O cuidado em cena

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Organizadores Marlene Tamanini Francisco G. Heidemann Eliane Portes Vargas Sandro Marcos Castro de AraĂşjo

EDITORA


UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC Marcus Tomasi Reitor

Leandro Zvirtes Vice-Reitor Matheus Azevedo Ferreira Fidelis Pró-Reitor de Administração Leonardo Secchi Pró-Reitor de Planejamento Soraia Cristina Tonon da Luz Pró-Reitor de Ensino Fabio Napoleão Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade Antonio Carlos Vargas Sant’Anna Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

EDITORA UDESC Marcia Silveira Kroeff Coordenadora

CONSELHO EDITORIAL Marcia Silveira Kroeff – Presidente Nílson Ribeiro Modro – CEPLAN Alexandre Magno de Paula Dias – CESFI Janine Kniess – CCT Rosilaine Ripa – CEAD Edelcio Mostaço – CEART Rafael Tezza – ESAG Sílvia Maria Fávero Arend – FAED Rosana Amora Ascari – CEO Renan Thiago Campestrini – CEAVI Renata Rogowski Pozzo – CERES Veraldo Liesenberg – CAV

EDITORA UDESC Fone: (48) 3664-8100 E-mail: editora@udesc.br http://www.udesc.br/editorauniversitaria


O CUIDADO EM CENA: Desafios políticos, teóricos e práticos Organizadores

Marlene Tamanini Francisco G. Heidemann Eliane Portes Vargas Sandro Marcos Castro de Araújo

FLORIANÓPOLIS 2018 EDITORA


COLABORADORES Marlene Tamanini Ana Paula Vosne Martins Claudia Pedone Sonia Roncador Thays Almeida Monticelli Sandro Marcos Castro de Araújo Marcela Komechen Brecailo Daniela Isabel Kuhn Gilson Leandro Queluz Maria Izabel Machado Raquel Barros de Almeida Araújo Marly Marques da Cruz Eliane Portes Vargas Cláudia Medeiros de Castro Nicolle Feller PROJETO GRÁFICO/CAPA Mauro Tortato REVISÃO Francisco G. Heidemann

C966

O cuidado em cena: desafios políticos, teóricos e práticos. / Marlene Tamanini et al. (Org.). – Florianópolis: UDESC, 2018. 380 p. : 21cm. ISBN: 978-858302-141-4 Inclui Referências. 1. Democracia do cuidado. 2. Abordagens políticas. 3. Vulnerabilidades. 4. Feminização. 5. Autonomia I. Tamanini, Marlene. II. Heidemann, Francisco G. III. Vargas, Eliane Portes. IV. Araújo, Sandro Marcos Castro de. V. Título. IV. Ebook. CDD: 350.847 – 20. ed

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA: Biblioteca Central da UDESC


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................7 PARA UMA EPISTEMOLOGIA DO CUIDADO: TEORIAS E POLÍTICAS.................31

Marlene Tamanini EM BOAS MÃOS: ASSOCIATIVISMO FEMININO E FILANTROPIA NA ORGANIZAÇÃO DA PROTEÇÃO MÉDICO-SOCIAL À MATERNIDADE E À INFÂNCIA..........................................................................................................................71

Ana Paula Vosne Martins MADRES ECUATORIANAS BAJO LA LUPA DEL ESTADO ITALIANO: MIRADAS DISCRIMINATORIAS DE LAS RELACIONES DE GÉNERO Y GENERACIONALES DE LAS FAMILIAS MIGRANTES...........................................................................................99

Claudia Pedone CLARICE, PATROA................................................................................................................137

Sônia Roncador CUIDADO E PODER: AS RELAÇÕES DO TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO ATRAVÉS DA CULTURA DOMÉSTICA............................................161

Thays Almeida Monticelli CUIDADO, GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: ESSENCIALIZAÇÕES E INVISIBILIZAÇÕES NO TRABALHO DE CUIDADORAS DE PESSOAS COM A ENFERMIDADE DE ALZHEIMER.......................................................................................185

Sandro Marcos Castro de Araújo O CUIDADO DE CRIANÇAS: DESAFIOS CULTURAIS, SOCIAIS E POLÍTICOS.............................................................................................................................217

Marcela Komechen Brecailo


MULHER AGUENTA TUDO: CATADORAS, CUIDADO DA FAMÍLIA E TRABALHO PRECÁRIO ..................................................................................251

Daniela Isabel Kuhn e Gilson Leandro Queluz CUIDAR DE SI A PARTIR DAS TECNOLOGIAS DO EU: O CUIDADO NA ECONOMIA SOLIDÁRIA DESDE AS EXPERIÊNCIAS NOS CLUBES DE TROCA .............................................................................................................................279

Maria Izabel Machado PRÁTICAS DE CUIDADO NO TRATAMENTO DA TUBERCULOSE NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NA ROCINHA/RJ: A VISÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE, DOS USUÁRIOS E SEUS FAMILIARES.............................................................................................................................311

Raquel Barros de Almeida Araújo, Marly Marques da Cruz e Eliane Portes Vargas DESAFIOS PARA O CUIDADO NA ATENÇÃO AO PARTO DAS MULHERES IMIGRANTES..........................................................................................................................343

Cláudia Medeiros de Castro AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DA VONTADE E A RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA: CUIDAR DA VIDA, CUIDAR DA MORTE.....................................................359

Nicolle Feller SOBRE AS ORGANIZADORAS E OS ORGANIZADORES.......................................379


APRESENTAÇÃO O foco central deste livro é o cuidado e os desafios que ele nos apresenta a partir dos diferentes contextos, das teorias, das práticas e da pesquisa, tanto em âmbito nacional quanto internacional. No livro são contempladas, como um conjunto reflexivo, importantes interfaces a respeito da prestação dos cuidados; e os textos aqui publicados, em forma de capítulos, têm seus fundamentos em pesquisas, abordam o estado da arte e recuperam aspectos das tradições teóricas, ampliando assim os desafios ao seu escopo. Em cada capítulo aparecem as controvérsias dos desafios trazidos pelas práticas já estabelecidas, ou não, decorrentes da presença ou ausência de legislações, da forma como interatuam, ou não atuam, as políticas públicas e dos diferentes tipos de cuidado colocados em ação frente às exigências dos diversos contextos. Alguns contextos têm similitudes em suas exigências de cuidado e outros conferem o imperativo de se pensar na vulnerabilidade de todas as pessoas frente à vida, à morte, ao trabalho, à sobrevivência, ao abandono, às condições de saúde individual e coletiva, e como é, pode ser ou deve ser, sua relação com os sistemas de cuidado. Tem-se, portanto, um conjunto de questões, com sua imersão nas diferentes intersecções relativas ao cuidado no mundo contemporâneo e as suas complexidades epistêmicas, sua relevância social, cultural, econômica, emocional e política como um fazer e, sobretudo, com os processos de gendrificação dentro das relações com o cuidar e ser cuidado. O cuidado vem se tornando a cada dia mais exigente, dada a grande complexidade de questões que nele estão envolvidas. As vulnerabilidades e as necessidades, bem como a demanda de trabalho físico, emocional e de saber fazer estão com ele imbricadas e se tornam mais complexas e mais exigentes frente aos contextos de envelhecimento populacional, de necessidades da infância, de migração, falta de renda, adoecimento, desafios da preservação do planeta e de toda sorte de atitude que exige ação humana na forma de atenção e solicitude ética, pessoal e política. Nos desafios do cuidar pode-se identificar diferentes epistemologias e uma multiplicidade de abordagens, desde as que estão focadas na ética do 7


cuidado para pensar sua democratização, sua justiça e seu compartilhamento, quanto para constituir seu reconhecimento simbólico, cultural, democrático e a sua eficácia frente às configurações relativas à economia, à transnacionalização do trabalho, sobretudo feminino, e a sua organização dentro dos diferentes países, com as múltiplas implicações de gênero, classe e raça e dos novos desafios frente aos processos de migração. Os temas do cuidado estão particularmente imbricados nas políticas públicas e nos governos, na focalização da família, na profissionalização de cuidadoras e cuidadores, exigindo formas sociais e governamentais de atuação solícita, adequada, informada e eficaz, além de que ele traz também um rol de conteúdos próprios da filantropia institucionalizada e do estado das questões advindas de éticas comunitárias. São muitas e diferentes as epistemologias, em cada texto deste livro, e em todos estão presentes desafios, sejam eles relativos às políticas culturais de gênero, às cuidadoras, às atividades filantrópicas, hospitalares, à raça, migração, doença, fome, pobreza ou às decisões sobre a vida e a morte. Convidamos a leitora, o leitor, a ler o livro com entusiasmo crítico e com abertura reflexiva, considerando que muito ainda poderia ser dito, nos seus intercursos, nos seus ditos não ditos e para cada pensamento, teoria, linguagem produzida em outros contextos, quando confrontados com os nossos contextos de pesquisa. Todos os textos nele contidos, são resultados de pesquisas e de processos de formação contínuos; portanto, os temas e seus desafios teóricos estão sempre abertos e podem gerar novas redes de pensamento e de interpretações. Na sequência, pode-se identificar aspectos do que se encontra em cada capítulo do presente livro. Marlene Tamanini, em seu capítulo “Para uma epistemologia do cuidado: Teorias e políticas”, posiciona o tema do cuidado no campo da produção teórica e das desnaturalizações conceituais e baliza os fundamentos para construir reflexão e propor mudanças. Este fazer permite enxergar como as normatividades e os grandes princípios abstratos que delineiam este campo – no sentido de como são as práticas em cuidado – não levam em consideração o lugar dos sujeitos e sequer suas muitas interfaces, que são todas problematizáveis, desde as que são compostas pelas relações entre trabalho, reprodução e cuidado, casa, crise do cuidado e transnacionalização do trabalho, até as que se compõem nos conteúdos das relações de gênero, 8


no perfil de sexo e nas necessidades de quem cuida. A autora faz uma extensa revisão teórica, com o intuito de visibilizar a produção, em sua maior parte internacional, e reposicionar os conceitos, repensar suas normatividades, bem como recolocar velhas e novas questões à sua reconfiguração, tendo em mira reconstruí-lo como política social com abertura para os inúmeros contextos de especificidades onde o mesmo é exercido. A pesquisadora analisa como este campo teórico tem se constituído em termos de sua consolidação conceitual e, dessa forma, produz reflexão a respeito de suas diferentes e múltiplas perspectivas epistêmicas. Ao fazêlo, conversa com as ideias de Gilligan, Le Goff, Garrau, Tronto, Noddings, Arendt, Ruddick, Thomas, Graham, Ungerson, Stacey, Molinier, Laugier, Paperman, Gordon, Fraser, Kittay, Nussbaum, Feder, Hirata, Kergoat. E abre espaço para os muitos paradoxos envolvidos, quando o lugar do cuidado está em relações heterogêneas e exige um olhar para agências complexas, como as familiares, locais, estatais, nacionais, internacionais e transnacionais. Ela também demonstra como este é um campo de conhecimentos envolvido em tensões com as relações de poder imbricadas nele e com suas prerrogativas de feminização, que há muito tempo já são apontadas por diferentes vozes e pelas múltiplas posições de sujeito, em particular pela episteme feminista, que sempre esteve preocupada em retirar o tema do cuidado e de sua prática das grandes composições abstratas, e o fez porque entende que, com essas composições, ele se mantém naturalizado e invisivilizado. Tamanini parte do pressuposto de que no cuidado as normatividades não podem ser tomadas como restritivas, mas como bases a partir das quais se possa compor aspectos de validade para elocuções novas e para alcançar acordo a respeito do lugar de relevância dos conteúdos do cuidar, que são exigidos pelas linguagens, pelas práticas e pelo ordenamento das relações gendrificadas no feminino e em relação aos recursos sociais, econômicos, políticos e à chamada crise do cuidado. Tendo chegado a este ponto, como maneira de oferecer alguma capacidade analítica inspiradora e criativa, – cognitiva e praxiologicamente falando – a autora alerta para o fato de que resgatar aspectos da formação teórica do campo não significa fechar as possibilidades de articulá-lo como conceito de perspectivas diversas, para evitar uma única heurística para as múltiplas realidades das vidas humanas e de sua organização e processos de tomadas de decisões. 9


Ana Paula Vosne Martins, no capítulo “Em boas mãos: associativismo feminino e filantropia na organização da proteção médicosocial à maternidade e à infância”, elabora uma rica e intrincada análise do ideário filantrópico exercido pelas mulheres e de suas características não ameaçadoras à ordem masculina. Recorre à história da rica filantropa Margaret Olivia Sage, para demarcar como ela se dirigia às mulheres com talento, dinheiro e tempo, a fim de convencê-las a empregar seus trunfos trabalhando pelos mais necessitados e para o bem da humanidade; e para analisar a força moral deste movimento, durante os séculos XIX e XX, a partir dos modelos da caridade cristã e da valorização moral da feminilidade. Com grande competência, Martins denota como, por mais que o associativismo feminino filantrópico tenha se sustentado num discurso moral e numa ideologia de gênero conservadora, segregacionista e limitadora da cidadania e dos direitos das mulheres, seus caminhos e direcionamentos não foram guiados de uma maneira uniforme, pelos valores conservadores, como se houvera um script seguido por todas as mulheres que participaram das associações benemerentes que ofereciam cuidados sociais. Ela aponta como estudos mais recentes, sobre a biografia de mulheres que se destacaram na filantropia e sobre o associativismo feminino, mostram que não há uma experiência histórica única, neste terreno dos cuidados promovidos pela filantropia. Esses estudos revelam também os caminhos entrecruzados entre religião, filantropia, valorização moral das mulheres, consciência social e sufragismo, misturando experiências, aproximando expectativas, borrando ideologias. Estes aspectos são bastante instigadores, segundo a autora, à medida que trazem à luz uma categoria de cuidado frequentemente negligenciada pelos estudos feministas e mal aparada de perspectiva política, porque colocada aprioristicamente no interior do rechaço. A autora obriga a refletir a respeito da capacidade organizativa da filantropia para as instituições e para as práticas sociais em geral, sem desconsiderar, evidentemente, o fato de que está circunscrita no interior da naturalização e da essencialização do feminino. Neste capítulo, Martins realiza uma aproximação histórica da formulação da questão social no século XIX e de suas abordagens morais e reformistas. Discute o processo histórico de feminilização da filantropia, no século XIX, como um espaço moral privilegiado dos cuidados exercidos pelas mulheres das classes mais privilegiadas em favor dos necessitados, 10


particularmente das mães pobres e de seus filhos, numa aproximação discursivo-ideológica com a medicalização da maternidade. Analisa também como este processo crescente de institucionalização da questão social, que começou no século XVIII e alcançou seu apogeu no século XIX, nos mais diferentes países, é revelador daquela rearticulação do poder levada a cabo pela filantropia, através da qual, ao invés de reforçar a atitude reacionária e violenta frente às demandas e necessidades das chamadas classes perigosas, os filantropos propunham ações movidas pela razão e pela compaixão. Para Martins, organizar, distribuir, prover, contar, relatar, controlar, tudo isto envolvia ações planejadas como parte da construção de saberes sobre o mundo da pobreza; mas tais ações racionais deviam ser mobilizadas pela compaixão, por este sentimento nobre de benevolência pela humanidade; este sentimento social encontrou em homens e mulheres, educados na nova sensibilidade burguesa, os executores de uma forma específica de intervenção social e de um tipo de poder que precisa ser mais bem conhecido: o poder de fazer o bem que somente pessoas de elevada condição moral e social têm autoridade para exercer. O discurso reformador e a ação filantrópica não afrontavam a rigidez da ideologia da domesticidade e da separação das esferas pública e privada, preservando a ordem de gênero e a respeitabilidade das mulheres que poderiam frequentar o espaço público mais amplo e se envolver em aspectos da questão social, sem ofender os padrões de moralidade e a honra familiar. Era igualmente portador dos conteúdos religiosos, segundo Martins, tanto entre os protestantes quanto entre os católicos, o movimento reformista do século XIX, que dependeu diretamente da participação das mulheres. A partir do século XIX, as mulheres católicas assumiram gradualmente um lugar de destaque como protagonistas principais no sistema caritativo e filantrópico. Apesar da sua importância, o apelo e zelo religiosos não são suficientes para se entender a feminilização da filantropia ocorrida entre os séculos XIX e XX. A ideologia da domesticidade e a valorização moral das mulheres, por intermédio dos cuidados e da maternidade, constituem o pano de fundo para a sua visibilidade pública. A autora mostra como, por caminhos diferentes, as mulheres que se envolveram com a filantropia passaram por esta experiência de ir além de seus jardins. Mobilizadas pela religião ou pelo discurso laico reformista, compreenderam que seu lugar no mundo poderia ser mais amplo. Para 11


muitas delas, não se tratava somente de conquistar mais status de classe, mas de acessar outros espaços e almejar outras paragens, para além de seus lares, como as escolas, hospitais, escritórios, instituições sociais e, por fim, espaços na estrutura do Estado como profissionais da assistência. Por último, nossa autora pensa os contextos latino-americano e brasileiro relativos à assistência e à proteção materno-infantil e a decorrente aliança entre médicos e mulheres da elite, na organização de instituições e de serviços para mães pobres e seus filhos. Ela esclarece como os congressos pan-americanos da criança, que começaram a ocorrer a partir de 1916, são o resultado de um movimento pelo bem-estar e a proteção materno-infantil que, na Argentina, no Uruguai e no Chile, foi inicialmente organizado pelas mulheres benemerentes e as médicas, algumas delas vinculadas ao movimento feminista; ainda que conste, na memória histórica do pan-americanismo, que os médicos foram os idealizadores e os organizadores da proteção maternoinfantil, imprimindo uma orientação e direção profissional e científica à assistência, pautada pela autoridade do discurso médico e particularmente por uma visão instrumental das mulheres como mães. A pesquisadora encerra seu texto com um caso bem sucedido de aliança, para o qual analisa o processo de criação da Associação das Damas de Assistência à Maternidade e à Infância, na cidade de Curitiba, em 1914. Esta associação feminina benemerente foi criada para apoiar e manter a Maternidade do Paraná, também criada naquele ano, ligada à Universidade do Paraná, fundada em 1912. Ela demonstra como mulheres bem nascidas e casadas com homens ilustres da sociedade curitibana saíram do anonimato ou da sombra de seus maridos, dando início ao trabalho de organização e manutenção de uma instituição médico-social, a Maternidade. Este “trabalho do coração” lhes deu a oportunidade de atuar na esfera pública, partindo da experiência com os cuidados na esfera do privado, mantendo os códigos de respeitabilidade e alargando sua esfera de influência para além de seus lares. Cláudia Pedone, valendo-se de uma perspectiva transnacional e de gênero, em seu capítulo “Madres ecuatorianas bajo la lupa del Estado italiano: miradas discriminatorias de las relaciones de género y generacionales de las famílias migrantes”, relata os resultados de uma pesquisa qualitativa sobre a experiência de mulheres migrantes equatorianas no sul da Europa. O quadro de crise socioeconômica generalizada que atingiu o Equador, a 12


partir de 1999, associado à crescente demanda por mão de obra feminina em países como Espanha e Itália, fez com que surgisse a mulher como cabeça das cadeias migratórias ‘feminizadas’, como geradora dos principais recursos econômicos do grupo doméstico em nível transnacional e como responsável pelos processos de reagrupação familiar. Na introdução, a autora se reporta à produção científica no campo dos estudos sobre transnacionalismo familiar e as novas formas de organização do trabalho. E relaciona os termos-chave empregados na pesquisa, quais sejam: transnacionalismo familiar, família transnacional, maternidade transnacional, família migrante, família ampliada, família de orientação, contexto migratório familiar, concepções de família, famílias como construções sociais e desterritorializadas, perspectiva de gênero, relações de gênero e intergeracionais, cadeias migratórias ‘feminizadas’, organização do trabalho produtivo e reprodutivo no seio das famílias migrantes, formas de cuidado, cuidado transnacional, organização do cuidado, reorganização do cuidado, laços emocionais e financeiros, vínculos afetivos à distância, reacomodação nas relações de gênero e intergeracionais, cooperativas de psicólogos e terapeutas, casas de acolhimento e instituições de serviços sociais, renegociações de gênero e intergeracionais, menores sem voz, dificuldades econômicas, estereótipos sobre mulheres migrantes e suas famílias, abandono moral e material, estratégia de litígio, entre outros. Na segunda seção, sob o título “Transnacionalismo familiar e formas de organizar o cuidado: novas reflexões à luz da crise socioeconômica na Europa”, Pedone evoca o conceito de cuidado transnacional, no contexto migratório, para ajudar a compreender o intercâmbio de cuidado e apoio que transcende a distância geográfica e as fronteiras. Segundo Pedone, quando se aplicou a perspectiva de gênero ao estudo das cadeias migratórias, as famílias migrantes se tornaram objeto de estudo pelas ciências sociais. Sob uma perspectiva transnacional e de gênero, no final da década de 1990, o conceito de uma “maternidade transnacional” permitiu e propiciou a análise das implicações da migração internacional nas formas de organização do trabalho produtivo e reprodutivo no interior das famílias migrantes. A família transnacional foi definida como aquela cujos membros vivem na maior parte do tempo dispersos entre dois ou mais países, apesar de mesmo assim se manterem unidos por laços emocionais e outros elos. As famílias transnacionais não são tidas como unidades biológicas, mas como 13


construções sociais e desterritorializadas que sustentam e reconstroem os vínculos afetivos à distância através de chamadas telefônicas, correios eletrônicos, presentes, fotos, remessas e deslocamentos entre as sociedades de origem e de destino. Ao final, entretanto, observou-se que ainda há falta de estudos sobre a capacidade de agência das famílias transnacionais em tempos de crise e sobre a incidência da intervenção dos Estados de origem e de destino nas novas formas de organização do cuidado. A terceira seção aborda as “Continuidades e descontinuidades nas dinâmicas e estratégias migratórias das famílias transnacionais equatorianas na Itália”, isto é, contextualiza a migração familiar equatoriana para a Itália e os conflitos então gerados nas relações de gênero e geracionais. O aprofundamento da crise socioeconômica no Equador e a demanda crescente por mão de obra feminina na Europa fez com que as correntes migratórias perpassadas por gênero produzissem outro efeito: a mulher passou a tomar a dianteira da cadeia migratória. A participação da mulher no deslocamento da população equatoriana e a sua inserção no serviço doméstico gerou uma reacomodação nas relações de gênero e entre as gerações. Com o título “A intervenção do Estado italiano na estrutura familiar da população migrante e a resposta do Estado equatoriano”, a quarta seção lida com as concepções de família, as formas de cuidado e a sua relação com a população imigrante e desprovida de recursos. No contexto migratório familiar, a atuação dos serviços sociais e, por decorrência, do tribunal de menores do Estado italiano interveio na organização do cuidado das mulheres migrantes e dificultou o seu acesso ao direito de viver em família. Os serviços sociais e o tribunal de menores não reconheciam que o pai ou parentes como avós, tias, irmãos e irmãs maiores fossem familiares capazes de cuidar dos membros menores e consideravam que as casas de acolhimento e a adoção eram os métodos mais idôneos para garantir os direitos universais dos menores. Além disso, não cabia na perspectiva dessas instituições trabalhar para recuperar as relações familiares. A contraofensiva diplomática e judicial do Estado equatoriano tornou o afastamento ou a separação dos menores e adolescentes do seio de suas famílias de orientação como o último recurso legal disponível ao tribunal de menores, não o primeiro. A última seção tem o título “A ingerência dos serviços sociais italianos nas formas de organização do cuidado das famílias imigrantes”. Seguem algumas das diversas situações reveladas pela pesquisa: (a) a intervenção 14


dos serviços sociais ocorreu sempre que a própria família recorreu à ajuda do Estado e seus órgãos por causa de sua situação precária, sobretudo para tentar conciliar seus horários de trabalho com a organização do cuidado de seus filhos/as nas casas de acolhimento; (b) a família que tinha menores em comunidades ou em casas de acolhimento sempre esteve presente na organização do cuidado e nos laços afetivos mediados pelos serviços sociais, acompanhando o desempenho escolar e estando atenta ao uso de drogas e outros problemas de seus rebentos, embora seu tempo de contato fosse sempre mais reduzido do que o tempo permitido aos casais apostos para adoção dos menores; (c) renegociações de gênero e geracionais para receber de volta ao Equador os menores recuperados e reintegrá-los ao seio familiar foram acompanhadas e atestadas pelos pesquisadores, embora o complexo processo ainda esteja a requerer suporte interinstitucional adicional em termos de saúde, educação e apoio psicológico. Em todos estes casos, a interação com o Estado italiano, através das casas de acolhimento e do tribunal de menores, foi marcada por vieses, dificuldades e incompreensão da situação sui generis vivida pelas famílias migrantes. Em suas conclusões, Pedone afirma que, no caso dos menores sob a tutela do Estado italiano, a agência das famílias migrantes equatorianas colocou de novo em debate a noção de família, de pertença, de lar e grau de parentesco nos países de origem tanto quanto nos de destino. E, para fechar, em todos os casos estudados, no centro do conflito aparece sempre o papel das mães migrantes, que é marcado pela precariedade do trabalho e da moradia, criando, assim, dificuldades para a organização do cuidado. Sonia Roncador, sob o título “Clarice, patroa”, traz a questão do cuidado a partir da literatura. Embora tenha origem na área de literatura per se, seus interesses nas áreas de gênero, raça, literaturas e culturas lusobrasileiras, questões de imigração, servidão doméstica, educação de mulheres, estudos culturais brasileiros e transatlânticos estão muito bem estabelecidos, conforme revela seu currículo. No texto submetido para o presente compêndio, Roncador se debruça sobre as crônicas publicadas pela escritora Clarice Lispector, no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, nas décadas de 1960 e 70, em pleno período do regime militar. Dá destaque, em especial, aos textos de Lispector que tratam da relação vivida pela escritora com suas antigas empregadas. Mas, como se pode logo notar, são as ex-empregadas particularmente talentosas, perceptivas e sagazes 15


que inspiram a autora a criar o panorama típico das domésticas retratadas em suas crônicas. Como mulher branca, de classe média e consciente de sua classe patronal, Lispector passou por muita perplexidade, tensões e conflitos, na convivência com as representantes de uma classe distinta da sua, a das empregadas domésticas. Como reconhece Roncador, a escritora assumiu uma posição crítica em relação à cultura da servidão estruturante da vida familiar da classe média brasileira, ao mesmo tempo em que se valeu dessas narrativas pessoais como meio para revelar seu lugar social incômodo, por usufruir de privilégios nada compatíveis com a posição de intelectual politicamente engajada, ainda que tentando, em algumas crônicas, compensar esses conflitos, associando-se a uma ética do cuidado como forma de relação com suas empregadas. Com efeito, quando foi criticada por não apontar ações concretas destinadas a melhorar as condições degradantes de suas empregadas, Lispector retrucou que o fato de não saber como abordar ‘literariamente’ a ‘coisa social’ não refletia falta de sentimentos “de justiça”, “obrigação e responsabilidade social”. Na análise de Roncador, os encontros da escritora com a realidade precária de sujeitos circulando em seu espaço doméstico são, de modo geral, descritos como experiências traumáticas de uma retomada de consciência das chagas sociais não resolvidas, como revela, entre outras, esta sentença da autora: “o mundo não é [‘água com açúcar’]. Fiquei de novo sabendo…” (Lispector, A descoberta do mundo, p. 62). Independentemente de quão traumática tenha sido sua percepção dessa precariedade, Lispector também expressou uma compulsão à “ação social”, definida por ela como uma incumbência de “tomar conta do mundo”. Na crônica “Eu tomo conta do mundo” (4 de março de 1970), ela escreveu: “Hão de perguntar-me por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida. E sou responsável por tudo o que existe” (Descoberta, p. 421). Para Roncador, se “tomar conta de” significa “encarregar-se de” ou “responsabilizar-se por” algo ou alguém, pode-se igualmente ler a expressão como “cuidar de” e “proteger” o outro, cuja capacidade de agência se considera nula ou precária. Se Lispector tivesse escrito em outro momento de nossa história, como nos dias correntes, ela possivelmente não teria se limitado à postura politicamente correta e civilizada de uma ética do cuidado ou de tratamentos afáveis e gentis. Pelo contrário, ela poderia ter a seu dispor um arsenal de estratégias suscitadas pela plena vigência do regime democrático, dos grupos 16


de advocacy e respectivos movimentos e do aparecimento da disciplina da política pública, com sua ênfase na definição e seleção dos valores e objetivos políticos pretendidos e eleitos, mas também das estratégias e outros recursos efetivos necessários a sua efetiva implementação. O contexto histórico faria, ao menos em parte, a diferença. Thays Almeida Monticelli e Roncador colocam em foco as patroas, muito embora para contextos e temporalidades muito diferentes. No presente capítulo, Monticelli, ao dialogar com 15 mulheres patroas em Curitiba, ressalta aspectos de como a “cultura doméstica” estabelece tanto as práticas cotidianas dos lares, quanto os pressupostos de intimidade e cuidados e quanto a própria compreensão de direitos trabalhistas. Essa “cultura doméstica” é intrinsecamente formada nas relações de poder familiares, na divisão sexual do trabalho e constitui subjetividades e posicionalidades da patroa e da trabalhadora nas interações da vida cotidiana que carregam em si as falsas dicotomias instituídas entre público e privado. A partir da conceitualidade de “cultura doméstica”, ela analisa como se instituem práticas cotidianas nos lares, pressupostos de intimidade e de cuidados e até mesmo a própria compreensão de direitos trabalhistas. Analisa também como a “cultura doméstica” está a atuar e ressalta como o relacionamento entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas segue por lógicas que pautam negociações, subjetivações e práticas nas quais não estão superadas as diversas desigualdades e inferioridades estabelecidas. A autora visibiliza ainda como as tarefas e os cuidados demandados cotidianamente pela casa e pela família são compreendidos pelas mulheres que contratam uma trabalhadora doméstica remunerada e, consequentemente, como elas se relacionam e se comunicam com esta, como agenciam seus desejos e expectativas enquanto patroas, principalmente nos aspectos relacionados à higiene e à limpeza das casas. As transformações e as reconfigurações em relação à família e, por consequência, em relação ao trabalho doméstico remunerado, têm se visibilizado de maneira mais dinâmica, uma vez que a inserção das mulheres no mercado formal de trabalho se mostra fortemente presente. Os aparatos legislativos que asseguram direitos para a categoria profissional de trabalhadoras domésticas remuneradas se tornaram amplos e igualitários, no sentido do seu estabelecimento jurídico, e as críticas são cada vez mais contundentes sobre a maneira como este trabalho é estabelecido no país, 17


tomando sempre mais espaço nas mídias, na imprensa. Mesmo que sejam, porém, reconhecidas estas novas configurações familiares, tanto no discurso como nas práticas das patroas, mostra-se, segundo a autora, uma faceta conservadora em relação ao trabalho doméstico remunerado no Brasil, reproduzindo hierarquias e desigualdades cotidianas e legislativas. A cultura que permeia as relações com o doméstico estaria diretamente conectada com as percepções e reconhecimentos legislativos, pautando as negociações entre patroas e trabalhadoras, em uma complexa rede meritocrática, na qual se interpõem afetos, doações, lealdade e dependências, dificultando, assim, a democracia do cuidado. De uma forma bem original, Monticelli apresenta a rotina doméstica, na voz das patroas escutadas na pesquisa, e como suas narrativas demonstram que elas se sentem aprisionadas, ao fazer o trabalho doméstico. Elas o definem como desgastante e consumidor de tempo, para realizar algo que elas consideram realmente produtivo, como é a convivência agradável com os filhos, filhas e com os seus. O tempo produtivo almejado pelas patroas está vinculado ao mercado de trabalho formal, ao desfrutar do tempo de lazer com a família, dar mais atenção às demandas dos filhos e filhas, ter mais tempo para suas próprias demandas enquanto mulheres. O trabalho doméstico está vinculado com uma ideia de humilhação, infelicidade, improdutividade, desvalorização; além disso, elas consideram que se trata de um trabalho que as deixa “feias”, “mal arrumadas”, “cansadas”, “desgastadas e estressadas”. A contratação de uma trabalhadora doméstica significa a possibilidade de estas mulheres livrarem-se desses sentimentos de infelicidade, de aprisionamento, desvalorização, canseira, já que não existe tampouco o compartilhamento das atividades da casa entre cônjuges! A autora mostra como no discurso das patroas ainda ressoam pressupostos servis, práticas discriminatórias e relações baseadas em negociações da vida cotidiana, e não dos preceitos legislativos. A resistência em assimilar as novas práticas sobre o trabalho doméstico remunerado é uma das formas de apresentação da “cultura doméstica” que tenta preservar posições hierárquicas dentro das relações de poder e cuidado, mesmo que esteja inserido em contexto “moderno”. Segundo a autora, a ausência do Estado e dos homens na vida cotidiana doméstica distancia cada vez mais o cuidado de ser pensado em um exercício político democrático, expondo características conservadoras praticadas nos lares e provocando por 18


consequência uma desigualdade fundada nos aspectos de dependência, interdependência e vulnerabilidade. Sandro Marcos Castro de Araújo, em seu capítulo “Cuidado, Gênero e Políticas Públicas no Brasil: essencializações e invisibilizações no trabalho de cuidadoras de pessoas com a enfermidade de Alzheimer”, aborda a complexa relação entre uma condição comum de todas as pessoas dependentes de algo ou de alguém, isto é, a de receber algum tipo de cuidado, em alguma circunstância e momento de suas vidas, a gendrificação desse trabalho material e afetivo e a quase total invisibilização das trabalhadoras do care no seio da sociedade e do Estado. O autor analisa essa problemática a partir de narrativas obtidas em pesquisa com mulheres cuidadoras de pessoas com a enfermidade de Alzheimer. Em sua introdução, o autor evidencia essa codependência entre todas as pessoas, ao afirmar que ora somos provedores, ora receptores de alguma modalidade de cuidado. Da mesma forma, aponta que, apesar dessa necessidade comum a todos, o cuidado continua a ser naturalizado e essencializado como atividade de uma parcela da população, as mulheres. Outro elemento presente nas ideias introdutórias do texto de Araújo é a crescente demanda por serviços de cuidado em processos de transnacionalização, no mercado global que demanda o cuidado de trabalhadoras do care. Na primeira seção do capítulo, sob o título “A gênese do care na trajetória de vida das mulheres cuidadoras”, Sandro Araújo analisa alguns elementos comuns, na trajetória de mulheres que passam a desempenhar o trabalho do cuidado: o parentesco, o gênero, a proximidade física, a proximidade afetiva e a necessidade de algum tipo de ganho financeiro. A esses aspectos o autor afirma que se soma uma espécie de dever moral vinculado ao cuidado. Esta noção de dever moral, constituída pelos vínculos afetivos e pela feminilização do trabalho do cuidado, efetiva-se, com toda a sua carga normativa, na vida e na subjetividade dessas mulheres cuidadoras e em suas relações sociais. Nesta seção, o autor destaca que, para além desse enfoque, isto é, de uma dimensão de necessidade e de dever moral, é preciso reconhecer os custos financeiros do cuidado, em especial quando se conjectura um necessário processo de politização e democratização do mesmo. Na segunda seção do capítulo, “Cuidado, envelhecimento e suas vicissitudes”, Araújo ressalta o aumento da expectativa de vida das pessoas 19


e de como isso passa a configurar novos arranjos sociais e políticos, assim como demandas próprias dessa parcela da população, como é o caso das enfermidades típicas da respectiva faixa etária. A doença de Alzheimer está nesse contexto como um dos problemas mais graves a ser considerado, uma vez que atinge um percentual cada vez maior de pessoas e, dadas as limitações que impõem aos atingidos e ao seu entorno social, exige atenção e cuidado constante. Sob o título “O espaço sociopolítico que (não) ocupa o/a trabalhador/a do cuidado destinado aos idosos”, o pesquisador inicia a terceira seção de seu capítulo, partindo de uma série de outros estudos sobre a temática para evidenciar a desconsideração e a invisibilização social e política a que estão submetidas essas trabalhadoras. Isso revela, dentre outros elementos, como o cuidado continua sendo desconsiderado na agenda das políticas públicas ou, quando citado, conforme reconhece Araújo, nada mais sendo do que um apêndice de programas e projetos desenvolvidos no âmbito do Estado. Por fim, ao destacar a falta de regulamentação da profissão do cuidador de idoso, no cenário nacional, frente a experiências e práticas desenvolvidas em outras nações, como França e Japão, nosso autor torna claro que se trata de uma inequívoca orientação política do Estado brasileiro e de seus gestores, assim como mais um obstáculo no processo de reconhecimento do cuidado como atividade material e afetiva de todos os cidadãos. Em suas observações finais, o texto de Sandro Araújo sugere que, ao refletir sobre a problemática do care e de quem o executa, em sua complexidade, é necessário evitar posturas ingênuas que postulam que a regulamentação de uma profissão, como seria o caso da profissão do cuidador de idosos, seja condição única para se obter o reconhecimento e a valorização do cuidado e de suas/seus trabalhadoras/es. Não há dúvida de que esta é uma etapa necessária, mas a democratização do cuidado e sua necessária politização não serão obtidas de forma simplista, muito menos ao se estabelecer que um fator isolado seja causa e solução de estruturas e ideologias tão arraigadas no imaginário e nas práticas sociais. Marcela Komechen Brecailo, no capítulo de sua autoria, “O cuidado de crianças: desafios culturais, sociais e políticos”, apresenta os entrelaçamentos culturais e sociais da feminilidade da maternagem e do cuidado de crianças. Nesse contexto, o cuidado e o trabalho material e afetivo são concebidos como uma espécie de dever moral das mulheres. 20


