrinha a Kirkwood para que possa ser atendida em um hospital com maiores recursos. — Meu pai não está em casa e mesmo que estivesse ele não faria nada para ajudar. — E sua mãe? — Nem ela. Madeline sentiu o coração se apertar diante da mágoa que leu nos olhos do menino. — Quantos anos a Goldie tem? Projeto Revisoras
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— Doze. Eu tinha um ano quando a ganhei. Estavam se aproximando do centro da pequena cidade. Madeline suspirou, aliviada, ao encontrar uma vaga bem em frente ao consultório. — Aguarde um momento enquanto falo com o Dr. Moore, está bem? Poderia me dizer seu nome para eu preencher a ficha de atendimento? — É Jason — o menino respondeu com expressão defensiva. — Jason Cahill. Madeline hesitou apenas por uma fração de segundo. Após dar um sorriso de encorajamento ao garoto, prometeu que voltaria em seguida. Como o mundo era pequeno, Madeline pensou. Com tantos cachorros para socorrer, tivera de se envolver justamente com um de propriedade da família mais complicada do local. Não seria de admirar que aquele menino fosse um dos culpados pela invasão ao abrigo na semana anterior e pelo susto que ela levara ao se tornar foco de uma lanterna na noite de sua chegada. Independentemente da implicação ou não do garoto, Madeline faria o melhor que estivesse ao seu alcance para ajudá-lo e a sua cadela de estimação. A começar por protegê-lo, a pedido do Dr. Moore, para que o garoto não estivesse presente no momento que tivesse de providenciar a remoção do animal para a sala de consulta. Seu treinamento na polícia era sempre valioso em momentos como aquele. Ela sabia que era preciso ser atenciosa e delicada, mas firme ao mesmo tempo. Por mais que Jason se recusasse a acompanhá-la, conseguiu convencê-lo a ir até a praça e se abrigarem sob a sombra das árvores. — O Dr. Moore sabe o que está fazendo — garantiu. — Ele mandará nos chamar assim que achar conveniente. Enquanto isso, você não quer aproveitar e tentar ligar para sua casa? Há uma cabine telefônica... — Não! — A resposta foi tão veemente que Madeline compreendeu que não adiantaria continuar insistindo. O garoto estava assustado e temeroso com o destino do animalzinho de que tanto gostava. A certeza de que não teria o apoio dos pais o deixava ainda mais vulnerável. — Vamos nos sentar em um banco? — Não quero! Em outras circunstâncias, Madeline ficaria irritada com o comportamento Projeto Revisoras
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irascível, mas algo naquele garoto despertava seu instinto materno. Em vez de forçar a situação, ela começou a andar em direção à estátua no centro da praça. Calado, talvez sem perceber o que estava fazendo, Jason a seguiu. A estátua fora feita em homenagem a um general nascido naquela cidade e que lutara na Primeira Grande Guerra. Argonne não era uma cidade rural como as outras que surgiram no último século. O velho e o novo conviviam em harmonia. Ao lado de lojas com vitrines de época, Argonne oferecia estabelecimentos com toldos de listras brancas e vermelhas em suas fachadas. A sorveteria era moderna e dispunha de mesinhas redondas na calçada. A livraria funcionava em regime de encomenda, mas oferecia todos os livros que constavam das listas de Best Sellers. Também havia uma loja especializada em artigos de cozinha com o atrativo adicional de cursos de culinária. Cada dia que passava, Madeline sentia que incorporava mais o novo estilo de vida e que poderia viver para sempre naquela cidade. Era um bom lugar para morar, com boas pessoas com quem conviver. A razão de sua presença e de Cal no abrigo deveria ter se espalhado entre a população. Todas as pessoas que tivera o prazer de conhecer faziam com que se sentisse alguém importante. O menino, de repente, pareceu ficar ainda mais nervoso. Madeline ensaiou uma pergunta, mas não chegou a fazê-la. Acompanhou o olhar de Jason e se deparou com um homem alto e calvo saindo do bar e atravessando a rua. Os poucos fios de cabelos que lhe restavam eram da mesma cor de Jason e ela não demorou a adivinhar que se tratava do pai dele, Booth Cahill. — O que você está fazendo na cidade? — o homem vociferou. Madeline sentiu o garoto enrijecer a seu lado, e se apressou a se identificar. — Com licença, senhor. Meu nome é Madeline Scott. Trouxe seu filho à cidade por que... — Com ordem de quem? — o homem a interrompeu. — Goldie ficou doente, pai. Eu estava andando de bicicleta e ela parou de correr atrás de mim e caiu. A Senhorita Scott estava passando de carro e a socorreu. Goldie está sendo examinada por um veterinário. — O quê? Você levou a cadela na clínica daquele sujeito? — Fui eu que a levou, Sr. Cahill. Goldie está em boas mãos. Tenho certeza de que o Dr. Moore fará tudo que puder para salvá-la. Projeto Revisoras
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Sem se importar com Madeline, visivelmente alcoolizado, Booth Cahill agarrou o filho pelo braço e arrastou-o em direção ao consultório. Ciente de que sua intromissão poderia piorar o problema, Madeline seguiu-os de longe. Mas até mesmo seu silêncio o enfureceu. — Fique fora disso, Srta. Scott. Como deveria ter ficado desde o início. Sei muito bem quem é e o que faz aqui. Não pense que tem algum direito sobre meu filho e sobre minha cadela só porque resolveu assumir o lugar da velha Maud. Sem chance de se defender ou ao menino, Madeline entendeu porque seu vizinho era evitado por todos na cidade. Teve pena dos filhos. Não era de se admirar que fossem arredios e agressivos. Gostaria de acompanhá-los e de tentar oferecer seus préstimos ao Dr. Moore, mas achou melhor entrar em seu carro e ir para casa. Cal subiu os degraus de dois em dois para falar com Madeline no sótão. Era domingo. Fazia uma semana e um dia que eles haviam chegado, mas a impressão que dava era de estarem morando no abrigo havia um longo tempo. O lugar estava ficando bonito e agradável. Ele mal podia esperar para ver a cara de Madeline quando lhe fizesse aquela surpresa. Acabara de encontrar, no fundo da propriedade, quase escondido pelo mato, um jardim de rosas da mesma espécie que a Sra. Cee dera a ela no dia da mudança. A descoberta o emocionou. Parecia um sinal de boa sorte. Como em um passe de mágica, o perfume daquelas pequenas flores levara consigo problemas e dissabores. Sua beleza renovou-lhe as esperanças. Queria que aquele abrigo se tornasse seu lar. E de Madeline. Ele hesitou, contudo, ao alcançar a porta. Em contraste com o dia ensolarado e com a dádiva daquele perfume, o sótão estava sombrio e abafado. Havia teias de aranhas cobertas de pó por toda a parte. — Madeline? — Entre, entre! Venha ver! O entusiasmo da voz feminina tornou a incentivá-lo. Abaixou-se para evitar o contato com as teias e entrou. O que viu o fez esquecer o cheiro e o aspecto do lugar. Madeline estava ajoelhada diante de um baú aberto e parecia envolvida por uma aura de luz. — Acabo de encontrar um jogo de jantar de porcelana Spode. Oh, Cal! Maud nos deixou coisas finíssimas. Sinta a maciez destes lençóis bordados. Vou me sentir Projeto Revisoras
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uma rainha dormindo entre eles. Cal engoliu em seco. Em sua ingenuidade, Madeline não calculava o efeito que suas palavras lhe causavam. Acontecera o mesmo na quarta-feira, quando lhe pedira ajuda para montar a cama de dossel em seu quarto. — Também encontrei um tapete. É simplesmente lindo. Se resistir à lavagem ficará perfeito em nossa sala, em frente à lareira. — Em conjunto com meu sofá que você chamou de feioso, você quer dizer? O sorriso de Madeline compensou a ofensa que ela lhe fizera. O que Cal não considerou uma ofensa, exatamente. Ele sabia que teria de comprar um sofá novo assim que suas finanças melhorassem, mas na falta de um sofá melhor, resolvera carregá-lo na mudança. — Noto que você está se sentindo no paraíso, neste velho sótão — Cal caçoou. Ele também estava feliz. E aliviado. Finalmente haviam conseguido se instalar na casa, desde aquela manhã. Agora Madeline teria um quarto privativo, ele teria seus próprios aposentos e os tão necessários limites seriam novamente respeitados. — Mas eu também tenho uma novidade para você. Dê uma olhada nisto! Madeline se levantou. Ele precisou se obrigar a parar de encará-la. Corada de excitação e com a pele limpa, sem maquiagem, as sardas se tornavam mais evidentes e adoráveis. — Cal! Estas rosas são iguais àquelas que ganhei da Sra. Cee! Que perfume! Onde as encontrou? — No fundo do terreno, atrás de um alto portão. Ela riu como uma criança. Cal precisou fazer um grande esforço para não tomá-la nos braços e beijá-la. Fosse o ambiente ou a alegria de suas descobertas, o fato era que eles estavam vivendo um momento realmente especial. Mas que teria de ser reprimido como acontecera a cada noite daquela semana. Porque ele não correria o risco de perder a chance de aproveitar aquele momento de descontração justamente agora que Madeline voltara a se mostrar como antes, como sua antiga parceira. — Confesso que estava curioso por saber o que havia por trás daquele cadeado enferrujado. Valeu a pena dedicar alguns minutos desta tarde de domingo para uma investigação. Por outro lado, foi bom que o local permanecesse trancado.
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Perto das roseiras encontrei um poço. Talvez usassem sua água para molhar o jardim. No momento está quase seco. Com o tempo, acho que poderíamos reativá-lo e também o jardim. As roseiras já estão lá. Será apenas uma questão de podá-las e adubá-las. Madeline sorriu. — Trabalho não irá faltar. Isso eu garanto. — Temos tempo. Não há pressa — Cal respondeu. — Faremos uma coisa de cada vez. — Faremos muitas coisas de cada vez, você quer dizer — Madeline corrigiu. — Não paramos nem sequer para respirar esta semana. — O resultado compensou. Ou não? — Quem diria que conseguiríamos nos transferir para esta casa no prazo de uma semana? Se nós contássemos sobre o estado em que a encontramos, ninguém acreditaria que seria possível. Shirley ficou de providenciar a distribuição de folhetos, convidando as pessoas a nos procurarem e prestarem sua colaboração. Uma mecha de cabelos se soltou do coque e Madeline a colocou atrás da orelha. Cal ansiou por tocá-la, mas se conteve mais uma vez. — Adorei a idéia de cultivarmos um jardim de rosas — Madeline declarou após um momento. — Talvez pudéssemos contratar o garoto Jason Cahill para nos ajudar nessa tarefa. — Contratar o filho do vizinho? Não está falando sério, está? Cal sabia que Madeline estava preocupada com o garoto desde a tarde anterior quando o Dr. Moore telefonara para dizer que não tivera meios de salvar o animal. — Você acha que o trabalho é difícil demais para um garoto de treze anos? — A questão não é essa. Apenas não quero encrenca com o pai dele. — Não vejo motivo para encrencas, mas para desfazer qualquer malentendido que tenha ficado. Esta talvez possa ser nossa chance de conquistarmos novos voluntários e recuperarmos os que se afastaram. Para ser franca, talvez a velha Maud não fosse uma pessoa tão boa e generosa como pensávamos. Nós não conhecemos a versão do velho Cahill sobre a briga entre vizinhos. Você viu o estado em que ela deixou a casa. E ninguém nos contou o porquê de todos os antigos voluntários Projeto Revisoras
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terem se afastado. — Suas suposições podem estar corretas, mas existe o fato de que ninguém na cidade tolera os Cahill. — Talvez possamos ser a exceção. — Madeline continuou em tom persuasivo. — Principalmente com respeito a Jason. — Tenho a impressão de que você gostou realmente daquele menino. — É verdade. Gostaria de compensá-lo de alguma maneira pela vida que leva e pelo que lhe aconteceu na tarde de ontem. Você não faz idéia do que significa nascer em uma família desestruturada. Cal conhecia sua parceira o bastante para saber que não desistiria de seu projeto. Principalmente porque tudo que ela dissera fazia sentido. Madeline se recusava a falar sobre sua infância. Sua mãe a teve muito jovem. O namorado não assumiu sua gravidez e a abandonou à própria sorte. Sem poder confortá-la, Cal observou o modo como ela buscava refúgio na paisagem através da janela. Em sinal de apoio, ele se colocou a seu lado, em silêncio. Um minuto depois, mostrou-lhe o local onde encontrara as rosas. — Olhe em linha reta. Daqui não dá para ver o portão de ferro, mas o muro de pedra pode lhe dar uma idéia da localização. Aos poucos, farei daquele recanto um lugar mágico. Manterei o portão trancado até esse dia. Até que o poço seja tampado, o risco de alguém cair é muito grande. Embalado pela doce presença feminina e pelo perfume das flores, Cal acabou dizendo o que Madeline queria ouvir, e que ele duvidava que fosse dar certo. — Talvez o garoto pudesse começar arrancando o mato e limpando o terreno. O modo como Madeline o olhou fez seu corpo se aquecer como o raio de sol que entrava pela janela e fazia os cabelos ruivos brilharem como cobre. As pequenas sardas faziam lembrar grãos de pólen sobre pétalas de rosa. — Obrigada por me ouvir. Tenho certeza de que poderemos fazer alguma diferença na vida de Jason. Cal tirou algumas rosas do buquê para enfeitar os cabelos de Madeline, que prendeu a respiração enquanto ele as ajeitava. — Relaxe, Madeline. — segurou-a pelo queixo. — Fizemos o que poucos conseguiriam nesta semana. Agora devemos ir mais devagar. Com mais calma. Projeto Revisoras
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As mãos de Cal tremeram. Mês após mês tentara ignorar o fascínio que Madeline exercia sobre ele. A última semana exigira duras provas de controle. Sofrerá por querer e não ter. Chegara agora a seu limite de resistência. Beijou-a de leve na boca. Não queria mais ouvir a voz da razão. A emoção o vencera. Madeline não protestou. Ele sentiu ímpetos de repetir o beijo, não com a suavidade e a delicadeza do primeiro, mas com toda a paixão que escondera em seu peito durante todo aquele tempo. Afastou-se por um pequeno instante, ansioso por fitar os olhos dela e ver refletido neles o mesmo desejo. Bastaria um sinal de reciprocidade para que ele a tomasse nos braços e esquecesse todas as promessas que fizera a si mesmo de continuarem apenas amigos e parceiros de trabalho. — Obrigada, Cal! Você é demais! Sabia que podia contar com sua compreensão. — Madeline o abraçou e lhe deu um beijinho no rosto. Cal empalideceu de choque. Seu lado racional, porém, o impediu de ir adiante. Não era isso que ele queria? Que Madeline continuasse se portando com a naturalidade como nos tempos em que desempenhavam a função de policiais? Sim, era o que ele queria, Cal pensou. E que, de repente, já não era o bastante. Madeline estava se vestindo em seu quarto pela primeira vez. Por fim! A semana passara em um piscar de olhos. Não faltara o que fazer. As noites, entretanto, demoraram um século. Dormir perto de Cal e pensar nele apenas como um amigo fora uma provação. Em especial quando ele se levantava durante a madrugada e se comportava como se ela não pudesse vê-lo porque estava aparentemente mergulhada no sono. Não conseguia afastar os olhos das rosas sobre a cômoda. Colocara-as em uma jarra de vidro que encontrara em um dos armários da cozinha. Estavam viçosas como na tarde anterior. Lindas. Não se cansava de admirá-las e de se surpreender. Não porque Cal descobrira um jardim secreto na propriedade, nem por sua disposição em cultivá-lo, mas porque havia se lembrado de que eram iguais às que ela recebera da Sra. Cee como um presente de despedida e de boa sorte na nova casa. O encontro com Cal no sótão tivera uma qualidade única. Como se o beijo que ele lhe dera tivesse um novo significado de que tudo que estavam vivendo era real. Real em um aspecto que ela não estava preparada para analisar. Projeto Revisoras
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Mas a impressão durou apenas alguns segundos. Logo voltou a si e constatou que o beijo fora uma expressão de incentivo e de amizade. Cal queria que ela sentisse que daria certo, que a estima e o respeito permaneceriam apesar dos contratempos iniciais e que o propósito que abraçaram estava acima das circunstâncias inesperadas que os obrigaram a partilhar um mesmo espaço. Nunca esqueceria aquele beijo com perfume de rosas. O último. Não poderia se permitir sonhar com outro, nem deixar que Cal repetisse o gesto, ou colocariam em risco a continuidade de uma relação que sempre funcionara bem. Um ruído a fez espiar por uma fresta da cortina. Cal estava empurrando um cortador de grama. Longas faixas já haviam sido percorridas. O abrigo estava ficando um primor. Sem a camisa, a pele de Cal brilhava ao sol. Após uma semana ao ar livre, ele havia adquirido um tom bronzeado que realçava o contorno de seus músculos. Ele foi atraído por seu olhar como um imã. Ao perceber que poderia ser flagrada em contemplação, Madeline recuou um passo. Mas continuou observando-o depois de se certificar de que não havia perigo de ser vista. Cal parou sob sua janela, alguns minutos depois, desligou o cortador e se pôs a brincar com Duffy e Igg que reclamavam sua atenção. Madeline seguia, fascinada, cada um de seus gestos. O fôlego lhe faltou ao vêlo apanhar a mangueira e direcionar um jato de água fresca para o rosto e para os cabelos que ficaram ainda mais pretos e brilhantes, antes de banhar o resto do corpo. Os mamilos enrijeceram ao frio e a calça jeans adquiriu um tom azul-marinho. Cal estava exalando uma masculinidade potente que Madeline jamais notara antes. Ele parecia ter nascido para viver ao ar livre, para trabalhar com a terra. Não fechado em viaturas nem rotulado por uma farda. Exibia uma imagem que faria sucesso em qualquer revista. Parecia um modelo. O fato era que a partir daquele instante, ela teria não uma, mas duas imagens de Cal gravadas para sempre em sua memória. O cortador foi novamente ligado e Madeline se obrigou a deixar seu posto de observação. A distração a fez tropeçar na cama. Os lençóis encontrados no sótão haviam sido lavados. Dava até vontade de deitar. Seus travesseiros de pena de ganso, enfeitados com as fronhas debruadas em renda, completaram o resultado. A cama de dossel com todos aqueles acessórios lhe proporcionou intenso bem-estar. A sensação de ter conseguido finalmente o lar que nunca tivera. Projeto Revisoras
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Mas era preciso parar com os sonhos e colocar suas mãos à obra. Com o consentimento de Cal sobre a contratação de Jason, ela mal podia esperar para conversar com o garoto. E com o pai dele. Sabia que não poderia passar por cima de sua autoridade, principalmente depois da desavença que tiveram na tarde do sábado. Certa de que o momento mais apropriado para encontrar pai e filho em casa seria após a volta do menino da escola, Madeline se pôs a caminho. Apesar de tudo que ouvira e vira a respeito de Booth Cahill, não o temia. Não acreditava que o homem fosse tão violento quanto sofrido. Seu maior problema era a falta de controle sobre suas emoções. Com tato e boa vontade, apostava no sucesso de sua missão. Afinal, pretendia oferecer um trabalho de meio período que não atrapalharia os estudos de Jason e o ajudaria, inclusive, a desenvolver a responsabilidade em vez de se dedicar a atos de vandalismo. Assim, embora ainda tivesse muito a fazer para organizar sua nova casa e reabrir o abrigo de animais, ela estabeleceu como prioridade para aquele dia a reconciliação com Booth Cahill e, se possível, a promessa de que Jason seria sua primeira contratação. Ao chegar ao hall, Madeline notou que a porta do quarto de Cal estava aberta e não resistiu a dar uma espiada. Com uma quantidade bem menor de móveis do que seu quarto, ele havia conseguido deixar tudo na mais perfeita ordem. Até mesmo a cama estava arrumada. Por outro lado, ela não deveria estar tão admirada. Na noite anterior, Cal dera um passeio de moto pelos arredores, pela primeira vez desde que se mudaram, e acabara dormindo no sofá da sala, em frente da televisão e da lareira. Aliás, a imagem de Cal adormecido no sofá, que ela conseguira transformar em uma peça bonita e aconchegante com a colocação estratégica de almofadas coloridas, seria outra cena que ficaria gravada em sua memória. Lar. Aconchego. Um sorriso aflorou nos lábios dela ao entrar na cozinha e ver Duffy se levantar do chão de cerâmica para saudá-la. A casa estava ficando linda. O piso estava em bom estado de conservação assim como os armários em estilo country. Duffy e Igg haviam adorado a mudança e o presente de ganharem não apenas um, mas dois donos, tendo vindo órfãos das ruas. Duffy a procurava como se lhe pertencesse desde pequena e Igg tratava Cal da mesma forma. Encontrou-o ainda lidando com o cortador de grama quando saiu para a varanda. Pensou em apenas acenar para não interrompê-lo em seu trabalho, uma vez Projeto Revisoras
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que ele já sabia sobre seus planos de ir à casa dos vizinhos, quando a máquina sofreu um impacto. O ruído a fez interromper seus passos em direção à garagem e desviar para o meio do gramado. — O que foi isso? — Madeline perguntou. Ele se abaixou, pegou um tijolo e mostrou-o com raiva. — É o segundo que encontro. Resultado da visita ao consultório do Dr. Moore na tarde do sábado, com certeza. Madeline pestanejou. — Está me dizendo que Booth Cahill...? — Ou ele ou os filhos dele resolveram aprontar outra vez uma de suas traquinagens como fizeram com a lanterna na noite que chegamos. Porque não havia nenhum tijolo no gramado quando usei o cortador na semana passada. — Isso tem de acabar! — Madeline exclamou. — Espero que minha proposta represente uma trégua, um sinal de paz. Não consigo entender essa agressão gratuita a nós! — Então você continua determinada a procurá-los? — Cal franziu o rosto. — Tive um trabalho enorme para consertar o cortador e afiar suas lâminas. E para quê? — Prefere que continuemos em pé de guerra? Cal baixou a cabeça e introduziu os polegares no cós da calça molhada que aderia a cada saliência do corpo. Sem refletir, Madeline ficou encarando-o até obter a resposta que desejava. Enfim resignado, Cal suspirou e admitiu que ela estava certa. — Não devo demorar. Em todo caso, deixei a secretária eletrônica ligada. A sorte parecia estar ao lado de Madeline. Logo depois de pegar a estrada, ela avistou o ônibus escolar. Chegaria à fazenda vizinha junto com o menino e isso poderia facilitar sua aproximação. Até que o ônibus parasse e Jason descesse, Madeline já havia estacionado o carro em frente à entrada da casa. O garoto se surpreendeu ao vê-la. — O Dr. Moore ligou para mim. Senti muito por sua perda, Jason. Sei o quanto gostava de Goldie. — Um lampejo de dor passou pelos olhos do garoto antes que ele encolhesse os ombros. — Vim lhe dizer que pode vir à minha casa brincar com meus cachorros Projeto Revisoras
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sempre que quiser. Logo estaremos abrigando muitos mais e você poderá escolher um para criar. O menino continuou em silêncio, mas algo em sua atitude despertou uma suspeita em Madeline de que ele tinha conhecimento sobre a nova provocação por parte de seus familiares. Porque, de alguma maneira, Madeline tinha certeza de que o menino não havia tomado parte na agressão. — Estamos precisando de ajuda, Cal, meu parceiro, e eu. — Ela resolveu aproveitar a oportunidade para mencionar a proposta. — Se você quiser passar algumas horas conosco, colaborando em algumas tarefas, será bem-vindo. Não podemos lhe pagar muito, mas ao menos terá a chance de ganhar algum dinheiro só seu. O garoto parecia estar usando uma máscara. Ela não sabia o que pensar sobre qual seria sua reação. Surpreendeu-se ao vê-lo assentir e agradecer a oferta. Talvez tivesse conseguido até mesmo entabular uma conversa com ele se a picape preta, já conhecida sua, não passasse em velocidade diante deles, freasse bruscamente, e retornasse. Madeline não teve dúvida de que os dois jovens que saltaram eram irmãos de Jason e que não pareciam contentes em encontrá-lo em sua companhia. Jason pareceu dividido entre sua oferta de emprego e amizade e a opinião dos irmãos. Mas o bom senso prevaleceu. Ele se desculpou pela grosseria dos irmãos e prometeu que falaria com o pai sobre a oferta. Madeline se despediu, satisfeita. No momento, aquilo era o bastante. O primeiro passo fora dado. Como não havia um horário definido no abrigo para o início e o encerramento do expediente, Cal gostou de notar que o ritmo de trabalho havia diminuído, apesar de terem instalado nove cães nas dependências. Era o segundo fim de semana em Argonne e o progresso fora razoável. Não se lembrava de ter se deitado tão exausto em sua vida, nem de ter dormido tão bem. Nunca se sentira mais satisfeito. Nunca tivera tantos planos para o futuro. Ele havia comprado sementes para formar uma horta. Pretendia fazer uma surpresa a Madeline. Não queria que ela as visse antes de serem plantadas. Estava tirando o pacote do carro quando ela abriu a porta do escritório e saiu, acompanhada por Shirley Steinman e mais duas voluntárias. Os novos moradores do abrigo correram em direção a elas, liderados por Igg.
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Estavam se recuperando de maus-tratos e de abandono. Pareciam felizes. Eram todos muito dóceis. Cal sentia prazer e orgulho no trabalho que estavam desenvolvendo. Carregado com as provisões que comprara no supermercado, subiu os degraus da varanda e rumou para a cozinha. O toque feminino estava por toda parte. Madeline havia colocado laços de fita nos chapéus encontrados no sótão e feito uma decoração original. Uma das prateleiras da cozinha exibia a porcelana Spode encontrada no sótão. Madeline havia marcado cada ambiente com sua personalidade. Aquela casa havia se tornado quase um lar para eles. Seria um lar completo no momento que transformassem sua parceria de trabalho em parceria de vida. Porque Cal simplesmente não conseguia mais pensar em viver sem Madeline. Estava apaixonado. Mais do que isso. Descobrira que a amava durante aquele beijo que trocaram no sótão. Que a amava havia um longo tempo. Que não aceitara a proposta de Landsbury pelo emprego em si, nem pela mudança de ambiente que lhe proporcionaria. Mas pela chance que teria de enfrentar o problema que os mantinha apenas como parceiros e amigos. Em se tratando de relacionamentos íntimos, Madeline se fechava como uma concha. Não falava sobre seu passado em nenhuma hipótese. Por mais que ele a amasse e prezasse sua companhia, ela não lhe permitia uma aproximação emocional. O modo como reagira a seu beijo no último domingo era uma prova de que o considerava apenas um amigo. Era a primeira vez que ele se apaixonava de verdade e pretendia lutar por seu amor. As chances estavam a seu favor. Sabia que Madeline gostava dele e que se sentia atraída fisicamente. Faria tudo que estivesse ao seu alcance, portanto, para tirar vantagem dessa situação. Terminadas as tarefas do dia, Cal tomou um banho e vestiu uma calça jeans limpa, uma camiseta branca e um colete de couro preto. Por último se perfumou com uma colônia refrescante. Sabia que Madeline gostava quando se perfumava. Estava preparado para lutar com todas as suas armas. E onde melhor para iniciar um jogo de sedução do que na cozinha? Dividiam o serviço doméstico, em obediência ao esquema de listas que fora feito por ela. A bem dizer, nenhum dos dois cozinhava. Evitavam ficarem juntos nas horas de folga e raramente partilhavam suas refeições. Pois bem. Naquela noite, Madeline teria uma surpresa. Podia ser um noviço na arte culinária, mas não na arte do amor. Projeto Revisoras
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O sorriso que ela lhe deu ao entrar na cozinha foi uma indicação de que estava no caminho certo. — O que está fazendo? — perguntou, irresistivelmente curiosa. — Achei que seria agradável jantarmos juntos para comemorar nosso progresso. Liguei para a Sra. Cee e ela me deu algumas sugestões que me apressei a anotar. Já liguei o fogo e coloquei água na panela. Quando a água borbulhar, deverei colocar o macarrão para cozinhar com um pouco de sal. — Ah, então teremos espaguete! Adoro massas, você sabe. Posso ajudar? — Não esta noite. Quero apenas que relaxe e aproveite. Ele não usou de duplo sentido, mas suas palavras provocaram-lhe intenso rubor. Precisou virar de costas para que Madeline não percebesse o efeito causado. — Shirley Steinman está cuidando de nossa contabilidade — ela se apressou a mudar de assunto. — O dinheiro em caixa está baixo. Gastamos bastante com os reparos. Ela disse que o dinheiro não teria sido suficiente se você não fosse tão talentoso com serviços manuais e tivéssemos de recorrer a profissionais. — Você ainda não sabe a metade do que sou capaz! — Cal brincou. Madeline foi até a pia e se serviu de um copo d'água. — O mais incrível foi o donativo não identificado que recebemos. Alguém se ofereceu para custear as despesas com a contratação de Jason. A notícia deve ter se espalhado, evidentemente, e alguém deseja nos ajudar. Não é estranho? Maravilhoso, é claro, mas estranho. — Também acho — Cal concordou. — Mas o que me diz do aroma deste molho? — Cal abriu o vidro e colocou-o para esquentar. — A Sra. Cee me garantiu que é o melhor que poderia encontrar à venda no supermercado. Cal observou, satisfeito, o modo como Madeline olhava para a mesa que ele havia arrumado. Modéstia à parte, havia caprichado. Louça de porcelana pintada, velas decorativas que encontrara na sala e as rosas que sobraram do buquê que havia colhido. O ambiente exalava romance assim como as velas espalhavam um perfume de cravo. Ele percebeu que Madeline havia se emocionado com seu esforço em lhe agradar, pelo modo como se apressou a retomar a conversa. — Quero agradecer a atenção que deu a Jason esta manhã. Por ter lhe Projeto Revisoras
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ensinado o serviço e se oferecido para explicar qualquer dúvida que ele pudesse ter. Eu pretendia ir até o jardim para vê-lo, mas fiquei tão atribulada que não foi possível. — Será a única maneira de conferirmos se o garoto é capaz de dar cabo da tarefa. — O que você acha? — Ainda é cedo para saber. Mal responde quando lhe faço uma pergunta. — Ele ainda é um garoto, Cal, e acaba de perder seu animal de estimação. Sua família é mal vista na cidade. Precisamos lhe dar algum tempo. — Ele é um dos responsáveis, provavelmente, por jogar o farolete em seus olhos na noite em que nos mudamos, e os tijolos no gramado. — Não consigo acreditar nisso. Os irmãos, sim, não Jason. — E o pai dele? — Cal cogitou enquanto verificava o molho. — Não colocou nenhum empecilho para que Jason viesse trabalhar aqui quando eu perguntei. — Não a maltratou dessa vez? — Não. Madeline teve certeza de que não era sua imaginação e que Cal estava realmente se insinuando para ela quando roçou em suas costas ao se aproximar para despejar água gelada nos copos. Um arrepio a percorreu por inteiro. Sem saber como reagir, ela pegou seu copo e ergueu-o em um brinde. — Ao chef. Cal lhe deu um sorriso impregnado de charme masculino. Foi um alívio vê-lo se ocupar novamente com o fogão. Aquele não era o Cal que conhecia, era um homem determinado a fazer uma conquista. Ela havia deixado de ser simplesmente sua parceira e amiga em algum momento que não saberia definir. Por quê? Por que tão de repente? Não estava preparada. — Shirley, eu e as voluntárias estávamos conversando hoje sobre os novos rumos que pretendemos dar ao abrigo e... Cal, você está ouvindo?
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Ele se deteve por um instante, provou o molho e só então a fitou. — Sim, mas prefiro não falar sobre trabalho esta noite. — Sobre o que você quer falar? — perguntou surpresa, para se arrepender em seguida. — Talvez seja melhor você retirar a pergunta por que eu poderei lhe dizer exatamente o que estou pensando. Com o coração aos saltos, Madeline recuou. — Nós combinamos manter nosso relacionamento estritamente profissional, lembra-se? Cal não respondeu, mas seus olhos azuis o fizeram. Ele deu um passo e mais outro em sua direção e apoiou as mãos em seus ombros. — Você disse que não queria que nos beijássemos, mas nós dois sabemos que isso é mentira. Tenho visto o modo como você olha para mim e adorado esses momentos. Madeline queria retrucar, mas tudo que dissesse seria realmente uma mentira. — Tem algo queimando... — Sou eu. Por você. — Não! É a panela no fogão! Enquanto Cal tentava salvar o jantar, Madeline aproveitou para se afastar da cozinha. Estava entrando em seu quarto quando o ouviu dizer em alto e bom som que a conversa ainda não havia terminado!
Capítulo IV — Ei! Essas fotos são da velha Maud! — disse Jason ao espiar dentro de uma caixa de papelão que Madeline levara para a cozinha. — Sim. Você a conheceu? O menino estava segurando um filhote branco-e-preto no colo para ajudar
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Madeline a ministrar a medicação. — Não muito bem. — Soube que seu pai e ela brigaram. — É verdade, mas quando eu era pequeno minha mãe me trouxe aqui algumas vezes. A curiosidade a impeliu a se estender em perguntas, mas ela se conteve. O assunto era delicado e não pretendia trazer à tona lembranças dolorosas para seu protegido. Não acreditava, porém, que fosse lhe causar algum dano se tentasse descobrir mais sobre uma personagem que lhe exercia um grande fascínio: a velha Maud. Afinal, estava vivendo com Cal na casa que lhe pertencera, assumiram o trabalho que ela desenvolvera, comiam nos pratos que ela comera, dormiam, inclusive, nos lençóis que forravam sua antiga e preciosa cama de dossel. — Minha mãe costumava dizer — Jason prosseguiu, espontâneo — que Maud tinha mais jeito com os cachorros do que com as pessoas. Minha mãe gostava dela, mas eu a achava mandona demais. Madeline não conteve uma pequena risada. Jason era um menino um tanto arredio, mas de boa índole. Afeiçoara-se a ele desde o primeiro momento. — Você fez um ótimo trabalho com esse filhote. Eu diria que foi seu carinho e desvelo que o curou. Fiquei contente que seu pai tivesse lhe dado permissão para passar a noite de ontem aqui. Sua ajuda foi valiosa. Fiquei mais contente ainda quando ele aceitou que você o adotasse assim que o veterinário lhe der alta. Você o merece mais do que qualquer pessoa. Os olhos de Jason pousaram na mãe do cachorrinho deitada em um cesto perto da porta. — E ela? Você acha que Luly conseguirá se recuperar? Um longo silêncio se seguiu à pergunta. A Sociedade Protetora dos Animais havia fechado um canil em outra cidade no dia anterior por denúncia de maus-tratos, e distribuíra todos os cães ali abrigados por abrigos próximos. Cal e Madeline aceitaram todos que suas acomodações permitiam. Luly e seu filhote, Winner, da raça Lhasa Apso, foram os que chegaram em piores condições de saúde, por isso estavam recebendo cuidados intensivos.