Em sua reflexão, Brecailo indica como a função da maternidade é resultado de uma construção histórica, perpassada por essencializações e naturalizações que, por sua vez, produzem discursos variados que, no âmbito do cuidado, transformam essa atividade em algo próprio do espaço privado, descaracterizado de sua dimensão política e econômica. Na seção intitulada “As experiências de cuidado e aleitamento materno”, partindo do diálogo, em situação de pesquisa de campo, estabelecido com doze mulheres, mães de crianças com 6 meses a dois anos de idade, a autora aborda suas rotinas de cuidado com os filhos e filhas, retratando suas trajetórias, desafios e sobrecargas da maternagem. Neste processo de vivência e de significação das experiências relacionadas à maternidade, ao cuidado, especificamente ao aleitamento, existe um encontro/confronto entre saberes que orientam e determinam as práticas e formas ideais de care, na relação entre as mães, suas mães e os profissionais de saúde das unidades de acompanhamento das mães, no que tange ao aleitamento. Sob o título “A dimensão cultural e social do cuidado de crianças”, Brecailo indica que as diferentes formas de cuidar, esperadas para um homem e para uma mulher, incidem na forma em que o cuidado será efetivamente prestado às crianças. Nas próprias famílias, o cuidado é concebido como uma atividade de mulheres, que se unem em redes de solidariedade para a execução desse trabalho. Daí decorreria, para algumas das mulheres com quem a autora estabeleceu diálogo, uma valorização subjetiva de si, no trabalho do cuidado, um “sentir-se” bem com suas tarefas e uma dignificação em ser, nas palavras de Brecailo, “boa mãe” e “boa dona de casa”. Por outro lado, essa condição de associação entre o cuidado e a mulher, neste contexto, limita as possibilidades de escolha e realização pessoal dessas mulheres. Na última seção do texto de Brecailo, sob o título “A dimensão política do cuidado de crianças”, a discussão sobre o care é tensionada por sua naturalização como atividade de mulher e por sua invisibilização social e política. Nesse sentido, a desvalorização e a despolitização do trabalho do cuidado geram injustiças sociais profundas e – como as mulheres são as responsáveis pelo cuidado – limitam suas condições objetivas de autodesenvolvimento, de ganhos em atividades remuneradas, ou mesmo no gozo de seus períodos de tempo livre. Por fim, em suas considerações finais, a autora descortina uma continuidade entre as formas como as relações de cuidado são estabelecidas 21


socialmente e vivenciadas pelas pessoas e a falta de justiça e democracia no exercício do trabalho do care. Esta divisão entre homens e mulheres e suas supostas responsabilidades deve ser vista como elemento gerador de arbitrariedades, que restringem as pessoas em suas possibilidades de escolha. Por isso, a responsabilização diferenciada entre homens e mulheres, para as atividades do cuidado, é definidora da construção de alternativas e oportunidades. Daniela Isabel Kuhn e Gilson Leandro Queluz, no capítulo “Mulher aguenta tudo: catadoras, cuidado da família e trabalho precário”, apresentam um contexto de trabalho absolutamente degradante, cuja ausência de registros de direitos e condições de pobreza faz com que as catadoras de lixo estejam exercendo seu trabalho movidas por necessidade econômica, em situação de extrema vulnerabilidade à sua saúde, à vida e à sociedade. Além deste aspecto, os autores trazem elementos da rotina de trabalho das catadoras e dos catadores de materiais recicláveis, buscando compreender como a noção de abjeção se expressa na vida destas pessoas. Neste contexto, o trabalho com os afazeres domésticos e os filhos, assumido prioritariamente e/ou exclusivamente pela mulher, colabora como um dos fatores de dependência e desvalorização das relações de dependência que empurra muitas das mulheres catadoras para a zona inóspita da abjeção: o lixo. Catar materiais recicláveis não tem sentido positivo na cultura do urbano e do social; é como se a pessoa fosse lixo, conforme apuram os autores, a partir da narrativa de catadoras. Estas relações não se encontram postas no interior de projetos urbanos de limpeza das cidades, do cuidado do lixo e das questões ambientais. Também não estão inseridas em políticas públicas vinculadas ao cuidado da saúde das catadoras e catadores, ou ao projeto de urbanidade das cidades e do destino do lixo. As mulheres grávidas estão neste trabalho, comprometendo a si mesmas e a saúde dos seus bebês, e certamente não encontrariam outro meio para viver, a não ser este de catar lixo. Este lhes permite cuidar dos seus. Elas conciliam o trabalho e a maternidade, sem saber e sem sentir que, em outras condições, poderia existir licença maternidade, um benefício previsto na Constituição. E o fazem, porque precisam cuidar. Elas também não contribuem para a previdência, trabalham na informalidade. Portanto, catadores e catadoras neste trabalho são pessoas que encarnam as figuras sociais estigmatizadas do passado e do 22


presente. Elas estão fora de qualquer sistema de cuidados sociais, políticos, filantrópicos, privados ou de terceiro setor. O cuidado político, social e econômico está ausente. Carteira de trabalho, saúde, direitos trabalhistas, previdência não existem. E elas também não são consideradas pessoas necessárias e importantes para a construção do espaço urbano. Demonstrase como, neste contexto, a autonomia cede à necessidade, a vulnerabilidade aprisiona as emergências diárias, fora do âmbito dos direitos e das próprias emergências do cuidar. A dependência aprofunda as relações com a pobreza e o tema do lixo não é tomado como constitutivo da ética do cuidado como justiça, e sequer do respeito com o ambiente e as pessoas no seu entorno. Não há políticas de Estado sensíveis e acessíveis, no sentido de viabilizar um primeiro impacto positivo na vida destas mulheres. Elas não contam com creches para os filhos, escolas, áreas de lazer, ou sistemas de saúde. Estas mulheres catadoras se apegam aos horários flexíveis deste catar de lixo como forma de organizar a sua sobrevivência. Segundo a análise dos autores, as condições desse não cuidar, desta cegueira e descaso frente ao lixo, desse desprezo pelos problemas das periferias e das pessoas que estão vivendo do lixo, faz com que as pessoas que trabalham com ele sejam alvos de abjeção como se fossem iguais ao lixo. Isto mantém e constitui a vulnerabilidade social, somando as pessoas como mais um vetor desta construção que aparece como se fosse natural. As incursões teóricas que são praticadas pelos autores objetivam situar o debate que acontece dentro do campo da pesquisa, a respeito dos códigos que regulam os recintos da normalidade e da abjeção, reivindicando que sejam reconhecidos como construções. Estes são considerados aqui como os conceitos e modelos que circulam e se reafirmam, nos discursos e nas práticas sociais e culturais, e são reproduzidos nas estruturas que empurram para a produção de corpos subjugados como abjetos ou para os corpos limpos e higienizados, aceitos como normais. Este capítulo, que é parte da tese de Daniela Kuhn, permitiu concluir que ser catadora e catador de materiais recicláveis tem o significado de conviver com a realidade da existência como um corpo que causa abjeção. O reconhecimento de que existe uma concepção a respeito das catadoras e dos catadores que os/as enquadra como corpos abjetos, que opera por preconceitos, discriminações, medos e violências, pode significar uma possibilidade de se rever esta percepção. Os desafios são muitos e o cuidado não pode ser tomado apenas como virtude ou vinculado a atos de prevenção e de proteção; é preciso pensá-lo 23


como justiça social. Não é, portanto, parte de atos isolados; é a capacidade de agir eticamente frente aos desafios do reconhecimento. Maria Izabel Machado desenvolve, em seu texto “Cuidar de si a partir das tecnologias do eu: o cuidado na economia solidária desde as experiências nos clubes de troca”, uma argumentação que está igualmente inserida num contexto de grande vulnerabilidade econômica e social. Machado analisa, a partir do campo de sua tese, como os clubes de troca, uma das expressões da economia solidária no contexto brasileiro, reúnem pessoas com o objetivo de fazer circular produtos sem a intermediação do dinheiro. Seu foco repousa sobre o fato de que estes encontros regulares oportunizam que, além das trocas, sejam desenvolvidas diversas experiências que ultrapassam a circulação de objetos. Ela dá visibilidade ao cuidado construído a partir das experiências das mulheres com práticas de cuidar de si e de cuidar do outro. As reflexões acerca dessa temática em seu texto visibilizam uma teia de complexidades que envolvem tanto quem cuida como quem demanda cuidado. Ela mostra como o fato da participação, majoritariamente feminina nos clubes, converte-se em espaço em que as mulheres trocam saberes e práticas, produtos e experiências. A autora põe o foco na percepção de que o cuidado, como vivido pelas mulheres participantes nos clubes, é uma das faces da agência. Se os contextos socioeconômicos em que se acham as possibilidades de reinvenção se mostram limitados, a partir de uma experiência coletiva em que as reciprocidades se estabelecem e se repactuam em cada interação, as margens do existir ficam tensionadas. Se não há dinheiro, há a moeda social; se não há psicólogo na unidade de saúde, há as colegas que ouvem atentamente; se não sobra dinheiro para cuidar da aparência, há as trocas, trazendo a “roupa de sair” e as bijuterias, nas palavras da autora. Ao deter-se sobre a construção dos clubes de troca, sua história, declínio e como alguns continuam a existir, a autora não apenas mostra aspectos da sua estruturação e da sua relação com a conjuntura mais ampla das questões econômicas, políticas e de assessoria. Igualmente, foca seu olhar nas narrativas sobre as experiências e trajetórias que emergem, a partir das entrevistas, tendo em comum não apenas condições similares de existência prática e simbólica, mas também alguns pontos de inflexão em que as trajetórias foram sendo alteradas. A experiência da morte, da doença 24


e do sofrimento psíquico como situações limítrofes, que exigiram novas respostas, no caso dessas mulheres, foram respondidas em boa medida no exercício da coletividade com outras mulheres. A economia colocada em curso nos clubes pode ser alocada no campo do pragmático, do cotidiano, que conecta experiências e sujeitos, tendo o cuidado voltado principalmente aos filhos como o seu fio condutor. Machado demonstra como as experiências, que se dão no âmbito dos clubes de troca, transcendem não apenas aos limites do econômico como às próprias fronteiras do grupo. Segundo a autora, elas possuem potencial de informar novas posicionalidades aos sujeitos, desde novas percepções de si e de reconhecimentos entre os pares. As relações intragrupo favorecem o restabelecimento de sociabilidades primárias, resultando não apenas na mitigação da miséria absoluta, mas no estabelecimento de redes de proteção que incluem o combate à fome, à violência contra a mulher, a proteção da velhice e da infância e um espaço de reconhecimentos mútuos. As mulheres recuperam sua voz, sua agência nos clubes de troca. Ao acionar as teóricas feministas, analisa como as teorias vêm, portanto, não apenas preencher lacunas teóricas, mas propor abordagens intersectadas de forma mais complexa. Neste caso, demonstra como as ordens sexual e econômica operam juntas, como as relações perpassadas pelo sexo e pelo gênero estão profundamente imbricadas com os sistemas produtivos, com a produção de representações, com as teorias e epistemologias. Raquel Barros de Almeida Araújo, Marly Marques da Cruz e Eliane Portes Vargas, no capítulo “Práticas de cuidado no tratamento da tuberculose na atenção primária à saúde na Rocinha/RJ: a visão dos profissionais de saúde, dos usuários e seus familiares”, apresentam uma reflexão sobre o cuidado ao usuário portador de tuberculose (TB) no Tratamento Diretamente Observado (TDO), que tem como foco a observação direta da tomada da medicação anti-TB, em uma unidade básica de saúde, no Rio de Janeiro. No Brasil, em termos de organização das práticas de atenção primária à saúde, as propostas de humanização e integralidade no cuidado em saúde apresentam-se como alternativa de ação, no âmbito das políticas públicas, sendo apontadas como estratégicas para o enfrentamento da crise na assistência à saúde. Diante de alguns autores que, ao assumirem uma perspectiva crítica na abordagem ao tema do cuidado, elas apontam 25


os limites da racionalidade técnica pautada em critérios biomédicos, posto que este trabalho problematiza as tensões presentes no cuidado integral no campo da saúde coletiva, que oscilam entre o cuidado centrado nas necessidades do usuário e aquele centrado na medicalização e/ou organização do serviço. O trabalho de campo realizado permitiu observar os diferentes problemas enfrentados pelo portador de tuberculose, e/ou de sua família, na interação com os profissionais de saúde, que se veem confrontados com os desafios e as diferentes dimensões da vida cotidiana que intervêm no tratamento medicamente definido, tais como as dificuldades envolvendo a construção de vínculo, a manutenção da autonomia do usuário no decorrer do tratamento e a violência naturalizada do território que impõe a interrupção e a descontinuidade dos tratamentos. Ao entrarem em contato com os diferentes problemas enfrentados pelo usuário, ou mesmo por sua família, os profissionais interagem com a dinâmica de vida do usuário e com os diferentes fatores que podem facilitar ou dificultar o seu tratamento. De qualquer maneira, parece ser marcante para o usuário a presença do profissional fora do espaço de serviço e mais próximo ao cotidiano de vida do usuário e com a postura mais ativa de promoção da saúde. Cabe destacar que a família foi referida e valorizada pelo profissional de saúde como fundamental para a continuidade e o sucesso do tratamento pelo usuário portador de TB. A inclusão da família na gestão do cuidado se apresenta, portanto, potencialmente como recurso relevante das práticas de cuidado no TDO da TB. No entanto, em que pese tal valorização, há que se considerar a perspectiva generalizante da família no campo da saúde, onde esse apoio da família muitas vezes se confunde com o apoio feminino aos seus familiares, ressaltando uma dimensão gendrificada do cuidado em saúde. Ainda que este trabalho não adote tal perspectiva de análise, torna-se relevante ressaltar que as questões de gênero relativas às práticas de saúde, no que concerne ao cuidado, são pouco problematizadas. O ponto de partida para a caracterização das práticas de cuidado, neste estudo, foram as dimensões de acolhimento, relação dialógica e vínculo, que estão diretamente relacionadas com o conceito de integralidade do cuidado, e os princípios da Estratégia de Saúde da Família, contexto onde o TDO é realizado. Com base nas dimensões analisadas, se coloca o dilema entre o cuidado mais humanizado e centrado no cuidado do usuário e o cuidado medicalizado e centrado na organização do serviço. Trata-se de uma tensão que promove uma dicotomia 26


a ser superada, pois ambas as dimensões do cuidado se sobrepõem, de modo a orientar a lógica de ação dos atores envolvidos. O estudo aponta a necessária ampliação da abordagem do cuidado, dados os limites das práticas de saúde contemporâneas para oferecerem respostas efetivas às complexas necessidades de saúde de indivíduos e de grupos sociais. Cláudia Medeiros de Castro, em seu capítulo intitulado “Desafios para o cuidado na atenção ao parto das mulheres imigrantes”, aborda as demandas para a atenção à saúde de mulheres imigrantes. Como se sabe, a migração internacional é um fenômeno contemporâneo que mobiliza governos em busca de respostas para as pessoas que fogem de regiões em conflito, como é o caso dos refugiados sírios, ou que migram em busca de trabalho, estudos, melhores condições de vida, como no caso dos imigrantes vindos da Bolívia e do Peru para o Brasil. Com efeito, os imigrantes que vêm ao país têm necessidades de saúde, educação, proteção trabalhista, entre outras, que esperam ver supridas pelos órgãos de governo. Neste capítulo, a autora aborda as demandas das mulheres imigrantes que recorrem ao setor de saúde, enfocando, especificamente, o cuidado no parto e pós-parto oferecido às imigrantes bolivianas no município de São Paulo. Com base nos resultados de dois estudos centrados no tema da atenção à saúde das imigrantes bolivianas, Medeiros de Castro discute a atenção obstétrica oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que se pauta pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher e é realizada pelos profissionais dos serviços de saúde. Discute os (des)encontros que acontecem no dia a dia dos serviços, onde diferentes perspectivas culturais sobre saúde e sobre o cuidado a ser oferecido às mulheres no parto e pósparto provocam mudanças e novos posicionamentos, tanto nas práticas dos profissionais de saúde quanto nas mulheres imigrantes. Além de estudar especificamente o caso das imigrantes bolivianas que demandam o serviço público de saúde no município de São Paulo, tendo por base as referências teóricas adequadas e requeridas por seus estudos, a autora também se reporta a duas experiências em outros países, para ilustrar situações em que a dimensão cultural parece fazer parte há algum tempo da política nacional de saúde. Trata-se dos casos do Chile e da França, onde não ocorrem as dificuldades enfrentadas pelo serviço de saúde oferecido por enquanto pelos profissionais brasileiros. 27


As reflexões de Medeiros de Castro focalizam como as diferentes perspectivas culturais se expressam no cuidado e nas ações envolvendo o atendimento, no contexto dos serviços públicos de saúde que, por sua vez, impactam a experiência do parto das mulheres imigrantes. Diante de mudanças ocorridas recentemente no processo de migração no Brasil, atingindo o setor de saúde, ao qual incumbe o atendimento universal preconizado pelo SUS, exemplos do cotidiano da assistência ao parto apresentados ilustram o descompasso na comunicação dos profissionais de saúde com as mulheres, resultando que esses profissionais, em geral, não tomam em consideração as lógicas culturais norteadoras de suas atitudes no decorrer do trabalho de parto e, muito menos, as lógicas culturais de suas pacientes. A reflexão indica o risco de descaracterização do cuidado em saúde, como pensado por autores do campo da saúde coletiva, na medida em que o modelo biomédico tende a promover a subordinação dos aspectos relacionais a normatizações técnicas, o que promove um empobrecimento da dimensão cuidadora. Em resumo, as experiências citadas, do Chile e da França, ocorreram em países em que a dimensão cultural parece estar incorporada de forma efetiva na agenda da saúde. Quando nos voltamos para o Brasil, ainda que em geral se pense que o nosso país é um lugar acessível às diferentes culturas, onde não há discriminação e todos são recebidos de braços abertos, a ideia de que, enquanto demandantes de serviços de saúde, somos todos nacionais permanece, se mantém inalterada e se manifesta no dia a dia, como se pode observar nos sistemas de registros dos dados sobre saúde e nos documentos que dão base às políticas de saúde do país. A invisibilidade da população imigrante tem impedido que políticas públicas voltadas para a população imigrante resultem no desenvolvimento de ações de acolhimento e cuidado para os que aqui chegam e passam a integrar a sociedade. Na falta de políticas públicas e de diretrizes, nos diferentes níveis de gestão, resta às instituições de saúde, que recebem inumeráveis imigrantes, dar respostas insatisfatórias, posto que são reativas e não podem contar com a retaguarda do SUS. Finalmente, a autora lembra que possibilidades de mudança do cenário começam a ser delineadas, como mostram a aprovação da Política Municipal para a População Imigrante no município de São Paulo, em 2016, que é um exemplo de resposta construída coletivamente pela sociedade, e a recente aprovação da Lei da Imigração em nível nacional. Embora um tanto cética, Medeiros de Castro nutre a esperança de que as diretrizes contidas 28


nos novos marcos legais possam ser transformadas em ações de saúde alicerçadas na perspectiva do cuidado intercultural. Nicolle Feller, no capítulo “As diretivas antecipadas da vontade e a responsabilidade civil médica: cuidar da vida, cuidar da morte”, nos coloca frente à aplicação das diretivas antecipadas de vontade, no Brasil, contextualizando-a na relação médico-paciente e na possível responsabilização civil do profissional frente ao direito do paciente à manifestação antecipada a respeito de sua vida ou de sua morte. A autora reflete sobre as questões que envolvem as decisões de tratar da saúde e decidir pela morte, considerando que, contemporaneamente, as pessoas têm como necessidade primordial recorrer a atividades da área médica, para preservar, tratar, reduzir riscos e potencializar sua saúde. Estes aspectos fazem parte das novas condições tecnológicas, do acesso aos serviços e da vontade de viver com qualidade, ao mesmo tempo em que são processos exigidos dentro do foro da autonomia e da vontade, no que tange ao direito de viver bem. A ideia de bem-estar, contudo, sempre está carregada de outros elementos, como os que tratam da dignidade da vida humana e do sentimento de viver bem. Por isso, quando se trata da autonomia e do próprio direito humano de morrer dignamente, as questões tornam-se complexas, porque o tema da vida e da morte tem diretivas culturais e sociais diversas e esbarra, particularmente, em questões religiosas e morais tais que, por vezes, fica atribuído a decisões atemporais, ahistóricas, ou ligadas aos princípios sobrevindos de uma ética generalista, quando não atribuídos à vontade divina. Contudo, frente ao cuidado com a vida interpõe-se também o cuidado com a morte como parte do mesmo processo de viver. A ausência de condições de interagir, de protagonizar ou atuar, com participação biopsíquica, espiritual e social, já é morte. A dignidade como uma complexa teia envolvendo autonomia, capacidade biopsíquica, desejo e vontade, que se expressam em ações, gestos, formas de sentir e de se comunicar, é condição do viver. Perdidas estas condições, seguramente interpõe-se, entre a dimensão física e o gozo dos direitos, o direito à antecipação da vontade de morrer, se as condições de viver já não forem mais uma possibilidade. Quando as condições de morte já estão desencadeadas, parece que se deva poder amenizá-la, e não manter o sofrimento para prolongar uma vida que já não existe. 29


No entanto, é grande a dificuldade humana para tomar estas decisões. Estas experiências de ter de reconhecer que a prorrogação da morte coloca em suspeição as formas que contenham processos de prorrogação de sofrimentos exigem discutir que o respeito que se tem à vida deva ser igualmente o respeito merecido em relação à morte, sendo coerente proclamar-se o direito de morrer e de antecipar a vontade como decorrente do direito fundamental a uma vida digna. Segundo nossa autora, o direito à vida e à morte digna, como expressão de diretivas antecipadas da vontade, coloca o foco das decisões na necessidade de adotar medidas prévias, para facilitar o outorgamento das tomadas de decisão às pessoas e aos hospitais, ou centros de tratamento, para os quais é útil existirem modelos e disposições discutidas, como também espaços com reflexividade aberta aos diferentes tipos de pedidos que as pessoas possam vir a fazer. A expressão da vontade sobre a morte pode se dar em circunstâncias muito diferentes, de pessoa para pessoa, e pode trazer grande dificuldade à tomada de decisão. Ela está, portanto, envolta em cuidados legais e, particularmente, em princípios que precisam ser mantidos de forma aberta aos sujeitos e ao diálogo com a realidade empírica, para que se aperfeiçoem, à medida de sua necessidade. Nesse contexto, portanto, para além da livre escolha do paciente acerca das medidas e dos tratamentos curativos (em clara ênfase ao direito à vida), ganha enfoque, na atualidade, o próprio direito de morrer dignamente. As mesmas questões de cuidado da vida, que exigem a democracia do cuidado, também se interpõem quando se trata do cuidado da morte; e este processo é parte das muitas áreas de saberes a quem cabe assegurar a possibilidade de tratar estes temas no interior de parâmetros amplos, levando em consideração a antecipação da vontade e, inclusive, a eutanásia como um paradigma do cuidado no alívio dos males. Ao vivermos o sentido da morte, ou o sentimento de que ela se aproxima, trazemos muitos sentidos simbólicos de perdas e de significações, que precisam ser preenchidas em nossa temporalidade; morrer pode ser a culminação do viver. Marlene Tamanini Francisco G. Heidemann Eliane Portes Vargas Sandro Marcos Castro de Araújo

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PARA UMA EPISTEMOLOGIA DO CUIDADO: TEORIAS E POLÍTICAS Marlene Tamanini1

Introdução2 Quando nos reportamos ao tema do cuidado como uma rede de produção teórica e de exigências a respeito da necessidade de desnaturalizações conceituais, com o intuito de balizar fundamentos para construir reflexão capaz de propor mudanças, estamos sempre frente ao grande desafio de estabelecer parâmetros que sejam flexíveis e abarcadores dos múltiplos contextos de cuidado e para as epistemologias do próprio campo. Trata-se de dizer quanta força reflexiva e articulação heurística as diferentes compreensões de cuidado possuem, para transformar os conteúdos normativos que o envolvem em diferentes contextos e para considerar a diversidade de experiências empíricas, em seus âmbitos social, cultural, político, pessoal e simbólico. As normatividades e os grandes princípios abstratos que por vezes marcam este campo, quando fixados em pressupostos universais, não tomam em conta o lugar dos sujeitos e 1 Professora no Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná, doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Fez pósdoutorado na Universidade de Barcelona com bolsa concedida pela Capes. Pesquisadora, professora e Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR/PR, Vice Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR. Ministra disciplinas na área de sociologia, epistemologia e metodologia da pesquisa. Pesquisa e ministra disciplinas com ênfase em gênero, família, cuidado, trabalho, sexualidade e corpo. É autora de livros no campo de Reprodução Assistida. Possui artigos e capítulos de livros no campo da reprodução humana assistida, maternidades, cuidado, na área de gênero e trabalho, de violência doméstica, direitos sexuais e reprodutivos, com transversalidades em bioética, tecnologias e interdisciplinaridade. tamaniniufpr@gmail.com 2 Devo fazer um grande agradecimento ao companheiro de jornada Francisco G. Heidemann, que compartilhou impressões, revisou textos, trocou ideias e conceitos na construção deste capítulo, além de ter lido, atenciosamente, suas primeiras e últimas versões, como aliás sempre tem feito, quando recorro aos seus generosos e atenciosos préstimos acadêmicos e preciosas trocas na vida. Muito obrigada por tudo o quanto ainda é parte da troca e da gratuidade deste fazer de cuidado solícito, atento e perspicaz.

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sequer consideram que são muitas as interfaces da experiência na relação em questão. Ao ignorar as interdependências que são complexas, múltiplas e sujeitas a diferentes desafios, aplica-se com frequência um modelo de decisão casuístico, que, baseado em grandes princípios, não dialoga com a particularidade e a exigência real da situação. As posturas casuísticas não são suficientes para as múltiplas relações que se compõem no interior das diferentes e complexas interfaces do cuidado. Os conteúdos, quando postos na relação caso a caso, ainda que autorizem acionar grandes princípios, envolvem discutir as teorias, os fatos e circunstâncias, os sistemas de valores, os afetos e necessidades de alternativas frente aos problemas trazidos pela situação em questão. Toda tomada de decisão ou indiferença a respeito dos fatos tem consequências e toda composição de questões pode ocorrer tanto nos níveis mais distantes dos envolvidos como nos níveis de grande envolvimento afetivo e emocional. Contemporaneamente, quando se fala em cuidado, talvez dentre os conteúdos mais discutidos estejam os das relações entre trabalho, reprodução e cuidado, casa, crise do cuidado e transnacionalização do trabalho. De similar, se encontra consolidada uma discussão focada nas relações que se compõem com os conteúdos de gênero, perfil de sexo e a partir das necessidades de quem cuida. Estes aspectos são complexos, portadores de muitos desafios e também são centrais na mundialização atual do trabalho e na chamada crise de cuidado. As normatividades e os grandes princípios abstratos estão de modo semelhante presentes nos aspectos econômicos, políticos, sociais, ideológicos e culturais da inserção do trabalho feminino e masculino nos diferentes processos informais, migratórios e gendrificados das profissões, nos setores e nos ramos de atividades e nos novos arranjos do cuidado. As posturas casuísticas com suas normatividades se apresentam tanto no que se destina a atender à saúde, nos processos de envelhecimento da população, nos necessitados de atenção especial, nas casas de abrigo, ou até mesmo nas atividades para produzir cidadania e para a tomada de decisões em políticas públicas, quando por vezes não se considera as condições em que o cuidado é exercido, ou recebido. Estes aspectos são apenas uma parte de um olhar histórico, empírico e conceitual sobre o cuidar e ser cuidado, sem considerar todas as definições filosóficas, heurísticas e axiológicas que ele passa a agregar frente à diversidade de situações. 32


Contemporaneamente, o tema exige reposicionar os conceitos, repensar suas normatividades e recolocar velhas e novas questões à sua reconfiguração, a fim de reconstruí-lo como política social, com abertura para os inúmeros contextos de especificidades onde o mesmo é exercido ou demandado. Isto implica mudar seu valor social, cultural e econômico para positivá-lo, no sentido de que novas compreensões a seu respeito façam a diferença na vida das cuidadoras e cuidadores, nas instituições de cuidado e na família; para o mercado e para o Estado e as políticas públicas, em termos de sua visibilização, reconhecimento efetivo e democratização. De igual modo, a desidentificação das continuidades com os tradicionais marcadores de gênero, raciais, sexuais, emocionais e afetivos vinculados ao feminino, nestes âmbitos, significa constituir o processo necessário ao cuidado democrático e à democratização do mesmo como meta que não pode seguir inatingível. Até o presente, sua distribuição não é equitativa; é forçada por parâmetros de gênero, raça, classe, migração, pobreza, vulnerabilidades e necessidades de sobrevivência, situações extremamente desiguais. Instâncias várias, como o Estado, famílias, mercado e comunidade, quando o realizam o fazem à custa de mulheres mal reconhecidas como cuidadoras, com sobrecarga de trabalho, baixa remuneração e que não possuem as habilidades necessárias. Estas práticas estão do mesmo modo vinculadas a concepções de favor pessoal, a necessidade extrema; ou, se as relações são de parentesco e de comunidade, acionam-se elementos de um saber vinculado à noção de experiência da mulher com este cuidar, seja porque esta mulher já o fez antes e sabe, portanto, fazer, ou porque a pessoa que cuida tem relações de afeto com quem demanda cuidado; nesse caso, se considera que ela tem a obrigação moral de cuidar. Estou falando de situações de cuidado tanto de doentes, de idosos, crianças, mas também de faxina, limpeza, diaristas, limpeza das cidades, coleta do lixo, serviços diversos, e ambientes de trabalho em fábricas, ou informais nas ruas, ou no virtual. Com o intuito de resgatar parte das perspectivas que envolveram e envolvem estas inter-relações múltiplas, analisaremos o ponto de vista de como este campo teórico tem se constituído, em termos de sua consolidação conceitual e, assim, tentaremos produzir uma reflexão que dê as características da multiplicidade epistêmica que o próprio cuidado possui. Ao fazê-lo, se abre espaço para os muitos paradoxos envolvidos, quando o lugar do cuidado está em relações heterogêneas e exige olhar para agências 33


complexas tais como as: hospitalares, jurídicas, familiares, locais, estatais, nacionais, internacionais e transnacionais. O lugar do humano, entenda-se primacialmente mulheres, dentro do cuidado, socialmente falando, é anunciado e circunscrito sem ser pensado como necessitado de dar e de receber cuidado e sem ser posto como basilar à circunscrição dos direitos de cidadania. As responsabilidades não são compartilhadas; e, do ponto de vista político, econômico e cultural, o cuidado tem pertencido ao campo das relações tensas que se dão entre a responsabilidade e as decisões sobre quem vai cuidar, quando existe a emergência da doença, a necessidade de alguém ser cuidado por sua incapacidade, as intempéries e as grandes ou pequenas catástrofes. Definese como uma forma de trabalho, de relação e de epistemologia que é circunscrita ao lugar dos que não têm direito; reproduz-se, portanto, uma não ética do próprio princípio do cuidar. Este processo não considera o modo como o humano se produz e se reproduz ou pode se desfazer, em sua própria produção normativa, considerando-se sua realidade empírica. Este é um campo de conhecimentos conectado a tensões com as relações de poder imbricadas nele e com suas prerrogativas da feminização, que desde longa data são apontadas por diferentes vozes e por múltiplas posições de sujeito, em particular pela episteme feminista, que sempre esteve preocupada em retirar o tema do cuidado e sua prática das grandes composições abstratas e o faz porque entende que com essas composições ele se mantém naturalizado e invisivilizado. Se estas atividades, concepções e práticas em políticas públicas, de mercado e de voluntariado, frente às necessidades e exigências do cuidado, se reduzirem ao objetivado pela necessidade, sem democratização e desigualmente postas, no que tange aos agentes que devem fazê-lo, nele são apagados os conteúdos subjetivos e de desigualdades, mantendo-se sua construção monolítica que se mostra como se fosse coerente e racional. Em sintonia com as perspectivas feminista e descolonial, o corpo, a cor, a geração, a etnia e os marcadores dos processos de feminização deste campo constituem território de combate. A atuação política exige atos criativos e vozes diversas; por isso, assim posicionada, parto do pressuposto de que, no cuidado, as normatividades não podem ser tomadas como restritivas, mas como bases a partir das quais se possa compor aspectos de validade para elocuções novas e para alcançar acordo a respeito do lugar 34


de relevância dos conteúdos do cuidar que são exigidos pelas linguagens, pelas práticas, pelo ordenamento das relações gendrificadas no feminino e em relação aos recursos sociais, econômicos, políticos e a chamada crise do cuidado, assim anunciada porque as necessidades do cuidado não encontram respostas por carência de pessoas para cuidar. Para tal, impõe-se a necessidade das ideias e dos conceitos, para que se tornem tangíveis e inteligíveis e para que produzam mudanças nas práticas atuais, vividas pelas mulheres em suas vidas pessoais e laborais. As normas que orientam as definições do cuidado em torno do bem comum, hoje, não são necessariamente justas, nem se imbricam com as necessidades do cuidado democrático; além do que, são inúmeros os trabalhos empíricos relacionados com as atividades do cuidado, o que faz, portanto, com que convivam juntas diversas conceitualizações, aspecto que pode ser percebido inclusive nos diferentes capítulos deste livro. Chegada a este ponto, como forma de oferecer alguma capacidade analítica inspiradora e criativa – cognitiva e praxiologicamente falando – permito-me deixar em aberto o conceito de cuidado como caminho essencial para repensar as bases a partir das quais ele próprio tem sido produzido. Isto implica que, ao resgatar aspectos da formação teórica do campo, não estejam fechadas as possibilidades de pensá-lo, que os conceitos não sejam simplesmente acoplados à realidade e que o cuidado e o pensar a seu respeito não sejam dissociados das formas de organização da vida material, ao mesmo tempo em que abrigue o respeito à vida em si e ao fato de que todos e todas necessitaremos de cuidado em algum momento, inclusive o planeta com tudo o que ele contém.

Deslocamento de temporalidades e costura de conceitos Desde o final dos anos 60, as teóricas feministas têm insistido sobre o lugar do feminino nas diferentes relações sociais, na estruturação das construções de pesquisa, no meio acadêmico, político e familiar, para dar-lhe condições de positividade. A produção feminista já percorreu um longo caminho e criou diversos corpos teóricos com inscrição a correntes consolidadas de pensamento, ainda que, por vezes, divergentes entre si. Foram enormes as mudanças produzidas a partir de textos acadêmicos feministas e de sua militância política e epistêmica voltados a desnaturalizar 35


e deslocar as perspectivas analíticas, a fim de fazer emergir no tempo e no espaço o lugar do invisibilizado, ou melhor, do cuidado, equivocadamente naturalizado como sendo do mundo feminino. Neste processo de desmistificação das relações pessoais, das intimidades, do cotidiano e da luta para que a experiência das mulheres se constitua como parte do reconhecimento político, o tema do cuidado e do cuidar e de quem necessita de cuidado pode ser pensado como construção teórica a partir dos anos 60. No contexto dos anos 60, ele ficou enunciado e circunscrito dentro de uma perspectiva de igualitarismo não competitivo, que manteve sua lógica binária e opositiva. A afirmação dos binarismos e das oposições não significa negar que diferentes correntes feministas forjaram diferentes entradas na problemática do trabalho e do cuidado, a fim de dissolver as desigualdades entre os homens e as mulheres. Este engajamento teórico e político se faz, inclusive, nas teorias que revisavam a perspectiva patriarcal3 e marxista da naturalização do trabalho produtivo e reprodutivo, ou nos textos que envolveram a problemática do uso do tempo e do acesso das mulheres à tecnologia, bem como, no que tangia a problemática das alianças, do parentesco e das trocas na construção das explorações. (RUBIN, 1998; SACKS, 1979; TABET, 2005; KERGOAT, 1987; HAICAULT; COMBES, 1987; HIRATA; KERGOAT et al., 2010; SASSEN, 2010; LOBO, 1991; 1992; SCOTT, 1994; NICHOLSON, 1987). Até o final dos anos 60 e parte dos anos 70, no Brasil, trabalhos pioneiros como os de Aguiar (1978), Saffioti (1969) e Blay (1972) tiveram como foco central a incorporação ou a expulsão do trabalho feminino, no contexto da expansão do capitalismo. Estes estudos deixavam de lado, naquele momento, os obstáculos culturais decorrentes da função reprodutiva da mulher na sociedade e o enfoque da divisão sexual do trabalho, sobre a qual se versará mais detidamente nos anos 80. As pesquisas afirmavam 3 Para uma crítica ao patriarcado, ver Sheila Rowbothan (1984), para quem a palavra patriarcado coloca muitos problemas; ela remete a uma forma universal e histórica de opressão, com fortes marcas biologizantes, produz um modelo feminista de base vinculado a infraestrutura e superestrutura, uma estrutura fixa, enquanto que as relações entre homens e mulheres são tão mutáveis quanto fazem parte de heranças culturais e institucionais, implicam reciprocidades tanto quanto antagonismos. Esta crítica também se refere às abordagens, sobretudo de cunho marxista, referentes à divisão sexual do trabalho. Assim como o patriarcalismo, essa abordagem teórica também não é aceita de forma consensual, embora sua grande contribuição se apresente no sentido de articular relações de trabalho e relações sociais, práticas de trabalho e práticas sociais.

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que o trabalho feminino ocorria em resposta aos movimentos de atração ou rejeição do mercado. E foram seguidos, segundo Castro e Lavinas (1992), por análises sobre distintos temas, apoiados em diferentes metodologias, diversificando-se o campo das questões. As teorias advindas de preocupações com os sujeitos e com suas experiências se voltaram para a consideração e o apreço das relações igualitárias entre homens e mulheres, o que configurava o cuidado no centro das relações complementares e a sororidade entre mulheres como a bandeira para suportar a opressão e fazer resistência às dominações de várias ordens. A sororidade foi proposta e foi reinventada em seu potencial político e reinscrita como de existência cotidiana na vida das mulheres. Uma grande quantidade de textos mostrava como a competição, a guerra, a virilidade masculina haviam espalhado a morte e a dominação. Igualmente, havia forte teor apelativo sobre as mulheres militantes, da parte de diferentes instituições e do próprio feminismo; eram vozes destoantes que chamavam as mulheres à revisão de sua posição dita masculinizada. Segundo Fox-Genovese (1992), nestas concepções a mulher poderia e deveria se portar de maneira diferente da forma como se portavam os homens. Afinal, elas usavam uma linguagem diferente dos homens, tinham concepções distintas de política, de justiça e de moralidade. No centro da noção de irmandade, afirma-se a solidariedade e a semelhança entre todas as mulheres. À medida que ocorre a consolidação desta concepção no interior dos grupos de conscientização dos anos 60 e início dos 70, segundo Fox-Genovese (1992), obteve-se uma das mais poderosas armas do movimento de mulheres de classe média; mas tal ocorreu também em grupos de comunidades escravas, por exemplo, na luta das nigerianas contra o imperialismo inglês, ou em sociedades camponesas que, de acordo com a autora, compartilhavam o trabalho, a camaradagem, a religião e a resistência frente às ameaças. Irmanadas em suas práticas e em suas concepções, ofereceram espaços de apoio psicológico no qual as mulheres podiam conhecer melhor a si mesmas conhecendo umas as outras. Estas perspectivas estavam baseadas em visões essencializadas da mulher, nas quais se considerava que a experiência feminina havia dotado a mulher de uma aversão à competição e aos padrões abstratos que caracterizam os modelos tradicionais de justiça e de política do ideário iluminista. Contrariamente, a ética racionalista em vigor depois do século XVIII, dentro da qual as teorias e os julgamentos morais nascem da razão, a ética do cuidado era tomada 37


como aquela à que se acordava o papel moral das emoções, porque muitas relações humanas concernentes aos indivíduos vulneráveis, aos doentes e dependentes se fixavam mais na atenção às necessidades do que na atenção que diz respeito ao direito da pessoa e nas responsabilidades coletivas. O modo pelo qual os indivíduos conceituavam o que era uma ação moral foi uma das entradas seminais para a construção das reflexões no campo do cuidado que o livro fundador de Carol Gilligan se interessava particularmente em observar. Nele a autora trabalha com uma visão sobre o desenvolvimento moral e a ligação entre ele e a identidade de homens e mulheres; para Gilligan, eles e elas possuem diferentes capacidades cognitivas. Ela insiste sobre o fato de que a maturidade moral corresponde a uma maturidade da capacidade cognitiva dos indivíduos e que esta é marcada por uma ligação entre identidade e moral. Trata-se de um desenvolvimento que vai em direção à autonomia e que se traduz na capacidade dos indivíduos de esclarecerem as situações a partir de princípios gerais e abstratos. Carol Gilligan (1982) fez entrevistas em colaboração com Kohlberg, filiada à corrente da psicologia do desenvolvimento humano, e se deu conta de que existem casos e discursos que não se encaixam no quadro de Kohlberg. Escreveu então o livro Uma voz diferente, com o intuito de conceitualizar o agir moral de maneira diferente de Kohlberg. Dentro de sua obra, Gilligan define igualmente a orientação moral do cuidado, principalmente pelo desejo de manter as relações com os outros. Esta orientação moral se funda em certo senso de percepção que reconhece a configuração relacional do cuidado e procura determinar a singularidade da situação, em vez de lidar com referências abstratas para princípios universalmente válidos, conforme propostos por Kohlberg, para quem o raciocínio moral é uma decisão baseada sobre princípios efetuados por um indivíduo autônomo e racional. Esta demarcação inicial irá contribuir para o estabelecimento de um debate sem fim entre ética do cuidado e ética da justiça. Nesta construção, o cuidado é um tipo de raciocínio moral contextual que se vincula aos detalhes das configurações morais às quais Gilligan atribui configurações relacionais como princípios complementares, mas que, enquanto princípios gerais, seguem circunscritos à ética do cuidado para as mulheres e à ética da justiça para os homens. Nesse livro, Gilligan apresenta um estudo acerca do desenvolvimento psicológico moral de meninos e meninas, ao longo de vários anos. Sustenta a tese de que o desenvolvimento psicológico de 38


meninos difere do das meninas, sendo que na vida adulta as mulheres em geral formam uma voz moral distinta da que é desenvolvida pelos homens. Tem-se, por meio desta construção, uma conceituação de cuidado como derivada de dois princípios distintos, um para homens e um para mulheres. Os homens direcionariam seu desenvolvimento de propostas éticas pautadas em princípios imparciais e de justiça e as mulheres estariam focadas em seus relacionamentos em uma ética do cuidado. Assim, as mulheres desenvolvem uma ética relacional, que advém de sua relação com suas mães preocupadas muito mais com a moralidade do seu agir. Segundo Gilligan e feministas liberais de mesma perspectiva, as mulheres praticam uma ética de cuidados e os homens estão do lado de uma ética de direitos e obrigações. (GILLIGAN, 1982). O fato de conceber a moral ligada a uma ética do cuidado orienta o desenvolvimento moral ao redor dos conceitos de responsabilidade e de relações humanas dependentes. A moral fundada sobre os direitos difere da moral baseada sobre a responsabilidade, porque ela separa os elementos; estão em primeiro lugar os interesses dos indivíduos e não as relações entre os indivíduos. Esta reflexão desloca o interesse pela sonoridade e/ou irmandade para o conceito de identidade como contraposição entre o masculino e feminino, por razões de princípios fundadores de ambos, e constitui um modelo binarizado para o lugar dos corpos e das mentes, da cognição e do julgamento para masculino e feminino e para os sentimentos de ambos. Algumas autoras, segundo Le Goff e Garrau (2013)4, viram nas proposições de Gilligan fonte possível de uma ótica que podemos qualificar como materialista. Esta perspectiva foi colocada em ação dentro das relações de dependência e, em particular, na relação mãe-criança (CHODOROW, 1979), que é um modelo que tem toda uma dimensão moral e que fica sem ser percebida pela teoria moral bem como na política tradicional. Esta versão da ética do cuidado – como valorização de um ponto de vista feminino ou como valorização de uma ótica materialista – foi desenvolvida nos trabalhos de Nel Noddings (1984). São estes primeiros posicionamentos de Gilligan que vão marcar o campo prático e conceitual do cuidado. Intervirão notadamente 4 Entrevista com Le Goff e Marie Garrau. Disponível em: <http://dikephilopol. wordpress.com/2013/02/18/alice-le-goff-et-marie-garrau-care-justice-et-dépendance/>. Acesso em: jan. 2017. Cf. livro de GARRAU, Marie; LE GOFF, Alice. Care, justice et dépendance: introduction aux théories du care. Paris: Universitaires de France, 2010. Acesso em: jan 2017.