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Jason se encantara com os animais e não quisera sair mais do lado deles. Por sorte Booth Cahill não proibira o filho de passar a noite no abrigo, mais exatamente na cozinha da casa, desde que o filho não faltasse às aulas pela manhã. Madeline arrumou uma cama para ele no quarto de hóspedes, mas em vista da insistência do garoto de ficar com Luly e Winner, ela concordou em levar o colchão para a cozinha. Pela manhã, Jason obedeceu à ordem de ir para a escola, mas nada o faria voltar para casa antes de verificar as condições dos cachorrinhos. Madeline viu quando o motorista do ônibus parou em frente ao abrigo e Jason desceu. Faltavam agora quinze minutos para as dez. Não era de se admirar que estivessem tão exaustos. — É tarde. Preciso levá-lo para casa. Prometemos a seu pai que você dormiria em casa esta noite e que eu o levaria às dez horas o mais tardar. Não vamos quebrar nossa promessa e correr o risco de aborrecê-lo, não é? Seu pai foi legal em permitir que você viesse trabalhar aqui. E deixou que você adotasse Winner. — Está bem. Você tem razão. Mas acha que consegue cuidar deles sozinha? Que acordará na hora de lhe dar o remédio? — Colocarei o relógio para despertar. O motivo da pressa de Madeline era verdadeiro, mas não era o único. Nas últimas noites, Cal dera para sair de moto e sempre retornava por volta das onze horas. Queria estar deitada, de pijama, segura em seu quarto, antes que ele chegasse. Não se permitira mais nenhum momento a sós com ele. Conhecia-o bem. Cal não era do tipo que desistia com facilidade quando se propunha a uma conquista. E como qualquer intimidade entre eles seria inaceitável, só restavam duas escolhas: ou cumpriam o trato original, ou um deles teria de ir embora. A moto já estava na garagem quando ela chegou em casa. Tentou aparentar calma e serenidade ao encontrá-lo na cozinha segurando Winner no colo diante do vaporizador. — Achei que poderia gostar de uma ajuda. Deve estar exausta. — Eu agradeço. Foi um dia realmente duro. — Admitiu enquanto se sentava no chão e acariciava Luly em seu cesto. Na noite anterior, Cal também havia se oferecido para colaborar em suas tarefas, mas ela o dispensou. Jason tivera permissão para passar a noite no abrigo e ela não queria constrangê-lo. O garoto ainda mal respondia quando Cal lhe falava. Projeto Revisoras
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Winner estava se recuperando a olhos vistos. Cal era habilidoso. Conquistara a confiança do filhote em instantes. Certamente conquistaria a amizade de Jason também. Ela não teria aceitado aquele emprego sem o apoio dele. Cal era um homem forte e gentil. Gostava de se fazer útil. Admirava-o cada dia mais. Mais de uma vez, surpreendera-se pensando naquelas mãos em seu corpo e se obrigava a afugentar imediatamente as imagens. — Se você não se importa, vou subir e me deitar — Madeline murmurou. — Será difícil pegar no sono com esse cheiro espalhado pela casa — Cal disse enquanto enrolava o filhote em uma toalha e o levava para junto da mãe. Madeline havia se afeiçoado aos dois. Ainda não havia conversado com Cal a esse respeito, mas não pretendia levá-los para o canil, mesmo depois que os animaizinhos se restabelecessem. — Estou muito cansada, Cal. — Eu também estou cansado. Vamos esperar na varanda ao menos alguns minutos para que o cheiro do remédio possa ao menos diminuir. Madeline não teve coragem para negar. Cal estava com olheiras. O modo como a fitava era significativo. Traduzia certa mágoa. Ele nunca havia se comportado, afinal, de modo a despertar sua desconfiança. A caminho da varanda, Madeline parou na sala por alguns instantes para brincar com Duffy e com Igg. Cal havia colocado uma grade na porta da cozinha para impedir que entrassem e se aproximassem dos outros cachorros. O céu parecia um manto de veludo. Ela não se lembrava de ter visto noites tão lindas e estreladas antes. As noites no campo eram magníficas. Cal apagou a luz ao notar que ela estava olhando para o alto. A luminosidade não diminuiu. Apenas tornou-se prateada pelo luar. Madeline fechou os olhos e respirou o ar morno daquele início de verão. No pátio, um carvalho secular estendia seus galhos sobre o escritório e sobre a garagem, como se quisesse protegê-los. Uma sensação de paz a invadiu e a fez sorrir. Percebeu a aproximação de Cal por trás e ouviu-o se acomodar em uma das cadeiras de vime e dar um suspiro. Algo estranho aconteceu naquele momento. Ela precisou se conter para não se sentar ao lado dele e deitar a cabeça em seu ombro.
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— Você acredita em vida após a morte? — perguntou, subitamente emocionada. — Você acredita que Maud pode estar por aqui, preocupada com a continuidade de seu trabalho? Cal demorou a responder. Seu olhar se perdeu na paisagem que fizera parte integrante da vida da antiga proprietária e que agora se descortinava perante ele e Madeline. — Eu não havia pensado nesses termos, mas entendo o que você está dizendo. Nós incorporamos a vida dela a nossa vida. É justo que lhe dediquemos nossa gratidão. — Ela deve ter amado muito este lugar. — Como nós também já aprendemos a amá-lo. Chegamos aqui como ela e sua família, um longo tempo atrás, e estamos construindo uma nova vida para nós e para outros que virão. Era a primeira vez que conversavam com profundidade desde que chegaram. Cal sentiu renovarem-se as esperanças. Madeline estava mais perto dele do que jamais estivera. Sua tática de conquista fora um fracasso na noite do jantar. Ensinou-o a não continuar por essa linha. Por mais que desejasse tomá-la nos braços e beijá-la até lhe tirar o fôlego, sabia que esse procedimento só os afastaria em vez de aproximá-los. Seu coração lhe dizia que Madeline correspondia a seus sentimentos. Ela apenas não sabia. Ainda. E até que chegasse o dia dessa revelação, ele pretendia valorizar cada minuto que pudesse ficar ao lado dela, para uma simples conversa ou para partilharem de um completo silêncio... O assunto da conversa não era relevante. Poderiam continuar falando sobre Maud, ou de qualquer outra coisa. Sobre as petúnias cor-de-rosa que caíam em cascatas nas colunas que sustentavam o telhado da varanda, ou sobre os animais que estavam sendo encaminhados para eles. — Você viu as fotos naquela caixa que levei para a cozinha? — Não. Por quê? — São de Maud e de seus familiares. Também encontrei alguns recortes de jornal, cinco cartões-postais e uma carta. Todos foram enviados por um homem chamado Virgil Ruston no período de 1965 a 1982. — Conseguiu identificá-lo?
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— Não. Mas descobri, pelo recorte de jornal, que Maud estava com quarenta anos e era solteira quando resolveu criar em sua propriedade um abrigo para animais abandonados. — Acha que eles tiveram um romance? — Mais do que isso. Acho que Virgil a amava. Pedia para que ela o aceitasse de volta em cada cartão-postal que lhe enviou. — O que diz a carta? — Eu não li. De repente me senti uma intrusa. A carta nunca foi aberta. Maud não chegou a tomar conhecimento de seu conteúdo. Cal percebeu que o interesse de Madeline por Maud poderia se tornar um elo a mais entre eles e decidiu prolongar a conversa. — Você já perguntou ao velho Titch se ele sabe algo sobre essa carta? — Não tinha pensado nisso. De qualquer maneira, ele só veio trabalhar aqui depois que o outro se foi. Talvez Maud o tenha contratado para substituir Virgil, inclusive. O silêncio que se seguiu alertou Cal para a hipótese de sua parceira estar se envolvendo em demasia com uma situação mal resolvida no passado. Ele não poderia imaginar que a própria Madeline estivesse se obrigando a colocar um freio em suas emoções porque estava se identificando com a antiga proprietária do abrigo e isso não lhe parecia saudável. — Está com frio? Madeline olhou para Cal como se tivesse acordado de um sonho. Não havia percebido que cruzara os braços. Soltou-os imediatamente ao longo do corpo e forçou um sorriso. — Claro que não. Está fazendo calor. — Mas você estremeceu. Ela tentou resistir ao abraço de Cal, mas este não se deixou intimidar. Procurou se entregar à sensação de paz e de segurança que ele lhe proporcionava. Mas os segundos foram passando e o calor do corpo de Cal junto ao dela começou a lhe provocar sensações que não queria admitir. Tentou se desvencilhar, mas não resistiu ao pedido sussurrado em seu ouvido.
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— Fique mais um pouco comigo. Não se afaste. Você está trêmula. — Já passou. Estou bem agora. A verdade era que estava se sentindo no paraíso. Conseguira se entregar por alguns instantes ao doce acalento daqueles braços fortes. Chegara até mesmo a deitar a cabeça no ombro de Cal. Mas o calor que sentiu ao contato com o corpo dele de repente a assustou. Mais ainda ao pedido inesperado que ele lhe fez. — Posso lhe dar um beijo? — Você prometeu que isso não tornaria a acontecer. — Sim, e não pretendo quebrar minha promessa. Tivemos uma experiência que não deu certo. Por isso, agora estou lhe pedindo permissão para fazermos outro teste. Madeline encarou-o. Cal parecia sério, mas havia um brilho de humor no fundo de seus olhos. Isso a fez relaxar. Ele estava lhe propondo uma espécie de jogo. Talvez tivesse lido sua mente e descoberto que ela também queria aquele beijo. Como se considerasse seu silêncio um sinal de consentimento, Cal pousou suavemente os lábios nos dela. Insegura sobre a prudência daquele gesto, aceitou o beijo, mas não o retribuiu. Talvez devesse tê-lo recusado, mas a verdade era que não conseguiu negar o que desejava tanto quanto ele. Sua determinação, contudo, limitou-se ao segundo beijo. Seus braços envolveram Cal pelo pescoço e após o terceiro beijo, ela deixou de contar. Foram muitos. Alguns suaves e delicados, doces como mel, outros sensuais e ardentes como pimenta. Enquanto os lábios provavam seu sabor, as mãos de Cal experimentavam a textura e a temperatura de sua pele. Sem forçá-la, sem intimidá-la. Ao menos era o que Cal estava pensando quando foi firmemente afastado. Madeline estava sem fôlego. A sensação que lhe deu foi que seu corpo começara a flutuar e ela percebeu que era preciso voltar à realidade antes que fizesse algo de que poderia se arrepender depois. — Acho que passamos no teste e podemos passar para a etapa seguinte! Cal pestanejou. Teria ganhado a sorte grande? Jamais poderia supor que Madeline fosse retribuir seus beijos com tanta paixão e ainda brincar com ele sobre a experiência. Projeto Revisoras
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— Etapa seguinte? — Sim. Poderíamos marcar um encontro. — Um encontro? — repetiu, incapaz de acreditar em seus ouvidos. — Sim. Roupas bonitas, visual caprichado, um lugar que não seja este abrigo. — Sou a favor! — Cal respondeu, entusiasmado. — Alguma sugestão sobre o programa? — Bob e Nancy estarão se casando no sábado. Sei que dissemos que não teríamos condições de comparecer, mas acho que tudo está correndo bem por aqui e que poderemos dar um jeito de assistir à cerimônia. Seremos alvo de comentários em todo o meio policial, mas isso não será novidade para nós. — Combinado. Sábado. Casamento de Bob e Nancy.
Desde que acordara, naquele sábado, Madeline não conseguia pensar em nada que não fosse no enorme erro que cometera. A carta que Virgil Ruston escrevera a Maud no ano de 1965 não lhe saia da mente. Estava pronta para ir ao casamento de Bob e Nancy. Seu reflexo no espelho lhe dizia que estava elegante, mas não conseguia se convencer disso. Estava tensa e inquieta. Desceu para a sala e se sentou em frente da lareira à espera de Cal. O presente estava em cima da mesa da cozinha. Dava para ouvir Cal assobiando no quarto enquanto terminava de se vestir, mas em vez de se deixar contagiar por sua alegria, sentiu a ansiedade aumentar. Fazia cerca de uma hora que finalmente encontrara coragem para abrir o envelope e ler a carta. Virgil, em linguagem simples, declarara seu amor a Maud em uma época em que viver em companhia de uma mulher, sem que fossem casados, provocava rumores maldosos. Ainda mais em uma cidade pequena como Argonne. Ele a pediu em casamento com eloqüência. Confessou que nunca alcançaria a felicidade a não ser ao lado dela. O coração de Madeline chorou pelo casal nunca ter encontrado a felicidade sonhada. Ela entendia Maud. Também tinha medo de se entregar ao amor. Também receava pelo fracasso de sua relação com Cal. Ele era um homem bonito, inteligente, e bem-sucedido. Homens como Cal e como Virgil Ruston eram bons demais para Projeto Revisoras
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mulheres problemáticas como ela e Maud. Arriscara demais ao concordar com o teste proposto por Cal e sugerir uma segunda experiência. Se realmente queria preservar sua parceria, e se já não fosse demasiado tarde para tentar conservar sua amizade, deveria colocar um basta naquela história. Imediatamente. Estava cansada e vulnerável na noite da quinta-feira quando Cal insistira que saíssem para a varanda. Ele não fazia segredo de que estava atraído por ela, mas nunca dissera que a amava. Ela não suportaria perdê-lo. Paixão acaba. Só o amor pode durar. Não podia se entregar a fantasias e ilusões. Era bom demais para ser verdade. Não suportaria dar adeus à felicidade depois de conhecer seu doce sabor. Preferia não ter para não perder. Ela o ouviu descer a escada e se preparou para falar sobre a conclusão a que havia chegado. Levantou-se. Cal se abaixou para brincar com os cachorros. Ao dar pela presença dela, um sorriso radiante se estampou em seu rosto. — Madeline! Acho que é a primeira vez que a vejo de vestido. E de salto alto. Você está linda! Absolutamente fantástica! — Cal, eu... Ele ergueu o queixo e ajeitou a gravata. Prosseguiu como se não a tivesse escutado. — Agora diga o que achou de mim. De calça social e paletó esporte de verão, Cal estava magnífico. Deixara o cabelo crescer e fizera um corte moderno. Não usava mais aquele corte curto que fazia parte da figura de um policial. Com uma postura deliciosamente arrogante, ele começou a andar em sua direção. Após os beijos que trocaram na varanda, Cal voltara a se comportar apenas como um amigo. Até aquele instante. Se fosse sincera consigo mesma, admitiria que ele não dera nenhum motivo para que o censurasse. Estavam tendo um encontro, não estavam? Emoções contraditórias se apoderaram de Madeline. Não sabia mais o que dizer nem o que fazer. Sabia, porém, que Cal estava caminhando em sua direção e lia em seus olhos o propósito de beijá-la.
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Voltou a si a tempo de impedi-lo. Cal não esperava por essa atitude. A surpresa ficou estampada em sua expressão. — Marcamos um encontro, lembra-se? Não há nenhum mal em nos cumprimentarmos com um beijinho. Madeline tentou explicar, mas ele a interrompeu. — Se está pensando que irei agarrá-la assim que voltarmos e que a obrigarei a fazer amor comigo está enganada. — Não estou pensando em nada disso. Ele parou e franziu o rosto. — Não? Em que, então, você está pensando? — Não se trata do que estou pensando, mas daquilo que eu sei. Nós nos comprometemos a assumir este trabalho em base puramente profissional. — Mas nós podemos... — Não me interrompa Cal. Você precisa aprender a ouvir. — Está bem. Estou ouvindo. Madeline se afastou em direção à cozinha. Precisava colocar uma distância entre eles. Cal estava irresistível com aquela roupa, com aquele perfume. Ele era tudo o que ela queria e que não podia ter. Precisava ser forte pelos dois. — Para que este projeto funcione, precisamos nos ater à promessa que fizemos um ao outro. Não acho que seja bom avançarmos no campo da amizade. Não por enquanto, ao menos. Precisamos manter a cabeça fria e nos dedicar à tarefa que aceitamos fazer. Assinamos um contrato de seis meses. Não quero arriscar nada até que esse período se cumpra. — Beijos e encontros não constam nas listas. Madeline se deteve diante do tom sarcástico da observação. — O fato de eu ser organizada não tem nada a ver com isso. — Você me beijou tanto quanto eu a beijei aquela noite na varanda e não nos dedicamos menos ao nosso trabalho por causa disso. A frustração impregnava as palavras de Cal. Madeline se obrigou a manter a Projeto Revisoras
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calma. — Não nego que o beijei. Apenas acho que não devemos continuar nessa linha. — Você não pode imaginar como me senti ao abraçá-la e não poder tê-la. Não pode fazer idéia de como se sente um homem celibatário. — Claro que posso. Também sou celibatária. — A diferença é que você gosta disso e eu não. — Não disse que gosto. — Tampouco reagiu como se gostasse — Cal argumentou e se calou em seguida. Quando tornou a falar, parecia cansado. — Eu poderia tê-la levado para a cama naquela noite. Você sabe disso. — Sim, eu sei. — Mas não faz a menor idéia do que eu sinto quando sonho com você naquela cama de dossel. Saio de moto todas as noites na tentativa de me distrair porque estou louco por você. Lamento que não tenha acontecido. Sabe por quê? Porque teríamos conhecido o paraíso e voltado para lá ontem, e esta conversa não estaria acontecendo. Porque estaríamos felizes. A verdade atingiu Madeline como um raio. — É aí que você se engana, Cal. Nós não estaríamos felizes. A declaração foi tão inesperada que o deixou sem ação. — De que você está falando? Eu estaria superfeliz. E você também, se tivesse a coragem de assumir seus sentimentos. O telefone tocou. Cal passou uma das mãos pelos cabelos e pediu que ela atendesse enquanto tentava raciocinar. O serviço de assistência funcionava vinte e quatro horas por dia. Eles precisavam estar preparados para qualquer emergência. Estavam denunciando um caso de maus-tratos. Cal se prontificou a recolher o animal, um cão dinamarquês. — Não me espere. Pegue o carro e leve nossos votos de felicidade aos noivos. Prometo ir o mais rápido que puder. Diga a Bob e Nancy que guardem uma fatia de bolo e uma taça de champanhe para mim. Faço questão de abraçá-los, mesmo que tenha de chegar atrasado. Projeto Revisoras
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Cal se afastou sem olhar para trás. Estava zangado e ela não o culpava por isso. Mas teria desistido da conquista? Ela esperava que sim. E que não.
O calor estava forte para um início de verão. Cal tirou a camiseta para enxugar o suor do rosto. Ele e Jason estavam fazendo um trabalho pesado, mas compensador. Não tinha motivo para se queixar do garoto. Ao contrário. Sem sua ajuda, não teria conseguido um resultado tão bom e tão rápido com os canteiros de rosas. Agora estavam providenciando a remoção da velha bomba e das pedras que entupiam o poço abandonado. Se durante o dia as atribulações mantinham sua mente ocupada, à noite ele não conseguia parar de pensar no que Madeline lhe dissera no último sábado e no modo como se comportara durante a recepção. Depois de salvar o cão e trazê-lo para o abrigo, ele a havia encontrado no restaurante onde Bob e Nancy estavam recebendo os convidados. Madeline o tratara como se fosse um desconhecido. Mal trocaram duas palavras. Quanto mais refletia sobre sua abordagem, mais Cal se convencia de que fizera tudo errado. Não era um bom ouvinte, principalmente quando discordava da opinião do outro, mas de tanto refletir, acabara conseguindo entender o ponto de vista de Madeline. Ela gostava dele, mas tinha medo de admitir esse sentimento. A insegurança a fazia se ater ao que era concreto: a parceria e a amizade. Para ele, isso não bastava. Não lhe restava escolha, portanto, a não ser esperar e descobrir a razão desse medo. Não seria uma tarefa fácil. Madeline era teimosa. Seria capaz de desistir dele a lhe dar uma chance. Seu pensamento deveria tê-la atraído. Viu-a passar pelo portão com uma jarra e dois copos e se apressou a vestir novamente a camiseta. Não tiraria vantagem da atração que lhe despertava. Não ainda. Teria paciência. Tudo deveria acontecer no momento certo. Estava linda de chapéu de palha. Enquanto servia a limonada e conversava com Jason, ele aproveitou para admirá-la. O sol conseguia atravessar os fios da palha e iluminar sua pele. A verdade era que Madeline lhe parecia mais bonita a cada dia que passava. — Como vai o jardim? — ela perguntou. Projeto Revisoras
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— Bem. Jason tem me ajudado muito. A próxima etapa será consertar os muros. Quando o outono chegar, as roseiras estarão prontas para florescer. — Então está tudo sob controle. Ele fez que sim com a cabeça e mudou o rumo da conversa. — Muitas ligações? — O suficiente para manter ocupadas todas as voluntárias. — Madeline deu um sorriso. — Obrigada por sua sugestão de procurarmos as antigas colaboradoras e conversar pessoalmente com elas. Nós sabemos o quanto é importante o trabalho voluntário em instituições voltadas para a caridade. Sem a ajuda delas, eu não teria conseguido realizar nem sequer um décimo do que tenho feito. Madeline parecia uma estranha. De repente estava tratando-o com cordialidade profissional. Seria possível que ele a tivesse perdido? Sem saber por quê? — Parece que Jason já trabalhou o bastante por hoje aqui no jardim. Você se importa que eu o leve comigo para a cozinha para ver com seus próprios olhos como Winner e Luly melhoraram? — O menino merece um pouco de descanso. Pode levá-lo. Assim que recebeu a dispensa, Jason se afastou para apanhar sua mochila. Cal aproveitou e tirou uma chave do bolso da calça. — Entregue a ele. E uma cópia da chave do portão. Quero que Jason tenha liberdade para entrar e sair do jardim sempre que precisar, e que se sinta responsável por este lugar. O brilho no olhar de Madeline foi a melhor recompensa que Cal poderia esperar. Ainda não podia ter seus beijos, mas alegrava-se com toda e qualquer manifestação de carinho que ela pudesse lhe dar. Sabia que era apenas uma questão de tempo. Madeline olhava ao redor. Não parecia ter pressa de se afastar como das outras vezes. — O que pretende fazer mais tarde? — Uma inspeção pela propriedade. Titch me alertou sobre placas espalhadas por aí, proibindo a entrada. Não combinam mais com nossa política de boa vizinhança e quero retirá-las o quanto antes. Projeto Revisoras
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— Eu os tenho visto em animadas conversas. Como conseguiu essa proeza? — O velho homem conhece bem este lugar. — Mais ainda sobre tabaco — Madeline caçoou. — Sempre que o encontro, está mascando fumo. Cal sorriu diante da retomada da antiga camaradagem. — Segundo ele, o tabaco é um ótimo fertilizante e repelente de insetos. — Eu acredito. O mato ficou tão vigoroso que o cortador de grama vive ligado e não foram apenas os insetos que se afastaram daqui. Os dois riram, mas o desconforto continuava presente. — Os cartazes de boas-vindas ficaram prontos. Shirley disse que a data que marcamos para a reabertura oficial do abrigo coincidirá com o dia da fundação da cidade. O clima, portanto, será de uma grande festa. Madeline notou que Jason a esperava e se despediu de Cal. Entregou-lhe a chave assim que o alcançou. Não esperava que o garoto fosse se mostrar tão radiante com a prova de confiança. Ele guardou a chave como se guardasse um tesouro. Sorriu para ela e olhou com gratidão para Cal. Madeline sentiu ímpetos de abraçá-lo ao encontro do peito. Luly se encolheu ao vê-los entrarem na cozinha. — Ela ainda não entendeu que nós somos amigos — Jason lamentou. — Dê-lhe tempo — Madeline tranqüilizou-o — Foi maltratada e desconfia de todos os humanos. Fale baixinho e explique que gosta de seu filhote e também dela. Os cães talvez não entendam nossas palavras, mas conseguem captar nossa intenção pelo tom de voz. Na sala, separados pela grade, Duffy e Igg latiam e saltavam, reclamando atenção. — Até parece que eu fui para o Pólo Norte! Eu não saí do abrigo, seus tolinhos! — Madeline caçoou. — Veja! — Jason exclamou, orgulhoso. — Já consegui pegar o filhote sem que ela tentasse me impedir. — Alguns minutos depois, contudo, a alegria parecia ter sido substituída por uma profunda tristeza. — Madeline, você acha que Goldie ficará triste se eu gostar de Winner?
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— De modo algum — respondeu com convicção. — Foi Goldie que te ensinou a gostar dos animais. Não era a primeira vez que Madeline reconhecia a boa índole de Jason. Seu comportamento era decente, embora reservado. Ela não conseguia acreditar que o pai fosse mau como diziam pela cidade. Tratara-a com respeito ao telefone tanto ao falarem sobre a oferta de emprego quanto sobre a adoção de Winner. — Como estão os outros cães que foram trazidos para cá junto com Luly e seu filhote? — Jason perguntou, interrompendo o fluxo de seus pensamentos. — Não poderiam estar em melhores mãos — Madeline garantiu. — Nossos voluntários estão cuidando bem deles. Quase todos foram levados para suas próprias casas. Ocorreu a Madeline que o menino estava se afeiçoando a ela tanto quanto ela a ele. Era uma prova de que estava certa. De que sua nova vida prometia mudanças positivas. — O que acontece com as pessoas para que sintam prazer em fazer maldades? Não só a pergunta, mas a atitude de Jason demonstrava que ela não se enganara sobre sua índole. — O problema é complexo, mas basicamente eu acho que as pessoas erram por não conseguirem enxergar nem entender o modo correto de fazer as coisas. Não percebem como é bom gostar. Não só de outras pessoas e dos animais, mas de si mesmas. Se todos fizessem aos outros somente aquilo que desejariam que os outros fizessem com elas, ninguém cometeria atos de violência. Madeline percebeu que o questionamento de Jason alcançava raízes mais profundas. O menino havia se transportado até sua própria casa e sua própria família. Parecia estar ensaiando uma nova pergunta quando Cal se reuniu a eles com expressão alarmada. — O que houve? — Madeline perguntou, atônita. — Mais problemas. Estão usando um local às margens do córrego para a prática de tiro ao alvo. Encontrei latas, garrafas e cacos de vidro em grande quantidade. Não sei há quanto tempo isso vem acontecendo, mas precisa acabar. Vou avisar imediatamente o xerife. O súbito rubor de Jason não passou despercebido. Nem sua súbita pressa em
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devolver o filhote ao cesto. Cal, o policial, estava de volta. Os instintos de Madeline diziam que ele estava certo. Os dois se entreolharam à saída brusca do menino, sem dizer nada. Naquela tarde de sábado, o xerife e dois de seus assistentes foram ao limite da propriedade para investigar a denúncia. Encontraram marcas de tiros em toda a área e muitos cartuchos disparados por rifles de caça. A conclusão foi que pouco poderia ser feito sobre o estrago. A partir daquele momento, contudo, a vigilância cuidaria para que o abuso fosse descontinuado. Desnecessário dizer que até o nascer do domingo, toda a cidade estava a par do ocorrido e que ninguém tinha dúvidas dos autores do incidente. — Você também acha que foram os Cahill? — Madeline perguntou a Cal. — Todos sabem que foram eles. Não posso afirmar que o pai também tenha participado, mas seu interesse por armas é de conhecimento geral. Porém, como não há testemunhas, ninguém tem provas. — Exatamente. Sem uma testemunha ocular, ninguém pode ter certeza de que foram eles — Madeline declarou, tácita. — Entendo que queira defender Jason — Cal observou. — Também me recuso a acreditar que o menino tenha participado de mais esse ato de vandalismo. Mas sua atitude sugere que ele está a par do acontecimento. Isso você não pode negar. — Ou talvez tenha se ressentido pela certeza de que sua família seria acusada mais uma vez de um delito. — Concordo com você a respeito de Jason. Eu também me levantaria para defendê-lo, se preciso. Mas você tem de admitir que o comportamento daqueles jovens e também do pai deles é irresponsável e perigoso. Você mesma viu como dirigem pela estrada e pelas ruas da cidade. E não é segredo para ninguém que possuem armas de fogo. As queixas se repetem. Que espécie de educação você acha que Booth Cahill pode dar aos filhos, se é visto todas as tardes bebendo no bar? — Isso não significa... — Não significa o quê, Madeline? Ela achou melhor calar o protesto. Sentiu-se como uma dissidente. E a troco de quê? Ela, como qualquer um naquela cidade sabia que o que Cal acabara de dizer era verdade. Os tiros talvez não tivessem sido disparados nas últimas semanas, mas se Projeto Revisoras
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repetiram ao longo de dois anos, durante o período de contenda entre Booth Cahill e Maud McGovern. — Esqueça o que eu disse, está bem? — Madeline apanhou a bolsa na mesa da cozinha e se encaminhou para a porta. — Tenho alguns assuntos para resolver na cidade e só devo voltar tarde da noite. Cal não perguntou a razão de tanta demora, mas a curiosidade ficou estampada em seus olhos. E como não havia motivos para segredo nem para se zangar realmente com Cal, Madeline contou que estava com saudade da Sra. Cee e que aceitara seu convite para jantarem juntas. Cal relaxou visivelmente. Deu até mesmo um sorriso de alívio. — Temos trabalhado demais. Estava na hora de darmos uma chance de distração a nós mesmos. Reno também me chamou para jogarmos uma partida de sinuca e eu acho que vou aproveitar a deixa. Despediram-se como nos tempos em que eram parceiros na polícia. Seria um bom ou um mau sinal? Madeline não voltou muito tarde, mas já estava completamente escuro. Estava se aproximando do abrigo quando percebeu que algo estava errado. Duas viaturas policiais estavam estacionadas na frente da casa com as luzes piscando. Ela sentiu um baque no peito. O cenário bucólico e tranqüilo agora parecia palco de um filme de suspense. Por mais que sua carreira pregressa a tivesse colocado em situações desse tipo, nada a preparara para o impacto daquela ocorrência. O xerife e seus assistentes estavam de volta à propriedade para procederem a mais uma investigação. Cal já havia chegado, felizmente. Ela o viu falando com Titch. O caminho de cascalho brilhava ao luar e refletia o vermelho e o azul disparados pelos flashes do teto das viaturas. Parecia um tapete de cacos de vidro. Madeline sentiu um arrepio de horror percorrer suas costas. Parou de respirar ao se dar conta da extensão do estrago. Faixas vermelhas feitas com spray de tinta cobriam as paredes até o teto do escritório, do depósito e do celeiro. E também da casa e da varanda que acabavam de ser lavadas e pintadas de branco. Apesar de sua experiência com casos desse gênero, Madeline permaneceu dentro do carro. As forças lhe faltaram. Uma nova onda de pessimismo a inundou. Não adiantava mentir a si mesma. Sua felicidade nunca durava. Estava sendo bom demais para ser verdade. Projeto Revisoras
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— Madeline? Ela voltou a si ao chamado. Cal a encarava com preocupação. E tristeza. Ele era tão vítima da situação quanto ela. Deveria estar estranhando seu comportamento, mantendo-se afastada, em vez de lhe oferecer apoio. — Ao menos os estragos foram apenas materiais — tentou consolá-la. — Não entraram na casa e não se aproximaram do canil. Todos os cães estão bem. Madeline cruzou os braços e balançou a cabeça como se isso a ajudasse a raciocinar com clareza. — O que aconteceu? — Não sei. Eu não estava aqui. Os invasores, nossos conhecidos, já tinham ido embora quando cheguei. O xerife e seus assistentes se despediram. Titch chamou Boné para voltarem para a cabana. O fiel cão o acompanhava aonde quer que ele fosse, a hora que fosse. Finalmente a sós com Cal, ela se armou de coragem para examinar a casa. Não pôde evitar as lágrimas. — Mais uma vez ninguém viu nada? — perguntou com um fio de voz. — Não, mas o xerife prometeu que a investigação será feita com rigor. Fizeram um boletim de ocorrência. Madeline baixou a cabeça. — A retaliação não tardou — disse Cal, com voz cansada e desiludida. — Se eu tivesse adivinhado que isso poderia acontecer, não teria aceitado o convite de Reno para sair. — Imagine o que Booth Cahill deve ter ouvido sobre seus filhos quando esteve no bar. — Os rumores devem ter se espalhado pela cidade inteira a essa altura — Cal admitiu. — Mas diante dos antecedentes da família, o que mais se poderia pensar exceto que os responsáveis são os filhos dele? — Cal encolheu os ombros. — As pessoas falam. Isso acontece em todos os lugares do planeta, entre todas as raças e camadas sociais. Madeline percebeu que seria uma perda de tempo tentar discutir o problema. E de energia. Estava cansada demais para expor mais uma vez seu ponto de vista
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sobre a família vizinha. — Teremos de adiar a reabertura do abrigo. Quanto menos pessoas souberem que a rixa com os Cahill não cessou com a morte de Maud, mais fácil será resolvermos essa pendência. — Não vejo outra saída — Cal retrucou. O olhar de Madeline acompanhou cada traço vermelho que riscava as paredes e as vidraças. Em meio ao caos, conseguiu agradecer a sorte de os invasores não terem danificado as pedras que revestiam o duto da lareira e algumas partes decorativas da fachada. Mas por mais que desejasse estar enganada, sabia que não conseguiriam refazer a pintura em apenas duas semanas. — Avisaremos Shirley Steinman pela manhã. Se ela conseguir trazer mais gente para nos ajudar, talvez ainda haja esperança. — Em primeiro lugar, precisamos recolher todo esse vidro. — Madeline dizia, olhando ao redor. — Não podemos deixar que nossos cachorros andem por aí até afastarmos o perigo de se cortarem. Não pretendo esperar até amanhã para iniciar esse serviço. Vou começar a limpar o chão imediatamente. Cal precisou colocar as mãos nos bolsos para impedir que tocassem os ombros de Madeline e a trouxessem ao encontro de seus lábios para um beijo de cumplicidade. Aquele seria um momento perfeito para se unirem ainda mais naquele ideal. — É muito tarde. Foi um longo dia. Vamos deixar para amanhã... — Prefiro trabalhar a rolar na cama a noite inteira de preocupação. — Nesse caso, estou com você — Cal ofereceu. Um não poderia adivinhar o pensamento do outro, mas era comum. Nenhum dos dois podia conceber a ameaça de verem ruir seus sonhos para o futuro.