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nesta concepção os pensamentos de ruptura de Joan Tronto, que se situa, não mais no plano ético, mas sobre um plano de desvantagem sociológica. Essa ideia significa romper com a abordagem também de Noddings (1984), para quem cuidar é uma abordagem feminina da ética com significado celebrativo e de legitimação de uma parte da vida das mulheres. Para Tronto (1997), a formulação de Noddings sobre o cuidar não pode constituir um modelo satisfatório para a teoria moral do cuidar. Tronto (1997) reposiciona a questão da ética do cuidado entendida como uma ética feminina, porque ela conduziria a certos estereótipos. A autora demonstrará que a noção de cuidado pode permitir desenvolver o caminho de uma teoria crítica da organização do trabalho. Esta é uma fase mais crítica das teorias do cuidado, que não se atém somente ao domínio ético, mas que se coloca no domínio da sociologia e da política. Sua preocupação voltar-se-á, notadamente, a demonstrar que a marginalização do cuidado, sua identificação com uma figura feminina de ética e um tipo de moral com validade unicamente dentro da esfera privada é um fato, porém, está constituído como feito de contextos políticos, a saber, é o reflexo da divisão gendrificada das atividades sociais. Tronto demonstra que a perspectiva do cuidado precisa ser um diálogo com as teorias da justiça. Se quisermos mostrar a validade geral da perspectiva do cuidado, então se faz necessário dividir de maneira justa as atividades sociais do cuidado. O conceito de Tronto é duplo: em primeiro lugar, porque articula práticas e atitudes, ou cuidado e preocupação. Mas dizer isso ainda não é o suficiente para entender o que ele permite; em segundo lugar, Tronto mostra que existem várias fases nas atividades de cuidado que correspondem a diferentes atividades, cada qual envolvendo uma atitude moral particular. E é por isso que os problemas de tradução são legítimos. Segundo Le Goff e Garrau (2013), nos cuidados pensados por Tronto (2009) exige-se primeiro a identificação de uma necessidade e saber atendê-la. Esta primeira fase é uma atenção para as necessidades dos outros. Em seguida, há uma fase de cuidados que é assumir a responsabilidade, seguida da competência e, finalmente, uma reatividade, fase ou capacidade de resposta, que consiste no fato de se considerar a forma como os outros reagem ou respondem. O cuidado é complexo, dividido em várias fases, e toda a questão consiste em saber se o cuidado é genuíno, se estamos lidando com um “bom atendimento” ou com um “cuidado inacabado, incompleto”. “O cuidado concluído” irá designar práticas em que todas essas fases são então 40


integradas. Assim sendo, conforme Marie Garrau e Alice Le Goff (2010) julgam Tronto, o que ela mostra é que há uma materialidade do cuidado. Não é, portanto, apenas “preocupação ou se preocupar”, mas para quem deve também realizar algum número de gestos; é preciso saber fazer; isto não está, naturalmente, disponível para os indivíduos. É um processo complexo que requer uma série de condições sociais a serem executadas corretamente, incluindo uma ampla coordenação entre os diferentes atores envolvidos em diferentes níveis. Nas palavras de Alice Le Goff e Marie Garrau (2013), na entrevista já citada, o que caracteriza o cuidado é precisamente que não há um núcleo que se reduz a uma atitude ou disposição, mas que é uma prática complexa que envolve diferentes fases de articulação de uns com os outros. O que caracteriza o cuidado é a manutenção constante da tensão entre a polaridade e a disposição prática – atitude. Segundo continuam elas, tomemos o exemplo de uma enfermeira (é sempre o exemplo a que se recorre); para prestar cuidados aos doentes, ela acaba fazendo tudo quase de maneira mecânica e até mesmo, em alguns casos, com alguma forma de ressentimento e distância de seu paciente. Ela executa ações que são esperadas dela sem se sentir particularmente preocupada com a relação vis-à-vis ao paciente. É seu trabalho, ela deve tomar cuidado com os doentes. Poderemos ainda falar de uma prática de cuidados? Sim, mas é uma prática de cuidados que de alguma forma não está concluída até o fim, já que não há integração das diferentes fases que acabamos de falar. Esta continua a ser uma prática de cuidados, embora não haja qualquer junção de empatia ou de cuidados especiais. Podemos dizer que o que vai caracterizar o cuidado é a manutenção complexa entre a prática e atitude e o fato de que a tensão entre a prática e atitude nunca pode ser removida. São precisas certas condições sociais para uma possível integração social, mas há sempre essa tensão que irá ocorrer entre prática e atitude. Segundo Tronto (2009), a linguagem do cuidado aparece em muitas colocações em nossa fala cotidiana, incluindo um leque variado de agentes e atividades. A realização de tarefas domésticas é cuidar da casa. Médicos, enfermeiros e outros proporcionam cuidados médicos. Uma empresa cuida de seus trabalhadores. Os juízes cuidam para que a justiça seja feita. As mães cuidam de seus filhos, as enfermeiras cuidam dos pacientes, os professores cuidam dos alunos. Tronto (2009) diz que o cuidado envolve um 41


compromisso; deverá, então, ter um objeto. Assim, cuidar é necessariamente relacional. Dizemos que cuidamos de ou temos cuidado com alguma coisa ou com alguém. Podemos distinguir “cuidado com” de “cuidar de”, com base no objeto dos cuidados. “Cuidado com” refere-se a objetos menos concretos; caracteriza-se por uma forma mais geral de compromisso. “Cuidar de”, como caracteriza Tronto (2009), implica um objeto específico, particular, que é o centro dos cuidados. As fronteiras entre essas duas formas de cuidar não são tão nítidas como essas afirmações fazem subentender. Todavia, a distinção é útil para revelar algo a respeito do modo como pensamos sobre cuidados em nossa sociedade, porque se ajusta à forma de como ela define os cuidados de acordo com o gênero. Quando Tronto (2009) explicita sua argumentação, “cuidar de” quer dizer responder às necessidades particulares, concretas, físicas, espirituais, psíquicas e emocionais dos outros. Por exemplo, uma mãe cuida da criança, uma enfermeira cuida dos pacientes do hospital. Esses tipos são unificados, por se originarem no fato de que os seres humanos têm necessidades físicas e psíquicas (alimento, boa aparência, calor, conforto) que requerem atividades para satisfazê-las. Essas necessidades são em parte socialmente determinadas; também são atendidas em sociedades por diferentes tipos de práticas sociais. Tronto (2009) faz bem essa distinção; como nem todo cuidado apresenta um caráter moral, uma outra diferença entre ter “cuidado com” (preocupar-se) e “cuidar de” torna-se óbvia. Quando queremos saber se “ter cuidado com” (preocupar-se) é uma atividade moral, indagamos sobre a natureza do objeto do cuidado. Preocupar-se com a justiça é uma atividade moral, porque justiça é um assunto moral; preocupar-se com o sapato da colega de trabalho não é uma atividade moral. “Cuidar de” adquire significado moral de uma maneira diferente. Quando indagamos sobre isso, não é suficiente conhecer o objeto do cuidado; provavelmente temos de saber algo sobre o contexto em que se dá, especialmente sobre a relação de quem o presta e de quem o recebe. A atribuição da responsabilidade de cuidar de alguém, de alguma coisa ou de alguns grupos, pode então ser uma questão moral. O que faz “cuidar de” ser tipicamente percebido como moral não é a atividade em si, mas como essa atividade se reflete sobre as obrigações sociais atribuídas a quem cuida e sobre quem faz essa atribuição, como ela se encontra ou não na esfera da democracia. Segundo, temos de considerar como as obrigações de cuidar dos outros têm significado moral na sociedade como um todo; a 42


análise de Tronto (2009) não foi somente uma análise “feminina” e, sim, uma análise feminista sobre o assunto. A dificuldade é da construção de bases democráticas para o cuidado, é passar do micro para o macro, isto é, não se ater apenas a relações face a face, mas também passar para o relato das instituições e de suas responsabilidades. Com o conceito de cuidado de Gilligan, é muito difícil pensar as instituições. Tronto abre a pista para refletir sobre como podemos usar esse conceito de cuidado, para pensar a relação com as instituições, o que significa sair da relação dual e de uma concepção demasiado sentimental de atendimento. No tema do cuidado, apresenta-se igualmente uma grande discussão a respeito de necessidade; segundo Arendt (1958), a verdadeira atividade de cuidar de outra pessoa parece muito longe do que consideramos habitualmente como questão moral. Ela parece mais ligada à esfera da necessidade do que à esfera da liberdade, onde presumivelmente os julgamentos morais têm lugar. Para outras autoras, a esfera da necessidade leva por vezes ao cuidado forçado (GLENN, 2012), negando-se que o valor dos cuidados seja simplesmente uma atividade banal, que não envolva julgamento. A respeito deste aspecto dos julgamentos, Sara Ruddick (1980), autora de obras sobre o cuidado, descreve o pensamento maternal como um tipo de prática, isto é, como uma atividade prudencial em que as emoções e a razão são postas em ação para educar uma criança. Sua colocação sugere que pode valer a pena explorar detalhadamente os caminhos através dos quais a prática de cuidar envolve questões morais, a fim de determinar as dimensões morais de cuidar dos outros, que é o tipo de cuidado mais intimamente associado às mulheres em nossa sociedade. No mais, geralmente há acordo a respeito do fato de que o cuidado tem sido uma atividade predominantemente feminina; ainda que a entrada analítica possa contemplar pontos diversos, tanto epistêmicos, conceituais e axiológicos, sua feminização é estrutural; e isto tem consequências para a democracia. Assim, se para algumas autoras ele envolve discutir as questões morais, para outras, como Thomas Carol (1993), já que o cuidado tem sido uma atividade predominantemente feminina, estudá-lo exige uma análise baseada na ordem de gênero. Ela o faz, contemplando sete dimensões que juntas formam o conceito de cuidado em sua proposição: (1) a identidade social da pessoa que exerce o cuidado; (2) a identidade social da pessoa que recebe o cuidado; (3) as relações interpessoais entre o responsável pelo 43


cuidado e o receptor; (4) a natureza do cuidado; (5) o domínio social dentro do qual a relação de cuidado está situada; (6) o caráter econômico da relação de cuidado; e (7) o local institucional no qual o cuidado é exercido. Do ponto de vista da pesquisa feminista, Thomas (1993, p. 650) argumentou sobre a inconsistência do significado de cuidado com base nas contribuições da pesquisadora norueguesa V.Held. Esta autora distingue o cuidado como atividade de trabalho e o cuidado como sentimento. “Cuidar de” implica cuidar de alguém, executar o trabalho de cuidar, enquanto um sentimento significaria importar-se com alguém, ter sentimentos de “cuidado”. Estes aspectos não estão separados, quando se trata do cuidado, e a análise da literatura tem revelado que o conceito de “cuidado” não é uniformemente definido, tampouco é clara sua posição epistemológica. Segundo Thomas (1993), depois de uma década de pesquisa sobre o cuidado, as escritoras feministas Hilary Graham (1991) e Clare Ungerson (1990) também apontaram, independentemente uma da outra, dificuldades com o conceito de “cuidado”. As duas então reivindicaram um remanejamento do conceito feminista de cuidado, só que em direções diferentes. O ponto fundamental é uma inconsistência no significado de “cuidado” que produz uma imagem parcial e fragmentada do “cuidado” na sociedade. O significado de cuidado é geralmente entendido como prestação de serviço e, com frequência, apresentado como abrangente em sua cobertura da atividade de cuidar, enquanto que, na realidade, os conceitos de cuidado empregados são representações parciais ou segmentos da totalidade do cuidado. As definições de cuidado, para Thomas, são elaboradas de tal modo que os limites são diferencialmente delineados em torno do que constitui o cuidado, com o efeito de excluir ou incluir conjuntos de relações sociais em definições de relações de cuidado. Particularmente, os conceitos de cuidado tendem a ser apresentados como genéricos, quando na verdade são específicos e estão ao alcance do domínio público ou privado. Essa parcialidade não reconhecida de conceitos de cuidado tem duas consequências. A primeira é obscurecer formas de cuidado que apareçam fora dos limites socialmente criados. Thomas (1993) faz referência às análises de Hilary Graham (1991) e examina estes aspectos em sua crítica do “cuidado da família em casa”, conceito de cuidado característico da pesquisa feminista britânica; tal conceito exclui formas não familiares de cuidado em casa, como, por exemplo, o trabalho doméstico que é executado de forma desproporcional 44


por mulheres negras e, assim, ofusca a experiência social de parte das mulheres que exercem o cuidado. (GRAHAM, 1991). Em conformidade com Thomas, a persistência de um método de cuidado fragmentário impede que se desenvolva um entendimento geral da divisão sexual do trabalho, um entendimento do cuidar através e dentro dos domínios privados/domésticos e públicos. Este segundo ponto relaciona-se com um outro ponto da problemática: o subdesenvolvimento do trabalho teórico sobre a natureza de práticas de cuidado e a relação entre elas. Especificamente, o status epistemológico do conceito de cuidado aguarda um esclarecimento. Em sua crítica, Graham (1991) declara que esse conceito tem sido “subteorizado” na pesquisa feminista, o que significa que, diferentemente teorizado, o “cuidado” pode funcionar como uma categoria teoricamente válida. Esta ideia está sujeita a dúvidas, segundo Graham. Para desenvolver uma compreensão teórica de cuidado, Thomas sugere começar com a questão de o próprio cuidado ser uma categoria teórica; ou se formas de cuidado são entidades empíricas, casos em que elas necessitam ser analisadas em relação a outras categorias teóricas. Estes aspectos são particularmente ilustrativos e bem observáveis, quando vejo o quanto é praticamente impossível pensar-se o cuidado como um único conceito abarcador, estruturante e sistêmico, depois de ter orientado o tema, em relação a vários contextos; ainda assim, dizê-lo não impede que haja uma epistemologia com muitas interfaces, sentido em que, sim, ele se torna uma epistemologia aberta e que está em diálogo com o empírico. Como parâmetro geral, nos contextos de cuidado, existe consenso de que as categorias feminizadas são acionadas; e, de que quando o cuidado fica circunscrito às atividades de serviço pessoal, perdem-se as relações de poder e as assimetrias. Outro aspecto fundamental garante que um conceito não é um conceito puro e abstrato. Os conceitos são instrumentos intelectuais potentes, mas não são suficientes intelectual e politicamente. Tronto alerta, a este respeito, quando assevera que se tomarmos a premissa segundo a qual nós devemos exercer o cuidado de modo a desenvolver a democracia, então nós percebemos de pronto a problemática que o cuidado coloca para a democracia, porque numerosas relações de cuidado não são relações democráticas, seguem marcadas pela ética da valoração diferente da diferença. 45


Como Genevieve Lloyd (1984) argumentou em relação à razão, o apelo à categoria do feminino como antítese da masculinidade mantém o masculino como normal, o que está em oposição ao que é feminino, considerado o portador de problemas. Nesse caso, a interpretação das mulheres como atadas à atividade mais particular de cuidar dos outros está em oposição às preocupações mais públicas e sociais dos homens. Tronto (1997) torna esse argumento ainda mais contundente, ao afirmar que, na medida em que o cuidar é uma maneira de “estar atento a”, pode refletir um mecanismo de sobrevivência para as mulheres ou outros que estão lidando com cuidado em condições opressivas, ao invés de ser uma qualidade de valor intrínseco em si mesmo. Este aspecto costuma estar associado à outra maneira de compreender o cuidado, segundo Tronto, que é vê-lo como a ética mais apropriada para os que estão numa posição social subordinada, como as mulheres – e outras pessoas que não estão nos corredores do poder nesta sociedade. Essas pessoas adotam uma variedade de “maneirismos diferentes” (diferenças na fala, no sorrir, nas formas de linguagem corporal etc.), para servirem a seus propósitos de sobrevivência; também podem ter adotado uma atitude de “estar atento a”, mas que, sob outros aspectos, pode ser compreendida como a necessidade de prever os desejos de seu superior. Esta posição estrutura relações desiguais. No livro The Caring Self: the work experiences of home care aides, encontramos o trabalho de Stacey (2004), que nos aproxima mais especificamente ao campo da saúde, mas tem como foco quem cuida. Stacey entra no contexto científico da produção de cuidado, focando aqueles que são invisibilizados em suas experiências, combinando diferentes métodos, e o faz dialogando com cuidadores e cuidadoras domiciliares. Ao escolher olhar para quem cuida e ao fazê-lo nos contextos onde essas pessoas realizam o seu trabalho, Stacey constrói uma análise importante, não só para quem estuda a produção de cuidado, mas também para os temas do trabalho, das desigualdades sociais e das questões de gênero. A autora constrói um argumento que procura perceber como é que os/ as cuidadores/as domiciliares pagos encontram significado e identidade no trabalho de cuidar – o que ela chamou the caring self – dentro de um contexto de real desvantagem estrutural (pobreza, aumento do volume de trabalho, baixos salários e poucos benefícios). Stacey (2004) também vai além das questões da pobreza de quem cuida, para perceber como as biografias pessoais dos/as cuidadores/as têm importância para compreender a sua relação com 46


o cuidado. Por essa razão, analisa as “trajetórias de cuidado” dessas pessoas, concluindo que, na maioria dos casos, elas haviam cuidado, gratuitamente, de pessoas que lhes eram próximas, antes de se tornarem cuidadores/as formais. Este aspecto foi encontrado por Sandro Marcos Castro de Araújo (2015), em sua tese sobre cuidadoras dos portadores do mal de Alzheimer. O cuidado não era algo novo nas vidas das cuidadoras, sendo essa familiaridade com o fenômeno um fator justificante para sua posição nele, ou seja, cuidar parecia ser uma competência “natural” que elas mobilizaram inicialmente para cuidar gratuitamente e agora servia para desempenharem as suas funções no mercado de trabalho pago. De acordo com Stacey (2004), ao enfatizarem essa competência “natural”, em lugar de evidenciarem os constrangimentos que anteriormente as levaram a assumir várias obrigações de cuidado, elas parecem não ter consciência da pressão cultural existente para esse cuidar. Este fato também foi constatado por Araújo (2015), quando as cuidadoras, por exemplo, dizem não ter interesses em associações de proteção à sua profissão, ou fazer cursos de formação como cuidadoras; este fato, segundo elas, provavelmente as retiraria deste mercado, porque então entrariam critérios objetivados legalmente. Frente a eles, nem elas nem seus contratantes poderiam assumir as atividades do cuidado em casa. O livro de Marie Garrau e Alice Le Goff, Justice et Dépendance: introduction aux théories du care, publicado em 2010, é absolutamente relevante para este campo reflexivo do cuidado, assim como o é o livro Qu’est ce que le “care”? Souci des autres, sensibilité, responsabilité, de 2009, das autoras Molinier, Pascale; Laugier, Sandra; Paperman, Patricia. Ambos nos inserem em profundos aspectos epistemológicos, teóricos e de ordem prática, relações nas quais a reflexão e a prática do care vêm se ancorando. Estudos como os de Molinier, Laugier e Paperman (2005) revelam que o quadro da ética do cuidado é adotado por sociólogos, juristas, psicólogos, filósofos, geógrafos, juristas, antropólogos, estudos literários, bioética, urbanismo, teologia e ciências da engenharia, e que as concepções são as mais diversificadas. Eles mostram que não existe consenso sobre o conceito de cuidado; ao contrário, existem muitas barreiras, também acadêmicas, e que, para a maior parte do cuidado, trata-se de uma atividade de amor, dentro da qual uma atividade privada ou íntima é realizada envolvendo um estado emocional particular. 47


Definem o que entendem por care, termo inglês, e soin, termo francês, na mesma linha das dificuldades em estabelecer consensos semânticos e políticos. O termo care se refere a uma atitude para com os outros que pode ser traduzida para o francês como “atenção”, “preocupação”, “solicitude”, “cuidado” e “zelo”. Cada uma dessas traduções retorna potencialmente a um aspecto do cuidado. O termo “atenção” insiste em uma maneira de perceber o mundo dos outros; o de “preocupação” e “solicitude” retoma uma maneira/modo de estar preocupado com o outro; e o “cuidado” é uma forma de se ocupar concretamente com o outro. O termo “care” oscila entre a disposição – uma atenção ao outro que se desenvolve na consciência de uma responsabilidade, no que diz respeito a uma preocupação com seu bem-estar. Para conservar essa riqueza semântica, elas conservam o termo em inglês, também porque, segundo elas, permite manter a riqueza semântica que soin em francês não possui. Raïd (2005) defende a utilização elaborada por Fisher e Tronto (1990) de que se trata de uma atividade característica da espécie humana, que inclui tudo o que nós fazemos com vistas a manter, continuar ou reparar o nosso mundo, de sorte que possamos viver da melhor maneira possível. Este mundo inclui nossos corpos, nossa individualidade e nosso desenvolvimento, que buscamos tecer juntos, dentro de relações complexas que sustentam a vida. As duas autoras também descrevem quatro fases do cuidado e, na sequência, agregaram as dimensões morais para cada fase: (1) o fato de preocupar-se com alguém ou com alguma coisa; (2) tomar cuidado de alguém; (3) tratar de alguém; e (4) ser objeto de cuidado. O fato de preocupar-se com alguém ou com alguma coisa implica, em primeiro lugar, o reconhecimento de uma necessidade – é necessária a qualidade moral específica de atenção para com o outro, que consiste em reconhecer aquilo que o outro necessita. Cuidar supõe assumir a responsabilidade do trabalho de cuidado, que é necessário cumprir – seu corolário ético é a responsabilidade. O fato de tratar é o trabalho concreto do cuidado. A autora lhe atribui a qualidade moral da competência que, mesmo podendo ser definida como uma questão técnica, pode ser igualmente uma questão moral. Ser objeto de cuidado é a resposta da pessoa frente ao que foi feito. Não se trata do dever da pessoa que foi beneficiada pelo cuidado – mas da definição de Nel Noddings – o que implica que todos os que estão envolvidos no processo de cuidado avaliam a qualidade do cuidado colocado em ação. A capacidade moral implicada é a capacidade de resposta, a reatividade. 48


Esta definição abrange muitas disciplinas e muitas perspectivas – as ciências sociais tendem a distinguir o cuidado por si mesmo (preocuparse de si), que parece ser mais de fundo psicológico, o cuidado dos outros, uma categoria sociológica, e o cuidado aos olhos do mundo – que parece se apresentar como sendo das categorias econômicas e políticas. Estas definições também combinam aspectos normativos e não normativos. Quando as autoras definem cuidado deste modo, a concepção de mundo muda – não se vê mais o mundo como uma junção de indivíduos autônomos perseguindo fins racionais e projetos de vida – mas vê-se o mundo como a junção de pessoas tomadas dentro das redes do cuidado e engajadas em responder às necessidades do cuidado. Interessa às autoras mostrar as diferentes posições nas quais se encontram aqueles que oferecem cuidados e aqueles que o recebem. Os primeiros podem ser seus beneficiários – os cuidados são vitais para eles. No interior da segunda posição, caso os cuidados não atendam, podem ser dispensados e a relação pode ser muito assimétrica sobre quem fornece o cuidado. Sobretudo, problematizam esta posição, porque ela leva à negação de que todos os seres humanos necessitam de cuidados. Para as autoras Paperman e Fisher é preciso, em primeiro lugar, ir à fronteira traçada entre cuidado necessário e atividade de serviço pessoal e considerar, como ela é frequentemente política, uma condição para se pensar o cuidado democrático e a democracia do cuidado. Contudo, a politização do cuidado não é somente dessexualizar a moral do cuidado como feminino; significa deixar falar a autoridade da experiência das pessoas que realizam esta parte desvalorizada do trabalho de cuidado. Os estudos contidos no livro de Molinier, Laugier e Paperman (2005) mostram também como na França, país de origem do livro, prendre soin (tomar cuidado de) é um trabalho que tem um certo número de práticas e envolve muitas atividades. Mais do que o sentido médico, tratase de um certo número de práticas corporais, mas também da disposição de se preocupar de, de se soucier. Trata-se de inquietude/preocupação, que se preocupa. Souci desenvolve forçosamente outro conceito: a noção de vulnerabilidade (preocupar-se). Trata-se então de ter compreensão de uma política social, focada também na desigualdade racial, de gênero, classe, nas vulnerabilidades. 49


A noção de vulnerabilidade será preocupação das autoras, sobretudo no capítulo escrito por Sandra Laugier, intitulado: Le sujet du care: vulnérabilité et expression ordinaire, no sentido de que há necessidade de uma definição do ser humano que produza uma definição de humano não significando que os seres humanos são vulneráveis. Não se trata de ser essencialista. As autoras estabelecem diálogo com a ética do cuidado para dizer que ela não é um conceito neoliberal, de que não se trata de produzir um capital humano, como um indivíduo que pode se produzir a si mesmo, indivíduo como performance de si. A ética do care, para as nossas autoras, é um reconhecimento da vulnerabilidade, não só da autonomia; mas um reconhecimento ao lado de práticas, ao lado da referência a um contexto como situação de vulnerabilidade. O pensar a vulnerabilidade tem muitas interfaces. Uma situação de vulnerabilidade vital pode ser a doença, a morte, a incapacidade, perder pessoas, ser portador de incapacidades etc; ou pode ser a vulnerabilidade social, como o desemprego, a fome, conforme tratam Maria Izabel Machado, Daniela Isabel Kuhn e Gilson Leandro Queluz neste livro, ou a vulnerabilidade ambiental por força de catástrofes. O cuidado é uma maneira de pensar um acompanhamento, sustentar uma proteção para os outros. A vantagem da noção de vulnerabilidade está em se poder pensar as situações de fragilidade que são diferentes, mas que, na forma em que existem hoje, exigem atenção. Segundo esta perspectiva, o cuidado é uma maneira de pensar, de produzir proteção para os vulneráveis. Ele envolve senso relacional e político, projeto de sociedade que tome em conta a diversidade de situação e a vulnerabilidade. Isto não é uma ideia abstrata de justiça, é uma nova compreensão da autonomia. Importa encontrar formas coletivas: instituições públicas e famílias, trabalho e sentidos coletivos e repensar a confiança na relação social com relações horizontais voltadas à construção de uma democracia sensível. Paperman e Molinier (2015, p. 43) afirmam: “Quase sempre identificada com a discussão sobre a teoria da justiça, a ética do cuidado é percebida como uma questão legítima para os filósofos, adequada para a psicologia e embaraçosa para as ciências sociais, que, na melhor das hipóteses, deixam-na de lado”. Isto nos desafia. Marie Garrau e Alice Le Goff (2010), além de exporem a ideia de centralidade do care para a justiça, apontam a essencialidade de se distinguir as relações de dependência das relações de dominação como um aspecto 50


fundamental da existência humana. Esta obra nos apresenta uma análise do care que nos estimula a ver as realidades dos trabalhos demandados no care, as políticas públicas, as construções argumentativas de uma cidadania plena, as desconstruções de estereótipos, os estigmas e a desvinculação necessária dos pressupostos femininos, aos quais o care esteve e está conectado. Igualmente, as autoras apontam a necessidade de reflexão social sobre o cuidado, para que ela se desenvolva sob a perspectiva do seu sentido político, econômico, institucional e com o seu consequente desmanche sexista. Segundo resenha de Monticelli e Tamanini (2014), a obra nos traz um rol abrangente de interfaces, para pensarmos formas coletivas de ação nas instituições públicas e familiares, no trabalho e na relação social. Marie Garrau e Alice Le Goff, (2010) produzem os fundamentos e as interrogações sobre o modelo que se poderia usar para pensar a dependência em suas múltiplas denominações. Para tal, consideram aspectos que se ligam às representações sobre a precariedade da vida corporal e biológica em fases diversas da experiência humana, como a infância, a velhice ou uma doença, ou frente à fragilidade das identidades. Elas demonstram como as relações que envolvem a dependência são marcadas por uma ambivalência essencial que se produziu por razões históricas vinculadas à ideia de vulnerabilidade e de incapacidade. Como exemplo, as autoras recorrem a Linda Gordon e Nancy Fraser (1997), para assinalar como os processos de individualização e a dependência foram inseridos nos programas de proteção social, provocando a ascensão de sua psicologização e moralização. As autoras elaboram ricas e densas considerações sobre as noções de vulnerabilidade. Trazem ao debate as teorias do care e da justiça, para considerar a irredutibilidade e a positividade das relações de dependência, tendo em conta os riscos de sujeição abertos para toda a relação assimétrica. Apoiadas em Gilligan, demonstram aspectos positivos da ética do care e da dependência, já que a última se funda em uma ontologia social concebida pelas noções liberais e, portanto, está identificada como o lugar de uma experiência moral particular, de aprendizagem e implementação de competências morais específicas e como fundamento das identidades pessoais e morais dos sujeitos. Apoiam-se positivamente no fato de que Gilligan nos demonstra que dependemos uns dos outros e que a preservação das relações constitui um jogo moral tão importante quanto o da justiça. Assim, reconhecem em sua obra uma mudança de paradigma na teoria 51


moral e um novo método de pesquisa na psicologia, que permite visibilizar diferentes vozes morais. À dependência dá-se um valor positivo, como lugar de uma aprendizagem moral e de uma experiência moral completa, o que significa que no plano das reivindicações de direitos pode-se partir de outras significações. O reconhecimento de nossas dependências mútuas vai ao encontro do reconhecimento das responsabilidades mútuas; mas esse duplo reconhecimento não significa o sacrifício do sujeito, mas, sim, a compreensão do agir com responsabilidade em relação a si mesmo e aos outros. Por isso, as autoras, ainda que ressaltem o valor da teoria do desenvolvimento moral de Gilligan, também se associam às críticas que o feminismo produziu contra o binarismo presente na forma de uma ética do cuidado e da justiça. Esta construção de Gilligan acabou por ancorar o care em uma ideia tradicional de solicitude natural das mulheres, acreditando-se numa equivalência entre a preocupação com os outros e o sacrifício de si e justificando o confinamento das mulheres no âmbito do sítio privado, de uma ética do care feminista que se desenvolve a partir das críticas destes mecanismos que a primeira ideia propaga. Dessa crítica à visão binária e essencializadora do feminismo, passou-se de uma perspectiva exclusivamente moral para uma perspectiva social e política. Restituiu-se ao care seu duplo contexto histórico e social e ressaltou-se a subordinação das mulheres, aspectos que Garrau e Le Goff também tornam presentes. Garrau e Le Goff (2010) trabalham com uma linha argumentativa crítica sobre a desvalorização da dependência e preservam a ideia do care como uma orientação moral importante, que renova um ideal político preciso. Elas buscam nas reflexões de Joan Tronto aspectos da fundamentação do cuidado nos níveis sociais, políticos e éticos e das consequências da marginalidade da ética do care e de quem proporciona suas tarefas (em sua maioria, as mulheres). Ao lutar contra a marginalidade da ética do care, Tronto torna possível e visível a sua centralidade na vida humana, que é compreendida como relacional e social. Essa definição holística de Tronto torna o conceito de care um conceito crítico e político, que afasta das mulheres e do âmbito privado a responsabilidade pelas práticas que ele envolve e traz para a discussão política as desigualdades fomentadas nestas relações, além de possibilitar o questionamento: quem cuida e em quais condições? 52


Garrau e Le Goff insistem que a implementação de princípios da justiça no seio da família precisa se conectar com as responsabilidades compartilhadas entre seus membros e fazem a renovação deste quadro de teorias a partir dos argumentos de Eva Kittay e Martha Nussbaum. O trabalho de Eva Feder Kittay (1999), citado em Garrau e Le Goff (2010), exprime a ideia de que uma concepção de justiça que não leva em conta a necessidade de resposta à vulnerabilidade com o care é incompleta. Extrai a discussão da teoria rawlsiana de justiça, baseada em uma crítica da teoria liberal sobre a dependência, e no modo como Kittay estende as posições feministas do ponto de vista da diferença, dominação e diversidade. Apresenta a forma pela qual a interdependência vem se conceitualizando nas teorias do care, pois insiste em unir pessoas consideradas normais como interdependentes e as “anormais” como dependentes. A autora então se concentra em uma noção de dependência extrema e suas questões morais e políticas específicas. De acordo com Kittay, a consideração central do care e a nossa desigual vulnerabilidade a seu respeito gera o reconhecimento da importância da escolha dos princípios de justiça de um terceiro poder moral, que consiste em mostrar atenção às necessidades específicas do outro. A importância desse poder está na percepção de uma repartição igualitária do care e no reconhecimento, nas circunstâncias da justiça e em estar na lista de bens primários, fundando a ideia de que as suas atividades do care precisam ser sustentadas coletivamente como um direito. Propõe uma concepção de justiça que leve a sério a dependência, pois cada membro da sociedade tem fases de dependência em suas vidas e alguns nunca conseguem chegar a uma independência para participar da cooperação social. A concentração sobre a dependência extrema revela uma escolha estratégica, cujo desafio não é negar a nossa interdependência, mas achar “uma lâmina afiada o suficiente para perfurar a ficção da interdependência”. Reconhecer as especificidades das formas extremas de dependência implica o risco de reiterar o estigma já colocado, mas reduzila, na referência de interdependência, ou atribuir os aspectos problemáticos aos efeitos da construção social pode criar uma invisibilidade social destas formas de experiência. Kittay (2010) assinala o caráter específico e trágico como irreversível de certas formas. Para isso ela traz sua experiência com sua filha Sesha, que tem um “problema” mental severo. A dificuldade de Kittay, ao descrever sua filha, mostra o significado de critérios de normalidade, 53


pois colocam sua filha como deficiente, e o trabalho de reconfiguração das normas operam no seu contato. A autora diz, sobre Sesha, que não gostaria de realizar uma descrição em termos negativos, como aquela que, “perto dos 30 anos não pode comer, se banhar, andar, falar, ler, escrever, dizer “mamãe” e “papai”. Kittay assinala que ela preferiria começar a falar das coisas que sua filha pode fazer, de suas manifestações de afeto e afeição, da maneira que ela aprecia o seu banho ou a música. Ela distingue as respostas positivas, fiéis ao que Sesha é verdadeiramente, e o modo negativo de descrição que ela oferece às pessoas que não conhecem sua filha, assim como a dificuldade de achar um lugar no mundo que a rodeia. É importante confrontar os limites cognitivos de Sesha, pois eles moldam o seu estilo de vida e impõem uma estrutura para qualquer tipo de desenvolvimento possível. Ao mesmo tempo, uma concentração muito exclusiva sobre eles traz a exclusão de Sesha e da personalidade moral e da cidadania, tais como o liberalismo as definiu, em função de critérios intelectuais e de normas de interdependência e produtividade. O retrato de Sesha torna visível o que a definição liberal de individualidade moral oculta e constitui, ao montar uma crítica da teoria rawlsiana da justiça. A teoria da justiça, como a teoria moral, repousa, com efeito, sobre uma concepção de pessoa que, por meio de uma intelectualidade, chega a um status moral. A importância deste poder não significa que cada membro da sociedade inclua na sua concepção de bem o fato de tomar efetivamente o cuidado do outro, mas que cada um reconheça a importância de uma repartição igualitária do trabalho de care. A inclusão da dependência nas circunstâncias da justiça segue assim acrescentando o care à lista dos bens primários, que os integrantes da posição original poderiam repartir igualmente. Além disso, o trabalho de cuidado pode ser conseguido sem a atitude apropriada; entretanto, sem uma atitude de cuidado, a disponibilidade para com o outro, que é essencial para compreender aquilo de que se tem necessidade, não acontece. Isto quer dizer que o trabalho, que não é acompanhado pela atitude de cuidado, não pode ser um bom cuidado. Assim, o engajamento afetivo não será um atributo do trabalho de care, mas uma propriedade distintiva do bom cuidado. Esta vulnerabilidade de posição dos que cuidam explica a ambivalência dos sentimentos que eles retiram do seu trabalho. O trabalho de cuidado pode ser vivido ao mesmo tempo como alienante e como gratificante. Esta 54


ambivalência, porém, não significa que a ética do cuidado colocada em ação pelos trabalhadores equivale a uma racionalização de sua dominação. A ênfase colocada sobre o engajamento do trabalhador de cuidado não implica, portanto, reconectar-se com uma visão romântica do trabalho de cuidado; ao contrário, torna possível a percepção das dificuldades próprias a este trabalho. O trabalho de Martha Nussbaum (2006) é próximo ao trabalho de Kittay; ela traz a questão da “desvantagem” como um teste da teoria da justiça. Situa-se em uma discussão crítica com a teoria rawlsiana e faz algumas objeções às teorias da Kittay, principalmente em relação à conceituação de dependência, rejeitando um quadro contratualista. A crítica da dependência e da autonomia, que Nussbaum faz a Kittay, diz respeito ao fato de que ela justifica a emergência de um Estado paternalista insuficientemente social da liberdade dos indivíduos e unicamente focado sobre a satisfação de necessidades. Nussbaum opõe a distinção, elaborada por Kittay, entre a interdependência e dependência extrema e a ideia de uma interdependência que lhe parece mais apta a promover a inclusão de pessoas dependentes na comunidade moral e política. Face ao dilema da dependência, Nussbaum toma emprestada a segunda via: ela empresta menos ênfase à noção da dependência do que questiona a ficção da independência. Antes de começar uma discussão com as teorias do care, Nussbaum (2006) procurou desenvolver, em referência a Aristóteles, uma antropologia que insiste sobre a mistura entre animalidade e racionalidade, assinalando a dignidade da vida humana como uma vida marcada pela dependência e fragilidade. A racionalidade humana, longe de ser autossuficiente e desencarnada, depende, para o seu desenvolvimento, de circunstâncias exteriores e pode ser afetada pela idade, doença, acidente. Nussbaum prefere elaborar uma teoria da justiça inspirada na aproximação das capacidades. Ela desenvolve uma concepção de pessoa colocando a importância de certas capacidades para uma vida autenticamente humana, pensando os princípios políticos que visam a promover uma definição de “liberalismo aristotélico”. Para Nussbaum o interesse de pensar aristotelicamente advém do fato de unir uma antropologia que define o ser humano como um ente de necessidades, expondo a capacidade de ascender à liberdade, que desenvolve as práticas complexas na relação com o outro. Para a autora, a afinidade da 55


perspectiva aristotélica com a aproximação das capacidades vem entrelaçar e definir substancialmente a liberdade e o papel acordado em um contexto que condiciona o desenvolvimento. Se Aristóteles permite desenvolver esta aproximação, contudo, é porque o seu exame de uma vida boa responde à questão de se conhecer, entre todas as capacidades humanas, aquelas que convém promover para se ter uma sociedade justa. Nussbaum insiste também sobre a necessidade de estruturar a teoria das capacidades em torno de uma análise normativa objetiva dos fundamentos humanos centrais, que sejam compatíveis com o respeito à relatividade cultural. Esta análise revela os traços essenciais que podemos considerar, de maneira a determinar quais capacidades devem ser desenvolvidas politicamente. Sobre esta base, Nussbaum define uma lista com dez capacidades fundamentais à vida, à saúde, à integridade física, à liberdade de pensar, de imaginar, sentir e desenvolver sua vida emocional e sua prática. As outras capacidades abrangem o pertencimento, a interação com as outras espécies, a dimensão lúdica da existência e o controle – político e material – sobre o ambiente. Este é o nível que Nussbaum pode reintegrar às teorias do care. O care revê um conjunto de práticas e de atitudes, sem as quais nenhuma das capacidades humanas centrais pode ser adquirida e exercida. Os cuidados propiciam a vida, a saúde e a integridade física; o sentimento emocional e a atenção são o que tornam possível o desenvolvimento e o uso dos sentidos, a imaginação e o pensamento; estes são essenciais para o respeito de si mesmo. Neste sentido, o care revê ou deveria rever a totalidade das capacidades humanas centrais e ser colocado no centro da definição da sociedade justa e da ação política. A lista de capacidades constitui uma norma de avaliação da justiça de uma sociedade e um guia na elaboração de políticas públicas; o desafio está em considerar a situação dos membros da sociedade em se organizar socialmente e garantir o acesso às capacidades centrais. As capacidades não devem ser tomadas em conta como simples capacidades pessoais, mas como as capacidades “combinadas” dos poderes internos – das potencialidades naturais e individuais, nutridas por uma educação adequada – correlacionadas com as oportunidades objetivas, que as circunstâncias externas permitem exercer. 56


De um ponto de vista político, a perspectiva das capacidades se distancia também de uma teoria distributiva da justiça: é menos a de garantir aos indivíduos que possuam um certo número de bens, e mais de agenciar um envolvimento afetivo, social e político, favorecendo o exercício das capacidades. Esta lista pode criar uma norma de avaliação da justiça e um guia de políticas públicas que agencia um envolvimento afetivo e social. É neste ponto que o care se mostra fundamental, pois é possível rever este conjunto de capacidades e suas práticas e atitudes e defini-las como elementos centrais da sociedade justa e da ação política, possibilitando a todos o acesso ao exercício da cidadania. As relações que envolvem a dependência são marcadas por uma ambivalência essencial que se produziu por razões históricas vinculadas à ideia de vulnerabilidade e incapacidade. Linda Gordon e Nancy Fraser (1997) sinalizavam, já nos anos 90, como os processos de individualização e dependência foram inseridos nos programas de proteção social, trazendo um processo social e teórico compatível com sua psicologização e moralização, que não foi produtiva, para mudar o estatuto deste campo conceitual e dos seus desafios práticos. Ambas as autoras apontam o surgimento de um dualismo que foi produzido na posição representacional da dicotomia entre pessoas produtivas e as dependentes e assistidas; de um lado, quem é beneficiado por alguma política de assistência social, para quem são garantidas pensões de aposentadoria e desemprego; e, de outro lado, programas de assistência aos mais pobres. Estes últimos, no que tange às proteções sociais, são englobados em uma representação negativa de dependência e são colocados nos pressupostos da incapacidade, da falta de autonomia, da inutilidade social, considerados parasitas, o que os subjetiva como estigmatizados, além de institucionalizarem um forte processo racializado e feminilizado. Estes desafios de autonomizar e produzir relações de proteção encontram-se na estruturação das políticas de Estado, na economia nacional e transnacional (HIRATA, Helena; KERGOAT, Danielle et al., 2010) e na discussão a respeito das diferentes vulnerabilidades sociais. No interior das relações familiares, nos modos como se configuram os cuidados em saúde, em educação, nas políticas de atendimento às crianças e aos idosos, ou no modo como apoiamos as pessoas portadoras de necessidades especiais, também 57


se interpõem conflitos e desafios à questão do cuidado, relacionando-a com temas como as desigualdades sociais, a saúde e questões de gênero. Além do mais, são aspectos que dizem respeito a como cada um, cada uma de nós percebe e age frente à necessidade de algum tipo de cuidado do qual todos e todas dependemos pessoalmente ou institucionalmente. Estas relações, que são também de dependência e interdependência, estão reduzidas, muitas vezes, à díade da divisão sexual e desigual do trabalho, favorecem a privatização, ou os contratos pessoais, porque são realizadas em contextos de grande precariedade e, com frequência, estão presas às necessidades de atenção imediata, situação que se confunde frente às fronteiras da autonomia e da vulnerabilidade. Não é só disso, porém, que se fala; o tema do cuidado e sua problematização produz fundamentos e interrogações a respeito de transversalidades e sentidos práticos que poderiam ser utilizados para se pensar a dependência em suas múltiplas denominações. Para tal, faz-se necessário considerar aspectos que se ligam às representações sobre a precariedade da vida corporal e biológica, em fases diversas da experiência humana, como na infância, velhice ou alguma doença, ou frente à fragilidade das identidades, quando abjetadas, por não serem reconhecidas como existentes ou invisibilizadas nas relações sociais. (BUTLER, 1999).