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Capítulo V As sombras da noite afastavam os últimos raios do sol do horizonte. Madeline estava agradecendo ao fiel amigo, Reno, que viera ajudá-la e a Cal, mais uma vez em suas necessidades. Os dois amigos tinham decidido sair para jantar e a convidaram para acompanhá-los. — Tem certeza de que não quer ir conosco? — Cal se deteve no meio dos degraus da varanda para renovar o convite que ela havia recusado. — Tenho. Estou cansada e prefiro assistir a um filme, deitada no sofá. Divirtam-se. Não ficarei sozinha. Duffy e Igg, como sempre, seguirão cada passo que eu der. Aproveitem a noite. Depois de executarem o serviço de duas semanas em apenas uma, vocês merecem relaxar. Cal deu um sorriso contrafeito. Deveria perder as esperanças de voltar a ser tratado por Madeline com espontaneidade? — Não deixe que me sigam — Cal alertou-a sobre os cães. — Acha que pode ter ficado algum caco de vidro escondido entre a grama apesar da intensa limpeza que providenciamos? — Espero que não, mas acho melhor não facilitar. Cal acenou e desceu os degraus que faltavam. Madeline percebeu sua relutância em deixá-la. Transcorrera apenas uma semana desde a última agressão. Ela o acompanhou com os olhos até que entrasse no carro de Reno. Cal havia assumido inteiramente o visual do oeste americano. Seus cabelos estavam mais compridos e ele não saía mais sem seu chapéu e suas botas pretas de caubói. Estava se tornando cada vez mais difícil ignorá-lo como homem e insistir em uma simples amizade. Em seguida, ela olhou ao redor. Com a ajuda dos voluntários, eles haviam retirado os fragmentos de vidro do gramado. Não dava para afirmar que o lugar estava completamente seguro para patas e pés descalços. Por um longo tempo ainda, deveriam ter cuidado. Mas no geral a propriedade estava novamente em ordem. Cal e Reno estavam terminando a pintura e todas as janelas foram lavadas. Por mais que se esforçasse, Madeline não conseguia entender o motivo que levava uma pessoa a invadir e destruir bens alheios. Que proveito, afinal, alguém Projeto Revisoras
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poderia tirar de uma ação criminosa que não reverteria em nenhum tipo de lucro? Enfim, como não adiantava continuar tecendo conjecturas sobre o mal do mundo, Madeline foi até a cozinha para dar uma olhada em Luly e Winner. O filhote estava lindo e logo poderia ir para a casa de seu novo dono. Ela havia prometido dá-lo a Jason. Esperava não ter de mudar seu plano por causa do ocorrido na semana anterior, na eventualidade de provarem a culpa dos irmãos Cahill. Fazia uma semana, aliás, que Jason não se apresentava para o trabalho. Ela ligou para a casa do garoto a fim de verificar o motivo de sua ausência, mas assim que reconheceu sua voz, o pai ou um dos irmãos bateu o telefone. Preocupada e determinada a não desistir de tentar ajudá-lo, Madeline subiu no carro e foi até a casa dele, mas não atenderam a campainha. Forçá-los a recebê-la não era uma alternativa. Sem meios de esclarecer a situação e sem o apoio de Cal, que achava que não valia a pena se desgastar por quem retribuía o bem com provocações absurdas, Madeline decidiu cruzar os braços. Cal não se conformava que Jason tivesse traído sua confiança. A seu ver, o garoto deveria ter guardado a cópia da chave do jardim em segredo ou ao menos tentar alertá-lo sobre os planos dos irmãos. Madeline o defendia. Se os irmãos eram os culpados da invasão, eles o haviam feito sem a participação de Jason. Ela tinha certeza disso. Com um suspiro, Madeline se livrou dos sapatos e das meias e abriu a geladeira à procura de algo para comer. Nada a apeteceu. Pensou em sair e fazer algumas compras. Precisava começar a considerar se inscrever em um curso de culinária. Mas lhe parecia deprimente cozinhar apenas para si mesma. Nas últimas duas semanas, Cal não tornara a tentar uma reaproximação. Após o desentendimento, no dia do casamento de Bob e Nancy, eles concentraram todos os seus propósitos em firmarem a parceria e a amizade antes que pudessem se separar para sempre. Não queriam isso. Antes de amar Cal, ela aprendera a gostar dele. Em muitos sentidos, a relação era perfeita. Por que, afinal, não bloqueava o medo de perdê-lo e deixava que acontecesse o que Cal tanto queria? E o que ela também queria. Cansada, não apenas de corpo, mas de mente, Madeline se encaminhou para a sala. Deveria ir para o quarto e se deitar. Sem ânimo nem sequer para isso, ela se Projeto Revisoras
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despiu e resolveu descansar um pouco diante da televisão. Duffy já havia se acomodado no sofá, como fazia todas as noites. Ela se sentou ao lado dele e se pôs a afagá-lo. — Gosto de você, sabia? Gostava de tudo, aliás, que dizia respeito a sua nova vida: o trabalho com os animais, a casa, a lareira de pedra, o tapete que encontrara no sótão. O ambiente ficara acolhedor. A poltrona trazida de seu apartamento fora colocada junto à lareira. Um xale e almofadas coloridas deram o toque de alegria que faltava ao conjunto. E também o arranjo que montara com sementes e flores secas. Lar. Aconchego. Madeline fechou os olhos e respirou profundamente. Dava para sentir o cheiro de Cal nas almofadas. Um cheiro másculo de loção após barba, de sol e de vento, e também de chuva. Cal. Por que não conseguia permitir que ele a tocasse, se seu toque era como magia? Cerca de uma hora mais tarde, subiu e tomou um banho. Tornou a descer para recolher as roupas que deixara na grade e para dar uma última olhada na cachorrinha doente. Não resistiu, porém, ao apelo silencioso de Duffy para que continuasse a seu lado no sofá. Deitou-se. Queria aproveitar que Cal não estava em casa naquela noite para dormir, ao menos por uma ou duas horas onde ele dormia todas as noites. Sentir o cheiro que era só dele. E também seu calor. Vinha se questionando mais do que desejaria admitir se não deveria ceder à insistência de Cal de uma vez por todas e arriscar sua sorte. Ele havia sido muito franco. Queria-a como mulher, não apenas como amiga. O futuro poderia lhes reservar uma grande felicidade. Ou não. Quem era ela para desafiar o destino? E como poderia negar o amor? Cal resolveu voltar mais cedo para casa. Divertira-se o suficiente e teria de levantar cedo pela manhã porque ainda restava muito a ser feito no abrigo. Entrou pelos fundos, sem acender a luz, para não acordar Madeline. Abaixouse e sussurrou palavras de conforto para Luly e seu filhote. Estava se encaminhando para a sala e pedindo para que Duffy e Igg não latissem, quando viu os sapatos e as meias de Madeline no chão. Achou estranho. Madeline nunca deixava nada espalhado pela casa. Deteve-se e, de rosto franzido, sentou-se em uma cadeira e tirou as próprias botas e meias. Projeto Revisoras
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Seguiu até a grade que impedia a entrada de Duffy e de Igg na cozinha e se espantou ainda mais ao encontrar a roupa de Madeline jogada por cima. Sua pulsação acelerou ao vê-la deitada em seu sofá com Duffy encostada em suas pernas. Saltou sobre a grade, sem coragem para abri-la e, de repente, fazer algum barulho que pudesse acordá-la. O silêncio era total. Tudo ali era paz e repouso. Menos o coração dele que batia forte. Sonolenta, Duffy olhou para ele e bocejou. Cal ordenou que descesse, mas ela se limitou a encará-lo por um instante e voltou a descansar o focinho na perna de Madeline. Cal acabou sorrindo diante da cena. E sentindo o sangue ferver nas veias. Porque acreditava que essa atitude de Madeline deveria ter algum significado. O fato de ter se deitado no sofá, usando apenas uma calcinha de renda e a camiseta do time em que eles jogavam quando ainda eram policiais e participavam de competições, parecia-lhe algo promissor. Ele já havia tirado a camisa e estava desafivelando o cinto quando Madeline se moveu no sono. Prendeu a respiração. — Cal? Sem dizer nada, ele se levantou, curvou-se sobre ela e beliscou-a levemente na face. — E o papai urso perguntou: quem é que está dormindo em minha cama? Madeline sorriu diante da referência à história infantil. — Oh, que horas são? Eu peguei no sono. Não pensei que você... — Exatamente — ele a interrompeu. — Não pense. Apenas sinta. E antes que Madeline pudesse protestar, Cal a beijou. Foi um beijo tão doce quanto àquele que trocaram na varanda. Cal não o repetiu. Sorriu ao ver Duffy finalmente se dar conta de que estava sendo demais ali, e apenas aproveitou para ficar mais perto de sua amada. — Pode me dizer em que está pensando? — Que precisamos definir esta situação — Madeline respondeu. — Em que sentido? Colocar no papel como costuma fazer com nossas listas? — Se pretende me provocar outra vez com seu sarcasmo, esta conversa acaba Projeto Revisoras
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aqui. Cal desejaria voltar um minuto no tempo, se isso fosse possível, para poder apagar o que dissera. O que dera nele? Queria estragar tudo justamente quando surgia uma chance de entendimento? — Foi a última vez! Prometo não caçoar mais de suas listas. — Ele beijou os dedos em cruz e Madeline não resistiu a dar um sorriso. — O que está pensando neste momento? — Que se dependesse de mim, nós poderíamos nos levantar deste sofá e ir para a cama. Para o paraíso. — Estaríamos dando um grande passo e poderíamos comprometer nosso acordo. Alguma vez lhe ocorreu que um de nós poderá ter de ir embora daqui, se surgir algum desentendimento sério? — Sinceramente, Madeline, nada mudou sobre nosso empenho em fazer com que dê certo. Quero continuar aqui. Mas também quero você. — Cal queria dizer muito mais. Principalmente sobre seu desejo de permanecerem no abrigo como marido e mulher. Mas temia assustá-la. — Acho que este é um risco que teremos de correr — Madeline admitiu, por fim. Ele precisou recorrer a todo o seu poder de controle para não abraçá-la e rodopiar de felicidade. Segurou apenas uma mecha dos cabelos e enrolou-o suavemente em seu dedo. Depois tornou a depositar um beijo nos lábios quentes e macios. Todo o cuidado era pouco. Sentia que Madeline ainda estava insegura. Embora seu corpo e seu coração clamassem pela saciedade das emoções, sua mente o alertava para usar a inteligência. Ou acabaria perdendo-a para sempre. Parecia um sonho. Madeline estava deitada em seu sofá e deixara que ele a beijasse. Queria sentir seu corpo no dela. Estava queimando de desejo. Mas o prazer de tocá-la e de beijá-la teria de bastar por enquanto. E ele a beijou e beijou. Nunca se cansaria de beijá-la. Ouviu-a gemer aos pousar os lábios em seu pescoço e não conteve o impulso de acariciá-la por baixo da camiseta. Um som rouco o deteve. Não percebera que esse som partira de sua própria garganta à descoberta de que a carícia não lhe fora proibida. Jamais desejara
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tanto uma mulher. Estava completamente apaixonado por sua parceira. Queria se declarar para ela. Talvez Madeline estivesse pensando que ele apenas a desejava. Talvez fizesse diferença se confessasse que a amava. — Cal, estamos quase caindo do sofá. O que acha de subirmos? O que ele achava? A proposta foi tão inesperada que lhe tirou a voz. Sonhava todas as noites que fazia amor com Madeline na cama de dossel. Sobre os lençóis macios que ela encontrara no sótão e que eram os mais finos e bonitos que já vira. Levantou-se e ergueu-a nos braços. Deteve-se ao pé da escada para acender a luz. Seus olhos encontraram os de Madeline e não conseguiram mais se afastar. — Coloque-me no chão, Cal. Você está tremendo. O bom senso prevaleceu. Por mais que desejasse imitar os galãs dos romances, seus nervos não permitiram. Estavam em seu limite de controle. — Não vale à pena arriscarmos a sorte. — Madeline deu uma piscada e um sorriso. — Há muito serviço para ser feito. Suas costas precisam ser poupadas de esforços desnecessários. O tom provocante agiu como um afrodisíaco. Descontraiu-os de uma maneira incrível. Madeline começou a subir os degraus de dois em dois como se o desafiasse para uma corrida. Ele a perseguiu entre risos e ameaças de vencê-la. A porta, os dois se detiveram e ficaram apenas olhando um para o outro. — Eu já volto — ele murmurou. — Imagino que você não esteja preparada para o que resolvemos fazer. Madeline admitiu que ele estava certo. Por mais que quisesse que aquele momento acontecesse, não se precavera. Ao entrar no quarto dela, Cal sorriu ao encontrar Duffy em sua companhia. Ela não era independente como Igg. Pediu desculpas por tê-la expulsado do sofá e autorizou-a a voltar para a sala. O modo como Madeline sorriu para ele quando fechou a porta o fez se sentir um homem afortunado. Aproximou-se devagar e beijou-a sem tocá-la. — Você estava usando esta camiseta no dia que a vi pela primeira vez. Foi no verão passado e eu havia acabado de chegar de Chicago. Vocês estavam fazendo um piquenique de confraternização e jogaram uma partida de beisebol. Fui chamado para substituir um jogador que caiu e machucou o joelho e tive a oportunidade de Projeto Revisoras
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vê-la de perto. O sol estava se pondo e eu fiquei hipnotizado pelo efeito que os raios provocaram em seus cabelos. Perguntei-me como uma garota tão linda podia ser boa também no esporte. Descobri que era. No dia que me informaram que você seria minha parceira, eu fiquei contente. Tive certeza de que daria certo. — Engraçado — Madeline caçoou. — Soube que no início você recusou a indicação. — Confesso que sim — Cal admitiu. — Porque você era adorável e eu me senti atraído por sua beleza desde o primeiro instante. Receei não conseguir me concentrar no trabalho porque me flagrava despindo-a com os olhos, da mesma maneira que quero fazer agora. Madeline engoliu em seco ao sentir as mãos de Cal deslizarem por sua pele sob a camiseta. Depois começaram a subir em direção aos seios. Sua respiração se tornou ofegante. As cortinas balançavam com a brisa que penetrava pela janela e ela fechou os olhos ao sussurro que se mesclava à voz rouca de paixão de Cal. Suas pernas tremeram ao ter os seios beijados e apalpados. Cal percebeu e deixou-os para tornar a se apoderar de seus lábios enquanto a erguia nos braços e a colocava sobre o leito. Ela o levou consigo e o ouviu gemer baixinho. Cal ainda não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Estava cobrindo o corpo de Madeline com o seu. Moldando suas formas às dela. Madeline o admirava. Ele era capaz de resolver grandes problemas e de segurar os animais em seu colo como se fossem crianças pequenas. Era másculo e meigo também. Cal era dono de um coração de ouro e de um autocontrole férreo. Ela sabia que não estava sendo fácil para ele se deitar junto dela, beijá-la e tocá-la, sem lhe fazer amor completamente. A esse pensamento, uma transformação se operou em Madeline. Sentiu-se mais poderosa. Cal seria capaz de fazer qualquer coisa por ela naquele momento. A febre da sedução a atingiu. Da mesma forma que Cal sonhava em tê-la, de repente ela desejou assistir a sua capitulação. Não era experiente como ele nos jogos do amor, mas uma sensualidade instintiva brotou por todo o seu ser. Nunca se imaginara capaz de se sentir tão feminina. Cal a beijou outra vez no pescoço e ela precisou arquear as costas, invadida por uma súbita necessidade de pressionar seu corpo ao dele. Disse, nesse momento, o que jamais sonhara dizer a um homem.
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— Quero você. Ele parou de beijá-la. — Estou sonhando? Madeline tomou a iniciativa do beijo. O modo como olhou para ele o fez entender que era verdade. A situação inverteu. Ele sentiu as mãos tremerem. Tentou apanhar o preservativo que fora buscar em seu quarto e colocara sobre a mesinha-decabeceira, mas Madeline o impediu. — Não esta noite, Cal. Nada deverá ficar entre nós nesta primeira vez. — Está certa de que quer correr o risco? — Você está? — Madeline respondeu com outra pergunta. Atiraram-se nos braços um do outro. Cal não conseguiu se expressar com palavras e Madeline não precisou que ele o fizesse. Entregaram-se às sensações há tanto reprimidas. De olhos fechados. Porque estavam tornando realidade um sonho que parecia impossível. O amanhecer encontrou Madeline andando de um lado para o outro da sala. Metade dela queria voltar para o quarto e subir na cama de onde não deveria ter saído, e a outra metade a obrigava a pensar e a repensar seu comportamento na noite anterior. Fazia parte de sua natureza avançar um passo para depois recuar dois. Era insegura. Arrepender-se de seus atos era comum e freqüente. Mas dessa vez, estava tão feliz que chegava a dar medo. Ao contrário de Cal que adormecera profundamente depois de saciarem desejos longamente reprimidos, ela fizera apenas um cochilo. Acordara mais de uma vez durante a madrugada e acabara se levantando, dando a si mesma a desculpa de que estava preocupada com Luly e seu filhote e de que precisava ir à cozinha dar uma olhada neles para poder ficar sossegada. Ainda estava escuro quando ouviu Titch fazer a ronda com seu inseparável cão. Agora, sem nenhuma outra desculpa que a segurasse no andar de baixo da casa, subiu novamente os degraus. A imagem de Cal deitado na cama de dossel parecia chamá-la. Ele estava totalmente nu sob os lençóis e lhe provocava arrepios de prazer só de pensar. Ele era lindo. E tinha certeza de que não eram os olhos do amor que o enxergavam assim. Cal era um homem realmente bonito e atraente. Poderia ter muitas mulheres a seus pés, se assim quisesse. A esse pensamento, Madeline se deteve. Aturdida, sentou-se em um dos degraus. As outras mulheres não pareciam existir para Cal. Jamais o ouvira dizer que Projeto Revisoras
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teria um encontro nas horas de folga, quando ainda eram parceiros na polícia. A idéia de assumirem a direção daquele abrigo só não fora aceita de imediato por causa da imposição inicial de que eles se casassem, o que felizmente fora relevado. E ele não demonstrara interesse por nenhuma outra mulher desde que chegaram a Argonne. Nunca se esqueceria do modo como Cal sorrira para ela na festa que fizeram na delegacia em comemoração ao Dia de Ação de Graças. Na festa de confraternização às vésperas do Natal, eles se cumprimentaram sob uma guirlanda de azevinhos. O réveillon foi comemorado com música, bebida e comida, sob uma chuva de confetes. Em fevereiro, quando os namorados americanos trocam seus presentes, Cal ganhou algumas caixas de bombons de suas admiradoras e dividiu-os com ela em suas diligências na viatura policial. Depois, em março, ela o viu pela primeira vez de short e camiseta, malhando na academia. Na primeira noite no abrigo, quando dormiram no escritório, viu-o apenas de cueca. Desde esse momento de intimidade, Cal esteve presente em todos os seus pensamentos. A convivência havia fortalecido ainda mais a ligação. Até culminar na entrega total de seus corpos, na noite anterior, e nas lágrimas de emoção que ela vertera sob o chuveiro ao amanhecer. Uma sensação estranha lhe invadiu o peito. Tentou se convencer de que era apenas felicidade o que estava sentindo. Mas a sensação foi aumentando e a assustando e ela teve de admitir que estava outra vez com medo. Angustiada, começou a chorar. Porque era bom demais para ser verdade e assim que essa fase do relacionamento deixasse de ser uma novidade, Cal, como a maioria dos homens, se cansaria dela. Assumira uma atitude de total irresponsabilidade ao pedir que dispensasse o preservativo em sua primeira relação. Comportara-se como outra pessoa qualquer que não ela mesma. Dera a Cal uma desculpa perfeita para ir embora. Ele se sentiria coagido a assumir um filho que não planejara, caso ela tivesse engravidado. Como pudera ser tão tola e arruinar sua chance de um futuro com o único homem que queria em sua vida? Se realmente acontecesse, Cal pensaria, com toda a razão, que ela lhe armara uma armadilha. E como se não bastasse, estava se sentindo injusta com Jason. Queria falar com o menino e trazê-lo de volta. Obrigou-se a recuperar o controle ao sentir os olhos marejarem outra vez. Projeto Revisoras
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Estava com as emoções à flor da pele. Cal sempre lhe dava forças nos momentos de fraqueza. Se tivessem de se separar, ao menos queria guardar uma última imagem dele na lembrança. Em sua total intimidade. Seus olhos o percorreram desde os pés até o rosto moreno. Seu peito musculoso se movia pela respiração. Suave. As pernas estavam viradas de lado, completamente relaxadas. Um nó lhe fechou a garganta. Logo ele se levantaria, retomaria as atividades e a esqueceria. Seguiriam caminhos separados, mas ao menos lhe restaria o consolo de saber que era capaz de amar e que Cal a quisera. Não lhe disse palavras de amor, mas a fizera sentir desejada e importante. Um leve movimento na cama a fez perceber que ele estava acordando. Pensou em se afastar antes que sua presença fosse notada, mas seus pés se recusaram a levála além da porta. — Madeline? — Cal chamou e estendeu a mão para o travesseiro ao lado. Ao descobrir que estava vazio, ergueu instantaneamente a cabeça. — Você está vestida — murmurou, surpreso. Ela encolheu os ombros e forçou um sorriso. — Alguém precisava dar uma olhada nos cachorros. Guardar o forte. Vestir uma roupa. — Mas hoje é domingo! — Cal exclamou, como se isso justificasse tudo. — Vamos tirar o dia de hoje para descansar. Nós merecemos. — Eu sei que merecemos. — Então volte aqui. — O tom era persuasivo. Mais ainda o olhar que ele lhe endereçou. Imagens do que fizeram na noite anterior voltaram à mente de Madeline. Uma onda de calor a fez suspirar. Sabia que Cal a despiria assim que se aproximasse da cama. — Estou pensando que... — Não pense — Cal sussurrou. — Apenas venha aqui. Ela deu um passo para dentro do quarto. Cal se sentou para esperá-la. Os primeiros raios do sol penetravam pela janela e brincavam com seus cabelos e com seus olhos, mudando sua cor. Em silêncio, continuou andando, mas se deteve junto a uma das colunas da cama. Cal balançou a cabeça e sorriu. Projeto Revisoras
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— Está bem. Você venceu. Diga em que está pensando. Percebendo o esforço que Cal estava fazendo para conter a impaciência, gostou de saber que ele continuava respeitando sua vontade. Mais confiante, sentouse ao lado dele. — Na festa de reabertura do abrigo. Gostaria de convidar Jason. O garoto não tem culpa... — Nós já conversamos a esse respeito. — Sim, e eu concordo com você. Não estou pedindo para estender o convite à família dele. A presença de Booth, Keith e Cody Cahill significaria uma afronta, mas Jason é um garoto e não nos deu motivos para desconfianças. — Mas... — Jason trabalhou direito enquanto esteve aqui. Se ele não tivesse lhe inspirado confiança, você não teria cogitado em lhe dar uma cópia da chave do jardim. Além disso, eu prometi que lhe daria o filhote de Luly. Ele me ajudou a cuidar de Winner e se apegou ao cãozinho. Nem sequer dormiu naquela noite. Tive de concordar em deixá-lo em um colchão na cozinha. O que o pai e os irmãos fizeram não importa. Jason merece ser convidado. Madeline sentiu o olhar de Cal em seu corpo como se fosse um toque. E ouviu os cantos dos passarinhos e também o farfalhar dos lençóis conforme ele recostava nos travesseiros. Sons do prazer a que ela poderia se entregar. Porque era domingo e estava em companhia da única pessoa com quem desejaria passar o resto de sua vida. Era maravilhoso estar ali. Sentir-se desejada. Mas um arrepio de apreensão teimava em assaltá-la. Até mesmo a sensação de poder que a dominara na noite anterior havia desaparecido. A responsabilidade na tomada das decisões era sempre compartilhada. Opiniões divergentes eram debatidas até que chegassem a um consenso. Agora não poderia ser diferente. — Os danos causados à propriedade superam o que Jason pode ter ganhado com seu trabalho. Ele e o pai devem se dar por satisfeitos por não entrarmos com um processo na justiça pedindo ressarcimento pelos prejuízos. — Não lhe ocorreu que Jason poderia ignorar o plano dos irmãos? Que possa ter tentado impedi-los?
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Cal queria que Madeline encerrasse aquele assunto. Simplesmente não conseguia aturar pessoas que insistiam em fazer o mal pelo mal. A idade não vinha ao caso. A seu ver, quem causava prejuízos aos outros, deveria arcar com as conseqüências. — Jason tem apenas treze anos — Madeline insistiu. — Eu gostaria de lhe dar uma segunda chance. — Mas eu não gostaria de vê-lo entre os convidados. Não me sentiria bem com sua presença. Não ainda. Preciso de algum tempo para esquecer o que houve. — Jason precisa de uma segunda chance mais que você precisa de tempo. Se esperarmos até que a poeira assente, poderá ser tarde demais. — A impressão que dá é que você está a favor dele e contra mim. Não consigo entender. Os danos foram enormes. Se não fosse pela ajuda dos voluntários, nós ainda estaríamos limpando a sujeira. Para não mencionar o risco que ainda estamos correndo de ver nossos cães ferindo as patas em cacos de vidro que ainda podem estar espalhados por aí, ocultos pela vegetação. — O que você está me dizendo não é novidade. Eu vi o que aconteceu com meus próprios olhos. Também arregacei minhas mangas e ajudei a consertar o estrago. Agora acabou e eu gostaria de colocar uma pedra sobre esse assunto. O menino provavelmente não teve culpa e por causa dos outros perdeu seu emprego e uma oportunidade de se tornar uma pessoa de bem. Você não sabe o que significa a falta de um lar equilibrado. De ter um pai e uma mãe que sorriem cada manhã e se despedem todas as noites com um beijo. Pela primeira vez desde o início da conversa, Madeline viu uma abertura na tela de resistência que Cal havia colocado ao seu redor. Sua expressão suavizou. Ele puxou a colcha de renda que caíra ao pé da cama e enrolou-a ao redor da cintura. Aproximou-se dela e parou a poucos centímetros de distância. — Não, eu não sei. Conte-me. Conte-me para que eu possa dividir não só o presente, mas também o passado com você. Aliviar o peso que carrega em seu coração. Ela se sentiu aliviada por Cal não abraçá-la naquele momento. Não teria agüentado. Ele a segurou pela mão e a levou consigo de volta para a cama, onde a fez se sentar. Deu-lhe o conforto que necessitava e demonstrou sua consideração ao esperar em silêncio até que estivesse pronta para desabafar.
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— Posso entender como Jason se sente, mais do que qualquer pessoa, porque tenho uma experiência de vida que se parece com a dele. Você já sabe que sou filha de mãe solteira e que nunca conheci meu pai. Minha história não é original nem exclusiva. Histórias como a minha estão se tornando mais comuns a cada dia. A falta de meus pais foi compensada pela figura de minha avó, a única pessoa que realmente me amou. Ela era tudo para mim. Fui feliz enquanto ela viveu. Estava com treze anos de idade quando a perdi, a mesma idade de Jason. Meus tios me acolheram e eu estaria mentindo se dissesse que me deram motivos para queixas. Eles e meus primos sempre me trataram bem. Principalmente a mais velha, de dezoito anos. Mas ela se casou ao completar vinte anos e foi morar em outra cidade e eu senti aquele enorme vazio me engolir outra vez. Madeline interrompeu o relato por um instante e suspirou. — A verdade é que nunca me senti parte da família. Procurei ser exemplar. Sorria a todo instante, estava sempre pronta para colaborar nas tarefas, esforçava-me para tirar boas notas no colégio. Fazia tudo que estava ao meu alcance para não dar trabalho nem aborrecimentos aos meus tios. Tinha medo de que não me quisessem mais e me mandassem embora. Principalmente quando falavam sobre a mãe horrível que eu tinha, que não se lembrava nem sequer de me visitar, quanto mais de cuidar de mim. E assim eu fui vivendo em uma casa que não considerava minha, mas que me proporcionava a noção mais próxima do que era um lar, até ter condições de arcar sozinha com meu sustento. Cal não soltou a mão de Madeline em nenhum momento. — Eu sei o quanto dói se sentir isolada dentro da própria família. Consigo ver como Jason sofre com isso, mais do que qualquer um. Meus instintos não falham Cal. Eu percebi que ele era bom e decente assim que o vi curvado sobre Goldie na beira da estrada. Compreendo que você não consiga enxergar a situação sob meu ponto de vista, mas... — Agora eu entendo — Cal declarou sem que ela precisasse concluir seu pensamento. Abraçou-a, fez com que deitasse a cabeça em seu ombro, e demorou um longo tempo até que Madeline se afastasse. — Você está certa — admitiu, sincero. — Eu não passei pelo que você passou na infância. Tive a sorte de nascer em um lar estável. De ser criado por pais sensíveis e carinhosos. Não tenho condições de julgar nem de acusar ninguém, principalmente uma criança que recebemos sob nosso teto e que não se comportou em nenhum Projeto Revisoras
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momento de modo a sugerir que pudesse ter tomado parte nos atos de vandalismo. Madeline fechou os olhos e suspirou de alívio, de prazer, e de gratidão. Ao lado de Cal ela estava vivendo a felicidade que sonhara. Oh, Deus, não suportaria se tudo acabasse... — Não tenha medo — Cal declarou como se tivesse lido seus pensamentos. — Ficaremos aqui para sempre. Os olhos azuis pareciam querer penetrar sua alma. Madeline queria tanto acreditar que fosse verdade... Queria se perder naqueles olhos. Queria se perder nos braços de Cal, rolar na cama de dossel e esquecer que o mundo existia. Ao menos naquele domingo... Mais uma vez, como se tivesse o poder de ler sua mente, Cal deu uma piscada e apontou para as roupas que a cobriam. Madeline sentiu-se corar. Sabia que logo estaria nua. Cal já estava despindo-a com os olhos. — Então, o que gostaria de fazer hoje? — Ele se deitou de lado e apoiou-se sobre o cotovelo. A pergunta soou espontânea como se estivesse fora de cogitação pensarem em programas separados. Ela gostaria de sorrir, de dar vazão à alegria que a disposição de Cal de permanecer a seu lado lhe proporcionava. Queria aproveitar tudo de bom que a relação tinha a oferecer no presente, e esquecer sobre o que o futuro lhe reservava. E naquele momento, seu corpo queria o dele, mais do que qualquer coisa. O desejo deveria ter transparecido em seu olhar porque Cal a puxou inesperadamente e a fez deitar em cima dele. Com um sorriso malicioso se apropriou dos lábios dela e em seguida sussurrou em seu ouvido. — Voto por ficarmos em casa hoje, nesta cama para ser específico. Acumulei fantasias sobre este quarto e sobre o que queria fazer com você nesta cama o bastante para encontrar distração por muitas e muitas horas. Ele a fez rolar consigo e a colocou dessa vez sobre seu próprio corpo, mantendo-a cativa pela base das costas. — Quero você para o café da manhã, para o almoço e para o jantar. Quero ler cada linha de você como costumo ler o jornal. Domingo na cama. Esta é minha proposta. Agora quero ouvir qual é a sua. Não houve medo nem temor que resistisse ao convite de Cal. Ela deixou o riso brotar com força e vivacidade. — Desde que você me beije muito. Se é que esta palavra existe, você deve ser o Projeto Revisoras
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melhor beijador do mundo. E Cal não a fez esperar para lhe provar que pretendia fazer jus ao título. Cal se levantou e se dirigiu à cozinha determinado a recuperar seu equilíbrio emocional. Depois de um domingo doce e relaxante em que milhares de sonhos foram concretizados, a segunda-feira amanheceu com promessas de dificuldades a serem resolvidas. Alguém havia ligado e feito uma denúncia de que um criador de cães da raça Pitt Bull estava recolhendo cães de rua para serem usados no treinamento de ataque. Em defesa dos pobres animais mansos e indefesos, Cal convocou todos os voluntários a percorrerem a cidade e regiões vizinhas para efetuar os eventuais resgates. Estava acostumado a lidar com situações de emergência. Fora policial e já trabalhara em um abrigo de animais anteriormente. Ocorrências como essa sempre geravam estresse. Pouparia Madeline dessa tarefa. Ela não estava em condições de suportar mais essa carga de preocupação. Era testemunha de seu esforço para superar o trauma do passado. A insegurança que sua infância gerara estava se refletindo em seu presente e no medo com relação ao futuro. Madeline receava falhar e perder a chance que lhes fora dada de prosseguir com o trabalho iniciado por Maud McGovern. E ele era inteligente o bastante para perceber que grande parte daquele medo também girava em torno da possibilidade do fracasso do relacionamento. O que poderia fazer para Madeline acreditar que a queria de verdade e que as chances de dar certo eram infinitas? Para ele parecia natural. Para ela parecia impossível. Estava escuro quando Cal chegou. Parou para brincar com Luly e Winner até ouvir a voz de Madeline. A casa estava tão silenciosa que não se apercebera da presença de sua companheira na sala. Abriu a geladeira, perguntou se ela gostaria de beber alguma coisa, e com uma latinha de cerveja na mão, Cal saltou sobre a grade que continuava colocada entre a sala e a cozinha e se encaminhou para o sofá. Bastou um olhar para adivinhar que sua parceira continuava se debatendo com idéias pessimistas. Ela estava com um bloco e uma caneta nas mãos preparada para criar uma nova lista. E foi direto ao assunto. Por terem mantido contato durante Projeto Revisoras
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o dia, Madeline estava a par dos problemas que ele enfrentara e os dois já haviam jantado, cada um em um horário. Conhecendo Madeline como conhecia, Cal não esperava que ela fosse recebêlo à porta ao final do dia com um sorriso de boas-vindas, mesmo que tivessem dormido juntos na noite anterior. Mas ainda assim, sentiu uma vibração desagradável no ar que lhe provocou um arrepio de apreensão. O modo como Madeline se encolheu ao vê-lo se inclinar para lhe dar um beijo disse tudo. Ele fingiu não perceber. Ela, no entanto, apressou-se a fugir para o canto do sofá. — Cal, eu descobri que era o Dr. Moore o doador anônimo da importância que cobria o salário de Jason. O Dr. Moore se afeiçoou ao menino desde aquele sábado em que não pôde fazer nada para salvar Goldie. Mas tenho me perguntado sobre as despesas com o cultivo do novo jardim de rosas. Perguntei casualmente a Shirley Steinman sobre o valor que já havia sido gasto com ele, e soube que nada consta nos relatórios de despesas. Cal, é você quem está arcando pessoalmente com as despesas, não é? — Sim. É um presente que quero lhe dar. Um jardim de rosas. Assim que conseguir terminá-lo. — Lembre-me de lhe agradecer. Assim que conseguir terminá-lo. Farpas. Por que estavam trocando farpas se na noite anterior haviam feito amor? Não era normal. Ele não estava disposto a desistir. Talvez ainda tivesse de dar mais tempo ao tempo. Apenas isso. — Outra lista? — ele abrandou o tom de voz e indicou o bloco e a caneta nas mãos dela. — Uma lista — Madeline declarou com um olhar de desafio. — Algum problema? — Em absoluto. Sou a favor de listas — ele a pegou de surpresa ao dizer o contrário do que esperava. — Ajudam a nos organizarmos. Desarmada, Madeline relaxou sua postura. — Anotei algumas idéias que tive sobre a distribuição de nossos animais a pessoas dispostas a adotá-los. Shirley e as outras voluntárias me ajudaram. Tivemos Projeto Revisoras
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uma reunião e esclarecemos alguns pontos importantes. Você quer saber de que se trata? — Primeiro estou precisando de um banho. Ou seja, o interesse de Cal não estava focado na discussão de novas regras de administração. Madeline acertou em sua conclusão. Cal se importava muito com o trabalho que estavam desenvolvendo no abrigo, mas sua prioridade, naquele momento, dizia respeito a sua vida pessoal. Queria falar com Madeline sobre eles dois. Depois do dia atribulado e estressante que vivera, merecia um bom banho. Precisava relaxar ou acabaria aumentando ainda mais o conflito que se criara, sem que ele conseguisse entender verdadeiramente o porquê. Estava começando a subir a escada quando a voz de Madeline o deteve. — Poderia levar Duffy consigo e colocá-la no meu quarto? Está mancando ultimamente e eu a levei ao Dr. Moore. Ele acha que o ar condicionado da sala pode estar lhe fazendo mal. Cal se deteve. Seu rosto franziu ao registrar o que certamente parecia ser a prova cabal do arrependimento. — Em seu quarto? Quer dizer que voltamos ao que era antes? Seu quarto e meu quarto? O que aconteceu ontem à noite não mudou nada? Ou eu só terei a permissão de entrar em seu quarto quando lhe for conveniente? Madeline não conseguiu enfrentar o olhar de decepção. — Não se trata disso. De repente ele entendeu o que Madeline estava sentindo. Porque um medo terrível de perdê-la o assaltou e o fez recuar em seu protesto. — Não demoro. Assim que tomar meu banho, conversaremos sobre a lista. — pegou Duffy no colo em seguida e subiu como se nada tivesse acontecido. — Venha, garota. Você se sentirá melhor quando ficar mais aquecida. Sozinha na sala, Madeline largou o bloco e a caneta sobre as pernas e recostou a cabeça no sofá. Fora a única culpada pelo mal-estar que se criara. Durante todo o dia, o primeiro após o fim de semana que marcara um avanço na relação de amizade, Cal fora um doce com ela. Apesar das dificuldades que enfrentara no trabalho, estivera presente e se interessara pelas preocupações dela como nunca antes. Mas, Projeto Revisoras
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enquanto Cal tentava estabelecer um novo padrão de relacionamento, como ela esperava que acontecesse, em vez de retribuir esse carinho, tratara-o com frieza. Não era de se admirar que Cal tivesse se ressentido da recepção que lhe dera. Era uma tola. Arruinara tudo. Por que se recusava a aceitar o que vinha de bom em sua vida? Por que se recusava a acreditar que sonhos podiam se tornar realidade? Frustrada, sem saber o que fazer nem para onde ir, Madeline continuou onde estava. Recostada no sofá. Procurou se distrair com o perfume e a beleza dos ramos de madressilva que colhera e colocara no velho jarro ao lado do abajur. Não teve êxito. Não conseguia parar de pensar em Cal. Amava-o. Por que não aproveitava o que ele queria lhe dar? Ao menos poderia ser feliz por algum tempo. Se continuasse agarrada ao medo, não teria a chance de desfrutar nem sequer daqueles momentos preciosos. Precisou conter um suspiro de alívio ao vê-lo descer a escada de dois em dois degraus, como se tivesse pressa em reencontrá-la. E realmente parecia ser isso. O banho durara poucos minutos. Nem sequer fizera a barba. Trazia uma toalha na mão e terminava de secar os cabelos. Um sorriso se insinuou em seus lábios. Ele estava de jeans e camiseta. Descalço como ela. Estavam à vontade em casa. Casa! Lar! Nunca se cansaria de repetir aquelas palavras! E o modo como Cal reagira a sua atitude imperdoável era uma maneira de dizer que não pretendia desistir dela. Pois bem. A partir daquele instante, ela mudaria de atitude. Daria uma chance ao relacionamento deles. Seria bom enquanto durasse! — Vamos à lista? — Cal propôs enquanto se encaminhava para a janela, terminava de secar os cabelos e os penteava com as pontas dos dedos. Madeline não conseguiu se lembrar do pequeno discurso que havia ensaiado. Estava distraída com os movimentos dele. Ele havia se livrado da toalha e parecia querer fazer o mesmo com a camiseta. Sua respiração acelerou e ficou suspensa ao vê-lo se dirigir ao sofá, sentar-se ao lado dela e apoiar o braço ao redor de seus ombros. Havia desafio naqueles olhos. Um desafio que exigia uma resposta que ela não conseguiu dar. Porque o motivo da provocação logo ficou claro. Cal tirou algo do
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bolso da calça e colocou-o sobre a mesinha. Uma embalagem dourada igual à do preservativo que lhe mostrara na noite anterior. — Então, o que você conversou com Shirley e as outras voluntárias que queria me contar? — Tenho uma ótima notícia. Shirley tem uma amiga que acha que consegue nos colocar na televisão. — É uma notícia realmente boa — Cal concordou e jogou a cabeça para trás. Madeline não conseguiu continuar. Sua boca havia ressecado e precisou umedecer os lábios com a ponta da língua. — Acha que podemos acreditar nessa possibilidade? Do jeito que você falou, está me parecendo mais um caso de uma amiga que tem uma amiga que pode conhecer alguém... — Não. Quero dizer, sim. Shirley tem certeza de que a probabilidade de anunciarmos nosso trabalho em um programa que vai ao ar todas as tardes é bastante grande. — Continue — Cal incitou-a quando o silêncio começou a se prolongar. — Era isso. Surgiu uma oportunidade para anunciarmos nosso trabalho. O alcance será muito maior do que acontece agora por meio de panfletos. Também estamos planejando colocar um site na Internet. Cal se inclinou como se precisasse ficar mais perto para escutar o que ela dizia. De repente começou a beijá-la no rosto, no pescoço e na orelha. — E a lista? — Ele a fez encará-lo. — Quero que me diga se listas são tão importantes quanto olharmos nos olhos um do outro. Madeline engoliu em seco. Nada era tão importante quanto olhar nos olhos de Cal. Apenas não conseguia responder. Cal beijou-a na boca dessa vez. Ele sabia que a havia convencido do valor real de cada coisa. E Madeline só sabia que queria que Cal continuasse convencendo-a de que estava errada. — Você precisa perder esse costume, minha querida, de permanecer vestida quando eu começo a tirar a roupa assim que consigo ficar sozinho com você. Como resistir? Quando Cal a beijava, ela não era capaz de lhe negar nada. Deixou que ele desabotoasse sua blusa e a despisse. As listas foram para o chão. Não tentou reavê-las. Sim, queria que Cal a convencesse a mudar seus velhos hábitos e a Projeto Revisoras
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superar seus medos. Porque acreditava, sim, que tudo poderia dar certo entre eles. Ao vê-lo colocar o preservativo, sentiu a respiração tornar-se ofegante. Pensou que derreteria ao ouvir a declaração que precedeu o beijo mais incrível de todos que Cal havia lhe dado. — Não pretendo voltar para meu quarto. Quero dormir com você esta noite e todas as outras noites. A menos que diga que não me quer a seu lado. — Ele segurou o rosto de Madeline com as mãos. — Você me quer? Ela fez que sim. — Sou mais importante do que suas listas? Do que este lugar? Do que este trabalho aqui? Ela estava tão fascinada pela presença, pela voz, pelas promessas sugeridas, que mal conseguia mover a cabeça. Cal se deteve por um instante, apertou-lhe a mão e a colocou sobre o coração. — Sinta-me, Madeline. Sou real. Estou aqui com você. O calor da pele bronzeada pelo sol penetrou pelos dedos e pela palma da mão de Madeline. Cal era um homem bonito e másculo. E queria ser dela. — Se estava cogitando me recusar como Maud McGovern fez com Virgil Ruston, pode esquecer. Eu vim para cá de livre e espontânea vontade, estou adorando viver neste lugar com você, e nada nem ninguém me afastará deste caminho que resolvi trilhar. As mãos de Madeline deslizaram pelo peito musculoso. Estava ansiosa por fazer amor com Cal. Não queria esperar mais. Ele a impediu de tocá-lo, porém, e isso a surpreendeu. — Ainda não, querida. Sou todo seu. Quero o que você quer, mas antes precisa me escutar com atenção. Você não é Maud. Maud viveu a vida que escolheu e já não pertence mais a este mundo. Afaste esse pensamento de que acontecerá conosco o mesmo que aconteceu com ela e o homem que a amava. Você se dá bem com as pessoas. Todos gostam de ficar em sua companhia. Veja o que fez com Jason Cahill e comigo. Madeline concordaria com tudo que Cal lhe dissesse naquele momento. Estava inebriada por seus beijos, por sua persuasão, por seu corpo e por seu toque sedutor. Mas Cal continuava firme em sua postura de esclarecerem todas as dúvidas.