Considerações finais Conforme já observamos neste capítulo, tanto do ponto de vista epistemológico como no seu sentido prático, os tensionamentos acadêmicos a respeito do cuidado começaram a ser produzidos já na década de 1980, com Carol Gilligan. Ainda que tenha sofrido críticas de diversas teóricas do feminismo, a obra de Gilligan coincide com o movimento feminista, ao articular o fortalecimento de questões desnaturalizadoras das concepções tradicionais construídas sobre premissas únicas de desenvolvimento moral. Joan Tronto (1997) elabora sólida reflexão, considerando os aspectos da fundamentação do cuidado, nos níveis sociais, políticos e éticos, e das consequências da marginalidade da ética do care e de quem proporciona suas tarefas (em sua maioria, as mulheres). Também referendamos como teóricas como Marie Garrau e Alice Le Goff (2010) mostram nossa dependência uns dos outros e como a preservação 58


das relações constitui um jogo moral tão importante quanto o da justiça. Vimos como em sua obra elas apresentam uma mudança de paradigma na teoria moral e propõem um novo método de pesquisa na psicologia, que permita visibilizar diferentes vozes morais. À dependência dão um valor positivo, como lugar de uma aprendizagem moral e de uma experiência moral completa, o que significa que, no plano das reivindicações de direitos, pode-se partir de outras significações, como, por exemplo, o reconhecimento de nossas dependências mútuas que vão ao encontro do reconhecimento das responsabilidades mútuas; nesse caso, sem o sacrifício do sujeito, mas, sim, com a compreensão do agir com responsabilidade em relação a si mesmo e aos outros. Dessa crítica à visão binária e essencializadora realizada pelas teorias feministas, passou-se de uma perspectiva exclusivamente moral para uma perspectiva social e política. Restituiu-se ao care seu duplo contexto histórico e social e ressaltou-se a subordinação das mulheres, aspectos que Garrau e Le Goff também tornam presentes, ao trabalharem com uma linha argumentativa crítica, a respeito da desvalorização da dependência, ao mesmo tempo em que preservam a ideia do care como orientação moral importante, que renova um ideal político preciso. As autoras demonstram como as teorias contemporâneas da justiça não vêm contemplando as realidades familiares e como são frequentemente vistas como harmônicas em suas desigualdades. Elas insistem que a implementação de princípios da justiça no seio da família precisa se conectar com as responsabilidades compartilhadas entre seus membros e renovam este quadro de teorias a partir dos argumentos de Kittay (1999) e Martha Nussbaum (2011, 2006). Paperman e Molinier (2009) nos inserem na necessidade de tradução constante dos conceitos e de seus sentidos múltiplos, o que nos reporta às dificuldades de fundamentação das teorias do care e ao reconhecimento de que as diferentes experiências de pesquisa em diversos contextos nos estimulam a ver as realidades dos trabalhos demandados no care, as políticas públicas, as construções argumentativas necessárias à construção de uma cidadania plena, além das imperativas desconstruções de estereótipos, de estigmas e a desvinculação necessária dos pressupostos femininos, aos quais o care esteve e ainda está conectado. Igualmente, nos obriga a desenvolver a capacidade de uma reflexão social sobre o cuidado que possa se dar sob a perspectiva 59


de seu sentido político, econômico, institucional e com seu consequente desmanche sexista. Este rol de questões trazidas pelas autoras a respeito do care nos desafia na sociedade contemporânea e reposiciona os conceitos, nos seus aspectos normativos, tanto quanto não normativos, recoloca as velhas e as novas questões à reconfiguração do cuidado, para construí-lo como política social. Isto implica mudar seu valor para refletir a respeito da vida em sociedade e em família, do mercado e do Estado, além de desidentificar, nestes âmbitos, as continuidades com os tradicionais marcadores raciais, sexuais, emocionais e afetivos, para constituir o processo necessário ao cuidado democrático e à democratização do cuidado. Estes desafios encontram-se na estruturação das políticas de Estado, na economia nacional e transnacional, no interior das relações familiares, nos modos como se configuram os cuidados em saúde, em educação, nas políticas de atendimento às crianças e aos idosos, ou no modo como apoiamos as pessoas portadoras de necessidades especiais. Também dizem respeito a como cada um de nós percebe e age frente à necessidade de algum tipo de cuidado do qual todos e todas dependemos pessoalmente ou institucionalmente. Estas relações, que são também de dependência e interdependência, seguem em grande medida reduzidas à díade da divisão sexual e desigual do trabalho, favorecem a privatização, ou os contratos pessoais, porque são realizadas em contextos de grande precariedade e, muitas vezes, estão presas às necessidades de atenção imediata, situação que se confunde frente às fronteiras da autonomia e da vulnerabilidade. Portanto, atualmente, os desafios, quer de ordem heurística ou axiológica ou de cunho pragmático, no que tange ao cuidado, têm inúmeras complexidades, desde aquelas que envolvem as questões mais amplas, em termos ambientais, até os aspectos mais próximos do nosso cotidiano pessoal, que nos exigem olhar para o nosso próprio corpo, para o corpo dos animais, para os objetos, para o ambiente de trabalho, para a moradia, a alimentação, as amizades e o lazer. É de muitas sociabilidades que dizem respeito, falam de nós mesmos, nossos parentes, amigos e das pessoas com as quais nos relacionamos. Os sujeitos que precisam cuidar e aqueles que recebem cuidados estão todos desafiados, em seus níveis humanos e afetivos mais profundos, a viver a vida com o cuidado e a oferecer-se sempre mais para o cuidado. Entretanto, em época de mundialização neoliberal, de perda das fronteiras entre os países, de deslocamento de homens, mulheres, crianças 60


e jovens pelo planeta, os riscos e as mortes atingem frontalmente a todos, desafiando as instâncias de representação internacional a tomarem decisões de proteção e amparo com cuidados destinados a todas estas vidas. Frente a tantos gritos de morte, de violências, de perdas de tanta vida, que não encontra eco nas instâncias governamentais, frente ao terrorismo, frente às chacinas, frente às guerras, frente à dor e ao pânico das pessoas, o cuidado ganha uma dimensão eminentemente política e se impõe como um desafio que pode evitar escolher entre a vida e a morte de muitas pessoas. Ele vai, portanto, muito além dos nossos contextos de pesquisa, com seus recortes e especificidades, com seus desafios internos a cada tema ou com a nossa capacidade ou não de sermos bons. Precisa igualmente ultrapassar sua inserção presa à crise da previdência ou da inoperância dos sistemas de proteção social e de saúde. A questão social e o Estado social não podem ser mais pensados como previdência. A vantagem do cuidado é que ele pode permitir considerar um novo estado de questões, em que o cuidado pode, quem sabe, construir uma nova forma de ser do Estado social, que leve em conta o lugar de devir das mulheres, dos vulneráveis e necessitados de cuidado, que leve bem mais em conta a sociedade preocupada com as pessoas e suas necessidades. Este lugar heurístico nos permite eleger ou fazer escolhas, com vistas a olhar de perto e identificar como pensar cada desafio que se conecta a concepções de mundo e de cuidado. E tudo isto é fundamental, conforme veremos em cada capítulo deste livro. Este olhar, porém, necessita ser ampliado enormemente para dar conta da proteção da vida e do planeta como um todo. Neste nível, há grande complexidade de questões e de obstáculos, mas há também muitas possibilidades e aberturas que implicam as “potenciais” alianças transnacionais, conforme trata Paola Bacchetta (2010) para o feminismo, quando ela se reporta ao modelo de sororidade global. Neste mesmo contexto, o termo global segundo Bacchetta implica uma política de aliança para todos no mundo, mas que não pode ser afirmada com a noção liberal de “sororidade global”, pois esta pressupõe um patriarcado transhistórico, que atribui o ônus da diferença para as mulheres do “Terceiro Mundo” e higieniza os contextos hierárquicos e relatos capitalistas e de racialização, uma situação muito frequente, quando se trata do cuidado, sempre pensado no feminino e sob a responsabilidade de mulheres, seja nos espaços da filantropia, conforme texto de Ana Paula Vosne Martins neste livro, 61


ou da pobreza, como a maior parte das análises aqui dispostas. São poucas as conexões concretas, as alianças e os arranjos nacionais, internacionais e transnacionais, com o sentido de gerar espaços para o cuidado da vida das pessoas e do planeta. Este engajamento pressupõe sujeitos políticos dinâmicos que construam relações também de intersubjetividade política e que, portanto, se definam como redes de capacidades para impulsionarem o desejo de aproximação e de agir na direção da definição das vidas e de sua preservação. Exige reposicionar os sentidos das economias, pensar estratégias a partir das diferentes posições e experiências, que nos facultem repensar os conceitos e as relações da grade de inteligibilidade dominante. Isto inclui um processo de descolonização cognitiva, para assegurar uma maneira de se desidentificar com os discursos dominantes e para provocar o surgimento de novas políticas necessárias às pessoas e aos sujeitos situados. Necessita-se de uma compreensão do cuidado que envolva uma comunidade mais ampla, face às pessoas consideradas vulneráveis e necessitadas também. (GARRAU; Le GOFF, 2010).

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EM BOAS MÃOS: ASSOCIATIVISMO FEMININO E FILANTROPIA NA ORGANIZAÇÃO DA PROTEÇÃO MÉDICO-SOCIAL À MATERNIDADE E À INFÂNCIA Ana Paula Vosne Martins5 Woman is responsible in proportion to the wealth and time at her command. While one woman is working for bread and butter, the other must devote her time to the amelioration of the condition of her laboring sister. This is the moral law. (SAGE, 1905, p.712)

Em seu único texto publicado, a rica filantropa Margaret Olivia Sage se dirigia às mulheres com talento, dinheiro e tempo, para convencê-las a bem empregálos trabalhando pelos mais necessitados e para o bem da humanidade. Ela recorreu a dois modelos bem conhecidos de suas leitoras para fundamentar seu apelo: a caridade cristã e a valorização moral da feminilidade. Para a filantropa da cidade de Nova York, as mulheres da sua classe social tinham muito a contribuir para a transformação da vida social das suas respectivas comunidades. Ciente dos problemas que se avolumavam com o crescimento acelerado das cidades e o aumento populacional incrementado pela imigração européia aos Estados Unidos, desde a segunda metade do 5 Professora associada do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, onde atua desde 1993. Foi coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR entre 2011 e 2013, vice-diretora do Setor de Ciências Humanas entre 2013 e 2014 e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR até 2015. É doutora em História pela UNICAMP (2000), com pós-doutorado realizado na Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ em 2004 e na Universidade Federal Fluminense em 2016. É bolsista de produtividade do CNPq. Suas áreas de atuação são história das mulheres, história do corpo e das sexualidades, história da maternidade, história da assistência e da filantropia, história da escrita de mulheres. É autora dos livros Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX (Rio de Janeiro: Editora da FIOCRUZ, 2004), e Um lar em terra estranha: a Casa da Estudante Universitária de Curitiba e o processo de individualização feminina nas décadas de 1950 e 1960 (Curitiba: Editora da Universidade Federal do Paraná, 2012, – edição revista). Organizou, com a professora cubana Maria de Los Angeles Arias Guevara, a coletânea Políticas de gênero na América Latina: aproximações, diálogos e desafios (Jundiaí: Paco Editorial, 2015). ana_martins@uol.com.br

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século XIX, Olivia Sage instava as mulheres das classes mais privilegiadas a ampliar sua esfera de ação para além dos seus lares. Dirigia-se em particular às mulheres solteiras e às viúvas como ela própria, ou àquelas cujos filhos já estavam crescidos, encorajando-as a empregar seus talentos e sentimentos morais nas causas e obras benemerentes. Olivia Sage foi notável representante do movimento filantrópico que ao longo do século XIX mobilizou homens e mulheres das classes média e alta a atuar na chamada questão social, movimento sustentado na religião cristã e na articulação entre um projeto civilizador e a noção de responsabilidade moral dos mais ricos e privilegiados pela sorte, como então se dizia. Numa época em que os Estados pouco interferiam na questão social, a ação caritativofilantrópica foi bastante valorizada. Ela se adequava à moralidade de elite de seus praticantes, ao mesmo tempo em que atendia a algumas necessidades urgentes e concretas dos beneficiários, além de proporcionar, especialmente às mulheres, oportunidades de ação, de conhecimentos, de escolhas e de mobilidade. Como bem reconheceu Olivia Sage, a ação caritativo-filantrópica legitimava o exercício de um poder feminino não ameaçador à ordem social e de gênero, emanado da autoridade moral das mulheres em cuidar dos seus, de si e dos outros, o poder dos cuidados. É notável como um movimento que mobilizou tantas mulheres nos séculos XIX e XX tenha ficado esquecido ou tenha sido negligenciado pela história das mulheres e pelos estudos feministas por tanto tempo. Até os dias atuais o associativismo feminino filantrópico é visto como um movimento conservador, senão mesmo reacionário, sem nenhuma relação com o movimento de emancipação das mulheres. Pesquisas iniciadas na década de 1980, sob uma perspectiva analítica de gênero, mostram que estas histórias não estão necessariamente divorciadas e nem sempre se opõem. Por mais que o associativismo feminino filantrópico tenha se sustentado num discurso moral e numa ideologia de gênero conservadora, segregacionista e limitadora da cidadania e dos direitos das mulheres, seus caminhos e direcionamentos não foram uniformemente guiados pelos valores conservadores, como se houvera um script seguido por todas as mulheres que participaram das associações benemerentes. Estudos mais recentes, sobre a biografia de mulheres que se destacaram na filantropia e a respeito do associativismo feminino, mostram como não há uma única experiência histórica neste terreno dos cuidados promovidos 72


pela filantropia. Revelam também os caminhos entrecruzados entre religião, filantropia, valorização moral das mulheres, consciência social e sufragismo, misturando experiências, aproximando expectativas, borrando ideologias. (SUMMERS,1979; PROCHASKA, 1980; ELLIOTT, 2002; MARTINS, 2016). Tendo em vista a extensão e a complexidade do tema, neste capítulo proponho uma reflexão em três momentos. Primeiro, realizo uma aproximação histórica da formulação da questão social no século XIX e de suas abordagens morais e reformistas. No segundo momento, discuto o processo histórico de feminilização da filantropia no século XIX, como um espaço moral privilegiado dos cuidados exercidos pelas mulheres das classes mais privilegiadas em favor dos necessitados, particularmente das mães pobres e de seus filhos, numa aproximação discursivo-ideológica com a medicalização da maternidade. Por último, ajusto a lente para contextos latino-americano e brasileiro relativos à assistência e à proteção materno infantil e à decorrente aliança entre médicos e mulheres de elite na organização de instituições e de serviços para mães pobres e seus filhos. Num ajuste ainda mais preciso, apresento um caso bem sucedido deste tipo de aliança. Analiso o processo de criação da Associação das Damas de Assistência à Maternidade e à Infância na cidade de Curitiba, em 1914. Esta associação feminina benemerente foi criada para apoiar e manter a Maternidade do Paraná, também criada naquele ano, ligada à Universidade do Paraná, fundada em 1912. Mulheres bem nascidas e casadas com homens ilustres da sociedade curitibana saíram do anonimato ou da sombra de seus maridos, dando início ao trabalho de organização e manutenção de uma instituição médico-social, a Maternidade. Este “trabalho do coração” lhes deu a oportunidade de atuar na esfera pública a partir da experiência com os cuidados na esfera do privado, mantendo os códigos de respeitabilidade e ampliando sua esfera de influência para além de seus lares.

O poder de fazer o bem O escritor, poeta e esteta londrino John Ruskin (1819-1900) foi um admirador e defensor das mulheres. Em seus escritos, a figura feminina é recorrente e expressa valores como beleza, perfeição, moralidade, bondade e o cuidado com o mundo. No livro Sesame and Lilies (1865), seu ideal romântico de mulher é definido no texto intitulado Of Queens’ Garden, resultado de uma 73


conferência pronunciada em 1864. Recorrendo à autoridade de Dante e de Shakespeare, para provar a influência benfazeja das mulheres no mundo, Ruskin atacava o que ele considerava ser um erro e uma tolice, ou seja, a idéia de que as mulheres eram inferiores aos homens e deveriam para sempre se aquietar e obedecer servilmente aos seus esposos e senhores. Para Ruskin, homens e mulheres jamais poderiam ser entendidos separadamente; seus deveres e suas missões no mundo eram complementares, se apoiando e se fortalecendo mutuamente. Seu discurso se estrutura em torno da idéia de que o mundo é constituído por duas esferas complementares de atuação: o mundo feminino do lar e dos cuidados e o mundo masculino do trabalho, das guerras e da política. Esta definição de espaços de gênero se sustenta numa diferença natural e moral que não pode ser apagada; pelo contrário, deve ser fortalecida e combinada, para que ambos possam bem desempenhar seus papeis e assim garantir a felicidade individual e o bom ordenamento social. Diferentemente do homem, cujo intelecto estava voltado para a ação, a invenção e a conquista, a mulher exercia um poder ordenador, arranjando as coisas, identificando necessidades, estabelecendo qualidades, criando, no seu espaço, o lar, uma ordem de paz, beleza, conforto, bondade, sabedoria, gentileza e virtude. No entanto, Ruskin não via este espaço como uma redoma separada do mundo. Homens e mulheres tinham deveres públicos e privados; a ambos cabia garantir a manutenção e defesa do lar, mas somente às mulheres cabia estabelecer a ordem, o conforto e a beleza deste espaço privado e sentimental. No entanto, elas também deviam desempenhar um papel público, diferente do papel masculino, expandindo seus talentos e habilidades privadas para a sociedade: a mulher deve ser, fora dos limites do lar, o bálsamo para a angústia, o espelho da beleza, pois é onde a ordem é mais difícil, a angústia mais eminente e a beleza mais rara. (RUSKIN, 19091914, p. 86). Este papel público civilizador era a expressão máxima do que Ruskin denominava o poder real ou soberano das mulheres. Este poder tinha sua origem numa educação bem cuidada e na elevação moral das mulheres, mas não devia ser exercido somente no lar. Seu texto não deixa margens para dúvida quanto à extensão do poder soberano das mulheres. Se bem empregado (com sabedoria e virtude), a ordem e a beleza induzidas por tal poder permitiriam, como sublinha Ruskin, pensar num reino feminino para 74


além dos seus lares. Este reino era o mundo transformado num jardim pelo poder benevolente das mulheres de cuidar, de resgatar e de guiar. Tal idealização, eivada de romantismo, teve ressonâncias e encontrou muitos defensores, especialmente entre as mulheres. Recorrendo a uma explicação naturalista e determinista das diferenças sexuais, a ideologia da domesticidade acabou por criar um mundo à parte das mulheres, das crianças, dos idosos e das classes inferiores; um mundo no qual cabia às mulheres das classes privilegiadas garantir o que Ruskin chama de doce ordenamento, capaz de renovar os laços familiares e restaurar as forças dos homens que se expunham cotidianamente aos perigos do mundo. No entanto, como Ruskin também sabia, as mulheres que viviam nos lares confortáveis e distantes do alvoroço mundano dedicavam parte de seu tempo livre à caridade e ao trabalho voluntário. Esta prática bastante antiga, tanto como exercício da caridade cristã, como expressão do poder paternalista das classes favorecidas, cabia às esposas, às filhas ou às viúvas, como distribuidoras de esmolas, víveres e mesmo de proteção aos doentes, órfãos e às mães pobres. Portanto, o discurso de Ruskin em defesa de uma ação benemerente pública por parte das mulheres caiu num solo já preparado. O fechamento de oportunidades no mundo público para as mulheres levou algumas delas a se alinharem às ideias mais radicais do socialismo e do feminismo, entre o final do século XVIII e as primeiras três décadas do século XIX. Mas, a maioria das mulheres bem nascidas na Europa e nos Estados Unidos não se envolveu com ideias radicais a respeito da igualdade, palavra que parecia ser feita de fogo e que incendiou as ideias e os escritos de homens e mulheres inconformados com o que lhes parecia uma ordem social injusta e que precisava ser mudada. (MIRANDA, 2010). Como demonstraram Perrot (1994), Porter (1998) e Diebolt (2005), a maioria das mulheres encontrou outro caminho para contornar a ociosidade, a frustração e talvez, de forma pouco elaborada ou mesmo inconsciente, a insatisfação com seu lugar restrito no mundo. Para elas, a religião acenava com as promessas de realização e apaziguamento da consciência que o envolvimento com a caridade poderia trazer. Fazer o bem aos pobres e desgraçados era um discurso adequado à manutenção da ordem social e de gênero e as igrejas cristãs recorreram constantemente a ele para garantir as obras de caridade das paróquias. 75


Mas um novo discurso começara a ser elaborado em torno das necessidades dos desamparados pela sorte (idosos, órfãos, doentes, mães e crianças pobres) ou daqueles indivíduos que haviam sucumbido aos vícios da luxúria, da preguiça e da intemperança (prostitutas, vagabundos, embriagados). Este discurso secular e racionalista da filantropia raramente chegou a se separar com nitidez do discurso cristão da caridade, mas seus fundamentos morais e suas práticas eram diferentes. A caridade pressupunha uma obrigação moral dos mais ricos em socorrer os necessitados. Daí ser a esmola sua expressão mais usual e reconhecida, tanto para os pobres individualmente quanto para as igrejas e suas instituições de caridade bastante antigas, como hospitais e asilos. A filantropia se assentava em outras bases.6 Entender como este novo discurso em torno de práticas tão antigas relacionadas aos cuidados com os necessitados foi formulado requer uma breve digressão sobre as transformações sociais e econômicas entre os séculos XVIII e XIX. A introdução do sistema de fábrica teve um impacto sobre a organização do trabalho e as comunidades de trabalhadores artesanais e de camponeses, impacto este bastante estudado pela história social e econômica. Um efeito imediato das novas formas capitalistas de produção e de organização do trabalho foi o aumento expressivo da população das cidades, resultado da migração do campo ou de províncias e pequenas cidades duramente atingidas pelas flutuações do livre mercado sobre o trabalho. (PORTER, 1998; HOBSBAWM, 1997; GEREMEK, 1995). Preocupados com a garantia da ordem e da estabilidade social, pensadores tão diferentes como Adam Smith, Francis Hutcheson, Conde de Shaftesbury, David Hume, Montesquieu, Condorcet, Tom Paine, William 6 As diferenças entre as palavras filantropia e caridade nem sempre são nítidas. O conceito de caridade, na sua origem cristã, se refere ao amor/desejo a Deus, ao laço inquebrantável entre os homens e o Criador. Centro da vida moral cristã, a caridade se revela e se expressa por meio do amor, da complacência, paz, misericórdia e comiseração pelo próximo que sofre. A esmola é um ato de bem fazer que acabou se tornando uma das faces mais populares da caridade. A filantropia é, da mesma forma, amor que se manifesta por ações benevolentes em favor dos necessitados, tendo ou não motivação religiosa. Alguns autores sublinham que a filantropia está relacionada a motivações seculares e a um quadro moral e utilitário, tendo um escopo mais amplo de ações, como o amparo à educação, às artes e às letras, ações públicas relacionadas ao patrimônio histórico e cultural, além das ações mais tradicionais voltadas à criação e manutenção de instituições de saúde e de assistência social Ver SANGLARD (2005).

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Godwin, entre tantos outros, estavam comprometidos com o ideal civilizador e regenerador da sociedade, que por sua vez envolvia valores como a polidez, o refinamento, o conhecimento e a compaixão com os sofredores. A crescente inclusão dos sentimentos morais nas reflexões filosóficas e sociais dos pensadores iluministas é reveladora de uma nova forma de pensar que almejava o equilíbrio da razão com os sentimentos. Para estes pensadores, a ordem social não seria aperfeiçoada e nem mesmo alcançada somente com ações coercitivas e com o coração fechado. Percebe-se nos seus textos que o sentimento da compaixão assume uma função socializadora. Fazer o bem não era somente uma ação individual ordenada pela religião, mas uma disposição coletiva racional e sentimental em favor daqueles que sofriam, a fim de melhor regular as relações sociais. Para tanto, o sistema das esmolas não era mais suficiente. Como bem percebeu Adam Smith, era necessário que cidadãos de bem e o Estado assumissem a responsabilidade com um movimento mais amplo de reforma social na qual a razão e os sentimentos fossem os princípios reguladores de ações e de instituições capazes de fazer frente ao pauperismo e à ignorância. Este intento reformista envolvia ações voltadas para a mudança dos costumes rudes dos pobres através da religião, mas tinha outras ambições. O reformismo social, desde seus primeiros delineamentos na Inglaterra do século XVIII, passando por outras experiências no continente europeu e nos Estados Unidos ao longo de todo o século XIX, tinha entre seus objetivos ordenar a sociedade cada vez mais complexa que se descortinava. Foi inicialmente um movimento que expressava os valores da burguesia mercantil tocada pelos princípios universalistas e humanitários, convergindo o controle social ao ideário racionalista e civilizador. Se os pobres existiam era necessário amenizar seus sofrimentos, a começar garantindo que pudessem trabalhar. Aqueles que não tinham condições físicas ou mentais nem idade para trabalhar deveriam ser amparados por instituições que lhes garantissem uma vida digna. Entre os séculos XVIII e XIX, vê-se um amplo e intenso processo de reformas em prisões, hospitais, albergues, asilos, ao mesmo tempo em que novas instituições reformadoras foram criadas, como ligas e associações de caráter educacional, de combate aos vícios e de mobilização em favor de temas de interesse coletivo, especialmente no contexto imediatamente posterior à Revolução Francesa. 77


O movimento reformista filantrópico procurou, portanto, encontrar soluções para a pobreza e outros problemas correlatos não no terreno da política propriamente dita, mas na rearticulação do poder das classes dominantes. Este processo pode ser interpretado como um esforço de despolitização da questão social, que foi organizado em diferentes esferas, envolvendo a reorganização do aparato de controle e segurança do Estado e a institucionalização da questão social, tanto do ponto de vista da organização da administração estatal da educação, da saúde, da segurança e da assistência, como através das associações filantrópicas e suas múltiplas formas de intervenção social. Este processo crescente de institucionalização da questão social, que começou no século XVIII e alcançou seu apogeu no século XIX nos mais diferentes países, é revelador daquela rearticulação do poder levada a cabo pela filantropia. Ao invés de reforçar a atitude reacionária e violenta frente às demandas e necessidades das chamadas classes perigosas, os filantropos propunham ações movidas pela razão e pela compaixão. Organizar, distribuir, prover, contar, relatar, controlar, tudo isto envolvia ações planejadas como parte da construção de saberes sobre o mundo da pobreza; mas tais ações racionais deviam ser mobilizadas pela compaixão, por este sentimento nobre de benevolência pela humanidade, sentimento social este que encontrou em homens e mulheres educados na nova sensibilidade burguesa os executores de uma forma específica de intervenção social e de um tipo de poder que precisa ser mais bem conhecido: o poder de fazer o bem que somente pessoas de elevada condição moral e social têm autoridade para exercê-lo.

Para além do seu jardim Este apelo racionalista e sentimental da reforma social encontrou nas mulheres das elites as receptoras ativas e dispostas a contribuir com tamanha responsabilidade. É compreensível esta recepção, afinal eram mulheres bem educadas, portadoras dos valores civilizadores de sua classe social, mas que não tinham oportunidades mais amplas de participar do debate político; afinal, não eram cidadãs com direitos políticos e civis; suas ideias raramente alcançavam a esfera pública. O discurso reformador e a ação filantrópica não afrontavam a rigidez da ideologia da domesticidade e da separação das esferas pública e privada, preservando a ordem de gênero e a respeitabilidade das 78


mulheres que poderiam frequentar o espaço público mais amplo e se envolver com aspectos da questão social sem ofender os padrões de moralidade e a honra familiar. É preciso reconhecer o papel da religião neste processo que Michelle Perrot (1994) chamou de “sair” para fora do lar em favor dos pobres, doentes e abandonados pela sorte. Tanto entre os protestantes quanto entre os católicos o movimento reformista do século XIX dependeu diretamente da participação das mulheres. Nos países de predominância protestante como os Estados Unidos o reavivamento evangélico pregava um cristianismo de cunho mais individual e emocional e muitos fiéis, homens e mulheres, responderam a este fervor religioso empregando seu trabalho, tempo e dinheiro no movimento reformista – inclusive a luta em favor da abolição da escravidão – e nas ações filantrópicas. (CLAPP, 1998). As mulheres católicas também foram instadas a participar do movimento reformista através do envolvimento com as ações caritativas com as quais a igreja tinha uma experiência bastante antiga e bem consolidada. Nos países de predominância católica as mulheres desempenharam historicamente um papel secundário no sistema caritativo, seja como filhas, esposas e viúvas de ilustres provedores das Santas Casas e das irmandades religiosas, seja como pequenas doadoras anônimas de esmolas nas suas paróquias e nos testamentos ou então como partícipes da hierarquia eclesiástica na condição de irmãs de caridade. Foi a partir do século XIX que este papel começou a mudar e as mulheres católicas assumiram gradualmente um lugar de destaque como protagonistas principais no sistema caritativo e filantrópico. Para tanto, desempenhou um papel importante a elaboração da doutrina social da igreja católica efetuada pelos bispos ultramontanos europeus desde a primeira metade do século XIX. Tanto o clero quanto os intelectuais leigos católicos, especialmente médicos e advogados, passaram a colocar na pauta de suas reflexões e escritos a questão social, enfocada a partir das condições de trabalho de crianças e mulheres, como também a insuficiência dos salários para manter as famílias dos trabalhadores. No entanto, a questão tinha uma abrangência muito maior, pois aos grupos que tradicionalmente eram protegidos pela caridade católica como os idosos, os órfãos e os doentes, se somaram outros, como os desempregados, as prostitutas, rapazes e moças que chegavam desamparados às cidades para trabalhar e podiam ser corrompidos, e as 79


crianças, cujos pais trabalhavam ficando sem amparo algum perambulando pelas ruas. O velho sistema da caridade católica precisava ser reformado, começando pela ampliação das instituições, dos recursos e principalmente da boa vontade dos fieis em colaborar com um projeto de intervenção social. (VAN GESTEL, 1956). Da mesma forma que as mulheres protestantes, as católicas também atenderam ao chamado clerical ou dos médicos para se envolver com o trabalho benemerente, atuando nas instituições mais tradicionais existentes ou criando elas próprias associações de caridade. Recorrendo novamente a Michelle Perrot pode-se dizer que também para as católicas [...] a filantropia constituiu uma experiência não negligenciável, que modificou a sua percepção do mundo, a idéia que tinham de si mesmas e, até certo ponto, a sua inserção pública. [...] Às senhoras caridosas, mais ou menos empurradas pelos seus confessores ou pelos seus maridos, a quem desse modo ilustram o nome, sucedem mulheres mais independentes, frequentemente celibatárias, ou viúvas, indignadas com a miséria física e moral e animadas por um espírito missionário. (PERROT, 1994, p. 504-505)

Apesar da sua importância, o apelo e o zelo religiosos não são suficientes para se entender a feminilização da filantropia ocorrida entre o século XIX e o XX. A ideologia da domesticidade e a valorização moral das mulheres, através dos cuidados e da maternidade, constituem o pano de fundo para a sua visibilidade pública e a justificativa para o que Ruskin, como visto, definiu ser o poder soberano das mulheres, o poder dos cuidados. Num contexto de agudização dos problemas e das tensões sociais e de busca por soluções que desarmassem os movimentos populares e a organização socialista dos trabalhadores, a filantropia desempenhou um importante papel político para o qual as mulheres estiveram na linha de frente. (DONZELOT, 1986). Se o lugar das mulheres era o lar, religiosos, médicos e escritores perceberam que suas características naturais e morais poderiam ser bem utilizadas para fora dos seus domínios. É interessante observar que o mesmo discurso que estabelece a existência separada do privado e do público, a partir da linha demarcatória de gênero, encontra na diferença feminina a 80


justificativa para o que podemos chamar de difusão das capacidades naturais das mulheres para uma esfera intermediária entre a esfera privada e o Estado, esta nova paisagem que se descortina no século XIX, o social, e as instituições filantrópicas de cuidados. Cabe lembrar a importância da maternidade na formulação de um discurso de valorização das mulheres e de suas qualidades para os cuidados. Desde meados do século XVIII e especialmente ao longo do século XIX, se desenvolveu uma concepção espiritual e emocional da maternidade presente nos mais diferentes discursos. Maternidade e feminilidade passaram a ser sinônimos e as atividades ligadas a esta experiência, como os cuidados físicos, morais e afetivos, foram ressignificados no interior do discurso social emergente. Se os cuidados maternos tinham uma reconhecida qualidade formadora de bons cidadãos, poderiam também ser empregados para fora do lar sem prejuízo para outras pessoas. Este reconhecimento acionou uma dupla operação ideológica: por um lado, reforçava as hierarquias de gênero, mas por outro acenava com a possibilidade de as mulheres saírem dos seus estreitos limites domésticos e das sociabilidades de classe, para se enveredarem pelos caminhos mais tortuosos do que podemos chamar de maternidade social, desta capacidade de expandir os cuidados maternos para outras esferas e sujeitos. Neste processo de feminilização da filantropia, os caminhos abertos e seguidos pelas mulheres foram diferentes. Muitas se conformaram ao papel da soberana que tudo provê e cuida, conforme sonhado por homens como Ruskin, desempenhando o papel de gênero e de classe que delas era esperado no controle das classes populares. (LANGLAND, 1992). Outras foram além, como Olivia Sage e as filantropas brasileiras Pérola Byington, Stella Guerra Duval e Jeronyma Mesquita, que ampliaram de forma significativa sua ação benemerente para muitos projetos, apoiando a causa da emancipação das mulheres pela educação e pelo sufragismo. Outras foram ainda mais longe. Mesmo partindo do valor moral da maternidade, se engajaram no movimento da reforma social lançando as bases da profissionalização da assistência social, bem como estiveram na origem da organização das políticas públicas e da definição de um Estado regulador. Este é o caso de Eugenia Hamann, que atuou em diferentes frentes da questão social no Brasil, cuja trajetória é um bom começo para se pensar nos caminhos cruzados do feminismo e 81


da filantropia, bem como na pluralidade do conservadorismo feminino. (MARTINS, 2016). Por caminhos diferentes, as mulheres que se envolveram com a filantropia passaram por esta experiência de ir além de seus jardins. Mobilizadas pela religião ou pelo discurso laico reformista, entenderam que seu lugar no mundo poderia ser mais amplo. Para muitas delas não se tratava somente de conquistar mais status de classe, mas sim de acessar outros espaços e almejar outras paragens, para além de seus lares, como escolas, hospitais, escritórios, instituições sociais e, por fim, espaços na estrutura do Estado como profissionais da assistência. Para a maioria das mulheres que atendeu ao chamado para trabalhar em prol dos necessitados – mesmo que mais restrita à noção moral e normativa dos cuidados pela difusão da maternidade – sair de seus lares e iniciar um trabalho benemerente as levou para outras experiências com as quais não tinham familiaridade. Criar uma associação, organizar atividades, angariar recursos, mobilizar novas associadas; enfim, as muitas atividades que envolviam este tipo de trabalho voluntário estão na origem de uma nova experiência neste espaço intermediário entre o público e o privado.