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— Sinto que você me ama tanto quanto eu te amo — declarou por fim. — Mas que ainda não está preparada para admitir esse sentimento. Portanto, eu farei a declaração por nós dois. Eu te amo e te amarei para sempre. Estou aqui, você está aqui, e aqui estaremos juntos. Os olhos de Madeline encheram-se de lágrimas de felicidade. Ela queria retribuir aquelas doces palavras, mas tudo que conseguia fazer era olhar nos olhos dele e concordar em silêncio. Cal, seu amigo, parceiro e amante incrível, compreendeu. Parecia aliviado, inclusive. Não. Satisfeito descreveria melhor sua expressão. E nesse momento ele conduziu a mão de Madeline para baixo. — Toque-me. Faça o que quiser comigo até ser minha vez de retribuir. — Daria para você tirar o preservativo, então? — Madeline sugeriu, provocante. — Nós não combinamos que ficaríamos sem proteção apenas da primeira vez? — ele a lembrou. — Mas esta também será a primeira vez. A primeira vez que você disse que me amava e que eu direi que também te amo. Cal mal podia acreditar no que acabara de ouvir. — Você disse! Você disse que também me ama. — Eu disse e repito e continuarei dizendo sempre. Eu te amo. Abraçaram-se, beijaram-se e fizeram amor no sofá, e depois outra vez na cama. Antes de adormecer Madeline agradeceu pelo jardim de rosas que Cal estava cultivando e que prometera lhe dar de presente. Agora só restava confiar que aquele momento iria permanecer.
Capítulo VI Seu lar, um paraíso. Madeline pensou que gostaria que o contrato fosse renovado após os seis meses de experiência e que ela e Cal pudessem continuar
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vivendo no abrigo até o fim de seus dias. Era uma noite de quinta-feira e estava esperando que Cal retornasse de um compromisso na cidade. Estava na varanda, com Duffy sentada na cadeira de vime a seu lado e Igg a seus pés. A atmosfera estava tranqüila e a temperatura agradável apesar do calor que fizera naquele dia de verão. Desde a segunda-feira, quando Cal a desafiara a acreditar neles, decidira fazer exatamente isso: acreditar. Pela primeira vez em sua vida permitira que a esperança e a confiança superassem a insegurança e o pessimismo. Que o amor vencesse o medo. Estava se sentindo tão feliz que aceitaria sem nenhuma restrição os sinais de uma gravidez e, mais particularmente, a idéia de casamento. Ainda assim, essas possibilidades não haviam sido discutidas. Falavam de amor. Muito. Não se cansavam de repetirem essa declaração todas as noites. Madeline sorriu consigo mesma ao pensar na velha Maud. De repente, a imagem da antiga proprietária tornara-se fraca e distante. Agora conseguia pensar no carvalho em frente da casa, nas paredes de pedra, no jardim de rosas, como pertencendo a ela e Cal. Seu vínculo mais forte com a outra mulher, representado por sua caixa de recordações, fora entregue naquela tarde à biblioteca local que funcionava também como um pequeno museu com registros históricos do povo e seus feitos. Sim. Pela primeira vez em sua vida, Madeline estava conseguindo olhar mais para frente do que para trás. Tivera a coragem de abrir a mente para novas possibilidades. Os passeios noturnos de Cal com a moto haviam acabado. Também a escolha do sofá com a televisão ligada como terapia de sono. Fazia uma semana que Cal não precisava de outros recursos de relaxamento exceto o amor e a cama deles. O volume de trabalho continuava imenso no abrigo. Como se não bastassem os preparativos para a festa de reabertura, eles também haviam sido convocados para participar das solenidades em comemoração à fundação da cidade que coincidia com a véspera do 4 de Julho, a data máxima para os americanos, pois marcava sua independência. Um ruído estranho, mal definido, interrompeu as conjecturas de Madeline. Já o ouvira uma vez. Fora em sua primeira noite no abrigo, quando ela e Cal precisaram se acomodar no escritório até que a casa estivesse em condições para recebê-los.
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Pareciam passos. Sorrateiros a princípio e depois acelerados. Ela se colocou imediatamente de pé, percorreu a extensão da varanda, e sem divisar nada, precipitou-se pelos degraus a fim de verificar o pátio e seus arredores. Esquecera de acender as luzes e facilitara a entrada do elemento invasor. Ou invasores, caso fosse confirmada a identidade dos irmãos Cahill. O luar possibilitou a visão de uma sombra buscando esconderijo atrás da garagem. Mais do que a agressão de que a propriedade estava sendo novamente vítima, foi a possibilidade de Jason estar conivente com os irmãos que a deprimiu. Feita a inspeção ao redor da garagem sem que encontrasse nada de suspeito, Madeline decidiu continuar sua busca e colocar um fim nessa situação. Embrenhouse pelo mato ainda alto no trecho que fazia divisa com a propriedade vizinha, determinada a alcançar os meninos e colocar um pouco de juízo em suas cabeças. Explicar que não precisavam ser inimigos e que podiam conviver em paz, cada um cuidando de sua própria vida. Acima de tudo, queria ter certeza de que Jason não estava entre eles e que não se enganara a seu respeito. Porque nada justificaria sua atitude de querer prejudicar quem lhe prometera um lindo filhote de presente e lhe dedicara apenas amizade. Frustrada em seu plano de apanhar os meninos em flagrante, porque o único som que conseguia captar era o crujar de uma coruja, Madeline voltou para casa. Antes tornou a passar pela garagem para, por via das dúvidas, verificar os carros e notou um detalhe que lhe passara despercebido na pressa da captura: a porta estava apenas encostada. Empurrou-a e acendeu a luz. Iniciou a verificação dos veículos, começando pela van. Não encontrou nada de errado, nem com a moto, nem com o cortador de grama, nem com a velha picape, mas o pneu de seu próprio carro estava no chão. — Aqueles moleques! — resmungou, impaciente. E agora, o que faria? Duffy e Igg estavam parados, um de cada lado dela, como se montassem guarda. Ela se abaixou-e afagou-os. Decidiu, então, que trocaria o pneu antes que Cal chegasse. Era contra segredos entre casais, mas não queria que ele soubesse. Ao menos até o dia da festa. Queria uma chance de falar com Jason a sós e talvez esclarecer o problema sem maiores alardes.
Fazia calor. Em meio às mesas e cadeiras ocupadas pelos amigos, voluntários e Projeto Revisoras
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visitantes que haviam comparecido para prestigiar o evento de que ele e Madeline tanto se orgulhavam, Cal tirou o chapéu que agora fazia parte de sua indumentária, passou um lenço pelo rosto e tornou a colocá-lo. As pessoas o cumprimentavam e faziam votos por seu sucesso. Ele agradecia com entusiasmo. Mas a verdade era que estava distraído. Seus olhos procuravam Madeline. Fazia algum tempo que não a via entre os presentes. Deparou-se subitamente com Shirley Steinman saindo do escritório. Sua busca estava terminada, pois Madeline surgiu à porta logo atrás dela. — Não está um lindo dia? — Não poderia estar melhor. Nenhuma nuvem no céu. Vim apanhar os troféus. O desfile de fantasias deve começar em trinta minutos. — Eu não o perderia por nada. Os troféus seriam entregues às crianças que mostrariam sua criatividade em roupas e acessórios que representassem cachorros. Haveria uma banca de juízes sobre um palco e uma passarela improvisados. A animação era contagiante. O cenário era típico dos piqueniques americanos, com toalhas em xadrez vermelho e branco, churrasco de hambúrguer e salsicha e distribuição de refrigerantes. Em seqüência ao desfile de fantasias, as famílias participariam de jogos e corridas. A cidade inteira deveria estar ali. — Acho que não é exagero dizer que a festa está perfeita — elogiou Shirley Steinman com sinceridade. — Deu trabalho, mas valeu a pena. Eu diria que todos estão se divertindo porque esta festa foi uma das melhores que Argonne já viu. E não estou me referindo apenas às pessoas. Todos os animais que recolhemos foram adotados e seguirão hoje para seus novos lares. Com exceção daquele reservado para o garoto Jason. Parabéns, Madeline e Cal. Os antigos voluntários estão de volta e os novos se apresentaram para nos ajudar. Creio que todos os seus colegas da polícia vieram nos prestigiar. Tantos e tantos amigos. A Sra. Cee é adorável. Gostei muito de conhecê-la. Madeline e Cal entreolharam-se. Sim, eles estavam gratos e felizes. — O fato de vocês terem sido vítimas dos Cahill também atraiu nossa solidariedade. Aquela gente parece não ter mais jeito. O Dr. Moore estava me contando, há pouco, que Cody e Keith foram vistos roubando um jipe ontem à noite que estava estacionado na frente da sorveteria. Não é a primeira vez que isso Projeto Revisoras
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acontece. Os veículos foram encontrados algumas horas depois, com o tanque vazio. Cal cogitou se Madeline já havia sido informada sobre alguma outra peripécia da dupla nos últimos dias. Talvez fosse impressão, mas ela parecia preocupada com alguma coisa desde a noite da quinta-feira. Assim mesmo, ele cumprira sua palavra e telefonara para Booth Cahill para convidá-lo e aos filhos para participarem da festa de inauguração do abrigo. Na impossibilidade de fazê-lo pessoalmente, deixara uma mensagem na secretária eletrônica. Shirley se afastou com a metade dos troféus em direção ao palco. Cal apanhou a outra metade e estava se encaminhando para o local, pois faltavam apenas dez minutos para o início do desfile, quando notou que Madeline se afastara do grupo e olhava ao seu redor como se procurasse alguém. Ele não resistiu. Seguiu-a até o velho carvalho onde tentou descobrir o que estava acontecendo. — Oh, não foi nada. Eu apenas quis me certificar de que nenhuma criança possa se queimar na grelha. — Não há perigo. Shirley já anunciou a segunda parte da comemoração. Os jogos estão por começar. Alguma coisa me diz que algo a está preocupando e que você não quer me contar. O que houve, Madeline? Somos parceiros, lembra-se? Devemos partilhar tudo. Hoje é um grande dia para nós. — Claro que é! — Mas você parece estar me evitando. Já tentei lhe contar mais de uma vez o que Landsbury me disse. Estão tão contentes com nossa administração que estão pensando em firmar um contrato definitivo após os seis meses de experiência. — Isso é ótimo. — Ótimo? É só isso que tem a dizer? Está arrependida de alguma coisa? Ou tem a ver com o fato de Jason não ter vindo à festa? Madeline olhou para alguém que passava e deu um sorriso. — Mais tarde nós conversamos, Cal. Esta não é a hora nem o lugar. — Isso precisa acabar — Cal insistiu. — Não deve haver segredos entre nós. Aplausos e assobios os obrigaram a interromper a conversa. Do palco, Shirley estava acenando para que eles se aproximassem.
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Madeline estava lavando a pilha de louça que se acumulara sobre a pia da cozinha. Pela janela, via Cal se despedindo de Shirley e das últimas voluntárias que haviam ficado até a noite para ajudá-los com a limpeza. Um final perfeito para um dia perfeito. Ou quase. Cal esperou que os carros se afastassem antes de voltar para a cozinha. Ela tomou fôlego e coragem. Não haveria mais como adiar a conversa. O segredo guardado desde a noite da quinta-feira teria finalmente de ser revelado. Apesar de estar certa de que não poderia ter tomado outro tipo de atitude, Madeline sentira-se tão mal por impedir que Cal partilhasse de sua descoberta, que não vinha conseguindo nem sequer olhar para ele nos últimos dias. Não lhe ocorrera que ele pudesse ter interpretado seu comportamento como um problema em seu relacionamento íntimo. Mas a verdade era que vinha evitando até mesmo seus gestos de carinho. Sério e sombrio como a tempestade que estava se anunciando no céu, Cal entrou na cozinha, tirou o chapéu e jogou-o em uma cadeira. Parecia tão zangado que nem sequer a alegre recepção dos cachorros o demoveu de seu propósito. — Então, pode me dizer agora o que está acontecendo? Madeline mordeu o lábio, enxugou as mãos e sustentou dessa vez o olhar de Cal, por mais que isso lhe custasse. — Sinto muito por não ter lhe contado antes, mas os irmãos Cahill estiveram aqui novamente na noite de quinta-feira, enquanto você estava fora. Cortaram um dos pneus do meu carro e o inutilizaram. — Por que, Madeline? Por que escondeu isso de mim? — Porque eu tinha esperança de que Jason viesse aqui hoje e eu pudesse ter uma chance de falar com ele. — Quer dizer que sentiu necessidade de protegê-lo? De mim? — Não quero que Jason seja levado para um instituto de correção. — Acha que eu quero isso? — Cal protestou, mais decepcionado do que irritado. — Recusa-se a me contar sobre problemas que afetam a nós dois. Por que não confia que eu tenha condições de ouvi-la e de tomar uma decisão conjunta? O que pensa que sou? Um homem das cavernas? Projeto Revisoras
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— Sabe que confio em você. — Guardar segredo é falta de confiança. — Sinto muito pelo que fiz, Cal. Não tornará a acontecer. Ele baixou a cabeça e passou uma das mãos pelos cabelos. — Os garotos ainda são jovens e não receberam uma boa educação de seus pais. Você pode não acreditar, Madeline, mas eu também me preocupo com eles. O telefone tocou naquele instante. Era alguém denunciando o abandono de um cão. Os donos haviam se mudado aquela manhã para um endereço desconhecido. — Quer ir comigo? — Cal convidou. Madeline preferiu ficar e acabar de lavar a louça. Desculpou-se novamente, mas dessa vez talvez tivesse realmente exagerado. Cal tinha uma expressão de desagrado em seu rosto. Não fez menção de beijá-la como era seu costume antes de sair. — Você tem razão de estar assim. Eu também ficaria zangada em seu lugar... Ele suspirou. — Deus, Madeline, não é o fim do mundo! Mesmo que tenhamos de desistir deste lugar, eu não deixarei você. Não serão as provocações dos vizinhos que irão nos separar. Apenas espero que passe a confiar em mim. Só isso. Poucos minutos depois, Madeline acreditou ter ouvido um ruído. Aguçou os ouvidos. Às suas costas, os cachorros também estavam atentos. Espiou pela janela. As lâmpadas natalinas que Cal colocara em volta dos telhados da casa, da garagem e do depósito iluminavam o pátio o suficiente para ela se certificar de que não havia ninguém à vista. Certa de que eram os garotos outra vez, não sentiu medo. Eram desordeiros, mas não acreditava que fossem capazes de machucar alguém realmente. Abriu a porta e saiu na varanda, pronta para lhes passar o sermão que vinha preparando desde a noite de quinta-feira. Não houve tempo para se defender. Dois pares de braços a agarraram por trás. Ouviu risos, mas não conseguiu identificá-los, pois estavam usando gorros que deixavam apenas os olhos de fora. Ainda assim, não teve dúvida de que se tratava
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dos irmãos Cahill. — Resolvemos brincar de polícia — disse um. — Tente escapar agora. Por mais que se esforçasse, por mais que quisesse empregar uma das manobras aprendidas em seu curso de defesa pessoal, Madeline não conseguiu se desvencilhar. Os jovens a obrigaram a segui-los pelo pátio. Sentiu o coração se apertar de tristeza ao descobrir que levavam consigo a chave do jardim. Abriram o portão e a empurraram em direção ao poço. — Agora vamos brincar de esconde-esconde. Eles riam às gargalhadas. Ela foi obrigada a descer pela estreita escada que levava ao fundo do poço. Assim que se viu no fundo, a escada foi retirada. Madeline se obrigou a não se entregar ao pânico que ameaçava dominá-la. O poço ainda estava desativado e ela não corria risco de vida. Cal não tardaria a voltar e empreenderia uma busca ao dar por seu desaparecimento sem deixar aviso. Madeline reconhecia que fora imprudente. A fama dos irmãos Cahill não era boa. Ela própria era testemunha de seus atos de vandalismo. Por que assumira o papel de educadora e tentara lhes dar uma lição? Agora estava presa dentro de um poço escuro, com os pés afundados em lama e deveria se preparar para esperar por horas a fio até Cal resgatá-la. Como se não bastasse, o mundo parecia estar desabando. A tempestade caíra por fim e os trovões ribombavam. Indefesa, Madeline apelou ao único recurso que lhe restava. Começou a rezar para que Cal não demorasse a voltar. Porque se algo o prendesse na cidade e ele ligasse para avisá-la, não estranharia o fato de ela não atender. Pensaria provavelmente que estava no banho, ou que pegara no sono. Afinal, se tivesse surgido algum problema e ela precisasse sair, teria deixado a secretária eletrônica ligada. Raios riscavam o céu. Arrepios percorriam sua espinha. Era um alívio saber que as tubulações ainda não haviam sido conectadas. Mesmo que chovesse a noite inteira, não haveria perigo para ela. Só precisaria manter a calma. A cada relâmpago, Madeline conseguia um vislumbre do interior do poço. Jason não chegara a retirar todas as pedras. Talvez houvesse uma chance de escapar. A idéia foi descartada no relâmpago seguinte. Mesmo que ela conseguisse
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tatear todo o fundo e colocar as pedras umas sobre as outras, a altura da pilha não chegaria a um décimo do necessário. Não tinha outra alternativa exceto esperar. Molhada de chuva, com os pés afundados em barro. Seu único consolo, por incrível que pudesse parecer, vinha da fúria da natureza. Dos raios e dos relâmpagos. Ocorreu-lhe, subitamente, que Cal poderia não pensar em procurá-la no poço. Talvez o socorro não chegasse por muito tempo ainda. Só lhe restava esperar, portanto, que a tempestade passasse para que pudesse gritar até ser ouvida. A cabana de Titch ficava distante dali, mas não tão longe quanto a casa. Um grito escapou de sua garganta antes que pudesse raciocinar. — Deus, você quase me matou de susto! Madeline levou uma das mãos ao peito como se o gesto pudesse fazer as batidas de seu coração voltarem ao normal. Boné estava olhando para ela da boca do poço. Seus grandes olhos pretos a fixavam como se quisessem protegê-la. Ela não conteve as lágrimas. Estava salva. Titch deveria estar fazendo a ronda apesar da chuva. Logo ele a encontraria e a tiraria dali. Chamou-o uma porção de vezes sem nenhum resultado. Berrou, então, de desespero por alguns segundos até que o bom senso retornou e a fez calar. — Pobre Boné. Você deve estar mais assustado do que eu com meus berros. Seu dono não sabe que você está aqui, não é? Estamos completamente sós e desamparados. Fosse pelo tom de sua voz ou pelo instinto natural dos cães, Boné se reservou o papel de guardião. Deitou-se sobre a tampa do poço e sobre as patas dianteiras de modo a continuar vigiando-a. Ela sorriu carinhosamente para o cão, apesar de tudo. — Obrigada, meu amigo. Você é esperto. Sabe que o velho Titch dará por sua falta e sairá a sua procura. Por isso você ficará aqui de guarda. Ao encontrá-lo, ele me encontrará também. A tempestade começou a diminuir. Madeline rezou para que o zelador não demorasse a chegar. Ou Cal. Estava cansada e com frio. Talvez fosse obra do destino, Madeline pensou. Talvez houvesse alguma razão misteriosa para lhe ter acontecido o que acontecera. — Talvez eu deva parar e pensar para entender — ouviu-se resmungando. —
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Basicamente eu sei de que se trata. Apenas não consigo enxergar uma forma de lidar com o problema. Tem a ver com medo. Medo do futuro. Medo de que o bom não permaneça. Madeline fez uma pausa e olhou para o cachorro que continuava em sua companhia. — Você não está entendendo nada, eu sei, mas Cal já apontou o que está faltando entre nós. A confiança. E ele está certo. Eu sei que posso confiar nele. Por que, então, não consigo me soltar? Era isso que estava faltando! Com a súbita claridade da lua, que surgira por alguns segundos entre as nuvens, Madeline entendeu. Faltava apenas permitir se soltar. Porque não existia um motivo real para sentir medo. Confiava em Cal e em si mesma. Acreditava que se amavam. Acreditava no ideal que abraçaram. Tinham os mesmos sonhos e a mesma vontade de trabalhar e de vencer. Como se quisesse lhe dar um sinal de que tomara a decisão certa, a lua tornou a aparecer entre as nuvens. Boné parecia uma escultura de algodão em sua imobilidade e brancura. Estava ali para lhe dar coragem. O medo, no entanto, havia sido superado. Sentia-se exausta. Não deveria estar ali há muitas horas, contudo. O mais importante, porém, era estar bem, mais do que isso, esperaria o tempo que fosse. Ela e Boné. E como se o velho Titch tivesse adivinhado que sua presença era essencial, Madeline o ouviu chamar seu fiel cão. Aproveitou e se pôs a gritar novamente. Muitas vezes. O cachorro não atendeu à voz do dono. Ficou com Madeline até que ela fosse encontrada. — Srta. Scott? É você que está aí, menina? — Sim, Sr. Titch, sou eu. Graças a Deus o senhor chegou! — Céus, como foi que você...? — A escada, Sr. Titch. Por favor, eu preciso dela para poder sair. Em poucos minutos, Madeline estava fora do poço. Suja, imunda, mas feliz. Tão feliz que se pôs a rir e a abraçar seus salvadores. Madeline agradeceu a oferta do Sr. Titch de acompanhá-la até a casa. Não era preciso. Não havia mais perigo. Estava se sentindo leve, aliviada. Achou interessante que o velho Titch não tivesse insistido em saber o motivo do acidente. Talvez por ser Projeto Revisoras
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uma espécie de ermitão. Um solitário como Maud havia sido. Nesse momento, Madeline riu alto. Ela também se considerava uma solitária. Que dia! Que noite! Estava precisando de um banho e de um bom sono. Estava precisando da presença e do carinho de Cal. Como se tivesse sido atraído por seu pensamento, Cal chegou. Os faróis incidiram sobre seu rosto. Assustado, ele parou o carro de imediato e saltou. Pôs-se a correr em direção a ela e chamar seu nome. — Deus, o que aconteceu com você? Madeline sorriu aliviada. — Não se preocupe. Eu estou bem. Aconteceu algo maravilhoso comigo. Eu olhei para Boné e ele parecia ter sido tocado pela magia da lua e se transformado em uma escultura de algodão... Mas Cal certamente não estava em condições de entender. Ou ela não estava sendo clara em sua explicação. Tudo que ele parecia ter registrado era o envolvimento dos Cahill no episódio. Não houve tempo para Madeline tentar dissuadi-lo de dar queixa da agressão. Uma picape preta estava entrando no abrigo e eles não precisaram olhar duas vezes para reconhecê-la. Cal não havia fechado o portão depois de entrar. Assustado com o aspecto de Madeline, ele só se lembrou de desligar o motor antes de se precipitar ao encontro dela. A porta da picape foi aberta e os Cahill começaram a saltar. Um a um. Madeline sentiu Cal enrijecer a seu lado, mas teve um bom pressentimento ao ver o pai acompanhado dos três filhos. Ao se aproximarem, Booth Cahill tirou o chapéu. Cal não se moveu. Madeline apoiou a mão instintivamente no braço dele. — Sr. Wheat. Srta. Scott. Se puderem me dispensar alguns minutos, gostaria de falar com os senhores. A magia de alguns momentos antes desapareceu. Madeline só conseguia pensar que estava ensopada até os ossos, e que não tivera tempo de contar os detalhes do que lhe acontecera. Porque se soubesse como ela estava se sentindo, Cal não estaria com os punhos cerrados. Projeto Revisoras
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O homem pigarreou. — Srta. Scott, quero lhe pedir desculpas. — Desculpas? Acha que isso basta? — Cal esbravejou. Madeline apertou o braço dele com força para que se calasse. Ele relutou por um instante, mas atendeu-a. — Acho que não — o homem concordou. — Pedir desculpa é pouco. Não posso culpá-los se não quiserem ouvir o que tenho a dizer. Seguiu-se um breve silêncio. Cal manteve o controle e Madeline a confiança. O bem prevaleceria. Não era verdade que tudo que era bom durava pouco. — Houve um tempo em que éramos uma família como as outras. Nem sempre fomos como agora. Freqüentávamos a igreja aos domingos e ninguém se queixava de nós. Madeline reconheceu a postura firme de seu vizinho. Era um homem forte e orgulhoso. Não deveria estar sendo fácil para ele ter a humildade de se desculpar. —Tive um grande desgosto esta semana. Sabia que meus filhos andavam fazendo algumas bobagens, mas quis acreditar que eram apenas brincadeiras que os adolescentes costumam aprontar. Só acordei para o problema ontem à noite, quando fui informado sobre o roubo do jipe. Foi um delito sério. Poderia ter se tornado grave. Terei de pagar os danos ao proprietário, mas não poderia recuperar meus filhos se eles tivessem morrido no acidente. Hoje ao chegar em casa, encontrei Jason trancado no banheiro. Ele me contou que os irmãos haviam tomado sua chave à força e que pretendiam dar um susto na Srta. Scott. Eu fiquei esperando por eles à porta. Tivemos uma conversa de homem para homem. Percebemos que estamos nos comportando como delinqüentes e queremos voltar a ser gente de bem. Viemos aqui para nos desculpar e pedir uma segunda chance, se isso for possível. Cal suspirou. Madeline hesitou. Booth Cahill prosseguiu. — Jason me disse que gosta da senhorita. Que foi muito bem tratado aqui. Sei que é difícil acreditar em nossa boa intenção depois do que aconteceu. Mas estamos nos oferecendo para fazer parte de sua equipe de voluntários. Algo no tom de voz e na atitude do vizinho os convenceu. Cal e Madeline se entreolharam. Amavam-se e confiavam um no outro. Conseguiam se comunicar por um simples olhar. Aceitariam o oferecimento. Precisavam de ajuda e estavam mais
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do que dispostos a conviver em paz com os vizinhos. — Jason gostaria que o aceitassem de volta no emprego. Ele não fez nada de errado. Quanto a mim, Keith e Cody, ficaremos a sua disposição, duas vezes por semana, no período da tarde. Faremos qualquer tipo de serviço. Admito que estamos em falta com toda a comunidade e não posso culpá-los se quiserem dar parte de meus filhos ao xerife. Falhei com eles como pai. A partir de hoje, pretendo assumir minhas responsabilidades. Voltarei para casa ao fim de cada tarde em vez de ir beber no bar. Fez-se um momento de silêncio. Cal, então, estendeu a mão para o vizinho. — Aceitamos suas desculpas, Sr. Cahill e esperamos que cumpra sua promessa. Precisamos de toda ajuda que pudermos conseguir. Estaremos a sua espera e de seus filhos. O pai recuou para que os garotos também cumprimentassem os novos administradores do abrigo que ele sempre admirara apesar das constantes rixas com a velha Maud. — Quero que saibam que Keith e Cody adoram os animais. Apesar das malandragens que fizeram, jamais machucariam um de seus cães. Estão aguardando, ansiosos, que Jason leve o filhote para casa. Madeline não resistiu a dar um sorriso, mas foi Cal quem se dirigiu à cozinha para buscar Winner e entregá-lo a seu novo dono. Emocionado o menino abraçou o filhote contra o peito. Madeline foi até ele e lhe deu um beijo. Cal ofereceu-lhe a mão que foi timidamente aceita. — Não — disse Cal ao ver Jason tirar a chave do bolso para devolvê-la. — Quero que a guarde com você. Preciso de sua ajuda ou nunca terminarei aquele jardim. A família Cahill se despediu alguns minutos depois e Cal e Madeline foram para casa. Os faróis deixados acesos iluminavam o caminho. A noite voltara a ficar calma e tranqüila. O silêncio só era quebrado pelos passos lentos que ressoavam pelo cascalho. — Você acha que dará certo? — Cal murmurou. — Não há como saber. Teremos de tentar. Foi um caso de colocarmos o coração antes da razão.
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— Depois do que você passou dentro daquele poço, está certa de que eles merecem uma segunda chance? — Mais do que certa — Madeline garantiu. Cal enlaçou-a pela cintura. Como se isso não bastasse, interrompeu a caminhada e abraçou-a. — Sua generosidade me comove e admiro sua coragem. Eu te amo tanto, tanto... Madeline correspondeu, emocionada, ao abraço. — Mesmo feia como estou? — Você nunca foi nem será feia. Os anos cobrarão seu tributo, como cobra de todos, mas o tempo só deixará suas marcas naturais. Você não mudará, nem eu, nem o amor que estou sentindo. Eles se beijaram e prosseguiram. Madeline percebeu que Cal também se emocionou ao saber que Boné fora o autor real de seu resgate. — Bem, terei de lhe dar uma tonelada de ossos em agradecimento. Porque ele merece. E Titch também ganhará uma gratificação. Uma vara de pesca nova e apetrechos modernos. Tenho certeza que não aceitaria dinheiro. Sou capaz de apostar que olhará para mim, fará um gesto de descaso com a mão e resmungará: — Fiz o que qualquer um faria. Eles riram enquanto subiam os degraus da varanda. Cal parou e olhou para o céu. — O que era mesmo que você queria me contar sobre a lua e sobre o modo como ela brilhou sobre Boné fazendo com que parecesse uma escultura de algodão? Madeline o apertou bem forte em seus braços. Cal aprendera a prestar atenção em suas palavras e ela aprendera a confiar. O amor podia durar. O deles duraria para sempre.
Madeline chamava seu jardim de rosas de paraíso. Apropriadamente. As roseiras em flor, a manhã ensolarada e seu filho brincando de esconde-esconde com ela, Luly, Igg e Duffy. — Olá! Projeto Revisoras
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Cal não saberia dizer quem respondeu mais depressa a seu chamado. Sua esposa, seu filho ou os cães. Scottie fora concebido na primeira vez em que seus pais haviam feito amor. E mesmo que não tivesse sido o primeiro a atender ao chamado, foi quem ganhou um colo. — O que vocês estão fazendo aqui? — Cal perguntou a seu retrato em miniatura. — Apreciando a natureza e sentindo o perfume das flores — Madeline respondeu pelo filho. — Algo que você deveria fazer com mais freqüência. — É o que pretendo — Cal prometeu. — Agora que o abrigo está em pleno funcionamento, acho que não fará mal algum se eu der uma escapada no meio do expediente para aproveitar este refúgio de paz. Madeline se colocou nas pontas dos pés para beijar o marido. — Nunca poderei agradecer o bastante por esse presente que você me deu. — E eu nunca poderei agradecer o suficiente a felicidade que sinto por ter você. Ela sorriu e tornou a beijá-lo. Cada beijo era um compromisso de devotamento e de sensualidade. Trabalhavam juntos, dormiam juntos e o futuro se expandia ao infinito. — Como foi hoje? Alguma novidade? — Depois do nascimento de Scottie, Madeline ainda não voltara a trabalhar em período integral, mas continuava interessada em tudo que dizia respeito ao abrigo. Motivados pelo sucesso da recuperação dos irmãos Cahill, Cal e ela haviam ampliado o atendimento. Agora não se dedicavam mais apenas aos animais, mas também a jovens em processo de reabilitação. Eles haviam observado o desvelo com que os garotos tratavam os cães e a resposta positiva que se operara no caráter de cada um. Com o aumento da oferta de voluntários capacitados, Cal e Madeline resolveram aprimorar seus conhecimentos e se matricularam em cursos de psicologia. — Você não pode imaginar o que eu surpreendi Jason dizendo àquela menina que foi encaminhada para cá no início da semana — Cal confidenciou. — Estou curiosa. Projeto Revisoras
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— Que eu sou exigente e que obrigo a refazer o trabalho quando não me dou por satisfeito, mas que assim que noto que a pessoa merece minha confiança, tenho um coração de manteiga. Madeline concordou com Jason. Ele estava totalmente certo.
Fim
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