Em boas mãos: médicos, senhoras benemerentes e a proteção à maternidade e à infância na Curitiba do início do século XX No Brasil, os médicos envolveram-se com as práticas benemerentes desde meados do século XIX, atendendo a pacientes das enfermarias nos Hospitais de Caridade, nos lazaretos ou asilos para doentes mentais. Muitos médicos oitocentistas tiveram seus nomes associados à caridade, alguns devido à notoriedade conquistada pelo atendimento nos escassos e mal equipados hospitais, outros porque, de uma forma mais direta, socorreram os doentes pobres fundando instituições caritativas de saúde. Contudo, na segunda metade do século XIX, mais especificamente a partir das últimas décadas, um novo discurso começou a ser enunciado pelos médicos, muito mais voltado para a prevenção e a manutenção da vida do que para o atendimento aos doentes e incapacitados. Trata-se do discurso médico-social em prol da maternidade e da infância produzido pelas especialidades da obstetrícia e da pediatria que começaram a ser organizadas nas duas faculdades de 82


medicina brasileiras, a da Bahia e a do Rio de Janeiro. (MARTINS, 2004; BARRETO, 2015). Os médicos obstetras e pediatras foram influenciados pela medicina francesa e pelos estudos produzidos a respeito das relações entre os problemas populacionais e a proteção à maternidade e à infância. Os primeiros estudos sobre os aspectos sociais da maternidade foram publicados na França, a partir de 1870, tendo grande repercussão no meio médico brasileiro. Estes estudos apontavam para a necessidade de ir além da anatomia, patologia e da terapêutica, reclamando por uma visão clínica que também abarcasse com a mesma importância a dimensão social da maternidade e dos cuidados com as crianças; afinal este se mostrava ser cada vez mais um assunto de amplas repercussões sociais, políticas e morais. Se na população de uma nação residia a sua potência, riqueza e futuro, era mais do que urgente conhecer os problemas que impediam o crescimento populacional como também procurar gerenciá-lo através de medidas profiláticas que garantissem a sua qualidade física, intelectual e moral. É nesse contexto que novos saberes se articularam a um projeto mais ambicioso de controle social, como a eugenia e a puericultura, voltados para os temas urgentes e interligados da infância e do crescimento da população. Os médicos brasileiros não tinham muito que argumentar a respeito das ameaças de população, mesmo num país que havia saído da guerra com o Paraguai; afinal, o Brasil não passava por uma crise populacional. Já os obstetras e os pediatras que começaram a atender as mulheres pobres, nas enfermarias de obstetrícia dos Hospitais de Caridade ou nas primeiras maternidades criadas entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, enfrentaram outro tipo de problema: a mortalidade infantil. Sem contar com estatísticas oficiais confiáveis, os médicos se basearam nas suas próprias observações e nos registros dos hospitais e maternidades para lançar o alerta sobre uma realidade que extrapolava a dimensão clínica e que seguramente era muito mais grave do que os registros parciais mostravam. A mortalidade infantil se mostrava um problema complexo envolvendo variáveis que os médicos cada vez mais percebiam ser a causa das doenças congênitas, da fragilidade orgânica, dos empecilhos para o desenvolvimento saudável. O conhecimento deste problema levou os obstetras e pediatras a dar início no Brasil à organização da assistência à 83


maternidade e à infância através da construção de espaços hospitalares ou então se envolvendo e mesmo promovendo a ação caritativo-filantrópica. Neste movimento de proteção e assistência materno-infantil, os médicos não estiveram sozinhos. Outros profissionais se uniram a eles, como professores, advogados, clérigos e juristas. Algumas publicações médicas já circulavam no Brasil, desde o final do século XIX, mas ainda restritas a um meio de leitores especialistas. A partir do começo do século XX, este movimento começou a se ampliar, bem como o alcance das suas ideias, divulgadas também pela imprensa diária. (FREIRE, 2009). Em sintonia com profissionais de outros países europeus e principalmente da América Latina, alguns médicos brasileiros se notabilizaram pelo caráter de militância que imprimiram à proteção à maternidade e à infância, como Arthur Moncorvo Filho, Fernandes Figueira e Fernando Magalhães. Eles participaram de um movimento internacional com várias ramificações, entre elas o aspecto clínico da questão, a proposição de uma legislação protetora do trabalho feminino e infantil, mas principalmente a criação de um aparato institucional de saúde e de assistência social. (MARTINS, 2005) Na América Latina, o movimento em defesa da maternidade e da infância encontrou na doutrina do pan-americanismo as condições políticas e o ambiente intelectual propícios para a sustentação do ideário assistencial e de proteção, para a interlocução e a troca de experiências, bem como para o fortalecimento dos médicos, neste debate no qual não foram os únicos participantes, como bem demonstrou Donna J. Guy (1998). Os congressos pan-americanos da criança, que começaram a ocorrer a partir de 1916, são o resultado de um movimento pelo bem-estar e a proteção materno-infantil que, na Argentina, no Uruguai e no Chile, foi inicialmente organizado pelas mulheres benemerentes e as médicas, algumas destas vinculadas ao feminismo. Contudo, na memória histórica do pan-americanismo, os médicos são os idealizadores e organizadores da proteção materno-infantil, imprimindo uma direção profissional e científica à assistência pautada pela autoridade do discurso médico e particularmente por uma visão instrumental das mulheres como mães. No contexto internacional do pan-americanismo, a questão se mostrou abertamente favorável à proteção das crianças, se afastando do terreno dos direitos das mulheres, como defendiam as feministas. (GUY, 1998). 84


O pan-americanismo articulou médicos de todos os países latinoamericanos, mas é notável a liderança exercida pelos uruguaios, chilenos e argentinos, uma liderança reconhecida por seus pares brasileiros. Nomes de alguns dos mais famosos deles, como Luís Morquio, Ramos Peralta, Eliseo Canton, Emilio Coni e Gregorio Alfaro, foram citados e lembrados nos textos dos médicos brasileiros que, nas décadas de 1910 e 1920, participaram dos congressos médicos pan-americanos. Nestas oportunidades tomaram conhecimento das ideias e das ações desempenhadas por seus pares dos países vizinhos, elogiando e reconhecendo a sua importância e contribuição para a puericultura e as políticas de assistência materno-infantil. Os médicos brasileiros deviam se sentir numa terra ainda muito atrasada, no terreno urgente da assistência, para amenizar, senão mesmo debelar, os efeitos devastadores da pobreza, especialmente para as crianças e as mulheres-mães. As repúblicas americanas que se fundaram no processo das independências, nas primeiras décadas do século XIX, começaram a organizar e a fornecer serviços públicos de saúde e de educação desde a década de 1850, como é o caso do Uruguai, quando no Brasil esta organização só começou a ser efetiva a partir das décadas de 1930 e 1940, ou seja, quase um século mais tarde. No Chile, a primeira maternidade foi inaugurada em 1831, resultado da ação das senhoras de caridade que tinham como objetivo socorrer mulheres pobres que iam dar à luz, doando roupas, alimentos e fornecendo uma assistência médica primária. Já nesta iniciativa se pode ver a participação médica dos obstetras chilenos que também compartilhavam dos mesmos sentimentos de piedade e de compaixão pelas mulheres mães. Esta colaboração entre o associativismo feminino benemerente e os médicos chilenos não ficou restrita à criação da Maternidade, mas em várias outras atividades e instituições criadas ao longo do século XIX pelas mulheres de elite visando socorrer os pobres e os doentes, especialmente as mães pobres e seus filhos. O Chile foi um dos primeiros países latino-americanos a instituir programas públicos de assistência para a maternidade, substituindo gradualmente as ações e instituições benemerentes pelas iniciativas públicas. Neste processo os médicos desempenharam um papel muito atuante ao defenderem que a assistência carecia de uma coordenação científica, especialmente a assistência materno-infantil, chamando para si a função de coordenação e gestão pública da assistência. Este movimento de controle e administração 85


médica se efetivou a partir da década de 1920, quando foi criado o Ministério da Saúde, Seguridade Social e da Higiene. (ZÁRATE, 2007). No Uruguai, o processo da centralização de serviços e de assistência materno-infantil se delineava desde a década de 1890, tendo os médicos uruguaios participado ativamente deste processo através da criação do Conselho de Higiene em 1895. Em 1910 houve a nacionalização das instituições de caridade com a criação da Assistência Pública Nacional, embora o Uruguai contasse com uma ampla rede de assistência privada dirigida por mulheres. Luís Morquio foi o médico mais famoso neste processo de transformação da caridade para a assistência científica e pública da maternidade e da infância no Uruguai. Talvez ele seja o melhor exemplo de um coordenador político da assistência na América Latina; afinal, esteve à frente da organização dos Congressos Pan-Americanos da Criança e da criação do Instituto Interamericano de Proteção à Infância, cuja sede desde a sua criação em 1927 está em Montevidéu. (BIRN, 2005; 2006). Este mesmo movimento foi bastante intenso na Argentina. Buenos Aires já contava com uma Assistência Pública desde 1850, centralizando todos os serviços assistenciais disponíveis na cidade. A partir de 1870, a puericultura era tão desenvolvida na Argentina quanto nos países europeus e foi a partir do engajamento de médicos como Emilio Coni, Gregório Alfaro e Eliseo Canton que a Assistência Pública criou em 1908 uma seção especial de Proteção à Primeira Infância. A intensificação da participação médica nas instituições de benemerência e nas instituições públicas de assistência levou, da mesma forma que no Chile e no Uruguai, à organização de estruturas coordenadas pelo Estado como Conselhos, Institutos, Seções ou mesmo Ministérios, nos quais os médicos exerceram funções administrativas e técnicas, coordenando instituições, programas e serviços públicos de atendimento e de assistência materno-infantil. (NARI, 2004). A situação era muito diferente no Brasil. Sem a intervenção do Estado, a assistência à saúde e o sistema de proteção aos pobres dependiam quase exclusivamente da caridade. Não houve no Brasil imperial nem no republicano algo semelhante a uma assistência pública e, no que diz respeito à assistência materno-infantil, os serviços médicos eram rudimentares e restritos a alguns poucos leitos disponíveis nas enfermarias dos Hospitais de Caridade que atendiam às necessidades do ensino clínico das faculdades de medicina. (MARTINS, 2004). 86


Foi neste contexto finissecular que os médicos filantropos deram início às primeiras iniciativas visando organizar a assistência à maternidade e à infância a partir dos princípios da Obstetrícia e da Puericultura. Eles sabiam que, à falta de uma assistência pública organizada, era necessário somar seus conhecimentos científicos à caridade e à filantropia e neste sentido podemos observar em várias cidades brasileiras o mesmo movimento de aproximação entre médicos e mulheres propiciado pelas afinidades de classe, sem dúvida, mas também por compartilharem do mesmo ideário de gênero que fortalecia esta aliança em favor de mulheres pobres e crianças. Em cidades como Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre, a imprensa registrava com entusiasmo e palavras de júbilo esta aliança benemerente entre médicos e senhoras de caridade. Desde a primeira década do século XX, já se nota os resultados da aliança médico-assistencial com a criação das maternidades, dos postos de saúde, de dispensários, lactários e hospitais em colaboração com as senhoras de caridade. A produção historiográfica mais recente tratou cuidadosamente deste processo bem como de seus desdobramentos e efeitos sobre o corpo feminino e o controle social. Contudo, pouco se conhece a respeito do associativismo feminino no Brasil e de seu importante protagonismo na organização da assistência médico-social. (MOTT; ALVES; BYINGTON, 2005; FREIRE, 2009). Dadas as condições políticas e a ausência de uma assistência pública, dificilmente os médicos teriam conseguido organizar instituições médicoassistenciais sem a parceria e a colaboração das senhoras de caridade e das filantropas. Se no começo do século é possível vê-las nas fotografias tomadas por ocasião da inauguração de alguma obra assistencial, posando com seus belos chapéus e vestidos elegantes, alguns anos depois elas deixaram de ser apenas as representantes femininas do poder benevolente de seus pais e maridos, fundando elas próprias e dirigindo associações de caridade, se envolvendo com orçamentos, negociações, patrocínios e todas as outras implicações de um trabalho voluntário e da inserção pública que ele requeria. Passo agora a tratar mais de perto de uma destas iniciativas. Em 15 de fevereiro de 1914 foi fundada em Curitiba a Associação de Damas de Assistência à Maternidade e à Infância, para colaborar com a maternidade inaugurada no mesmo ano pela Faculdade de Medicina do Paraná. Atendendo ao apelo do então diretor da faculdade, o médico Victor Ferreira do Amaral, várias senhoras da sociedade curitibana se reuniram no 87


seleto salão do Clube Curitibano para dar início a um trabalho assistencial que muito exigiu das suas integrantes. Curitiba era uma cidade pequena na virada do século. Sua população na década de 1910 chegava aproximadamente a 50 mil habitantes, conforme dados estimados por Nestor Victor (1913). No entanto, vários indícios apontavam para o processo de modernização e a sensação de que uma nova Curitiba nascia no alvorecer do século XX. Os contornos modestos da pacata cidadezinha provinciana se ampliavam num traçado mais regular de ruas calçadas, com iluminação pública nas principais vias, bondes, prédios e residências requintados num estilo arquitetônico de fin de siécle, novos e mais diversificados empreendimentos fabris e comerciais, bem como espaços de lazer, que convidavam ao passeio e a uma sociabilidade mais urbana e pública. Associações literárias, grêmios, clubes e a imprensa local reuniam escritores, intelectuais, observadores das transformações que, segundo Etelvina Trindade, davam “ao universo pensante da cidade um toque de paixão, ação, sonhos, medos e esperanças, ideias e práticas”. (TRINDADE, 1996, p 20). Um dos temas que agitavam este meio intelectual e literário era a educação. Desde o final do século XIX, novas escolas foram criadas na cidade, particularmente aquelas ligadas às congregações religiosas femininas e masculinas. As meninas das classes mais privilegiadas poderiam ter uma formação mais bem cuidada, aprendendo nos colégios de freiras o francês, o alemão e o inglês, artes, gramática, música, religião e as boas maneiras tão necessárias para o casamento e a vida social. Várias escolas também foram criadas para os meninos e algumas delas para atender especialmente crianças pobres e órfãs. (TRINDADE, 1996). Neste cenário culturalmente mais diversificado e inquieto, germinou uma idéia que vinha sendo acalentada desde o final do século XIX por intelectuais como Rocha Pombo e Pamphylo d’Assumpção: criar uma universidade no Paraná. Fundada em dezembro de 1912 com os cursos de Medicina, Odontologia, Farmácia, Direito, Engenharia e Comércio, a universidade se adequava e simbolizava o processo de modernização econômica e cultural tão enaltecido pelos discursos da época, como também reforçava o ideário positivista do qual seus idealizadores e fundadores eram tributários. O lema da Universidade do Paraná sintetiza bem este ideário – Sciencia et Labor – e como analisou Erica Cintra: 88


Era desejo de parte da sociedade paranaense, sua elite e camadas médias, que entendiam a necessidade de um corpo de profissionais especializados a bem de atender a população nos eixos da educação e da saúde, bem como colaborar para o desenvolvimento econômico e social, local e nacional. Daí a urgência em se pensar os primeiros cursos na área da saúde, bem como os da engenharia, os da área jurídica e os cursos técnicos comerciais, cujas áreas se faziam bem representar na cidade. (CINTRA, 2010, p.10).

Apesar dos ânimos afinados com o crescimento e desenvolvimento da cidade, as realidades sociais não eram tão animadoras, em particular as condições sanitárias e os efeitos da pobreza, especialmente sobre as crianças. A criação da Faculdade de Medicina e da cadeira de Obstetrícia, esta sob a responsabilidade de Victor Ferreira do Amaral, estão na origem da criação de um espaço que garantisse as condições de ensino, atendimento médicohospitalar e assistência social às mulheres pobres que não tinham a quem recorrer no momento de dar à luz. O único hospital que atendia às pessoas sem recursos em Curitiba era a Santa Casa de Misericórdia, mas não contava com um serviço organizado de obstetrícia. Casos mais urgentes que necessitassem de intervenção cirúrgica eram tratados, mas o atendimento ao parto propriamente não era realizado na Santa Casa. A maioria das mulheres grávidas recorria às parteiras, sendo os médicos chamados somente em casos de urgência. Portanto, no começo do século XX dar à luz em hospital era somente para mulheres muito pobres, geralmente sem família e abandonadas à própria sorte. Este cenário começou a mudar no Brasil nas primeiras décadas do século XX e em Curitiba a partir de 1914, quando foi criada a Maternidade do Paraná, uma iniciativa do obstetra Victor Ferreira do Amaral e de seu colega de profissão Reinaldo Machado. Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1884, especializou-se em obstetrícia e ginecologia. Quando retornou ao Paraná clinicou na Santa Casa de Misericórdia e foi desta experiência em atender aos pobres e de conhecer os efeitos das péssimas condições sociais e sanitárias sobre as crianças que Amaral levou à frente o plano de construir uma maternidade junto à Faculdade de Medicina, sintonizado com as ideias da ciência obstétrica. (MARTINS; BARBOSA, 2015). 89


Victor Ferreira do Amaral era um homem de prestígio. Originário de uma das famílias mais tradicionais do Paraná e da cidade da Lapa, doutor em medicina, foi presença marcante, não só no meio médico, participando e se destacando igualmente na política, nos negócios e no meio intelectual. Foi, portanto, alguém com autoridade para se pronunciar sobre muitos e urgentes assuntos, entre eles a questão da saúde e da assistência. As afinidades de classe facilitaram a execução de seus planos referentes à construção da maternidade, pois as subvenções públicas logo se mostraram insuficientes, além do enfrentamento da questão mais urgente que era a construção de um espaço adequado para o funcionamento de uma maternidade. Seu pertencimento à elite curitibana o aproximou das senhoras da sociedade, que foram convencidas da grandeza humanitária e cristã do projeto. Começava, assim, em 1914, uma sólida aliança entre eles com a fundação de uma associação que deveria dar o suporte material e auxiliar na organização dos serviços de atendimento às mulheres que recorreram à Maternidade. As mulheres que criaram a Associação eram de famílias tradicionais da cidade ou de outras localidades do Paraná. Estas famílias detinham o poder econômico e político, algumas desde meados do século XVIII, constituindo uma rede de sociabilidades sustentada por interesses comuns e vínculos familiares e sociais. Esta elite local composta por políticos, magistrados, comerciantes, médicos e advogados, não só tinha interesses comuns relativos ao seu poder de classe, mas compartilhava valores, sobretudo aqueles associados a uma identidade paranaense e ao fortalecimento cultural do Paraná. As mulheres pertencentes a esta elite deviam cumprir seu papel principal como elo da rede de sociabilidades e da sua reprodução através do casamento e das relações sociais. (NEGRÃO, 1950; OLIVEIRA, 2001). Na virada do século, já era uma prática das famílias da elite dar uma educação mais aprimorada para as meninas e os jovens, especialmente com a chegada das congregações religiosas europeias, em Curitiba. Aos poucos, a educação diferenciada passou a ser um requisito social para as mulheres da elite curitibana, tendo elas várias ocasiões para demonstrar suas habilidades nos salões, nas associações culturais, muito comuns no início do século XX e nos clubes. Declamar poesias, conhecer literatura, praticar a música, o canto e a pintura, além das noções de conhecimentos menos essenciais para elas como a Matemática, a História e as Ciências, constituíam, junto às habilidades sociais, o conjunto de predicados e conhecimentos que eram não 90


só considerados adequados às mulheres bem nascidas, mas demarcavam o status e o prestígio de suas famílias. As fundadoras da Associação das Damas de Assistência à Maternidade e à Infância faziam parte desta elite feminina que já não lembrava mais as suas antepassadas que dificilmente saíam de suas casas, segundo relatos de viajantes. As damas curitibanas do início do século XX eram mais ativas e tinham interesses diversificados que não afrontavam seu papel de gênero e de classe. Etelvina Trindade (1996) comenta que a imprensa local sempre noticiava a presença feminina nas festas, nos bailes, nas atividades culturais promovidas pelos grêmios femininos, como o Grêmio das Violetas, das Camélias, das Glicínias. Muitos destes grêmios também promoviam festas e atividades com finalidade assistencial, sendo a benemerência esperada e praticada pelas mulheres da elite, bem como uma oportunidade para muitas delas poderem exercer sua influência e ampliar seu raio de ação para além da família e das relações com seus pares. Soraia Gatti (2016) também analisou este contexto de ampliação da presença feminina nos espaços públicos da cidade de Curitiba no começo do século XX. Por meio dos jornais locais, Gatti encontrou uma envolvente atuação feminina no Grêmio Literário e Recreativo das Violetas e no Grêmio Bouquet, que patrocinavam eventos para a arrecadação de fundos com finalidades benemerentes, entre eles a fundação do Hospital de Crianças e as atividades da Cruz Vermelha, em colaboração com os médicos Vitor Ferreira do Amaral e Raul Carneiro. (GATTI, 2016). Foi a partir desta experiência benemerente que mulheres representantes das famílias importantes da cidade se reuniram no Clube Curitibano no dia 15 de fevereiro de 1914 e fundaram a Associação das Damas de Assistência à Maternidade e à Infância. A iniciativa atendia às necessidades da recém criada Maternidade do Paraná e os apelos de seu diretor, um homem da mesma elite reconhecido por suas capacidades e também por sua ação médico-filantrópica na Santa Casa de Misericórdia. Na ocasião, foi aclamada como sócia benfeitora Zulmira de Araújo Marcondes, de tradicional família paranaense, por ter doado a valiosa quantia de dois contos de réis à Maternidade. Em dez meses, a Associação chegou a ter 209 sócias, cujos sobrenomes indicam seu pertencimento à elite local, tanto de famílias muito tradicionais (Camargo, Albuquerque, Beltrão, Motta Garcez, Andrade, Franco, Miró, 91


Guimarães, Cavalcanti, Tourinho, Amaral, Leão) quanto de famílias de imigrantes que chegaram à cidade no século XIX e se integraram à elite por suas atividades econômicas e prestígio cultural (Gomm, Riedel, Wendler, Hauer, Meissner, Kopp, Koehler, Huebel, Henn, Weiss, entre outros). O objetivo da Associação era arrecadar fundos para manter a Maternidade. Para tanto, precisavam ter número elevado de sócias que contribuíam com doações mensais. No primeiro relatório a provedora da Associação, Francisca Cavalcanti de Albuquerque, lamentava que aquele número de associadas ainda fosse pequeno, considerando o que podiam oferecer à sociedade curitibana. Ela conclamava suas colegas a se esforçarem junto às amigas e famílias de suas relações para que conseguissem ampliar o número de associadas a fim de garantir um auxílio financeiro mais significativo para a Maternidade. Mulher da elite, Francisca recorria aos mesmos argumentos que a rica filantropa americana Olivia Sage, instando suas amigas e conhecidas a se envolverem com a causa benemerente, por meio de seu dinheiro e da doação de seu tempo. (RELATÓRIO, 1914). Para tanto, colocaram em prática o que sabiam fazer muito bem. Recorreram à rede de sociabilidade elitária à qual pertenciam, e foram atendidas. A provedora relata que logo após a criação da Associação foram promovidas duas festas para arrecadação de fundos, uma delas sob os auspícios da empresa Carmello Rangel & Companhia, no Teatro Éden, e a outra patrocinada pelo empresário Cícero Marques nas dependências do Jockey Clube. No entanto, as despesas eram elevadas, como alertou Victor Ferreira do Amaral no relatório apresentado à Associação: “Peço que vos esforceis o mais que puderdes a fim de aumentar os recursos com que contamos e que só podem provir da magnanimidade dos corações femininos, sempre abertos às obras de altruísmo”. (RELATÓRIO, 1914, p.17). Além de procurar ampliar o número de sócias, as damas curitibanas procuraram colaborar, não só arrecadando fundos, mas organizando o trabalho assistencial na Maternidade. A diretoria da Associação foi organizada com os cargos de provedora, primeira e segunda provedoras, secretária e tesoureira. A diretoria era responsável pela atualização dos registros, elaboração das atas e dos balanços financeiros. As outras sócias se dividiam como zeladoras da Maternidade e nas cinco comissões criadas para dividir os trabalhos. As zeladoras fiscalizavam 92


o serviço prestado pelas pessoas que trabalhavam na Maternidade, uma cozinheira, uma copeira, duas enfermeiras, uma governanta e um servente. O trabalho das zeladoras era garantir que os atendimentos às mulheres que procuravam a Maternidade fossem realizados com eficiência, pois geralmente as parturientes ficavam em torno de 24 dias internadas, recebendo atendimento médico, alimentação e roupas para si e para os recém nascidos, fornecidas pela Associação. Havia cinco comissões: Comissão de Contas, de Auxílios às Crianças, de Festejos, de Donativos e a Comissão Parlamentar. Cada comissão era composta formalmente por cinco sócias, mas delas acabavam participando todas as sócias. As atribuições destas comissões proporcionavam às damas de assistência oportunidades para estabelecer contatos, circular em seu meio social e pela cidade, com a finalidade de conseguir contribuições, donativos e principalmente o apoio do governo com subvenções. Chama a atenção a existência de uma Comissão Parlamentar, o que significa que as associadas sabiam que o “programa de amor” que as inspirava não era suficiente para manter uma instituição médico-filantrópica como a Maternidade. Seu pertencimento à elite da cidade e do Estado as habilitava a entrar nos gabinetes de seus conhecidos, senão parentes, para demandar auxílio à obra assistencial que representavam. Esta experiência de se envolver em assuntos públicos como a elaboração de balanços financeiros, o gerenciamento do cotidiano de um hospital e de suas demandas específicas, fez com que aquelas mulheres passassem a desenvolver habilidades e conhecimentos práticos, mesmo que algumas continuassem a exercer atividades mais convencionais como a confecção de enxovais para as assistidas e seus recém nascidos, ou o papel de zeladoras no controle dos serviços prestados pelos trabalhadores da maternidade. De qualquer forma, mesmo com limitações, este “trabalho do coração” representou para as mulheres de elite um espaço de protagonismo social, independente de como se possa qualificá-lo. Para além dos rótulos de conservadorismo e de controle social, a benemerência resultante da aliança entre médicos e mulheres de elite deu os primeiros passos em direção à formulação das políticas públicas de saúde e de assistência que anos mais tarde começaram a sair do papel no Brasil.

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Considerações finais As Damas de Assistência à Maternidade e à Infância não se aproximaram do feminismo, nem se envolveram com as discussões acaloradas registradas pela imprensa a respeito dos direitos das mulheres. O associativismo feminino que se aliou aos médicos visando à assistência materno-infantil proporcionou não só a possibilidade de sair de casa e dos círculos sociais mais restritos dos clubes, grêmios e da igreja, mas também o exercício de um poder benevolente, de um poder dos “corações femininos” que não ameaçava a respeitabilidade de classe e de gênero. Pelo contrário, este poder estava de acordo com o que se esperava das mulheres de elite, ou seja, proteger, assistir, prover, cuidar. Empregando suas energias, seu tempo e capacidades em favor das mães e das crianças pobres, elas cumpriam não só com o papel de gênero socialmente prescrito e esperado, mas o ampliavam, o estendiam para o campo das necessidades sociais. Por certo que muitas associações femininas da época limitaram suas ações aos objetivos cristãos, mas a pesquisa com o associativismo feminino mostra que outras mulheres ampliaram significativamente suas ações assistenciais, alinhando-se às políticas públicas de assistência e também ao discurso reformador de médicos e juristas. Educação infantil e de adultos, assistência materno-infantil, apoio às jovens mulheres trabalhadoras, sanitarismo, moradias populares, assistência hospitalar e ambulatorial, são alguns dos objetivos das associações filantrópicas nas quais as mulheres exerceram uma liderança reconhecida, no Brasil e em outros países. Se foram ações conservadoras e que justificavam o papel tradicional de gênero das mulheres, foram, por outro lado, ações e experiências que possibilitaram a algumas delas exercer um papel político reconhecido socialmente e que não passava pelo formalismo do sistema representativo. Talvez essa ação seja realmente uma expressão do protagonismo público feminino de perfil conservador, mas antes das qualificações faz-se necessário compreender as motivações, as práticas, os discursos e as redes de relações que facilitaram o protagonismo social e político das mulheres das elites brasileiras.

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MADRES ECUATORIANAS BAJO LA LUPA DEL ESTADO ITALIANO: MIRADAS DISCRIMINATORIAS DE LAS RELACIONES DE GÉNERO Y GENERACIONALES DE LAS FAMILIAS MIGRANTES Claudia Pedone7

Introducción En los últimos quince años los flujos migratorios hacia Italia que experimentaron un proceso más claro de aceleración y feminización procedía de América Latina, y particularmente de Ecuador. Desde 1999, la agudización de la crisis socioeconómica ecuatoriana junto a una mayor demanda de mano de obra femenina en las grandes ciudades italianas como Génova, Milán y Roma provocó un cambio en las trayectorias migratorias atravesadas por el género; así, la mujer dio inicio a cadenas migratorias “feminizadas”. Desde esa época el patrón migratorio cambió y las mujeres se convirtieron en las generadoras de los principales recursos económicos del grupo doméstico a nivel transnacional y en las responsables de los procesos de reagrupación familiar. Sin embargo, desde el año 2008, en Italia, en el marco global de una crisis económica europea generalizada, la pérdida de bienestar en las familias migrantes, el endurecimiento de las políticas y el control migratorio y la creciente problematización de la presencia inmigrante, son factores que influyeron en las transformaciones de los proyectos migratorios de familias ecuatorianas. Las actuales condiciones de precariedad han acentuado 7 CONICET/IIEGE-UBA, Buenos Aires Miembro del Grupo Interdisciplinario de Investigadoras Migrantes (GIIM). Doctora en Geografía Humana por la Universidad Autónoma de Barcelona. Investiga las migraciones internacionales latinoamericanas, desde una perspectiva transnacional, los temas de cadenas y redes migratorias, relaciones de género y generacionales, familias transnacionales, en particular la incidencia de las políticas migratorias en las estrategias de las familias migrantes, la reconfiguración de las migraciones en América del Sur y la migración cualificada. Actualmente es Investigadora Independiente del Consejo de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) en el Instituto Interdisciplinario de Estudios de Género (IIEGE), Universidad de Buenos Aires, y Co-coordinadora del Grupo de Trabajo de la CLACSO: Migración Sur-Sur. claudiapedone@yahoo.es

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contextos de alta vulnerabilidad social, económica, laboral y jurídica que experimentan las mujeres ecuatorianas residentes en Italia y que afecta directamente la situación legal y el bienestar de los y las hijas de estas familias. Ante situaciones de desempleo y de violencia de género el estado italiano ha intervenido y ha puesto bajo tutela estatal a algunos/as hijos/ as de familias migrantes ecuatorianas y, en situaciones extremas, los/as ha otorgado en adopción a familias italianas. A inicios del año 2014, el estado ecuatoriano decidió idear e implementar una estrategia política, jurídica, social y comunicacional para proteger los derechos humanos de las familias migrantes ecuatorianas en Italia. Es oportuno destacar que alrededor de 30.000 niños, niñas y adolescentes de diferentes nacionalidades han sido separados de sus familias y ubicados en casas de acogida en toda Italia. El 60% son italianos y el 40% extranjeros. Hasta el mes de julio de 2016, la Embajada y los Consulados de Ecuador en Italia reportaron 164 casos de familias ecuatorianas que perdieron la tutela de sus hijos e hijas. La Cancillería implementó en todas las representaciones consulares del Ecuador en Italia servicios de asesoría, acompañamiento y patrocinio jurídico, social y psicológico completamente gratuitos. Actualmente la Embajada de Ecuador en Italia y los Consulados en Milán, Génova y Roma cuentan con un grupo de 23 profesionales entre psicólogos, abogados y trabajadores sociales para atender estos casos. Como resultado de la estrategia gubernamental se han recuperado 46 niños, niñas y adolescentes de familias ecuatorianas residentes en Italia, 15 se acogieron al Programa de Retorno Asistido y están al cuidado de los miembros de la familia que permanecen en Ecuador (abuelas, tías, madres, hermanos/as mayores) y los/as restantes han vuelto a convivir con sus familias en Italia. Por otro lado, en cuanto a las relaciones diplomáticas, el estado ecuatoriano impulsó la suscripción de convenios bilaterales de cooperación mediante los cuales se promueven la aplicación de las convenciones internacionales referentes a la protección de menores, apoyo y tutela de las familias ecuatorianas en diversas problemáticas: violencia de género, negociaciones intergeneracionales, apoyo educativo y sanitario, por mencionar algunos aspectos. Asimismo, se firmó un Memorandum Bilateral 100


entre el Ministerio de Justicia Italiana y el Ministerio de Justicia, Derechos Humanos y Culto de la República del Ecuador, con la finalidad de viabilizar los canales de comunicación entre los ministerios para la cooperación jurídica y social de estos procesos en ambos países y que además garanticen los derechos de las familias migrantes en Italia. En el año 2014, para abordar esta problemática, el Ministerio de Relaciones Exteriores y el Vice-Ministerio de Movilidad crearon un Comité de Crisis con expertas en temas de Migración Familiar y Violencia de Género y una Gerencia Institucional para diseñar y poner en marcha la estrategia política, jurídica, social y comunicacional. El Comité de Crisis tuvo entre sus principales funciones, tanto en origen (Ecuador) como en destino (Italia), asesorar y capacitar a funcionarios y equipos de abogados/as y dar un seguimiento a las acciones llevadas a cabo en esta estrategia política, jurídica, social y comunicacional. Entre agosto y diciembre de 2015, planteamos una investigación para analizar los alcances de esta problemática y de la intervención tanto del estado italiano como ecuatoriano. El estudio llevado a cabo es cualitativo, con un trabajo de campo transnacional (en origen y destino). Hemos entrevistado a: a) funcionarios políticos y abogados que llevan los casos desde los consulados de Ecuador en Italia; b) 9 entrevistas en profundidad a familiares que recibieron a menores y adolescentes recuperado/as en Ecuador (Guayaquil, Quito y Santo Domingo de los Tsáchilas) y menores y adolescentes recuperados/as y retornados/as; c) 13 entrevistas en profundidad a madres, tías, abuelas y adolescentes involucrados en la problemática de la tutela bajo el estado italiano en Milán, Génova y Roma, áreas de mayor asentamiento de la comunidad ecuatoriana en Italia. En este capítulo exponemos algunos resultados de esta investigación. En primer lugar, reflexionamos sobre la producción científica en el campo de los estudios sobre transnacionalismo familiar y las nuevas formas de organización del cuidado, a la luz de la actual crisis socioeconómica. En segundo lugar, abordamos contextualmente la migración familiar ecuatoriana hacia Italia y los conflictos en las relaciones de género y generacionales en el presente contexto migratorio transnacional. En tercer lugar, analizamos las concepciones sobre familia, formas de cuidado y su relación con la población inmigrante y de escasos recursos de los Servicios Sociales y del Tribunal de Menores en Italia, concepciones que, en numerosas ocasiones, han entrado 101


en conflicto con la gestión de la vida cotidiana de las familias migrantes. Por último, analizamos algunos aspectos de la reorganización del cuidado en las familias ecuatorianas residentes en Italia a partir de la injerencia de los servicios sociales y de qué manera repercute en las pautas de crianza y en el reacomodamiento de las relaciones de género e intergeneracionales.

Transnacionalismo familiar y formas de organización del cuidado: nuevas reflexiones a raíz de la crisis socioeconómica en Europa La migración familiar fue una dimensión durante largo tiempo ignorada en el análisis de los procesos migratorios debido a una visión predominante que imaginaba la migración como un hecho económico protagonizado por varones, resultado de decisiones y acciones individuales. La aplicación de la perspectiva de género al estudio de las migraciones y la presencia mayoritaria de mujeres como primer eslabón de las cadenas migratorias convirtieron a las familias migrantes en objeto de estudio de las ciencias sociales, en especial en lo que se refiere a la organización del cuidado de los/as hijos/ as que quedaban en los lugares de origen. Así, a finales de los años noventa, desde una perspectiva transnacional y de género, el concepto de “maternidad transnacional” (HONDGNEU-SOTELO; AVILA, 1997) permitió analizar las implicancias de la migración internacional en las formas de organización del trabajo productivo y reproductivo al interior de las familias migrantes. También puso de manifiesto la importancia de las dinámicas familiares como ámbitos de investigación y producción de conocimiento sobre los desplazamientos de población. (KOFMAN et al., 2011; OSO; PARELLA, 2012). Las primeras investigaciones que vincularon el género con los procesos de transnacionalismo indagaron el importante papel que tienen las mujeres en la configuración y mantenimiento de los vínculos familiares transfronterizos (GRASMUCK; PESSAR, 1991; ALICEA, 1997; HONDGNEUSOTELO; AVILA, 1997), así como los obstáculos que deben enfrentar para garantizar el cumplimiento de las tareas reproductivas cuando la familia está dispersa geográficamente (BERNHARD; LANDOLT; GOLDRING, 2005), en particular lo que se refiere al cuidado de los hijos e hijas que permanecen en el país de origen. (PARREÑAS 2005; DREBY 2010). A pesar de la importancia 102


otorgada a la maternidad transnacional, aún faltan trabajos que den cuenta de las transformaciones que experimenta este vínculo a lo largo del curso de vida. (SORENSEN; VAMMEN, 2014). En Europa, la investigación sobre los efectos que tiene la migración internacional en las configuraciones familiares comenzó en la década de los 2000. La familia transnacional ha sido definida como aquella en la cual sus miembros viven la mayor parte del tiempo dispersos entre dos o más países, pero aun así se mantienen unidos por lazos emocionales y/o financieros. (BRYCESON; VUORELA, 2002). Como otra familia, las transnacionales no son unidades biológicas, sino construcciones sociales y desterritorializadas (BESSERER 2004; SORENSEN 2008) que sostienen y reconstruyen los vínculos afectivos a la distancia mediante llamadas, correos electrónicos, regalos, fotografías, remesas y por (esporádicos o frecuentes) desplazamientos entre la sociedad de origen y de destino. La dispersión espacial que genera la migración confronta a los y las migrantes y sus familiares no migrantes con nuevas maneras de organizar el cuidado y cambios en las pautas del crianza, lo que conlleva rupturas en las concepciones y ejercicio de la maternidad y la paternidad, pero también en las formas de entender (y ejercer) el ser abuelos/ as, hijos/as, nietos/as en un contexto migratorio transnacional. En este contexto migratorio se construyó el concepto de “cuidado transnacional”, entendido como el intercambio de cuidado y apoyo que trasciende la distancia geográfica y las fronteras del estado nación. (BALDASSAR; BALDOCK; WILDING, 2007). Desde entonces, las investigaciones sobre la migración de América Latina al Sur de Europa en perspectiva transnacional y de género componen un importante corpus de conocimiento acerca de los vínculos familiares que se generan en estos campos sociales transnacionales. En relación a los estudios que analizan los vínculos transnacionales y el impacto de la migración en las formas de organización del cuidado desde la óptica de quienes permanecen en los lugares de emigración son recientes y en Colombia y Bolivia aparecen una década después de la feminización de estos flujos8. 8 Un estado de la cuestión sobre el abordaje teórico-metodológico del transnacionalismo familiar latinoamericano en el debate académico español se puede consultar en Pedone, 2011. Para un estado del arte sobre los principales antecedentes en el estudio del transnacionalismo familiar en el contexto migratorio, con especial atención a las investigaciones que han analizado las dinámicas familiares en la migración entre América Latina y Europa del Sur, ver Gil Araujo y Pedone, 2014; Pedone, 2014; Pedone, Gil Araujo,

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Por otro lado, aún falta profundizar sobre la incidencia de la migración en la división del trabajo productivo y reproductivo al interior de las familias, en relación al género y la generación de sus integrantes, y mostrar como esa división cambia a lo largo del tiempo, es decir, a lo largo del curso de vida, del mismo modo que se ha resignificado el proyecto migratorio. Aquí es imprescindible insistir en la importancia de incluir, no solo la dimensión espacial, sino también la dimensión temporal en los análisis sobre las formas de organización familiar en contexto migratorio, ya que, como apuntan Sorensen y Vammen (2014), el ciclo de vida incide tanto en las configuraciones familiares como en los patrones migratorios. Nuestra producción científica en relación a la migración ecuatoriana (PEDONE, 2004, 2006, 2010, 2014) y colombiana (ECHEVERRI, 2010) hacia España enfatiza en la dimensión temporal para abordar las dinámicas cambiantes de las relaciones familiares en un contexto transnacional y los cambios en las relaciones afectivas y de roles entre sus miembros. Esta perspectiva la hemos afianzado metodológicamente con un trabajo de campo etnográfico en origen y destino y de corte longitudinal trabajando con las mismas familias por más de una década de migración. Ahora bien, las crecientes restricciones a la migración familiar en los países de la Unión Europea, junto a la estigmatización de la emigración de mujeres-madres en los países latinoamericanos, han convertido a las familias migrantes en problema social en ambos extremos de la cadena migratoria. En el contexto europeo, la reagrupación familiar ha dejado de ser un derecho para convertirse en una prerrogativa del Estado, a la que se puede acceder cumpliendo una serie de requisitos económicos y, ahora también, culturales. Es habitual que la justificación de las limitaciones al derecho natural de la vida en familia se vincule con las diferencias/deficiencias que cargan las familias migrantes (y sus integrantes) para alcanzar una “integración” exitosa en la sociedad de llegada. Paralelamente, el aumento de la presencia femenina en las corrientes migratorias procedentes de países latinoamericanos ha generado importantes cuestionamientos a los lugares y responsabilidades tradicionalmente asignados a varones y mujeres en el ámbito de la familia. Estas transformaciones han disparado discursos en los países de origen, que suelen asociar la migración femenina con el abandono 2016. El actual debate respecto as perspectivas sobre género, migraciones transnacionales, trabajo y cuidado en La Europa del Sur se plantea en Barañano, Marchetti, 2016.

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de la familia y diagnostican diversas disfuncionalidades a las familias con madres migrantes. Ambos procesos han colocado a las familias migrantes en el centro de los debates políticos sobre las implicaciones nacionales de las migraciones internacionales. En ciertas ocasiones estas problematizaciones dan lugar a políticas públicas dirigidas a estas familias y sus miembros, principalmente las mujeres y las generaciones más jóvenes (GIL ARAUJO; PEDONE, 2013), como analizaremos en el presente estudio de caso. Algunas investigaciones ya apuntaron que, tanto a nivel europeo como en países como Italia y España, las políticas migratorias estratifican derechos y generan efectos desproporcionados y negativos sobre las mujeres inmigrantes, que obstaculizan el disfrute de derechos que se les reconoce formalmente en condiciones de igualdad y no discriminación respecto a los varones inmigrantes y a las mujeres autóctonas o que cuentan con la ciudadanía. En consecuencia, estas normativas aparentemente neutras y objetivas en el papel, son indirectamente discriminatorias cuando se aplican según el sexo, la edad y los momentos de llegada, la nacionalidad. (FREEDMAN, 2003; KOFMAN, et al., 2011; PEDONE, C.; AGRELA ROMERO, B; GIL ARAUJO, 2012; GIL ARAUJO; PEDONE, 2013; PEDONE; ECHEVERRI; GIL ARAUJO, 2014). Coincidimos con Staiano (2016) que las causas de esta situación son diversas. En algunos casos, se derivan de una imposición normativa y judicial de modelos de familias insostenibles – como por ejemplo los de la “buena madre”, el proveedor único o el de familia basada sobre una rígida distinción entre trabajo productivo y reproductivo, la falta de reconocimiento de las familias transnacionales. En otros casos, los efectos de género de algunas normas se deben a la subestimación, por parte de legisladores y funcionarios de la justicia, de las necesidades y dificultades específicas de las mujeres inmigrantes y sus familias y en el más amplio contexto social y normativo del país de destino. En tiempos de crisis socioeconómica, surge la necesidad de incluir otros elementos de análisis a la hora de abordar los procesos de transnacionalismo familiar. Para ello, es imprescindible considerar la vida familiar como ámbito multidimensional que permita abordar de qué manera interaccionan normas que habitualmente no se suelen conectar como, por ejemplo, el derecho migratorio, el derecho del trabajo, el derecho penal, el derecho de la familia. La interacción de estas normas puede producir, además, 105


un impacto dispar sobre las vidas de las mujeres inmigrantes. Por ello, un enfoque teórico-metodológico de corte longitudinal que permita analizar los procesos, y desde la perspectiva del litigio estratégico, son abordajes analíticos que pueden complementar los hallazgos en el campo de los estudios transnacionales familiares. (REY MARTÍNEZ, 1995; CHARLESWORTH, 2004; GUTIÉRREZ CONTRERAS, 2011; ARROYO VARGAS; PEDONE, 2015; STAIANO, 2016). En este contexto, se han recrudecido las miradas estigmatizantes y discriminatorias con marcados rasgos xenófobos y racistas por parte de funcionarios/as que tienen el poder de intervenir en la organización del cuidado de las familias migrantes. Aún persiste un vacío en la producción científica sobre la capacidad de agencia de las familias transnacionales en tiempos de crisis y cuál es la incidencia de la intervención de los estados de origen y de destino en las nuevas formas de organización de cuidado derivada de la vulnerabilidad y precariedad que se agudizó a partir del año 2008. En este sentido, es necesario reflexionar sobre las agencias individuales y colectivas y sobre todo el modo de enfrentar la crisis, la búsqueda de nuevas formas de supervivencia y la reproducción social para lo cual es imprescindible considerar la des/re-construcción multiescalar de los lazos sociales y la reconfiguración de estos vínculos en la distancia y la proximidad, los desplazamientos en las relaciones de género e intergeneracionales que las componen (BARAÑANO, 2016) y la intervención estatal en ambos extremos de las cadenas migratorias. A continuación, abordamos esta reconfiguración de las familias ecuatorianas residentes en Italia a partir de la injerencia del estado italiano en la organización del cuidado, el papel del estado ecuatoriano como representante de la comunidad en destino.

Continuidades y discontinuidades en las dinámicas y estrategias migratorias de las familias transnacionales ecuatorianas a Italia A partir de 1999, la agudización de la crisis socioeconómica ecuatoriana junto a una mayor demanda de mano de obra femenina en las grandes ciudades de España (Madrid, Barcelona, Valencia y Murcia) e Italia (Génova, 106


Milán, Torino y Roma) provocó un cambio en las trayectorias migratorias atravesadas por el género; así, la mujer se convirtió en el primer eslabón de la cadena migratoria. La participación determinante de las mujeres en el desplazamiento de la población ecuatoriana y su inserción en el servicio doméstico en estas ciudades generó un reacomodamiento en las relaciones de género y entre las generaciones. Por ello, la visibilización de las mujeres y de los niños /as y adolescentes dentro del grupo doméstico y como parte decisional en el juego de las relaciones de poder ha permitido centrar el análisis de la familia como un lugar de conflicto y negociación. (PEDONE, 2006; LAGOMARSINO, 2006). El caso de la migración ecuatoriana hacia España e Italia ha sido uno de los primordiales campos de debate académico y político sobre las vinculaciones entre los procesos migratorios y las dinámicas familiares. (HERRERA 2004; LAGOMARSINO, 2004; PEDONE, 2004, 2006, 2008, 2010; LAGOMARSINO; TORRE, 2007; PARELLA; CALVANCANTI, 2007; CAMACHO; HERNÁNDEZ, 2009; ABBATECOLA; LAGOMARSINO, 2010; PAGNOTTA, 2010). Estos estudios enfatizan en el papel fundamental de las mujeres como primer eslabón de la cadena migratoria, pioneras del proyecto migratorio familiar e iniciadoras y responsables de los procesos de reunificación familiar. Las mujeres pioneras de este desplazamiento tomaron la decisión de reagrupar a sus hijos e hijas una vez instaladas en los lugares de destino. Este hecho constituyó una de las resignificaciones más importantes del proyecto migratorio inicial. Una vez que la familia estuvo asentada en destino, comenzó el largo y conflictivo proceso que dirime el asentamiento definitivo del retorno, donde nuevamente se ponen en juego las cuotas de poder que han ido ganando o perdiendo los miembros del grupo doméstico migrante. (PEDONE, 2004). Debido a la compleja trama de situaciones familiares y el contexto socioeconómico y jurídico, las reagrupaciones familiares no siempre han sido armoniosas. No obstante, en un corto periodo de tiempo, las estrategias para llevar a cabo estas reagrupaciones en destino se han visto dificultadas por diferentes motivos, como las restricciones jurídicas implementadas mediante las leyes de extranjería a las posibilidades de reunificación en destino, las escasas vías de migración regular, la mayor permanencia de las mujeres 107


en el servicio doméstico interno, las dificultades en el acceso a la vivienda y la paulatina estigmatización de “los jóvenes latinos” en la sociedad tanto española como italiana. (QUEIROLO; PALMAS; TORRE, 2005; PEDONE, 2010, 2014). Numerosas investigaciones a lo largo de los últimos 15 años (PEDONE, 2004, 2008, 2010; RAMOS, 2010; HERRERA, 2013) han destacado los importantes cambios que las familias ecuatorianas han sufrido en las últimas décadas, en las que se ha modificado el modelo tradicional, insistiendo al mismo tiempo en la importancia del papel educativo de figuras sustitutivas como abuelos/as, tíos/as, hermanos/as mayores. El cuidado compartido y el hecho de crecer con otros familiares es una práctica más bien extendida en Ecuador, según los diversos sectores sociales y regiones, la familia nuclear occidental existe como modelo dominante pero no como práctica única ni mayoritaria en Ecuador (como tampoco lo es en las sociedades de destino). En muchas de las familias que han participado en estos estudios, la crianza de los hijos y de las hijas ya había sido compartida antes de la primera emigración de la madre. (LAGOMARSINO, 2014). Los complejos procesos de reagrupación familiar y la actual crisis socioeconómica en Europa que ha ocasionado altos índices de desempleo entre la población migrante ha sido uno de los problemas que han debido enfrentar las familias ecuatorianas migrantes a la hora de gestionar su supervivencia en los contextos de destino. En las entrevistas con madres, padres e hijos/as en Génova, Roma y Milán, aparecen problemáticas recurrentes a lo largo de estos años de migración como: conflicto entre padres, niños y niñas violentadas, violencia de género, precariedad económica y abandono de menores, son situaciones complejas y diversas, donde estas causas se superponen y en ocasiones todas aparecen imbricadas en una sola situación familiar. Nuestro trabajo de campo constata que donde hay niños/as violentados/as, hay violencia hacia la mujer. En muchos casos, esos círculos de violencia familiar han tenido origen en Ecuador y se perpetúan en los contextos de destino. El tema del maltrato en los hijos/as para corregir comportamientos forma parte de las pautas de crianza en una parte de la sociedad ecuatoriana. Estas pautas no han tenido aún un abordaje directo por parte de las instituciones públicas (como el Estado, las instituciones educativas y algunas instituciones religiosas, principalmente por la iglesia católica) y de la familia; 108


por lo cual, en ocasiones, se traslada a la migración familiar y debido a los reacomodamientos intergeneracionales se convierte en un tema central en la problemática de los niños/as y adolescentes de las familias ecuatorianas residentes en Italia. En este contexto migratorio transnacional algunas familias ecuatorianas residentes en Italia, particularmente en Génova, Milán y Roma, están siendo interpeladas por el estado italiano en sus roles como padres y madres y como sostenedores/as del bienestar familiar. Desde el inicio de la crisis en Italia en el año 2008, muchas mujeres migrantes, en algunos casos únicas sostenedoras económicas de las familias, han perdido sus empleos y esta situación se ha visto agravada por los reiterados círculos de violencia de género en los cuales están involucrados algunos grupos domésticos. Estas situaciones de precariedad social, económica y complejos reacomodamientos de los vínculos familiares han conllevado la intervención del estado italiano, mediante los Servicios Sociales y el Tribunal de Menores, a separar a niños, niñas y adolescentes de sus madres y de sus hogares y quedar así bajo el tutelaje estatal de Italia.

La intervención del estado italiano en la estructura familiar de la población migrante y la respuesta del estado ecuatoriano En los lugares de destino, las mujeres inmigrantes son presionadas para cumplir con modelos normativos que las encasillan como madres y esposas, si no quieren poner en peligro su derecho a la vida familiar. Algunas de estas mujeres inmigrantes han acudido a los tribunales supranacionales y nacionales, con el fin de cuestionar la legitimidad de estas normas, y en consideración de sus circunstancias de vida concretas. En otros casos, estos tribunales han elaborado por su cuenta interpretaciones judiciales que afectan cotidianamente a las mujeres inmigrantes y a su derecho a la vida en familia, así como a sus roles familiares. Los aspectos de género de las normas examinadas, o sus efectos, apenas han sido discutidos y confrontados de manera explícita en estos contextos judiciales. (STAIANO, 2016). El Tribunal de Menores en Italia basa sus decisiones y veredictos en los informes que realizan los Servicios Sociales. Según los testimonios de los abogados italianos contratados por los Consulados de Roma, Milán y Génova, los servicios sociales se basan sobre el concepto de familia nuclear 109


con la madre como figura naturalizada encargada del cuidado; esta mirada restringida no contempla las formas de organización familiar en un contexto migratorio transnacional9. A partir de estas concepciones, cualquier inconveniente entre la conciliación de la vida familiar y laboral de las mujeres migrantes se convierte en un disparador para la intervención de los servicios sociales en la gestión de la vida familiar. Además, esta naturalización de la maternidad y del cuidado los conduce a que no reconozcan ni a la figura del padre ni a otros parientes como abuelas, tías, hermanos/as mayores como familiares capaces de hacerse cargo de los y las niñas y consideran que el sistema de casas de acogida y adopción son los métodos más idóneos para garantizar los derechos universales de los/as menores. Por otro lado, en los servicios sociales italianos existe un problema estructural a nivel institucional. Cada asistente social supervisa aproximadamente 30 casos de forma simultánea, lo cual conlleva a una falta de profundidad en los informes recabados en un número muy reducido de visitas. Si bien no hay una discriminación directa para parejas ecuatorianas y/o binacionales, en muchas situaciones el tipo de inserción laboral, la dificultad lingüística, la falta de diálogo intercultural y las concepciones y formas de entender la familia, son factores que conllevan a analizar el problema en abstracto, donde no se tiene en cuenta el contexto migratorio. Los testimonios de los y las abogadas afirman que las diferencias culturales son dificultades que se reflejan en los informes de los servicios sociales. La sobresaturación de casos en estos servicios, junto a las dificultades económicas de las familias migrantes refuerzan estereotipos culturales y al trabajar sobre la urgencia, la primera opción es quitarles la tutela a los padres. La falta de conciliación familiar-laboral en las familias migrantes conduce a decisiones más punitivas; por ejemplo, una de las causas que alegan es que en ocasiones los niños y niñas quedan al cuidado de vecinos. Entre estas familias el foco de atención se centra más en estos aspectos que cuando 9 La organización institucional y actuación de los Servicios Sociales y el Tribunal de Menores en Italia que aquí se describen provienen de las entrevistas en profundidad realizadas a los equipos de abogados/as a cargo de los casos patrocinados por el Gobierno del Ecuador en los Consulados de Roma, Milán y Génova. Es oportuno resaltar que las entrevistas se realizaron en diciembre de 2014, cuando comenzaba la estrategia jurídica, y en diciembre de 2015, a un año de gestión para evaluar los resultados obtenidos hasta el momento (PEDONE, 2014, 2015).

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se trata de familias autóctonas, por lo cual, algunos abogados afirman que podría verse como una discriminación indirecta. Otro aspecto que dificulta una atención adecuada a las familias autóctonas de escasos recursos y a las familias migrantes se refiere a que toda la estructura y la asistencia están a cargo de una empresa privada. En sentido, el Estado sólo se hace cargo de las evaluaciones, la asistencia a las familias se realiza a partir de la externalización de esta gestión. Una vez que los Servicios Sociales intervienen por primera vez en la familia migrante, se detectan varios inconvenientes. El mayor problema se refiere a que desde esta institución no se trabaja en la recuperación de las relaciones familiares. Existen varios casos que demuestran que, cuando la familia se acerca a pedir ayuda económica, los servicios sociales inmediatamente proceden a retirarles la tutela de sus hijos y así se entra al circuito institucional. Otra problemática que enfrentan los familiares entrevistados apunta a que los servicios sociales no otorgan información fiable a madres y padres inmigrantes. Desde la institución se establece el modo y la frecuencia de las visitas y en ella recae la responsabilidad de las irregularidades que se presentan en las mismas. En líneas generales, es una frecuencia muy mínima, una o dos veces a la semana, y a veces más espaciadas, de una vez por mes por una hora con personas presentes; de este modo no se puede crear y/o recomponer los vínculos. (Abogado italiano, contratado por la Embajada de Ecuador en Italia, dic. 2014)

Un tema recurrente en las entrevistas a madres, abuelas y tías que tienen a menores en casas de acogida o comunidades es la casi nula capacidad de maniobra para solucionar problemas familiares y consolidar los lazos afectivos. Los horarios son muy acotados, no siempre tienen en cuenta las largas jornadas laborales de las personas migrantes. En las situaciones de niños pequeños que están en casas de acogida, pero ya en proceso de adopción, los familiares enfatizan en que tienen más derecho a estar más tiempo con los/as niños/as las posibles familias adoptantes que los familiares directos que están en las mismas condiciones sociales, económicas y residenciales de hacerse cargo de los/as menores. Estas situaciones se reiteran cuando se trata de adolescentes en casa de acogida y el régimen de visitas que no promueve el reacomodamiento de los vínculos afectivos entre madres e hijas/os. 111


Las actuaciones de los jueces son muy discrecionales. Una práctica extendida ha sido no recurrir al testimonio directo de los menores, a pesar de que el artículo 13 de la Convención de Derechos del Niño establece que el menor a partir de los 14 años está capacitado para declarar. Por lo tanto, recurrir a esta instancia depende de un requerimiento de la defensa; lo mismo ocurre con la búsqueda de otros familiares, denominados de cuarto nivel, tanto en Italia como en Ecuador. Separar a los hijos de la familia, en lugar de que sea la última instancia, para los jueces ha sido la primera. Para los jueces las dificultades económicas es la principal motivación para alejar a los menores de la familia. Es difícil confrontarse con el sistema, puesto la mujer es vista como vulnerable por su condición de extranjería. Los jueces escuchan a los servicios sociales, el ojo y el brazo del juez son los servicios sociales, no escuchan a los chicos. La óptica de los jueces es muy punitiva, no se trabaja por la readaptación a la familia de orientación. (Abogado italiano contratado por el Consulado Ecuatoriano en Milán, dic. 2014)

Un aspecto prioritario a la hora de decidir otorgar a los/as menores en adopción tiene que ver con la situación económica. Muchos jueces privilegian la posibilidad que los niños y niñas queden bajo la custodia de familias con recursos económicos, es decir, familias autóctonas. Así, en el caso de las familias migrantes transnacionales, donde la crisis ha afectado profundamente las condiciones de vida y ha extendido aún más las jornadas laborales de las mujeres migrantes, aunado a casos continuados de violencia de género, los informes en su gran mayoría son negativos. Estos informes negativos tienen dos consecuencias: la más grave es el alejamiento de los hijos e hijas del seno familiar, y en otros casos, las familias se ven obligadas a seguir un recorrido psicológico, de mediación familiar y tratamientos psicológicos para los menores. Este recorrido institucional tiene un alto costo, entre 3.000 y 4.000 euros y generalmente hay que acudir a profesionales que nombran los propios jueces del tribunal de menores. La/el trabajador/a social está ejerciendo una función de control y policía, en lugar de crear consenso con la familia. Algunos procedimientos han ido en contra de los derechos humanos y no ha habido reparación. (Abogado italiano, contratado por el Consulado de Milán, dic. 2014)

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Es oportuno destacar que el tribunal de menores está compuesto por jueces honorarios que vienen del sector privado y del área de la psicología, la educación y trabajo social, por lo que algunos testimonios de informantes clave en Italia presuponen que enviar niños a casa de acogida forma parte de toda una red muy lucrativa para estos profesionales. La intervención del Gobierno del Ecuador ha sacado a la luz un problema muy serio en Italia que es el negocio que hay detrás del tribunal de menores, todas estas figuras profesionales […] los psicólogos, los cuidadores, los servicios sociales, las asociaciones, las casas de familia que ganan dinero por acoger a los menores. Es increíble, yo gracias al gobierno ecuatoriano tuve la impresión de que este tribunal se debería cancelar y reconstruir, porque aparte de no tener una disciplina jurídica cierta y que pueda reconocer derechos a los padres y todos los familiares, tiene una disciplina procedimental inexistente. (Abogado italiano contratado por el Consulado Ecuatoriano en Roma, nov. 2015)

La estrategia diplomática, jurídica y de atención integral en sus representaciones consulares en Italia y comunicacional del Estado ecuatoriano se ha orientado a conseguir que la medida del alejamiento de los/as niños/ as y adolescentes sea el último recurso legal. A partir de esta intervención se ha logrado revertir algunos casos, recuperar niños/as y adolescentes a sus familias de orientación; con el patrocinio jurídico y el asesoramiento psicológico gratuitos brindado desde los consulados ha conllevado un mayor cuidado no sólo en las evaluaciones de los servicios sociales italiano, sino también, una mayor cautela de los jueces a la hora de tomar decisiones definitivas. Dos de los cambios más significativos han sido escuchar los testimonios de los/as menores involucrados/as y buscar a parientes de cuarto nivel (abuelos/as, tíos/as y hermanos/as mayores) que residan tanto en Italia como en Ecuador y que estén en condiciones socioeconómicas para asumir el cuidado de los/as menores. Así lo ilustra uno de los abogados que llevan los casos de familias ecuatorianas. Los jueces que saben de la intervención del Gobierno Ecuatoriano y desde ahí son más respetuosos. Y lo digo porque tengo casos del tribunal de menores no sólo de ecuatorianos,

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sino de italianos y de otros latinoamericanos. Tengo además de los ecuatorianos otros 10, 15 casos de otros inmigrantes. Si vi por ejemplo, conseguí resultados positivos también otros inmigrantes después de que haya intervenido el gobierno ecuatoriano con una lucha de carácter político y también con todo un servicio de apoyo. Y sinceramente noté un cambio de concepto por parte de los jueces. (Abogado italiano contratado por el Consulado Ecuatoriano en Roma, nov. 2015)

Existe una práctica generalizada por parte de los tribunales de menores italianos de no buscar miembros de la familia ampliada en Italia y/o en Ecuador previo a una decisión de adopción. Esta acción ha cambiado paulatinamente a partir de la intervención del gobierno ecuatoriano en la validación de informes entre Servicio Social y Consulados, de tal manera que la ubicación de los y las/niños/as y adolescentes pueda ser en su núcleo familiar, como indica la legislación ecuatoriana, italiana e internacional10. En algunos casos desde las instituciones italianas, menoscaban la cultura ecuatoriana, las formas de crianza, con enfoques más rígidos y con marcos institucionales que apuntan directamente a retirar a los menores del hogar. Sin embargo, para nosotros esta debería ser la última instancia y encontramos en muchos casos que esto no se hacía, no se daban el trabajo de buscar otros familiares y muchas de nuestras familias desconocían que tenían este derecho. Entonces las circunstancias hacían que los chicos fueran a casas de acogida y en que en algunos casos fueran dados en adopción. (Canciller Ricardo Patiño Aroca, Quito, Oct. 2015)

Otra problemática detectada en los fallos del tribunal es la parcialidad en el caso de parejas binacionales que benefician en su mayoría a los ciudadanos nacionales del país de destino. Actualmente, desde el estado ecuatoriano se patrocinan casos en que los hombres italianos ejercen violencia psicológica sobre las mujeres ecuatorianas que deciden terminar sus relaciones de pareja y utilizan a los/as hijos/as en común, para obligar a 10 Consultar el Memorandum Bilateral entre el Ministerio de Justicia, Derechos Humanos y Cultos de la República del Ecuador y el Ministerio de Justicia de la República Italiana en los procedimientos relacionados con los menores de edad, Quito, Ecuador, 11 de febrero de 2016.

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las mujeres a continuar con ese vínculo. Estos hechos de violencia y el temor a las resoluciones de alejamiento de sus hijos/as han llevado a algunas mujeres a regresar a Ecuador en un proceso legal erróneo que luego se caratula como delito: la sustracción ilícita de menores11. Como ya apuntan otras investigaciones precedentes (PEDONE; AGRELA ROMERO, 2012; PEDONE; GIL ARAUJO, 2016; STAIANO, 2016), los regímenes jurídicos más restrictivos imponen requisitos adicionales que implican una vigilancia normativa acerca de la implicación de las madres en la vida de sus hijos, además de un control de su historia personal, afectiva y sexual.

La injerencia de los servicios sociales italianos en las formas de organización del cuidado de las familias migrantes La reproducción física y social que conlleva procrear, criar y socializar a niñas y niños, así como constituir y mantener los hogares desde la infancia hasta la edad adulta se logra, experimenta, valora y recompensa de distinta manera, según las desigualdades que, en contextos históricos, políticos y culturales específicos, condicionan el acceso a los recursos materiales y sociales. (COLEN, 1995). Estas desigualdades en la reproducción generan estratificación y, a su vez, reproducen e intensifican las desigualdades de las que son fruto. Así, las desigualdades presentes en los contextos migratorios transnacionales se reflejan en los ámbitos familiares, cotidianos y locales en los lugares de origen y de destino. En este sentido, las instituciones (estados, mercados de trabajo, familias, comunidades locales, medios de comunicación) contribuyen a que se den unos acuerdos vitales y familiares y a que algunos sean representados como legítimos y, por el contrario, otros, como marginales. (KOFMAN, 2016). Como adelantáramos, la migración familiar implica un reacomodamiento en las relaciones de género y generacionales. Las 11 Actualmente en Italia, algunas reformas están previstas en lo referente a la normativa y procedimientos en tema de menores. Uno de los cambios será la desaparición del Tribunal de Menores y su incorporación a una sección especializada de los Tribunales ordinarios y en la Corte de Apelación. Se creará un Tribunal de Familia; según el texto de la ley habrá una reorganización de las responsabilidades hasta ahora fragmentadas entre las distintas autoridades. Consultar: http://studiocataldi.it/articoli/21066-riforma-processocivile-addio-al-tribunale-dei-minori-e-al-rito-ordinario-in-primo-grado.asp

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condiciones jurídicas, laborales, residenciales y educativas en los contextos de destino han complejizado la reasunción de roles y autoridades entre madres, padres e hijos/as. Una particularidad en el caso europeo y, más específicamente, en el caso italiano es la intervención del Estado, mediante los servicios sociales en las relaciones familiares de los grupos domésticos migrantes. Una vez que las familias migrantes ecuatorianas entraron al circuito de tutelaje del Estado italiano, ya la injerencia de los servicios sociales en la vida cotidiana es una realidad difícil de cambiar. Las dinámicas familiares se ven modificadas, se cambian las pautas de crianza y los roles generacionales ejercidos hasta el momento. Nuestro trabajo de campo reveló situaciones muy diversas: a) la intervención de los servicios sociales, cuando es la misma familia quien recurre a la institución por sus condiciones de precariedad; b) la presencia de la familia con menores que residen en comunidades o casas de acogida en la organización del cuidado y lazos afectivos mediados por los servicios sociales italianos; y c) las renegociaciones de género y generacionales, para recibir a los/as menores recuperados/as y retornados/ as a Ecuador.

La injerencia de los servicios sociales por solicitud de las madres migrantes Existen casos en que las propias familias por diversos motivos han acudido a los Servicios Sociales italianos y este hecho ha ocasionado que la familia quede bajo tutela estatal. En ocasiones, la precariedad laboral y residencial ha conducido a algunas madres a pedir ayuda, lo cual ha repercutido en la futura configuración de las relaciones familiares y en casos extremos la separación de hijos/as de sus madres. Uno de los casos más emblemáticos lo encontramos en Roma, donde una madre pidió ayuda a los servicios sociales para poder conciliar sus horarios laborales con la organización del cuidado de sus dos hijas: Aquí la guardería cuesta como el arriendo. Yo tenía mis trabajos en negro, tenía una anciana que trabajaba y me iba con las dos, iba a limpiar las escaleras, la pequeña quedaba a veces con la mayor que en ese tiempo era pequeña. Entonces, yo hice el pedido a los servicios sociales, cuando la más pequeña tenía

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casi 9 meses, porque el abogado me dijo mira tú tienes que volver al trabajo sino lo pierdes. Y como es un trabajo que yo lo tengo hasta ahora entonces me fui una mañana donde la asistente social le dije mire yo estoy esperando para el puesto de la guardería de la niña. Y fue así que me dieron el puesto, pero mi problema no acababa con eso porque la escuela habría 7:30 pero yo al trabajo tenía que estar 8:30 y yo vivía en un punto de Roma por decirle en el sur y yo tenía que irme al trabajo al otro lado. Mi problema no acababa ahí porque igual entraba 7:30 y la niña salía a las 16:30 y yo salía del trabajo apenas a las 16:00 y hasta llegar a la guardería eran 17:30. Entonces yo le dije a la asistente social que no era mi culpa, era mi necesidad. Me tienes que ayudar a ver otra persona que me saque a la niña y me la tenga ahí hasta yo volver del trabajo. Entonces fue ahí que ella me encontró una familia, la primera familia de acogida con la que yo hasta el día de hoy tengo una relación buenísima. (Madre con 2 hijas tuteadas que fueron recuperadas y retornadas al Ecuador)

Si bien el sistema de los servicios sociales ayuda a gestionar con las acciones mencionadas a la madre para conciliar la vida laboral con la familiar, este antecedente a su vez estigmatiza a la madre sola y sus pautas de crianza. El abogado que lleva el caso, por patrocinio del Gobierno de Ecuador, desde el Consulado de Roma, explica los recorridos institucionales por los cuales la madre pierde la custodia en definitiva: el problema de fondo era la precariedad laboral en esta que la madre se encontraba desde los inicios de la migración, sobre todo, las extensas jornadas de trabajo; y que las otras mujeres de la familia –madre y hermana– estaban en la misma situación, lo cual impedía organizar el cuidado cotidiano de las niñas. En esta situación problemática intervienen los servicios sociales y como solución le ponen una custodia conjunta con una familia romana que la podía ayudar en estos asuntos. Ese fue el paso para empezar a volver otra vez en el tribunal para quitarle otra vez la patria potestad. Yo asesoré todo el proceso. El problema fue que la señora se encontró en un momento de dificultad, aceptó el consejo de los servicios sociales, de esta ayuda para 6 meses. La aceptación de esta ayuda implícitamente

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significa volver a aceptar la intervención de los servicios sociales y una declaración implícita de la incapacidad de cuidar de las niñas. Aceptar esta ayuda puede implicar el riesgo de perder los hijos. La solución fue la de mandar definitivamente a las niñas a Ecuador con la abuela para que el caso se archive. Así, los servicios sociales se quitan de toda esta situación y se puede prever en un futuro regresar a Italia. (Abogado italiano contratado por el Consulado de Ecuador en Roma, Roma, nov. 2016)

Esta presencia de los servicios sociales y la policía en la vida cotidiana de las familias de escasos recursos, en nuestro caso, migrantes, en ocasiones, ha llevado a algunos/as niños/as y adolescentes que los utilicen como elementos de negociación en la gestión de las relaciones intergeneracionales. Tanto los equipos de abogados/as como los propios adolescentes o adultos reconocen que muchas veces son los propios miembros de las familias que han incorporado a sus conflictos al sistema de los servicios sociales.

La presencia de la familia en las casas de acogida: horarios limitados y controles Un tema recurrente en las entrevistas a madres, abuelas y tías con menores en casas de acogida o comunidades es la casi nula capacidad de maniobra que tienen para solucionar problemas familiares y consolidar los lazos afectivos. Los horarios son muy acotados, no siempre tienen en cuenta las largas jornadas laborales de las personas migrantes. Los/as niños/as pequeños/as que están en casas de acogida con un proceso de adopción en marcha tienen muy limitado el contacto con sus familiares consanguíneos. Los testimonios enfatizan en que tienen más derecho y más tiempo de visitas las posibles familias adoptantes que los familiares directos que están en las mismas condiciones sociales, económicas y residenciales de hacer-se cargo de los/as menores. Existen dos casos significativos, uno en Milán y otro en Génova, sobre menores que desde muy pequeños están bajo tutela de los servicios sociales italianos y están en proceso de adopción. Aunque existen parientes directos como tías y/o abuelos/as que están en condiciones de adoptarlos para que continúen en su familia de orientación. 118


En Milán, entrevistamos a una tía que luego de cinco años de litigio logró la tenencia de su sobrino, hijo de su hermano, también migrante en Italia. Ella es una migrante pionera, reagrupó a sus hijos y se hizo cargo de su crianza frente a una paternidad y maternidad ausentes. Cuando su hijo mayor ya estaba inserto en el mercado laboral y sus dos hijas en la escuela secundaria, su hermano pierde la custodia de su hijo por problemas con el alcohol y el niño muy pequeño va a una casa de acogida; con el transcurso del tiempo aparece una familia adoptante. Durante más de tres años hubo una competencia por los horarios de visita, tiempos de permanencia con el menor y supervisión por parte de las autoridades, que en todo momento favorecieron a la familia adoptante. Finalmente, la tía logró la tenencia del menor; la entrevista se llevó a cabo en la residencia de la familia un mes después que el menor ya convivía con su tía y sus primos. Corrimos el riesgo de perderlo porque había una familia de padres italianos que lo querían al niño. El servicio social autorizaba que el niño siempre estuviera en casa de esa familia, hasta dormía, comía, salía con ellos. En dos o tres ocasiones con mi hermana nos tocó ir juntas a hacer la visita al niño y hablábamos en español; no se puede hablar en español, nos decían, al niño no se le habla en español, sino en italiano. Y ellas allí como policías. La familia italiana lo ha visto siempre, porque el niño era compañerito desde la guardería con el hijito de esta pareja y llegaron a tanto que ya prácticamente les enseñaban a que eran hermanos. En la comunidad a ellos le daban prioridad; con nosotros nada estaba bien, ni respirar!... fue un sufrimiento durísimo. (Tía de menor recuperado, Milán, Nov, 2015)

Además, durante todos estos rituales burocráticos también debieron afrontar las contradicciones del propio sistema: los servicios sociales y las empresas privadas que manejan las casas de acogida, un servicio que el estado italiano externaliza en empresas privadas: Los servicios sociales me dijeron ‘no señora no es verdad, nosotros primero estamos la estudiando a usted que es la tía’, pero era todo mentira porque también armé un alboroto en la

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comunidad. Ya muchas me apreciaban y me decían calladitas ‘te está mintiendo el servicio social, nosotros como comunidad no podemos hacer nada que ellos no nos autoricen y nos manden firmado, ellos se están lavando las manos’ y yo cada vez que iba encontraba a esta pareja en todas las fiestas, y a mí no me aumentaban los días, una vez al mes, tanto luchar, tanto hablar, después era una vez a la semana. Hasta que mi hijo me dijo ‘ándate al consulado que allá te ayudan, y me fui, hay que nervios tenia! (Tía de menor recuperado, Milán, Nov, 2015)

En Génova, entrevistamos a una abuela y un abuelo que presentaban un caso aún más complejo; tienen una hija adicta a las drogas y un nieto pequeño; ambos han estado en régimen de acogida. Debido a la adicción de su hija, estos abuelos han estado bajo la lupa de los servicios sociales, a pesar que tienen recursos económicos, empleo estable, vivienda de propiedad y estabilidad psicológica para optar a la tenencia de su nieto. Sus testimonios relatan la supervisión con educadores en las visitas con su nieto y los cambios en restringidas franjas horarias que no favorecen el afianzamiento del vínculo afectivo. Así nos lo cuenta la abuela del menor que aún está bajo tutela de los servicios sociales y que el tribunal los ha obligado a abandonar la posibilidad de ayudar a su hija con su enfermedad de adicción si quieren hacerse cargo del nieto. Fueron a mi casa, vieron la casa y le digo ‘aquí no nos falta nada’ ‘el bebé estará bien aquí’. Siempre hemos entregado todos los documentos. Después dice la asistente social ‘bueno es que no es que interesa tanto la situación económica, sino el afecto’, le digo ‘entonces el afecto lo tiene de más’ pero apuesto que si yo no tuviera donde vivir, si viviera en un cuartito que no tuviera las comodidades me dirían ‘no señora, usted no tiene como tener a su nieto aquí’, ellos no van a ver el el amor que yo le tengo, sino en cómo vivo. Yo le enseñé que vivía muy bien, que tengo mi casa arreglada, que en mi trabajo me respetan y me quieren. Entonces ellos o sea no lo ven bien, claro, buscaron otro protector. Bueno, tanto, tanto luchar porque hasta mi marido no podía ni ver todavía el bebe, ya lo vio una vez fue cuando cumplió dos años. Ahorita lo tiene una familia de acogida y dicen que podíamos verlo una vez por semana, pero

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la señora que lo tiene al bebe no puede venir todas las semanas. Ahora es cada 15 días, el educador que trae al niño, ayer recién me dio hora y media, y está alrededor de uno, porque no lo dejan ahí solo. A nosotros nos han pedido que nos olvidemos de mi hija si queremos criar a nuestro nieto, mire lo que ellos pretenden! (Abuela y abuelo que están en juicio por la custodia de su nieto, Génova, Nov, 2015)

En relación a la experiencia de los y las adolescentes en casas de acogida, los testimonios aluden a que sus problemas de conducta y falta de constancia en los estudios se agudizaron en los periodos que vivieron en las casas de acogida, como así también el aumento en el consumo de drogas y alcohol, debido a la facilidad que encuentran para burlar los controles en estos establecimientos. En algunas ocasiones, las mismas adolescentes que denunciaron a sus madres a los servicios sociales, acudieron a ellas para poder salir de esa situación; así lo relata una madre que tuvo que buscar a su hija, ante la fuga de la casa de acogida debido a que ni los servicios sociales ni la policía podían encontrarla: A pesar que ellos me quitaron a mi hija, ella salía de la comunidad y venía a mi casa. Cuando mi hija salió embarazada, mi hija estuvo 1 año conmigo; en un año la policía no la buscó. La asistente social me preguntaba si sabía algo de ella. Luego llamaron las asistentes sociales a la comunidad… Me llamaron la atención que, como un mes que mi hija se desaparecía yo andaba con fotos por todo Génova, le dije yo menos mal justo llamé y mi hija apareció. Les había dicho que si no aparecía pasaba las fotos por televisión para ver quien la ha visto. Y de ahí comenzaron a tenerme un poco de venganza, porque yo le dije ‘cualquier cosa que pase con mi hija, yo las denuncio’. La responsabilidad era de ellas (las responsables de la casa de acogida). Por suerte recuperé la tutela de mi hija y la mandé a Ecuador, porque la habían amenazado que como había vivido en comunidad, cuando tuviera al bebé, se lo iban a quitar y a dejar bajo tutela de los servicios sociales. (Madre con una hija recuperada retornada al Ecuador, Génova, Nov. 2015)

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Tuvimos la oportunidad de entrevistar a madre e hija en un régimen de acogida con semi-autonomía. El motivo por el cual estaban en esta situación era porque el padre de la niña había abusado sistemáticamente de ella durante años. Si bien nos presentamos como funcionarias del Consulado de Milán, las entrevistas fueron supervisadas por una educadora que no nos permitió interactuar con la mamá y la adolescente ecuatorianas. La educadora mediaba y condicionaba todas las respuestas. En un momento pude hablar a solas con la adolescente en su habitación, que si bien reconoció que su situación económica había mejorado y que estaban tranquilas lejos del agresor, convivían bajo un régimen de control permanente. La joven sentía que tanto su comportamiento como el de su mamá estaban siempre bajo una lupa. Tanto la percepción de los equipos de los consulados como los resultados de nuestro trabajo de campo nos corroboran que si bien el sistema de casas de acogida tiene una infraestructura adecuada para la vida residencial y estudiantil de los/as menores y adolescentes, existen varios inconvenientes en la estructura institucional y su funcionamiento atenta contra el restablecimiento y la consolidación de los vínculos afectivos familiares y, en ocasiones reiteradas, no ofrecen condiciones de seguridad y normas de convivencia que permitan a los/as adolescentes retomar su vida familiar y socioeducativa12. Según nuestros hallazgos, las acciones de los servicios sociales se orientan de manera prioritaria a cortar con los lazos familiares, cuando se detecta un problema.

Renegociaciones de género y generacionales para recibir a los/as menores recuperados/as y retornados/as a Ecuador Una de las estrategias que se llevó a cabo a partir de la intervención del Estado ecuatoriano fue la posibilidad de buscar parientes directos que pudieran Es oportuno destacar que en algunas familias la intervención de los servicios sociales ha permitido una vida libre de violencia para mujeres y menores migrantes. Existen casos en los cuales la separación de progenitores violentos fue una buena solución para algunas adolescentes que lograron salir de un círculo de violencia cotidiana para poder centrarse en una vida con amigos y continuar sus estudios, no obstante, son una minoría en todos los casos detectados por las representaciones consulares. 12

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asumir la custodia de los/as niños/as y adolescentes recuperados/as, muchos de ellos residentes en Ecuador: madres, padres, abuelas, tías, hermanos y hermanas mayores. Asumir esta custodia significa renegociar los roles de género y generacionales a nivel transnacional. Como en los inicios de la migración, es necesario realizar nuevamente “arreglos familiares” para gestionar la crianza de estos hijos e hijas retornadas. Por lo tanto, las negociaciones son múltiples entre madres y padres separados, hermanos mayores que asumen paternidades de hermanos/as con los cuales no han convivido y tías que reasumen el cuidado de sobrinos/as. Estos reacomodamientos revelan nuevas desigualdades y se profundizan otras existentes, puesto que estos retornos implican reacomodar vínculos afectivos y también organizar la convivencia bajo nuevas reglas. Un proceso parecido al que se vive con las reagrupaciones en los lugares de destino lo encontramos en los casos de retornos de adolescentes que llegaban a vivir con alguno de sus progenitores después de largos periodos de separación, la mayoría de las veces a grupos domésticos de nueva constitución. Es el caso de una madre que retornó de Italia y sus dos hijas quedaron al cuidado de su padre y su nueva pareja. Las niñas sufrieron maltrato sistemático durante muchos años por parte de estos adultos hasta que fueron llevadas a una casa de acogida. Posteriormente, y por intermediación del estado ecuatoriano, regresaron a Guayaquil al cuidado de su madre. El proceso de reacomodamiento de los vínculos intergeneracionales fue muy complejo, así lo relata la mamá que volvió a vivir con sus hijas luego de ocho años de separación: El padre de mis hijas se comunicó por medio de mensaje en el facebook, ‘quieren sus hijas hablar con usted, llámelas’, entonces yo hicimos una videoconferencia y me comentaron ‘mami, me quiero regresar a Ecuador’, la niña que ahorita tiene trece años, la última niña. Yo digo ‘pero, ¿por qué?’, ‘es que ya no me enseño’. Pero la otra niña no quería venir. Pero yo más o menos creo que es porque le metieron muchas cosas en contra de mí y ella se crió con eso; porque a mí no me decía mamá, a mí me decía señora. Ella prefería quedarse allá e incluso cuando llegó aquí dice, ‘si yo allá tenía todo, yo vivía bien’ [...]. El proceso de adaptación fue muy difícil, porque

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ellas vienen con otra forma de vivir, con otras actitudes, y venir acá se chocaron porque yo tengo dos bebés pequeños. Ahora nos estamos comenzando a querer, a adaptar entre todos, porque al comienzo era todo complicado. Llegaron muy desobedientes, ellas quieren hacer lo mismo que hacían allá; salir [...] o yo no sé porque ellas dicen que ellas hacen aquí porque ellas no eran libres allá, ellas pasaban encerradas, el papá las tenía encerradas. Entonces yo en parte las entendía, ‘bueno, ya, está bien, tienen razón de salir pero aquí no están en Italia, aquí hay mucho peligro, aquí hay mucha gente mala [...] ustedes allá salían, se divertían, llegaban hasta 10, 11 de la noche y hay gente; aquí no. Aquí, pasadas las 10 de la noche es muy peligroso, hay mucho ladrón, hay mucha droga. (Madre retornada que recuperó a sus dos hijas, Guayaquil, nov. 2016)

Otro caso es el de una adolescente y su hermano víctima de abuso sexual en Italia que retornaron a Ecuador bajo el cuidado de su padre, aunque aún mantiene la custodia compartida con su ex-mujer, que reside en las afueras de Génova con su actual pareja y una hija pequeña de esta relación. Estos dos hermanos desde el inicio de la migración familiar han tenido complejos procesos de adaptación tanto en origen como en destino. Luego de la gestión y patrocinio del gobierno ecuatoriano mediante la intervención del Consulado de Génova y el equipo de abogados se logró que los dos menores retornaran a Guayaquil al cuidado de su padre y abuela. El testimonio de la menor da cuenta que ellos/as están en condiciones de llevar la voz cantante en los conflictos familiares cuando son consultados/as y nos alejamos de las miradas y decisiones con un corte exclusivamente adultocéntrico. En su diálogo con la jueza, la adolescente expuso su visión de lo que para ella es una familia, la situación en la que vivían en destino y la necesidad afectiva de retornar a Ecuador: Y los servicios sociales me decían... ‘tú tienes más palabras que tu mamá, y has sido una chica que nos ha enseñado que a pesar que uno te diga las cosas no te quedas callada’. Yo le digo: ‘nunca me voy a quedar callada’. Ahí fue cuando la jueza dijo

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‘Julio y Paula13 pueden irse’, porque un día antes que mi papá llegue yo había tenido una visita con ella, estábamos en un cuarto solas las dos y a mí se me salieron las lágrimas y por lo último dije ‘mi familia es lo más importante para mí, yo quisiera regresarme a Ecuador porque yo aquí no tengo a nadie’. Sí, ‘Y yo no tengo a nadie’ y dije, ‘teniéndola a mi mamá que sólo pasa trabajando y solamente consigue dinero, le digo así: ‘una casa sola para mí’. Mi hermano sale a jugar pelota, mi madre llegaba a las 4 de la tarde, yo pasaba en esa casa sola, no había nadie, y a la noche mi padrastro llegaba gritando como si fuera mi padre y cosas así por el estilo. Pasaba más encerrada en mi cuarto y él todo me hacía quitar y mi mamá a todo le hacía caso y todo me lo quitaba. (Adolescente retornada junto a su hermano a Guayaquil, Guayaquil, Nov. 2015) Además, una de las problemáticas emergentes en el retorno asistido de menores a sus hogares en Ecuador tiene que ver con la disponibilidad de recursos económicos para hacer frente a su inserción en los ámbitos educativos y sanitarios, principalmente, porque la mayoría de ellos/as necesitan apoyo psicológico y de salud. La mayoría de los/as adolescentes entrevistados/as nacieron en Italia o llegaron mediante reagrupaciones a escolarizarse en ambientes socioeducativos italianos, se adaptaron a un nuevo sistema educativo, aprendieron un idioma nuevo, se apropiaron – no sin conflictos ni contradicciones – de un espacio público diferente al de Ecuador. Por ello, si bien la estrategia de recuperación y viaje de retorno con sus familiares a Ecuador es una opción adecuada en el momento en que el sistema institucional italiano comienza a gestionar sus vidas lejos de sus familias, su retorno definitivo a Ecuador para muchos/as de ellos no es parte de sus planes para continuar con sus propias trayectorias. “Yo quería quedarme allá en Italia, yo veo mi futuro allá” (Adolescente recuperada, residente en Guayaquil, nov. 2016). Es oportuno destacar que en el tema del retorno a Ecuador, las generaciones que 13

Nombres ficticios

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se encuentran en los extremos de la cadena migratoria – nietos/as y abuelas –- evidencian en sus relatos que la adaptación no es sencilla. Una abuela que decidió hacerse cargo del retorno de sus nietas cuando le devolvieron la custodia de las niñas a su hija, relata lo difícil que fue para ella terminar con su vida en Italia y decidir volver a su casa de Quito. Ella había migrado a Roma hacía más de una década y media, era la reagrupante de sus tres hijas mujeres, ahora adultas, casi toda la familia había establecido su vida en destino, con el agravante que esta abuela sino trabaja unos años más en Italia y pierde su permiso de residencia y trabajo y no tendrá posibilidades de tramitar su jubilación. Ella opina que a pesar que el retorno les resolvió una situación grave a nivel familiar, en cuanto a un futuro para ella y sus nietas, en Quito no tienen las condiciones adecuadas: A mí me falta la Italia, lo mismo a ella (nieta adolescente) le falta... a la más grande. Pero la mamá ha dicho que hasta que no se diplome aquí no le llevan nuevamente para allá. Ahorita ellas están un poquito acopladas pero siempre hay quejas en la escuela, que no cooperan porque es otro método de estudio acá. Por ejemplo, ella allá estudiaba sólo con libros, creo que sólo tenían un cuaderno y nada más, en cambio aquí para cada materia, cada cuaderno bien presentado, entonces ha habido muchos problemas. Pero ella ya está adaptada. Dice... está decidida... “si me toca quedarme aquí hasta los dieciocho años me quedo, porque yo tengo que cursar en Italia la universidad”. Yo sí quiero ir con ellas nuevamente, porque allá estamos mejor, hay más oportunidades... por ejemplo, si una chica no pueden estudiar le dan su una carrera, allá hay futuro. (Abuela retornada a Quito, junto a sus dos nietas recuperadas, Quito, nov. 2015)

Por ello, si bien el retorno asistido ha constituido una solución para prevenir y/o recuperar menores y reincorporarlos/as al seno familiar, es un proceso complejo que requiere de un apoyo interinstitucional a nivel de salud, apoyo psicológico y educación.

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Conclusiones En el marco global de una crisis económica generalizada y drástica reducción de empleo en el espacio europeo con un mayor impacto en el desempleo masculino, las mujeres migrantes, una vez más, reafirman su rol de cabeza de las unidades domésticas, lo cual evidencia su compromiso en las tareas de reproducción social y sostenimiento de sus hogares allí donde se encuentren. Este contexto migratorio familiar se ha analizado desde la actuación de los servicios sociales y del tribunal de menores del estado italiano que – bajo una serie de prejuicios económicos y morales – ha intervenido en la organización del cuidado de las mujeres migrantes y dificultado el acceso al derecho de vivir en familia. La injerencia del estado italiano en la dinámica de las familias migrantes ecuatorianas ha conllevado que exista un alto porcentaje de niños/as y adolescentes en casas de acogida, en numerosas ocasiones injustificadamente. Ante esta grave situación es pertinente reflexionar sobre la rentabilidad económica que producen estos procesos como una externalización de funciones del Estado italiano hacia el sector privado: cooperativas de psicólogos y terapeutas que abren muchas fuentes de trabajo. Otra problemática son los jueces honorarios, que proceden de las carreras de Psicología, Ciencias del Comportamiento; por lo tanto, fomentan estas redes de profesionales privados, donde también hay discrecionalidad en la elección de psicólogos. Las concepciones de clase se refuerzan en los veredictos donde se fundamenta el alejamiento de los hijos e hijas de sus madres (y padres) alegando las dificultades económicas y los estereotipos sobre las mujeres migrantes, en particular, y sus familias, en general, cuando las caracterizan en torno a atributos genéricos como: falta de idoneidad, fatiga, falta de horas de dedicación a los hijos, pero no especifican cuál es el problema concreto que se quiere afrontar con la separación de los menores de la familia. Por último, una de las mayores problemáticas es la falta de voz que niños, niñas y adolescentes tienen en estos procesos. Según afirman los y las abogadas que comenzaron a patrocinar los casos desde el estado ecuatoriano, uno de los puntos críticos son las sentencias que aluden al abandono moral y material para que los menores sean adoptados. Desde el enfoque del litigio estratégico, las defensas han 127


apuntado a deconstruir sobre qué fundamentos se ha definido el “abandono moral”, que aparece como un prejuicio de clase social y cultural en las sentencias. La agencia – tanto individual como colectiva – de las familias transnacionales ecuatorianas en el caso de los y las menores bajo tutelaje del estado italiano pusieron nuevamente en debate la noción de familia, pertenencia, hogar y grado de parentesco tanto en los lugares de origen como en los de destino. Tanto los servicios sociales, la policía y, en la instancia superior, el tribunal de menores en Italia tienen una injerencia notable y compleja en las negociaciones de género y generacionales de las familias migrantes ecuatorianas que han vivido procesos de reagrupación familiar complejos. En todos los casos estudiados, aparece en el centro del conflicto el rol de las madres migrantes, que está marcado por la precariedad laboral y residencial que dificulta organizar el cuidado. Como ya hemos demostrado en las investigaciones de la última década, las difíciles condiciones de trabajo de las otras mujeres de la familia y la imposibilidad por las restricciones jurídicas de reagrupar abuelas jóvenes y en buenas condiciones de salud, son condiciones determinantes que no permite reorganizar una red de cuidado en destino. Un dato llamativo en todos los relatos, tanto entre las familias, como entre abogados/as, funcionarios de los consulados es la invisibilidad de los varones en estos procesos. No obstante, en los testimonios de mujeres e hijos/ as se pone muy claramente de manifiesto una paternidad irresponsable o situaciones de violencia que generan, entre otras cosas, una falta de recursos económicos que agudizan las situaciones de precariedad. Abordar esta problemática, desde una mirada interdisciplinaria y orientada por el enfoque del litigio estratégico, permitió capturar las complejas experiencias de discriminación de las mujeres inmigrantes en el espacio jurídico italiano y los efectos de género que no son causados por normas individuales, sino por la interacción de normas generalmente y tradicionalmente atribuidas a campos legales separados. Esta estrategia jurídica se basa en considerar a las mujeres inmigrantes no como individuos aislados, sino como sujetos contextualizados, o sea, como sujetos inmersos en redes relacionales. El trabajo de formación a funcionarios ecuatorianos y a los equipos de abogados/as italianos/as contratados para patrocinar los casos llevó a la recuperación de 46 menores de una mirada multidimensional, 128


transnacional y de género que adoptó el Estado ecuatoriano frente a una mirada homogénea y monolítica de las mujeres (familias) migrantes de los servicios sociales y el tribunal de menores en Italia. La interacción entre los dos estados fue cambiando paulatinamente esta visión entre los funcionarios del país de destino: la mujer definida como vulnerable por su condición de extranjería. La presencia del estado ecuatoriano en los lugares de destino como respaldo político y jurídico a su comunidad migrante ha revertido poco a poco estos procesos y estas miradas discriminatorias. Sin embargo, aún resta mucho camino por andar. Es imprescindible continuar con las evaluaciones sistemáticas de las estrategias política, jurídica, social (principalmente con la comunidad ecuatoriana, aunque también con instituciones políticoadministrativas, educativas, sanitarias en los lugares de destino y de origen involucradas en la problemática) y comunicacional.

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CLARICE, PATROA

Sonia Roncador14

O almoço estava bem servido, inteiramente longe da idéia de cozinha: antes da chegada das convidadas, haviam sido retirados todos os andaimes. (LISPECTOR, 1984, p. 283)

I Em agosto de 1967, Clarice Lispector (1920-1977) aceitaria a proposta do colega e jornalista Alberto Dines, “sabendo-a necessitada de trabalho” (“Clarice jornalista”, p. 8), para escrever crônicas sobre assuntos variados para uma coluna semanal no Jornal do Brasil. O jornalismo já lhe havia servido como meio oportuno (às vezes o único) para a promoção e publicação de parte de sua obra ficcional por quase duas décadas. Além disso, segundo seus biógrafos, a atividade jornalística lhe garantiu apoio financeiro, sobretudo nos anos seguintes ao seu retorno definitivo ao Brasil, após quinze anos no exílio em matrimônio com um diplomata. Contudo, a “carreira paralela” como cronista e a participação no negócio lucrativo das colunas assinadas por celebridades representou uma fonte de stress moral para a autora – ao mesmo tempo preocupada com sua reputação intelectual e com sua forma ou “estilo” de escrever ficção que, a seu ver, o exercício da crônica poderia corromper. Em uma de suas primeiras crônicas para o Jornal do Brasil, “Amor imorredouro” (9 de setembro de 1967), observa-se, sobretudo, o desconforto da autora em “escrever para ganhar dinheiro” (A descoberta do mundo, p. 20), 14 Sônia Roncador é professora de literatura/cultura luso-brasileira, na Universidade do Texas em Austin, e diretora do Centro de Estudos Brasileiros na mesma universidade. Desde o término de seu doutorado em Literatura Comparada (Universidade de Nova York, 1999), ela publicou inúmeros artigos em revistas acadêmicas norte-americanas e brasileiras, além de três livros: Domestic Servants in Literature and Testimony in Brazil (1889-1999), (Palgrave Macmillan, 2014), A doméstica imaginária: literatura, testemunhos, e a invenção da empregada doméstica no Brasil (1889-1999) (Editora Universidade de Brasília, 2008) e Poéticas do empobrecimento: a escrita derradeira de Clarice Lispector (Annablume, 2002). Seu novo projeto de pesquisa justapõe arquivos literários e científicos da imigração e escravidão para demonstrar os paralelos entre as diásporas Africana e Portuguesa no Brasil. roncador@austin.utexas.edu

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o que comprometeria sua visão diletante da literatura e sobretudo o mito da escritora mulher não profissional, o qual muitas intelectuais de sua geração por uma razão ou outra terminaram por reforçar. Tais fatores, pois, reforçariam uma espécie de “retórica de autodesqualificação” como cronista em várias de suas contribuições ao longo de seus seis anos nesse jornal (1967-73), além da necessidade de separar sua “verdadeira” vocação literária do “circunstancial” ofício de cronista. Neste capítulo sobre as ex-empregadas domésticas de Lispector que frequentaram assiduamente as “conversinhas” ou “impressões leves” na sua coluna assinada (seus termos), os conflitos de Lispector como cronista ganhariam uma nuance temática especialmente reveladora de sua posicionalidade enquanto mulher branca de classe média, ao mesmo tempo consciente do papel de sua classe patronal na preservação da cultura de servidão doméstica que tem persistente e profundamente configurado o modus operandi do serviço doméstico remunerado no Brasil. Como argumentam as sociólogas Raka Ray e Seemin Qayum (2009): “[A]queles que vivem numa determinada cultura da servidão a aceitam como a ordem natural das coisas, a maneira de ser do mundo e da casa […] a servidão se normaliza de tal modo que se torna virtualmente impossível imaginar a vida sem ela, e as práticas, pensamentos e sentimentos das práticas se organizam segunda ela” (Cultures of servitude, p. 4). Como demonstro neste capítulo, Lispector se posiciona criticamente à cultura da servidão estruturante da vida familiar da classe média brasileira; ao mesmo tempo, ela se utiliza dessas narrativas pessoais sobre suas relações intersubjetivas com ex-empregadas domésticas como meio de revelar seu lugar social incômodo por usufruir de privilégios moralmente incompatíveis à posição de intelectual politicamente engajada com a qual ela e muitos escritores de sua geração se identificavam. Em algumas dessas crônicas, como veremos, Lispector tenta compensar tais conflitos associando-se a uma ética do cuidado como forma de relação com suas empregadas. Contudo, esse gesto afetivo jamais se materializa em ações concretas destinadas a melhorar as condições degradantes de suas empregadas, desse modo revelando uma verdade expressa em outras de suas crônicas sobre domésticas: os conflitos podem ser atenuados, mas jamais resolvidos.

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II O cronista latino-americano tem sido estudado na sua função mediadora nos processos de formação, problematização e consolidação de práticas e identidades sociais nos espaços urbanos, especialmente a partir de seu interesse em “comenta[r] a forma como vivemos, os costumes e valores morais no contrato social das grandes cidades”. (“Lispector, cronista”, p. 98). Tendo a crônica no Brasil se estabelecido como um “gênero de escritor”, mas sem perder a autoridade epistemológica do jornalismo, o cronista é igualmente reconhecido por “sobressair-[se] no registro do cotidiano em toda a sua urgência, na sensibilidade à fascinante diversidade da vida, na construção de cenas completas em vez de, secamente, recontar as notícias (“Lispector, cronista”, p. 98). No caso particular das crônicas de Lispector, interessa-me em particular a “construção de cenas completas” das relações cotidianas intersociais/raciais no espaço doméstico urbano e burguês. O conjunto de suas crônicas reeditadas na coletânea A descoberta do mundo (1984) revela que, dentre suas experiências da diversidade sociocultural no contexto urbano carioca, as que se registraram com maior frequência em sua coluna semanal foram suas relações com distintas ex-empregadas domésticas (pelo menos dez crônicas da referida coletânea dedicam-se ao tema). A frequente alusão às empregadas domésticas no ambiente urbano de suas crônicas demonstra o que é uma realidade para várias famílias de classe média no país: incorporada ao ambiente íntimo da casa na condição de um “outro domesticado” (CLIFFORD, 1988), a empregada doméstica constitui a relação mais duradoura, e pessoal, que um membro da classe média se permite estabelecer com a pobreza. O fato de que Lispector se valeu do espaço de sua coluna aos sábados para produzir sua imagem pública como intelectual brasileira perante as tensões e traumas sociais não resolvidos certamente teve um impacto no repertório das personagens domésticas selecionadas para essas crônicas. Num sentido sua coluna assinada lhe serviu para negociar e justificar sua fama de escritora introspectiva e formalmente experimental, num período da história cultural quando escritores se sentiam compelidos a produzir textos com temáticas políticas explícitas _ em decorrência, como sabemos, do regime militar autoritário que se instalou no país por 21 anos. Por outro lado, como procuro demonstrar, a autora enfrentou o desafio evitado por outros escritores de sua geração e classe social: o de exemplificar, 139


através de suas crônicas pessoais sobre ex-empregadas domésticas, as contradições inerentes à sua autopromoção como intelectual socialmente responsável frente a sua posição de autoridade e privilégios sócio raciais. Em uma crônica de sua coletânea A legião estrangeira (1962), “Literatura e justiça”– uma resposta às acusações recebidas nesses anos pelo descompromisso social e político de sua literatura, – Lispector argumenta que o fato de não “saber como [s]e aproximar “de um modo literário […] da ‘coisa social’” não refletia, no seu caso, a falta dos sentimentos “de justiça”, obrigação e responsabilidade social. “Desde que me conheço,” escreve a autora, “o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife, os mocambos foram a primeira verdade para mim” (Legião, p.149). Não é novo o argumento de que Lispector, ao contrário de sua própria autodefesa, na verdade soube aproximar-se “literariamente” do fato social, embora esse tema tenha sido mais frequente e relevante em sua obra literária na década de 70. Em outra crônica publicada na sua coluna no Jornal do Brasil, “O que eu queria ter sido” (2 de novembro de 1968), Lispector uma vez mais associaria o impacto do drama social dos pobres às suas incursões infantis pela periferia de Recife, como também desassociaria sua literatura de seu sentimento interno de justiça social. Nessa segunda crônica, porém, ela introduz a figura mediadora de uma empregada doméstica, sem a qual suas idas aos mocambos não se teriam realizado: “Em Recife, eu ia aos domingos visitar a casa de nossa empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia como que me prometer que não deixaria aquilo continuar. Eu queria agir” (A descoberta do mundo, p. 217). Como revelam ambas as crônicas, a consciência ética adquirida na infância (o que lhe rendera na família o apelido de “a protetora dos animais”, p. 217), seguiria compelindo-a a uma “ação social” na vida adulta – compulsão esta transformada em um senso de responsabilidade (e, como veremos, obrigação maternal) que sua atividade como escritora, segundo ela, não lhe permitia aliviar: “no entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco” (Descoberta, p. 218).15 15 Vale ressaltar o fato de que seu senso de responsabilidade social e a atitude condescendente de “protetora dos animais” termina por reforçar certa ideologia maternalista, que, segundo Judith Rollins, tende a definir as relações entre patroas e suas empregadas domésticas.

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Transitando entre dois mundos socialmente opostos, a doméstica emerge em muitas circunstâncias históricas e subjetivas como uma ameaça à ordem familiar e social da classe patronal. 16 Nas crônicas de Lispector, a doméstica atua como faca de dois gumes: ela é a figura intermediária _ o “outro domesticado” _ que conduz a autora a uma revelação social traumática, embora edificante (função esta que Lispector soube tão bem explorar na figura da empregada Janair, no romance A paixão segundo G. H.). Por outro lado, conquanto ela mesma uma mulher de origens social e cultural distintas da autora, a doméstica é também aquela que injeta no mundo doméstico “protegido” o drama da exploração social. Além disso, como argumenta Lucia Villares, a figura da empregada doméstica igualmente força a autora a se confrontar com o problema da diferença e hierarquia raciais; ou seja, “a se colocar numa posição de privilégios em que sua branquidade se torna visível” (“Welcoming”, p. 80). Em uma das várias crônicas em que Lispector alude às empregadas domésticas, “Dies Irae” (14 de outubro de 1967), ela escreve: “E ter empregadas, chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade” (Descoberta, p. 33). O tom “irado” dessa passagem revela a diferença no tratamento dado às domésticas nas colunas “femininas” de sua autoria (1952/1959-61) e aquele predominante alguns anos mais tarde na coluna semanal do Jornal do Brasil.17 Em ambos os contextos, a autora enfoca as dificuldades inerentes 16 A empregada doméstica como signo de mediação entre mundos opostos (casa/ rua; sala de visita/fundos da casa; etc.) aparece frequentemente na literatura, sobretudo nas memórias de infância. Consultar o estudo de Leonore Davidoff sobre a doméstica nas memórias infantis do período britânico vitoriano “Class and Gender in Victorian England” (In: Worlds Between: Historical Perspectives on Gender and Class. Cambridge: Polity Press, 1995); consultar também a análise sobre a doméstica na configuração do desejo do infante Walter Benjamin em Peter Stallybrass & Allon White “Below Stairs: the Maid and the Family Romance” (In: The Politics and Poetics of Transgression. Ithaca: Cornell University Press, 1986). Em Lispector, um dos exemplos mais interessantes da doméstica na sua função de mediadora entre o universo burguês e o da miséria aparece em uma passagem, ainda inédita, de seu manuscrito “Objeto gritante” (sobre a passagem em questão, ver meu ensaio “Nunca fomos tão engajadas: Style and Political Engagement in Contemporary Brazilian Women’s Fiction”. In: Anne J. Cruz et al. (ed.). Disciplines on the Line: Feminist Research on Spanish, Latin American, and U.S. Latina Women. Newark, de: Juan de la Cuesta Press, 2003). 17 Sua produção pouco conhecida como colunista de assuntos “para mulheres” em alguns jornais cariocas foi parcialmente publicada após o exaustivo trabalho de Aparecida Maria Nunes, que selecionou e editou suas crônicas femininas em três coletâneas: Correio feminino (2006), Só para mulheres: conselhos, receitas e segredos (2002), e Clarice na cabeceira: jornalismo (2012) _ todas pulicadas pela Rocco editora.

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à relação patroa-empregada, ou os desencontros domésticos entre mulheres de duas classes, e geralmente raças distintas, embora apresente razões opostas para tais conflitos: ao contrário de suas colunas para mulheres, nessas crônicas tardias, Lispector associa a dificuldade da relação não aos defeitos de personalidade e serviços da empregada, mas, precisamente, à sua condição servil. Em outra crônica no Jornal do Brasil, “Por detrás da devoção” (2 de dezembro de 1967), Lispector problematiza a visão idealizada da “devoção”, ou servilismo, como expressão de amor, gratidão e lealdade da classe trabalhadora; pode-se, como ela mesma argumenta, ser devota “odiando”. Na crônica em questão, Lispector se refere especificamente às personagens domésticas da peça As criadas, de Jean Genet, que ela então acabara de assistir. “Fiquei toda alterada”, ressalta a autora, revelando a seus leitores o trauma dessa experiência: “Vi como as empregadas se sentem por dentro, vi como a devoção que às vezes recebemos delas é cheia de um ódio mortal” (Descoberta, p. 54). Segundo Lispector, “a escravidão aos donos é arcaica demais para poder ser vencida” e, por isso, “às vezes o ódio não é declarado, toma exatamente a forma de uma devoção e de uma humildade especiais”.18 Tal reflexão a faz pensar, por exemplo, no “ódio não declarado” de uma ex-empregada doméstica, a acima referida argentina Maria Del Carmen: “Pseudamente me adorava. Nas piores horas de uma mulher – saindo do banho com uma toalha enrolada na cabeça – ela me dizia: como usted é linda. Bajulava-me demais” (Descoberta, p. 54-5).19 Contudo, sem diminuir o valor da narrativa do ódio social e as formas censuradas que esse sentimento pode tomar (pseudo adorações, excessivas bajulações), concordo com Marta Peixoto (2002) que a autora “reserva[ria] para a sua ficção – especialmente A paixão segundo G.H. – uma visão mais crítica dessa relação, carregada de emoções negativas” (“Fatos”, p. 111). Talvez por atenção às “convenções” do gênero da crônica (para ela, “impressões leves”, 18 Sua referência à escravidão doméstica constitui uma das raras passagens em suas crônicas em que raça é tratada como fator relevante na estruturação das relações entre patroas e empregadas. 19 Como revela Vilma Arêas, em “Peças avulsas”, a visão do “ódio censurado” da empregada doméstica aparece em sua literatura a partir da leitura pessoal de um artigo de jornal, “Un ‘prolétariat’ en Tablier Blanc”, assinado por Elvire de Brissac, e publicado no Le Monde no dia 14 de março de 1963. Segundo a matéria em questão, as “condições psicológicas” desse grupo social, ou os sentimentos que constituem sua relação com os patrões, são precisamente o ressentimento reprimido, a humilhação e a alienação.

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ou narrativas de entretenimento), e sobretudo para se livrar de possíveis constrangimentos que o papel de patroa lhe reservava, Lispector elabora na sua coluna semanal distintas estratégias para “atenuar diferenças e ressaltar semelhanças inesperadas” com suas (ex-)empregadas (“Fatos”, p. 113). Aceitando a sugestão bem-humorada da irmã Tania Kaufmann de que “cada um tem a empregada que merece” (Lispector, Descoberta, p. 51), a autora presenteia os sábados de seus leitores com alguns fatos divertidos sobre sua cozinheira vidente, a ex-empregada “que fazia análise, juro” (Descoberta, p. 55), ou “uma outra, que foi comigo para os Estados Unidos, por lá ficou depois que vim embora, para casar-se com um engenheiro inglês” (Descoberta, p. 55). Além disso, segundo Peixoto (2002), “o retrato lírico e suave” de algumas de suas empregadas – que “aceita diferenças de experiência e valores e perdoa roubos discretos” (“Fatos”, p. 115) – igualmente revela o tratamento predominante da empregada doméstica nas crônicas de Lispector para o Jornal do Brasil: a escritora fala de “culpa, tensões e estranhamento” (“Fatos”, p. 115) derivados de suas inúmeras relações com empregadas, embora procure superá-los por meio do humor ou do lirismo. Para “atenuar” as diferenças sociais trazidas para o seu mundo doméstico por uma “criada”, ela tende a ressaltar certas excentricidades da personalidade de suas empregadas que desviam o foco da relação de exploração para áreas menos constrangedoras desse entrosamento intersocial/racial diário. Contudo, se por um lado ela liberta suas empregadas de certos estereótipos negativos (alguns deles utilizados em suas colunas para mulheres), por outro, ela termina por fixá-las numa nova taxionomia de personalidades e manias. Tipos como a cozinheira cômica, empregadas com vocação artística e um senso agudo de psicologia humana, ou mesmo as “inconscientes” (por surtos psicóticos ou breves “ausências mentais”) terminam por se integrar mais ao universo ficcional de suas personagens que ao constrangedor espaço doméstico das diferenças sociais. O investimento de Lispector para “atenuar” tais diferenças e “ressaltar semelhanças inesperadas”, porém, nem sempre lhe parece um projeto possível de se realizar. Em uma passagem de seu manuscrito “Objeto gritante”, Lispector, por exemplo, antecipa o susto de incompreensão que sua empregada “sertaneja”, Severina, sentiria quando pela primeira vez diante do mar: “É capaz de sentir-se mal. Porque o mar não é compreensível. É sentido e é visto. Estou me pondo na pele desta empregada que se chama Severina. E 143


eu sendo ela fico toda assustada. Devo ter visto uma primeira vez o mar. Só que não me lembro…” (“Objeto gritante”, p. 71).20 Como se sabe, o mar constitui um importante motivo na obra de Lispector; na sua escrita, um simples ato de entrar no mar pode converter-se em ritual solene. Dentre outros fatores, o mar exerceu um verdadeiro fascínio na autora por estimular suas reflexões sobre as possibilidades de expansão máxima de si mesma e de verdadeiros contatos com existências não humanas. Na passagem acima citada, Lispector projeta no encontro inédito de sua empregada com o mar uma reação semelhante a de suas personagens literárias, e a dela própria, para em seguida desistir dessa projeção: “Mandarei embora Severina: ela é oca demais. Não tive coragem de ir levá-la a ver o mar: temia sentir por ela o que ela não sentisse. É nordestina e é oca de tanto sofrimento”. (“Objeto gritante”, p. 74). É, portanto, dos relatos sobre as empregadas “surpreendentemente” talentosas, perceptivas e sagazes que a autora cria o panorama típico das domésticas que frequentam as suas crônicas. Por um lado, Lispector ressalta o sentido e efeito poéticos de frases ditas pelas domésticas em suas interações diárias, como é o caso, por exemplo, de sua empregada Rosa, em “A italiana” (4 de abril de 1970; anteriormente publicada em A legião estrangeira como “Uma italiana na Suiça”): “não sei mesmo porque gosto mais do outono do que das outras estações, acho que é porque no outono as coisas morrem tão facilmente [...]. Também diz: ‘A senhora alguma vez já chorou como uma boba e sem saber por quê? Pois eu já!’ – e cai na gargalhada” (Descoberta, p. 432).21 Em “Conversa puxa conversa à toa” (16 de maio de 1970), Lispector, ademais, surpreende sua cozinheira “cantando uma melodia linda, sem palavras, uma espécie de cantilena extremamente harmoniosa. Perguntei-lhe de quem era a canção. Respondeu: é bobagem minha mesmo”. (Descoberta, p. 444). Contudo, tal qual sucede com outros projetos de valorização estética da expressão popular, nessas crônicas, Lispector tem que se servir de sua autoridade artística para agregar às palavras “poéticas”, ou melodias “harmoniosas” de suas empregadas, um valor simbólico alheio à intenção das mesmas. Como ela mesma admite, com respeito a tal cozinheira cuja “boca sabe cantar”, “ela [a empregada] não sabia que era criativa” (Descoberta, p. 444). 20 LISPECTOR, Clarice. “Objeto gritante”. Arquivo de Clarice Lispector. In: ArquivoMuseu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1971. 21 Como a autora explica nessa crônica, trata-se de uma empregada imigrante da Itália durante seus anos em Berna, na Suíça.

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Em uma de suas crônicas mais interessantes sobre o tema das domésticas, “O lanche” (7 de março de 1970; publicada em A legião estrangeira com o título “O chá”), Lispector igualmente ressalta o impacto poético (embora involuntário) de várias frases soltas, por ela atribuídas às empregadas que tivera ao longo da vida. Nessa crônica, a autora imagina-se anfitriã de um chá oferecido “a todas as empregadas que já tive na vida” – “quase um chá de senhoras, só que nesse não se falaria de criadas” (Descoberta, p. 423). À parte o tom irônico da comparação, a narração desse imaginado encontro social não se propõe a retratar realisticamente esse “quase chá de senhoras”. Em primeiro lugar, o cenário imaginado para o chá/lanche seria a Rua do Lavradio, por onde mais tarde transitaria sua personagem Macabéa, de A hora da estrela (1977). Além disso, ela mistura elementos de um cenário urbano periférico (zona portuária carioca) com “um certo clima de teatro do absurdo” (Arêas, “Peças”, p. 563): à princípio “sentadas, de mãos cruzadas no colo […] e mudas” (Descoberta, p. 423), as domésticas, “rediviva[s], mortaviva[s]” passam a “recitar” frases, outrora ditas de um modo espontâneo e que, pelo efeito de humor, beleza, banalidade, revelação ou mesmo desconforto ficaram retidas na memória da autora: “Mudas – até o momento em que cada uma abrisse a boca e, rediviva, morta-viva, recitasse o que eu me lembro” (Descoberta, p. 423). Lispector, por exemplo, volta a “se lembrar” do que lhe dissera a acima mencionada empregada italiana, Rosa, ao ouvir o comentário de um estranho na rua sobre a queda simultânea das últimas folhas de outono e a primeira neve: “‘É a chuva de ouro e de prata.’ Fingi que não ouvi porque se não tomo cuidado os homens fazem de mim o que querem” (Descoberta, p. 424). Às vezes, porém, confessa que uma única frase banal, como “Gosto de filme de caçada”, “foi tudo o que me ficou de uma pessoa inteira” (Descoberta, p. 424). É provável, por outro lado, que do convívio cotidiano com suas empregadas domésticas, a autora tenha aprendido que na banalidade de certas frases encontram-se duras verdades, tais como “Quando eu morrer, umas pessoas vão ter saudade de mim. Mas só isso” (Descoberta, p. 424). Observa-se em uma outra frase “recitada” por uma de suas ex-domésticas a revelação de que o amor maternal pode-se manifestar em forma de um desejo violento, nem sempre reprimido (tema de seu famoso conto “A legião estrangeira”): “Era um miúdo tão bonito que até me vinha a vontade de fazer-lhe mal” (Descoberta, p. 424). Mas é da frase recitada pela “mais antiga de todas” que Lispector parece 145


tirar a lição mais profunda – transformada em perdão – dessa “crueldade de amor”, ou “ternura amarga”, para ela um produto da humilhante condição servil da empregada doméstica: Lá vem a lordeza - levanta-se a mais antiga de todas, aquela que só conseguia dar ternura amarga e nos ensinou tão cedo a perdoar crueldade de amor. - A lordeza dormiu bem? A lordeza é de luxo. É cheia de vontades, ela quer isso, ela não quer aquilo. A lordeza é branca. (Descoberta, p.424)

O efeito estético de um “certo clima de teatro do absurdo”, assim como a ênfase na performance da recitação das frases, demonstram que, se por um lado a autora se propõe a “dar voz” às empregadas por meio da citação de frases como as acima citadas, por outro, introduz tais frases de forma descontextualizada – o que intensifica sua força poética, mas dilui sua função prática e, em alguns casos, política. Além disso, limitada pela memória, Lispector recupera de seu convívio com várias domésticas somente aquelas frases que lograriam diminuir a incômoda e culposa distância social. Num sentido, ela “ressuscita” por meio desse curioso chá de criadas fantasmais os fragmentos (verbais) desse convívio que constituem o quadro geral das domésticas que a autora haveria gostado de ter, e de “merecer”. A singularidade das empregadas domésticas de Lispector não passou desapercebida do escritor Paulo Mendes Campos, em cuja crônica “Minhas empregadas”, comenta, com certo ciúme, sobre as “sutilezas” (p. 186) ou “certas finuras de reações psicológicas” das domésticas da amiga, quando ele, ao contrário, via-se “bastante fatalizado a ter empregadas um pouco, como se diz, sôbre a débil mental” (Campos, “Minhas empregadas”, p. 185). Segundo Campos, “a falar frequentemente coisas que lembram as personagens”, muitas domésticas de Lispector terminam por “imita[r]-lhe a arte” (“Minhas empregadas”, p. 185). O último parágrafo de “O lanche”, na verdade um longo collage de partes das frases recitadas nesse pseudo “chá de senhoras”, pode-se aplicar ao comentário de Campos: por um lado, Lispector ressalta, por meio da fala de suas domésticas, certos aspectos invisíveis de suas “condições psicológicas”; por outro, ela manipula a fala da doméstica (por seleção, composição, cortes, descontextualização) de forma a enfatizar muito mais suas próprias preferências estéticas e temáticas do que as possíveis tensões que essa fala certamente geraria em seu contexto real: 146


– Comida é questão de sal. Comida é questão de sal. Comida é questão de sal. Lá vem a lordeza: te desejo que obtenhas o que ninguém pode te dar, só isso quando eu morrer. Foi então que o homem disse que a chuva era de ouro, o que ninguém pode te dar. A menos que não tenhas medo de ficar toda de pé no escuro, banhada de ouro, mas só na escuridão. A lordeza é de luxo pobre: folhas ou a primeira neve. Ter o sal do que se come, não fazer mal ao que é bonito, não rir na hora de pedir e nunca fingir que não se ouviu quando alguém disser: esta, mulher, é a chuva de ouro e de prata. Sim. (Descoberta, p. 424)

Em suas crônicas semanais sobre as empregadas domésticas, Lispector, pois, reconhece as tensões desse convívio doméstico intersocial/ racial, embora tomada de constrangimento e culpa, ela tente dissolver tais tensões por meio da narração de situações bem humoradas. Além disso, a autora valoriza os potenciais perceptivo e criativo das domésticas como meio de desviar para os aspectos dessa relação diária que pudessem aliviar a constrangedora desigualdade social, e condição servil das mesmas. Contudo, ela às vezes se ressente de não poder realizar esse gesto “redentor”, como é o caso da acima mencionada doméstica Severina, a nordestina “oca”, a qual, talvez por reforçar (em vez de diminuir) sua culpa, ela termine por demitir: “Quero empregada toda viva embora me dê mais trabalho”, justifica a autora. “Não posso ter coisa morta em casa” (“Objeto gritante”, p. 75).

III Várias crônicas de Lispector revelam, porém, que “empregada toda viva” pode ser igualmente problemático, não somente por lhe “dar mais trabalho”, mas também por desrespeitar os protocolos de comportamento servil e as fronteiras sociais que a autora, embora culpada, não se interessa em romper. Por exemplo, na crônica “A mineira calada” (25 de novembro de 1967), a empregada Aninha parece superar-se de seu estado “oco”, semimorto, por meio de uma inusitada interpelação à autora/patroa; nesse caso, um pedido a Lispector para que esta lhe emprestasse um de seus livros. A sequência de sustos, hesitações, fingimentos e, finalmente, recusas por parte da autora revela que a mesma tampouco deseja substituir uma relação de exploração social (não obstante o constrangimento que esta lhe impingia) por um 147


contrato social menos “hierárquico” entre autor e leitor: “Já que eu não queria lhe dar livro meu para ler, pois não desejava atmosfera de literatura em casa, fingi que esqueci” (Descoberta, p. 53). No início da crônica, patroa e empregada executam silenciosamente as atividades domésticas que a um só tempo as definem na organização hierárquica do serviço doméstico e as separam física e socialmente: “Um dia de manhã estava [a empregada] arrumando um canto da sala, e eu bordando no outro canto”. (Descoberta, p. 51). O pedido acima referido da empregada, embora feito em voz “abafada”, vem, contudo, perturbar não somente o confortável silêncio daquela manhã, como também trazer à tona a tão constrangedora diferença social: “Fiquei atrapalhada”, revela a autora. “Fui franca: disse-lhe que ela não ia gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados” (Descoberta, p. 51). O uso do humor ao final da crônica revela, repito, que o reconhecimento da autora das tensões e desencontros inerentes ao seu dia-a-dia com as domésticas não se realiza sem que ela, ao mesmo tempo, tente atenuar (mas sem resolver) tais tensões: “Foi então que, continuando a arrumar, e com voz ainda mais abafada, respondeu: ‘Gosto de coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar” (Descoberta, p. 51). Lispector reservaria a narração da continuação desse breve interlúdio com sua empregada Aninha para a já citada crônica “Por detrás da devoção”, publicada no sábado seguinte à “A mineira calada”. Para compensar a recusa em atender o pedido de sua empregada, “pois não desejava atmosfera de literatura em casa”, a cronista, “em troca, de[u]-lhe de presente um livro policial que [ela] havia traduzido” (Descoberta, p. 53). Porém, a despeito dos preconceitos da autora, a crônica revela que as preferências literárias da empregada Aninha não pareciam incluir um tipo de literatura que Lispector julgava mais acessível: ‘Acabei de ler’, diz Aninha, referindo-se ao livro policial traduzido por Lispector. ‘Gostei, mas achei um pouco pueril. Eu gostava era de ler um livro seu’. É renitente a mineira. E usou mesmo a palavra ‘pueril’ (Descoberta, p. 53). É possível, sem dúvida, relacionar essas passagens sobre os gostos literários de Aninha às críticas negativas que Lispector recebeu sobre o hermetismo de sua literatura; em outras palavras, a autora pode haver-se valido das respostas, inventadas ou não, de uma doméstica para revidar com ironia a opinião então corrente entre leitores e alguns críticos de que seus livros eram excessivamente obscuros e antipopulares. Contudo, sua recusa em compartilhar sua produção literária com uma doméstica revela, por outro 148


lado, que a autora, embora ressentida dos ataques críticos, tampouco parecia interessada em se promover como escritora lida e apreciada por membros de distintas classes sociais.22 A empregada Aninha seria tema de mais duas crônicas para sua coluna no Jornal do Brasil: “Das doçuras de Deus” e “De outras doçuras de Deus” (16 de dezembro de 1967). Mas, ao contrário das crônicas anteriores sobre essa “mineira calada” que gostava de ler textos complicados, aqui o humor e a ironia são substituídos pelo lirismo. Lispector elegeria o mesmo tom lírico para uma outra crônica sobre (ex-) empregadas domésticas, “Como uma corça” (27 de janeiro de 1968). Em ambas as crônicas, a mudança ou substituição de tom constitui, a meu ver, a materialização de um sentimento maternal, o qual a autora reservaria somente para poucas domésticas, em particular às que se associam ao tipo “inconsciente” acima mencionado. Em “Como uma corça”, a “inconsciência” da empregada em questão, de nome Eremita, associa-se aos seus momentos de “repouso” ou “ausência” mental: “porque tinha ausências”, explica a cronista, “o rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Uma tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse ao seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar” (Descoberta, p. 85). Em “Das doçuras de Deus”, como demonstro abaixo, a “ausência mental” da empregada Aninha adquire um aspecto patológico, embora ao mesmo tempo “doce” e “áspero”. É válido, por um lado, associar o interesse especial de Lispector por suas domésticas “inconscientes” à sua longa trajetória de exploração e valorização de modos de experiências irracionais, ou nos termos da narradora de Água viva, o que se experimenta quando corajosamente se liberta dos limites impostos pelo “raciocínio” para adquirir, “atrás do pensamento”, a visão paradoxal do informe: “mas agora quero o plasma – quero alimentar22 Lispector mencionaria uma vez mais o uso por uma doméstica de vocábulos eruditos, sofisticados, ou seja, “próprios” da classe patronal, para narrar uma situação de “enigma” social. Na crônica em questão, “Enigma” (26 de abril de 1969), ela encontra casualmente no elevador de seu prédio uma mulher que “falava como dona-de-casa, seu rosto era o de donade-casa” (Descoberta, p. 282), porém, entrara em “sua” casa “pela porta de serviço” e ademais “estava uniformizada”. No entanto, por se tratar de empregada alheia, esse estremecimento de fronteiras sociais não a “atrapalha”; o humor final dessa crônica aparece mais por obediência às suas “convenções” genéricas, do que por uma necessidade da autora: “E – juro – acrescentou o seguinte: ‘A vida tem que ter um aguilhão, senão a pessoa não vive’. E ela usou a palavra aguilhão, de que eu gosto” (Descoberta, p. 282).

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me diretamente da placenta” (Lispector, Água viva, p. 9). No contexto de suas crônicas sobre empregadas domésticas, por outro lado, essa experiência inspira um interesse particular por se apresentar como possibilidade de redenção da condição servil desse grupo social. Talvez seja essa a razão pela qual, ao contrário das expectativas de sua classe patronal, a cronista, em “Como uma corça”, mostra-se mais interessada no quase-nada produtivo das “ausências”, ou “repousos” da empregada Eremita do que em seus serviços. Além disso, mesmo quando reintegrada à ordem dos afazeres domésticos capitalizados (“lavar a roupa”, “enxugar o chão”, “estender lençóis”), Eremita mantém-se acima de sua condição de criada, posto que tais tarefas convertemse nesse texto em simulacro de um ritual primitivo de adoração “a outros deuses”. Em confluência a outras crônicas, Lispector descreve os momentos ausentes de Eremita, rebatizada de “a infante misteriosa”, como perigosa descida de si para si mesma, ou melhor, para a “profundeza” e “escuridão” (Descoberta, p. 85) de si mesma (“Sim, havia profundeza nela”). Na crônica “Estado de graça – trecho” (6 de abril de 1968), essa descida constitui uma “abertura para o paraíso” (Descoberta, p. 121); aqui, ela é um “atalho para a floresta” (Descoberta, p. 85). Segundo a cronista, regressada da “floresta”, Eremita punha-se a executar subversivamente suas obrigações, pois que ao aparentar (simular?) obediência à patroa, na verdade “servi[a] muito mais remotamente, e a outros deuses”: “Pois se alguém prestasse atenção veria que ela lavava roupa – ao sol; que enxugava o chão – molhado pela chuva; que estendia lençóis – ao vento” (Descoberta, p. 86). “Como uma corça” é, nesse sentido, uma de suas representações mais transgressoras da ordem social, onde se instala a relação hierárquica patroa-empregada; ao mesmo tempo, ironicamente, esse texto constitui um dos tipos mais confortáveis de empregada doméstica em suas crônicas, onde até mesmo os signos sociais associados a Eremita – a “fome”, “má-criação de empregada mesmo”, “medo” e “roubos” – são naturalizados, ou desprovidos de um sentido políticoideológico, para servirem à imagem misteriosa e insubjugável da moça: “Pois não havia no seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. ‘Eu tive medo’, dizia com naturalidade. ‘Me deu fome!’ dizia, e era sempre incontestável o que dizia, não se sabe por quê”. (Descoberta, p. 84). É somente na crônica “Das doçuras de Deus” que Lispector, ao contrário, revela as frustrações, e falhas, implicadas na tentativa de compor 150


uma imagem empoderada, e redimida de culpa, de suas empregadas. Ao início de “Das doçuras de Deus”, Lispector se dirige aos seus leitores, em tom quase acusatório, para apontar-lhes a indiferença, e esquecimento, à sua empregada Aninha, a despeito de que apenas duas semanas haviam-se passado desde a publicação de “Por detrás da devoção”: “Vocês já se esqueceram de minha empregada Aninha, a mineira calada, a que queria ler um livro meu mesmo que fosse complicado porque não gostava de ‘água com açúcar’” (Descoberta, p. 60). Chama-me a atenção a ambivalência dessa passagem de Lispector, que denuncia o esquecimento de seus leitores (reflexo, por certo, de uma cultura dominante de indiferença às domésticas), reconhecendo-lhes, por outro lado, a admiração e fidelidade enquanto leitores constantes de suas crônicas; tal passagem revela que Lispector, já passados alguns meses desde sua primeira crônica no Jornal do Brasil, pressupunha haver conquistado um público de leitores fiéis, que acompanhava regularmente os textos de sua coluna aos sábados. Ao mesmo tempo, causava-lhe certo constrangimento beneficiarse de um sistema social em que escritores recebiam o carinho e a lealdade, de um público, que por sua vez era incapaz de tratar da mesma maneira as suas empregadas. Além disso, a autora denuncia o esquecimento dos leitores, que contrasta com suas qualidades de patroa afetuosa e o lirismo dominante nesse texto: “O que eu não disse talvez foi que, para ela existir como pessoa, dependia muito de se gostar dela. Vocês a esqueceram. Eu nunca a esquecerei” (Descoberta, p. 60). A cronista “nunca se esqueceria” de uma manhã em que Aninha retornara à casa, de uma suposta ida ao mercado, com o dinheiro ainda amassado em uma das mãos, e na outra o saco de compras cheio de tampinhas de garrafa e pedaços de papel sujo, para “enfeitar [s]eu quarto”. Examinada por um médico residente do Instituto Pinel, a moça foi prontamente diagnosticada como vítima de um surto psiquiátrico e levada para internação, não sem a intervenção de algumas amizades influentes da autora. A maneira singular como a patologia de Aninha é descrita revela que, não obstante o afeto e carinho da patroa, fora preciso que a empregada enlouquecesse para efetivamente “poder existir como pessoa”. Em primeiro lugar, Aninha (que a autora sem saber o motivo insistia em chamá-la “Aparecida”) “estava um pouco mais ‘aparecida’, como se tivesse dado um passo à frente” (Descoberta, p. 60). Além disso, ela adquirira uma “expressão pueril e límpida”: “doçura maior nunca vi”, reforça a autora (Descoberta, p. 61). O breve diálogo 151


entre Lispector e o médico psiquiatra, “quem vim a saber ser o acadêmico Artur” (Descoberta, p. 62), no entanto, sequestra a autora de seu mundo de “expressões pueris” e “doçuras” para a realidade social daquela que somente para ela “estava um pouco mais aparecida”: Aninha, na verdade, não passava para os demais de uma criada. Ao inteirar-se da identidade da autora, o psiquiatra residente – ele mesmo um leitor de Lispector – estava “mais emocionado comigo do que com Aninha” (Descoberta, p. 62). Repete-se, portanto, agora no nível da história, a mesma sensação de desconforto que às vezes a admiração (neste caso, de seus leitores) pode causar, sobretudo quando esta se apoia na injusta hierarquia social: “E ele acrescentou simpático, efusivo, mais emocionado comigo do que com Aninha: ‘Pois tenho muito prazer em conhecê-la pessoalmente.’ E eu, boba e mecanicamente: ‘Também tenho’” (Descoberta, p. 62). Por outro lado, como argumenta Debra Castillo (2007), evidencia-se nessa troca desequilibrada de efusões e simpatias (por parte do médico) e respostas mecânicas e abaladas (de Lispector) a própria posição social instável da autora, condicionada pelos “pressupostos de classe e sexo” (Castillo, “Lispector, cronista”, p. 105). De fato, a pergunta “A senhora é escritora?” – primeiramente feita pela empregada Aninha e, em seguida, pelo médico residente – gera duas respostas distintas, dependendo da posição social ocupada por Lispector: “autoritária no primeiro caso, confusa e subordinada no segundo” (“Lispector, cronista”, p. 105). Além de lhe dar a “expressão pueril e límpida” de uma pessoa, ainda nos termos de Lispector, “brandamente desperta” (Descoberta, p. 62), a “doçura doida” de Aninha era, por assim dizer, contagiante: “Também eu sentia uma doçura em mim, que não sei explicar. Sei, sim. Era de tanto amor por Aninha” (Descoberta, p. 61); ou ainda: “A casa estava toda impregnada de uma doçura doida como só a desaparecida podia deixar” (Descoberta, p. 62). Mas essa não é a primeira vez em suas crônicas que a autora ressalta o componente “contagiante” da “doçura”: “A doçura contagia: também me aquieto”, escreve Lispector em “Corças negras” (5 de abril de 1969; publicada em A legião estrangeira como “África”) quando “cercada de pretas moças e esgalhadas” (Descoberta, p. 271), em sua breve passagem pela Libéria. Nessa crônica, Lispector descreve uma série de tentativas frustradas de comunicação com os moradores das “vilas de Tallah, Kebbe e Sasstown, dentro da Libéria” (Descoberta, p. 270), onde um sinal de adeus (“já que eles gostam tanto de dar adeus”) pode ser respondido com “gestos obscenos” 152


(Descoberta, p. 270), uma frase longuíssima em que “não reconheço um só r ou s, apenas variações na escala do l” (Descoberta, p. 271) é resumida pelo intérprete com um brevíssimo “She likes you”, e onde até mesmo o inglês mal assimilado pelos nativos soava como “um dialeto local” (Descoberta, p. 270). Pois, para contrastar com esses lapsos de linguagem e gestos, ou precisamente no momento em que a autora, “sem jeito”, tenta mostrar o uso de seu lenço de cabeça a um grupo indiferente de pretas moças, ela se contagia da “doçura”, cuja única manifestação concreta consistia, assim como no caso da empregada “doida e mansa”, em certa expressão no rosto: “Nos rostos opacos as listas pintadas me olham. A doçura contagia…” (Descoberta, p. 270). O estado de doçura é tão misterioso, quanto frequente nas crônicas e ficção de Lispector. Não se está aqui, obviamente, diante da “doçura” subalterna idealizada pela classe patronal (sinônimo de devoção absoluta, como é o caso do mito da mãe-preta), embora ela esteja geralmente associada na obra de Lispector aos que estão em posição de subalternidade (os animais, em “Estado de graça – trecho”; uma camponesa, em “Alegria mansa – trecho”; os bobos, em “Das vantagens de ser bobo”). A doçura, nesse caso, é o estado crucial (utópico?) para o contato, literalmente o tato, entre mulheres de condições socioculturais distintas, pois que prescinde do desejo da “compreensão” e da linguagem: “Uma delas então se adianta no seu pé leve, e como se cumprisse um ritual – eles se dão inteiramente à forma-pega nos meus cabelos, alisaos, experimenta-os, concentrada. Todas assistem. Não me mexo, para não assustá-las”. (Descoberta, p. 271). Na crônica “Das doçuras de Deus”, Lispector igualmente narra seu “ritual” de contato com uma doméstica: aqui fora preciso que a empregada “aparecesse” em sua mansa loucura, ou contagiante doçura e, não mais, através da perturbadora vontade de ler os livros da patroa. Contudo, para tal estado de “doçura”, ou de “tanto amor”, as reações de Lispector que seguem a partida de sua empregada Aninha são um tanto quanto “ásperas”: “ela não gostava de ‘água com açúcar’ e nem o era”, escreve a autora, dando-se finalmente conta de um sentido, ou efeito, menos irônico para tal expressãocliché. “O mundo não é. Fiquei sabendo de novo na noite em que asperamente fumei. Ah! Com que aspereza fumei. A cólera às vezes me tomava, ou então o espanto, ou a resignação” (Descoberta, p. 62). Segundo Castillo, tais reações resultam da experiência de autoconsciência, ou revelação, na qual a empregada Aninha “serve de espelho para Lispector, expondo a feiura de 153


seu preconceito social” (“Lispector, cronista”, p. 104). A meu ver, no entanto, em vez de uma atenção narcisística voltada a si mesma, onde o outro atua somente como “espelho”, tais reações “ásperas” revelam, ao contrário, um “conflitivo senso de obrigação maternal” (“Fatos”, p. 109), mais consistente com outras crônicas sociais da autora. De um modo geral, seus encontros com a realidade precária de sujeitos que circulam nos espaços imediatos de suas crônicas são narrados como experiências traumáticas de uma retomada de consciência das feridas sociais não resolvidas: “o mundo não é [‘água com açúcar’]. Fiquei de novo sabendo…”. (Descoberta, p. 62). Por outro lado, não importa quão traumática seja essa visão da precariedade, Lispector igualmente sente/expressa uma compulsão à “ação social”, que em alguns textos ela define como uma incumbência a “tomar conta do mundo”. Na crônica “Eu tomo conta do mundo” (4 de março de 1970), ela escreve: Antes de dormir, tomo conta do mundo em forma de sonho e vejo se o céu da noite está estrelado e azul-marinho, porque em certas noites em vez de negro o céu parece azul-marinho intenso. Tomo conta do menino que tem uns nove anos de idade e que está vestido de trapos e magérrimo. Terá tuberculose, se é que já não a tem […] Se tomar conta do mundo dá trabalho? Sim. Por exemplo: obriga-me a me lembrar do rosto terrivelmente inexpressivo da mulher que vi na rua. Com os olhos tomo conta dos favelados encosta acima. Hão de perguntar-me por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida. E sou responsável por tudo o que existe. (Descoberta, p. 421).

Se “tomar conta de” significa “encarregar-se de” ou “responsabilizarse por” algo ou alguém, essa expressão pode igualmente ser lida como “cuidar de” e “proteger” o outro cuja capacidade de agência é percebida como nula ou precária. Lispector sente-se então interpelada a responder maternalmente à visão do menino mal nutrido e tubérculo, ou à difícil lembrança de um rosto anônimo e “terrivelmente inexpressivo” de mulher. Em outras palavras, ela adota um modo de “pensar maternal” (nos termos de Sara Ruddick)23, quando fala desses sujeitos precários anônimos e “dos favelados encosta 23 RUDDICK, Sara. Maternal Thinking: Toward a Politics of Peace. 2 ed. Boston: Beacon Press, 1995.

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acima”, para justificar sua tarefa contínua e exaustiva de “tomar conta do mundo” e de sentir-se “responsável por tudo o que existe”. Deixo fora da discussão a impossibilidade de tamanha incumbência e, certamente, as implicações maternalistas de seu papel de “protetora dos pobres e animais”, para ressaltar o fato de que semelhante atitude nos remete à forma sui generis de engajamento social baseado em uma “ética do cuidado”.24 Por outro lado, como argumenta Marta Peixoto (2002), a compulsão maternal em Lispector a “tomar conta do mundo” “resulta ser não mais que uma observação cuidadosa das superfícies visíveis do mundo e, assim, ela constitui [um ato] completamente autocentrado, sem afetar, para o bem ou para o mal, os objetos do cuidado, incluindo os despossuídos” (“Fatos”, p. 109). Na crônica em questão, Lispector tenta dar à empregada Aninha um lugar melhor no mundo, onde mesmo sua “feiura” (“Esqueci de dizer que Aninha era muito feia”, p. 60), ou sua “falta de gosto” em se vestir, “era mais uma doçura sua” (Descoberta, p. 62). Porém, sua “ação” maternal limita-se a registrar as doçuras de Aninha, mesmo assim para um público que, ela bem o sabia, iria esquecê-la em pouco tempo: “quem a quereria, por Deus? A resposta é: por Deus (Descoberta, p. 62).

IV Atuando nas crônicas de Lispector como mediadora entre dois mundos socialmente opostos e, por outro lado, como signo de alteridade sócio racial no universo familiar da cronista, a doméstica age, portanto, sobre a auto constituição do sujeito ético de maneira ambivalente: ela é o pretexto para as incursões, traumáticas mas moralmente edificantes, da cronista pelas zonas 24 Apesar das controvérsias em torno de sua proposta de desassociar o “trabalho” da maternidade da figura da mãe biológica, além de uma visão um tanto quanto burguesa desse trabalho maternal, o livro de Sara Ruddick, Maternal Thinking (primeira edição, 1989) inaugurou um debate importante sobre as implicações éticas dos cuidados maternais. Segundo Peta Bowden, em Caring: Gender-Sensitive Ethics (Nova York, London: Routledge, 1997), “Ruddick tenta ‘identificar algumas das atitudes metafísicas específicas, capacidades cognitivas e conceitos de virtude (…) inspirados pelas demandas dos filhos [adotivos, biológicos ou de criação]’ (MT, p. 61), com o objetivo de valorizar os ideais de uma razão forjada pela responsabilidade e pelo amor, em detrimento da distância emocional, da objetividade e da impessoalidade. Seu argumento central é o de que as práticas que emanam das respostas maternais à ‘promessa de nascimento’ têm o potencial de gerar um corpo de prioridades, atitudes, virtudes e crenças que formam uma ética do cuidado e uma política pacifista” (tradução minha; Bowden, Caring, p. 24-5).

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urbanas periféricas, embora igualmente atue nessas crônicas como fonte de culpa e constrangimento. Como argumentei neste capítulo, Lispector reconhece seus conflitos e as tensões inerentes à relação patroa-empregada, mas não se dispõe a responder à demanda que a colocação desses conflitos produz. Daí, talvez, porque tais conflitos e tensões se manifestam como um estado de atenção (versus “ação social”). Por outro lado, não obstante suas oscilações entre “ver” e “não ver” (“Fatos”, p. 119) os conflitos gerados por essa relação afetivo-trabalhista de exploração social, a cronista propõe algo original na história da literatura brasileira. Em primeiro lugar, ela introduz o trauma e a culpa de classe, deflagrados pelo encontro com a pobreza. Como argumenta Jean Franco (2002), “embora aparentemente motivada pelo desejo modernista de representar e controlar [campos culturais de alto risco], os encontros de Lispector com a classe baixa é invariavelmente devastador” (Franco, “Seduction of margins”, p. 204). Além disso, dos desencontros sociais no seu universo familiar doméstico, Lispector extrai um aspecto – o olhar imaginário da doméstica sobre a patroa, ou o seu “ressentimento censurado, – que por motivos óbvios desafia a apropriação mitificada da doméstica como símbolo de confraternização inter-racial (a mãe preta, a mulata sedutora). Tais reflexões se desdobram em sua narrativa dos anos 70 em uma série de questionamentos do poder do intelectual, e da literatura, de intervenção no estado de coisas no mundo. Por certo, suas indagações de algum modo se integram à “cultura da derrota” (FRANCO, 2003), característica da literatura brasileira pós-utópica, ou pós-revolucionária desses anos; nos termos de Renato Franco, uma literatura forçada a “narrar os impasses do escritor que não sabia decidir se era mais necessário escrever ou fazer política, constituindo assim um tipo de romance desiludido tanto com as possibilidades de transformação revolucionária da sociedade como com sua própria condição” (“Literatura e catástrofe”, p. 358). A seu próprio modo, Lispector chegaria nesses anos a semelhantes impasses. Por exemplo, em A hora da estrela (1977), o narrador se dispõe “a contar as fracas aventuras” (p.15) da nordestina “retirante” Macabéa, embora não espere superar, por meio da mediação literária, a distância social entre si e sua personagem: “[e] ste livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta” (p.17). Os vários testemunhos de empregadas domésticas, que emergem a partir dos anos 80 no Brasil, são um sinal de que, por um motivo ou outro, o “silêncio” ou a “pergunta” não atendiam às novas pressões políticas impostas 156


pela emergência dos movimentos sociais populares. O “silêncio” não servia tampouco como resposta para as autoras domésticas emergentes que viam suas práticas culturais como um exercício inédito de cidadania. Portanto, não obstante o enfretamento das contradições entre sua posicionalidade como patroa e sua oposição à cultura da servidão doméstica, Lispector de modo geral se aproxima a outros escritores canônicos brasileiros. Suas crônicas sobre domésticas parecem estar mais a serviço da construção de sua imagem pública do que da luta interpretativa para revisar os estereótipos que produziram/produzem estigma e injustiça contra as trabalhadoras domésticas na sociedade brasileira moderna.

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CUIDADO E PODER: AS RELAÇÕES DO TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO ATRAVÉS DA CULTURA DOMÉSTICA Thays Almeida Monticelli25 As diversas formas de cuidado estabelecidas e requeridas dentro da esfera privada têm se mostrado como uma complexa fonte de análise, pois mesclam aspectos relacionados às vulnerabilidades humanas, dependências, emoções, afetos, violências e reproduções de desigualdades. Historicamente vinculado ao trabalho realizado por mulheres, o trabalho doméstico tem se construído tanto como um desafio para os estudos feministas em suas contradições analíticas e de militância, como para os sujeitos que precisam encarar cotidianamente uma exaustiva rotina de trabalho, impactando as significações, representações e interações familiares. Em pesquisa realizada durante o ano de 2015 em Curitiba-PR26, foi observado um quadro de poucas mudanças no que tange às questões relacionadas à divisão sexual do trabalho. A pesquisa tinha por objetivo compreender quais eram os desafios elencados pelas empregadoras de trabalhadoras domésticas remuneradas – patroas – em relação às contratações legais trabalhistas. No entanto, nas entrevistas com essas mulheres foi percebido que majoritariamente elas eram as responsáveis pelas demandas de cuidados e tarefas da casa, sentindo assim não somente o peso da dupla jornada de trabalho, mas todas as frustrações, violências e “aprisionamentos” que a casa lhes trazia por meio de uma rotina considerada cíclica, exaustiva e “pesada”. A maneira que tradicionalmente essas mulheres, pertencentes à classe média e classe média alta, têm encontrado para mudar a dinâmica de suas vidas familiares e de trabalho é por meio da 25 Doutora pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Tem trabalhado especificamente com as questões que envolvem o trabalho doméstico remunerado, atuando em temas como gênero, trabalho, família, divisão sexual do trabalho, emoções e direito. Atualmente, é integrante da pesquisa DomEQUAL, financiada pela Università Ca’Foscari, Venezia. tamonticelli@gmail.com 26 Essa pesquisa fez parte do meu projeto de doutorado e foi totalmente financiada por bolsa de estudos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

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contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada. Mas estabelecer uma relação harmoniosa e minimamente igualitária com essa outra mulher que adentra a casa e acessa os mecanismos do cuidado é uma realidade rara; o relacionamento entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas segue por lógicas que pautam negociações, subjetivações e práticas que não superam as diversas desigualdades e inferioridades estabelecidas. De tal modo, o objetivo desse capítulo é analisar como as tarefas e os cuidados demandados cotidianamente pela casa e pela família são compreendidos pelas mulheres que contratam uma trabalhadora doméstica remunerada e, consequentemente, como se relacionam e comunicam com esta, como agenciam seus desejos e expectativas enquanto patroas, principalmente nos cuidados e aspectos relacionados à higiene e limpeza das casas. Parto da ideia conceitual de “cultura doméstica”, que estabelece práticas cotidianas dos lares, pressupostos de intimidade e cuidados e até mesmo a própria compreensão de direitos trabalhistas. A “cultura doméstica” é intrinsicamente formada nas relações de poder familiares, na divisão sexual do trabalho e constitui subjetividades e posicionalidades da patroa e da trabalhadora, construídas nas interações da vida cotidiana e carregando em si as falsas dicotomias instituídas entre público e privado. Dessa forma, lançamos luz sobre as relações de poder que se vinculam aos cuidados estabelecidos na casa, na intimidade e nas relações familiares, para assim descortinar os elementos que embaraçam as discussões sobre o tema e apontar os mecanismos que insistem nas desigualdades como fundantes dessas relações trabalhistas.

A “infelicidade” como produto das tarefas domésticas Mas eu, para eu ser feliz, eu preciso trabalhar, trabalhar [...]. Eu hoje, o que eu ganho é o que eu pago quase à empregada. Mas eu não me importo. Eu prefiro estar lá fazendo o que eu faço e ela fazendo o que ela faz (risadas). Nem que empate o meu salário com o dela. Porque eu fazer o que ela faz não me traz felicidade, me traz depressão. Eu fico doente, não posso.

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Esse relato é de uma farmacêutica, pertencente à classe média curitibana, branca, 38 anos, casada há mais de 10 anos, dois filhos pequenos e que contratava uma trabalhadora doméstica remunerada para ser sua “retaguarda” na organização de sua vida cotidiana com seu marido, com filhos e com ela mesma, como me disse na entrevista realizada em 2015 na capital paranaense. A rotina doméstica era percebida de uma forma muito similar por todas as patroas escutadas na pesquisa; elas se sentiam aprisionadas ao realizar o trabalho doméstico, que as desgastava e lhes retirava o tempo para realizar algo realmente “produtivo”, da convivência agradável com filhos e filhas, de seus momentos enquanto esposas. O tempo “produtivo” que as patroas dessa pesquisa tanto almejavam estava vinculado ao mercado de trabalho formal, era desfrutar o tempo de lazer com a família, dar mais atenção às demandas dos filhos e filhas, ter mais tempo para suas próprias demandas enquanto mulheres. O trabalho doméstico está vinculado com uma ideia de humilhação, infelicidade, improdutividade, desvalorização; além disso, é um trabalho que as deixava “feias”, “mal arrumadas”, “cansadas”, “desgastadas e estressadas” – de acordo com suas narrativas. Nesse sentido, não era necessariamente a “casa” que trazia o sentimento de aprisionamento e infelicidade descrito pelas patroas, mas as tarefas domésticas. Eu não escutei na pesquisa que o matrimônio ou as suas relações enquanto mães as deixavam sobrecarregadas, mas varrer e passar pano no chão, lavar e passar, cozinhar todos os dias, arrumar, tirar pó, lavar banheiro, lavar louça, organizar, não eram trabalhos que lhes traziam sentido de realização, produtividade e superação. O trabalho doméstico não é percebido, por elas, como algo a que se deva dispensar tempo, atenção, cuidado para si mesmas; muito pelo contrário, o trabalho doméstico é percebido como algo que elas fazem para os “outros”, que nunca tem fim e acima de tudo não é reconhecido. Além disso, casa bem organizada e limpa, comida na mesa e filhos bem educados eram considerados, por elas, o seu dever enquanto mulher. As obrigações e desigualdades impostas pela divisão sexual do trabalho eram pontos fortes nessas narrativas, principalmente quando o marido era o principal provedor financeiro da casa. A inserção dos filhos e filhas na dinâmica da organização residencial se mostrava, timidamente, como algo que essas mulheres começavam a incluir em suas vidas. Pelo fato de poderem 163


contratar uma trabalhadora doméstica remunerada, essa “ajuda” é realizada em casos excepcionais, não sendo uma obrigação de fato, e não contam com os “ensinamentos” delas de como a limpeza e a organização devem ser. “Eu acho que eles aprenderam só vendo, porque eu nunca chamei para ensinar” – Como me disse uma das patroas entrevistadas. No entanto, elas sempre me diziam como essa dinâmica era uma de suas exigências enquanto mães, expondo que já não podiam mais deixar tudo para a “empregada” fazer. Essa é, sem dúvida, uma das mudanças que começou a aparecer dentro dos lares; se antes os filhos eram totalmente excluídos das atividades domésticas e as filhas destinadas a aprender, minimamente, algumas coisas para se tornarem boas donas-de-casa no futuro, hoje há sim uma compreensão de que os filhos e filhas precisam se responsabilizar, ao menos, pelas suas próprias demandas – o quarto, por exemplo. Mas, o que se mostrou como ponto realmente complexo era a relação com o marido sobre as responsabilidades das tarefas domésticas. A maior parte das entrevistadas não contava com absolutamente “ajuda” alguma advinda de seus maridos no trabalho doméstico; quando muito, eles faziam mercado ou cortavam a grama nos finais de semana. Esta é uma realidade compartilhada na maioria das residências brasileiras, já que pelas pesquisas recentemente (2016) realizadas pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 90% das mulheres em idade adulta realizam o trabalho doméstico, dispensando a estas atividades, em média, 25,3 horas semanais, enquanto 51% dos homens em idade adulta responderam fazer as tarefas domésticas, dispensando em média 10,9 horas semanais nestas. (PINHEIROS; JÚNIOR et al., 2016). Inclusive, esse era um ponto de ruído nas relações matrimoniais; as patroas entrevistadas incluíam, na lista de benefícios na contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada, não terem mais que brigar ou discutir com seus maridos sobre as demandas da casa. A relação conjugal se mostrou desigual em todas as casas em que pude fazer a pesquisa, seja nas configurações da divisão sexual do trabalho, seja nas desigualdades salariais, pois o rendimento dos maridos representava 70% do orçamento doméstico. E muitas vezes, para essas mulheres, realizar as tarefas domésticas era mais um ponto para se sentirem humilhadas, diminuídas, cansadas perante seu cônjuge. A contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada foi até mesmo descrita como um processo de não se sentirem mais subalternas nas configurações domésticas, 164


pois já se sentiam demasiadamente cansadas por ter dupla jornada de trabalho, por estar sempre dispostas para seus maridos e ainda ter de realizar um trabalho “duro”, “chato”, “que nunca acaba”, sem reconhecimento algum. A trabalhadora doméstica remunerada também passa a ser um escopo das próprias ânsias das patroas enquanto esposas. Ainda soma-se a essa percepção que os homens não têm a mesma relação com o trabalho doméstico que as mulheres. De acordo com as empregadoras, a relação dos homens com as demandas domésticas é diferente, não somente na maneira de se responsabilizarem por elas, como na maneira de concretizá-las, “não fazendo direito”, “são desajeitados”, “deixam tudo engordurado, desorganizado”, “não limpam direito”, “o que está limpo para um homem, não está limpo para uma mulher”. A contratação de uma trabalhadora doméstica é a possibilidade de essas mulheres livraremse desses sentimentos de infelicidade, aprisionamento, desvalorização, canseira, que as inferioriza, as deixa feias e mal arrumadas e ainda cessa com as brigas com os maridos, de acordo com suas narrativas e percepções. Quando perguntado na entrevista se elas poderiam pensar suas vidas cotidianas domésticas sem uma trabalhadora doméstica remunerada, a resposta foi majoritariamente “não”. Todas essas posições, características e descrições sobre a maneira como as patroas enxergam as tarefas domésticas já foram detalhadamente analisadas pelas perspectivas da divisão sexual do trabalho, análises de classe pautadas pelos pressupostos marxistas, perspectivas estruturalistas e decoloniais. As mulheres dessa pesquisa não contam com políticas públicas advindas do Estado e tampouco contam com o compartilhamento das responsabilidades com seus cônjuges. A ausência do Estado e dos homens na vida cotidiana doméstica distancia cada vez mais o cuidado de ser pensado em um exercício político democrático, expondo características conservadoras praticadas nos lares, o que traz como consequência uma desigualdade fundada nos aspectos de dependência, interdependência e vulnerabilidade. (GARRAU; LE GOFF, 2010). Por isso mesmo, se torna um desafio analisar esse quadro, seja porque já foi demasiadamente pesquisado nas análises sobre as configurações domésticas familiares, seja porque é difícil encontrar novas posições, compreensões pautadas por uma ideologia diferente entre a classe empregadora.

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Dessa forma, proponho então fazer uma análise sobre o “conservadorismo” em relação ao trabalho doméstico e ao trabalho doméstico remunerado, já que este se mostra como um elemento fundamental nas insistências das desigualdades reproduzidas dentro dos lares e na própria discussão política do cuidado. O primeiro ponto a ser pensado sobre as práticas e lógicas que ainda preservam características conservadoras é a posição em que essas mulheres se veem na composição familiar e doméstica. Elas se colocam como as principais responsáveis pelo mantimento dos cuidados da casa, pela sua organização, limpeza impecável e pela alimentação de todos os membros da família. As relações de poder conectadas com o rendimento salarial se mostram um forte elemento de negociação entre essas mulheres e seus maridos, já que são os cônjuges varões que ganham mais e contribuem mais com as demandas financeiras domésticas; as mulheres, quando não os isentam de quaisquer tarefas na casa, encontram dificuldades para tentar compartilhar, de uma forma minimamente igualitária, as responsabilidades do trabalho doméstico. Isso porque não possuem salários iguais, já que a grande maioria das entrevistadas estavam inseridas no mercado formal de trabalho. Das 15 patroas dessa pesquisa, apenas uma tinha o rendimento mensal parecido com o do marido; nas outras casas, os homens chegavam a receber até 15 vezes mais que suas esposas. Viviana Zelizier (2009) afirma que os acordos econômicos para o fornecimento de cuidados não devem ser pensados somente pelo custo, conveniência e eficiência, pois essas relações também implicam negociações das formas como são estabelecidas suas representações, obrigações e os direitos neles envolvidos, que, por sua vez, são inseparáveis dos laços de significados interpessoais. São esses tipos de negociações que nos apontam as frágeis e imaginárias fronteiras entre o mundo público e o privado, porque o tradicional pensamento de a casa ser o lugar do amor, do cuidado, dos afetos mais sinceros também “esconde” que nesse espaço há transações monetárias, direitos instituídos pela legislação, obrigações e responsabilidades que são negociados o tempo todo nas práticas cotidianas domésticas, nos tribunais de causas familiares etc., levando em consideração as representações do cuidado. O que foi uma constante na pesquisa é a subvalorização dos salários, do rendimento monetário, do poder de comprar, contratar e manter a vida doméstica em parâmetros confortáveis para setores da classe média. Se, para muitos, a divisão estabelecida nas casas pesquisadas parece justa – homens 166


garantem o sustento financeiro e as mulheres, o conforto do cuidado, – ou parece uma óbvia separação de tarefas (inclusive para próprias entrevistadas), elas nos mostram que as desigualdades entre os sexos e no matrimônio ainda são uma realidade nos lares. As mulheres dessa pesquisa ganhavam menos no mercado formal de trabalho, mas isso não significava que elas trabalhavam menos; à semelhança de seus maridos, elas tinham uma rotina de mais de 44 horas de trabalho semanais, mas não era necessariamente essa questão que entrava nas negociações sobre as tarefas domésticas, sendo na verdade pautadas por lógicas mercantis sobrepostas em uma violenta desigualdade de gênero. Como já analisado por bell hooks (1990), o “lar” para muitas pessoas, sobretudo mulheres, pode ser o espaço marcado por violências, desigualdades e fragmentação dos sujeitos, principalmente quando pensado em termos de classe e étnico-raciais. Dessa mesma forma, Costa (2002) observa que o “lar” não pode ser pensado como um lugar, mas como múltiplas localizações que produzem dispersão e fragmentação. O lar pode ser pensado como uma espécie de ficção necessária que criamos para construir o senso de pertencimento e para localizar as identidades. Justamente nesse sentido, acredito que a “cultura doméstica” oferece as posicionalidades para cada membro da família, colocando as mulheres como esposas, mães e as detentoras do “verdadeiro” afeto e cuidados, preservando uma esfera conservadora sobre constituição familiar e do “lar”. O que se mostra surpreendente, nessa pesquisa, é o fato de que muitas das patroas nem sequer pensavam em outras lógicas para suas vidas domésticas, considerando-se que a pauta dos diversos movimentos feministas sobre a divisão sexual do trabalho tivesse sido super explorada no Brasil desde a década de 70. Durante as entrevistas, o rol de reclamações frente às demandas domésticas era enorme, mas elas não se colocavam em outra posição – eram as mulheres da casa que precisavam organizá-la, limpá-la e cuidá-la, ou eram elas as responsáveis por “mandar” e “vigiar” se a trabalhadora doméstica remunerada estava realizando todo o trabalho da maneira mais correta possível. Arlie Hochschild (2008) nos aponta que as “novas” configurações familiares e, principalmente, as novas possibilidades das identidades e posições das mulheres na família como, por exemplo, esposas que não são mães, mães que não são esposas, madrastas, segundo casamento, matrimônios homoafetivos, duas mulheres que são mães, não podem ser confundidas com 167


as novas configurações do cuidado. O incentivo do movimento feminista em inserir as mulheres, pertencentes à classe média, no mercado formal de trabalho, gerou uma mercantilização dos cuidados e da vida íntima, fazendo com que as noções e pressupostos do mundo público e do privado ficassem cada vez mais fundidas27. Assim, os mecanismos capitalistas acabam por reforçar mais as imagens da família, da casa e do “lar”, relacionando-as à figura materna, como uma forma de criar um imaginário de que esse espaço não é tão precário e violento como o “mundo exterior”. A simbolização hiperbólica da mãe é em parte uma resposta à desestabilização sobre as bases culturais e também econômicas sobre a família. Em virtude de seu extremo dinamismo, o sistema capitalista desestabiliza tanto a economia quanto a estrutura familiar. Quanto mais precário se manifesta o mundo exterior à família, mais nos parece que precisamos crer em uma família inquebrável e, em sua omissão, em uma figura inquebrável da esposa-mãe. (HOCHSCHILD, 2008, p.63). (Tradução livre)

Considerando então que a casa não é apenas um espaço geográfico, mas um símbolo metafísico ressonante sobre “amor”, “carinho”, “cuidado” e “afeto”, as posições dos sujeitos nele inseridas serão representadas por esse ideal – e o “familiar” torna-se uma extensão simbólica e uma confirmação de si mesmo. (FELSKI, 2000). Mas, apesar de as patroas dessa pesquisa se situarem nessas posições de mães, esposas detentoras dos mais “puros” sentimentos em relação a sua família, elas constantemente relatavam a infelicidade, o aprisionamento e as humilhações que a casa lhes propiciava. Não seriam estas então posições ambíguas ou contraditórias? Mais que uma forma de demonstrar que essa percepção ideal da “casa” é uma imaginação construída pelas necessidades sociais, políticas e culturais, é apontado por essas narrativas que o tão sonhado e aconchegante “lar” lhes causam tédio, canseiras, sentimento de improdutividade e desvalorização de seu tempo 27 Se transações como a contratação de trabalhadoras domésticas remuneradas, cuidadoras, babás tornaram-se mais complexas pelas imposições legislativas, abrindo reflexões para questões de ordem moral, de valores e as posicionalidades que se derivam dessas relações, é igualmente importante lembrarmos que o mercado de trabalho também passa a se estruturar com limites às posições familiares como, por exemplo, incentivar a contratação de pessoas sem filhos e solteiras. (HOCHSCHILD, 2008).

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e trabalho. Essas percepções e afetos em relação à casa estão diretamente ligadas à compreensão moderna sobre a vida cotidiana. De acordo com Felski (2000), a vida cotidiana moderna foi socialmente construída de uma maneira intrinsicamente vinculada com a ideia de hábito que, por sua vez, se tornou o inimigo de uma vida “verdadeiramente” autêntica. A liberdade foi tradicionalmente conectada com movimentos através de espaços públicos, enquanto o espaço residencial, com uma vida sem novidades, marcada por uma ideia cíclica e não linear do tempo. A repetição se tornou algo aprisionador. A casa, que sempre demandou trabalhos cíclicos, que precisam ser realizados todos os dias, se tornou aprisionadora. Os discursos dos movimentos feministas, principalmente nos anos 70, investiram na imagem da casa como o lugar que aprisiona a mulher. Nesse sentido, como as mulheres sempre foram interligadas à esfera doméstica, são elas que vão sentir e se afetar com as pressões advindas do cotidiano. O que Felski (2000) vem nos dizer é que a construção do hábito e da vida cotidiana é um elemento essencial da vida moderna, que tanto homens como mulheres experimentam, mas de formas diferentes. De acordo com a autora, o cotidiano não está somente no domínio dos outros, como em “si mesmo”, não somente no domínio da transgressão, mas também no domínio da familiaridade, do tédio e do hábito. Reconhecer que todos nós habitamos o cotidiano não é negar as diferenças sociais, mas simplesmente conhecer a base comum do mundano. Partindo dessa premissa, Felski (2000) pensa em uma teoria feminista que reflita sobre o cotidiano, tentando não separar o “sujeito moderno” do lar e que, simultaneamente, pudesse compreender a dimensão moderna das experiências cotidianas domésticas, considerando que esse espaço possa ser também um lugar central para as experiências das mulheres. (FELSKI, 2000). É claro que não podemos deixar de lembrar do esforço das feministas, durante os anos 70, de evidenciar as análises ligadas às desigualdades entre os sexos nas predominantes percepções de classe e, posteriormente, redefinindo o próprio conceito de trabalho para a Sociologia, em um movimento de abarcar num outro status analítico e prático as vivências e experiências da esfera doméstica. (HIRATA, 2002). Mas, pensar a vida cotidiana sem pensar que as mulheres são parte constituinte de uma representação sobre o diário, o cíclico e a repetição, é colocar uma venda nas formas como os sujeitos na vida moderna se posicionam. Como indica Felski (2000), o problema ainda se 169


complexifica, porque existe uma visão romântica da ligação entre mulheres e a vida cotidiana, associando-as com o natural, autêntico, originário. Eu explorei alguns dos caminhos que a vida cotidiana tem sido conectada com a mulher, sem simplesmente endossar que as mulheres representam a vida diária. O problema com essa visão, como Lefebvre particularmente esclarece, é que esta apresenta uma visão romântica da vida cotidiana e das mulheres associando-as com o natural, autêntico e primitivo. Essa nostalgia alimenta uma longa cadeia de dicotomias – sociedade versus comunidade, modernidade versus tradição, público versus privado – que não nos ajudam a entender a organização social do gênero e que negam a contemporaneidade das mulheres. Além disso, situar as mulheres nas bases da vida cotidiana é assumir um ideal mítico heroico da transcendência masculina e ignorar o fato de que os homens também são encarnados, sujeitos incorporados que vivem, na maior parte das vezes, de uma forma repetitiva, familiar e ordinária. (FELSKI, 2000, p. 94) (Tradução livre).

Nesse sentido, penso que uma das chaves para romper com a ideia de que a casa seja um lugar aprisionador para as mulheres é compreender como primordial que a esfera doméstica não se opõe à esfera pública, sendo essas intrinsecamente incorporadas uma à outra. Esta é uma ideia que parece óbvia, mas que ainda sustenta dicotomias e posicionam sujeitos em espaços desiguais, fomentando subjetividades frustradas em relação à compreensão do mundo moderno. A concepção de que a esfera pública e privada são loci diferentes e que não se complementam está historicamente reproduzida na sociedade brasileira e reconfigurada na contemporaneidade, separando essas duas esferas embasadas nas noções de tempo – o cotidiano/aventura, aprisionamento/ liberdade – mostrando que as separações entre as duas tão somente mascara a complexidade das relações familiares e, consequentemente, das contratações de terceiros que adentram o ambiente familiar. Totalmente inspirada pela ideia de Felski (2000), ainda julgo que as reflexões feministas podem alcançar um estranhamento, ou desconstruções, em relação à maneira como a vida cotidiana é simbolicamente representada através dos pressupostos de 170


gênero. O entendimento de que a vida doméstica cotidiana pode ser repleta de possibilidades e posicionalidades requer a compreensão de que o lar pode ser o espaço das experiências na modernidade. Isso resulta em pensar em formas de tentar romper com as reproduções das desigualdades, que se apresentam nesse contexto, preservando ainda as falsas dicotomias entre público/privado e sendo o lugar da infelicidade entediante das patroas.

A “cultura doméstica” e as relações trabalhistas entre patroas e trabalhadoras: os cuidados, intimidades e vigilância

Ao compreender então que as desigualdades geradas entre os sexos, nas relações familiares, ainda são suficientemente fortes, trazendo à margem as negociações que envolvem dinheiro e afetos, posicionando os sujeitos em determinados e tradicionais papéis, lugares e espaços “aprisionados” pela vida cotidiana, reproduzindo desigualdades de gênero e sustentando desigualdades étnico-raciais e de classe – por meio da contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada –, podemos traçar alguns pontos dos desafios encontrados, para estabelecer uma visão democrática sobre o cuidado, além de trazer à tona uma percepção sobre a “cultura doméstica”. O “doméstico”, do qual as mulheres assumem posições e constroem suas subjetividades enquanto esposas, mães e donas-de-casa, é também o lugar onde elas precisam nutrir o seu papel de “gerenciadora do lar” – isso inclui saber “mandar” na trabalhadora doméstica remunerada. O “gerenciamento do lar” é pautado por noções e compreensões de limpeza, culinária e organização bem específica, que são, ao mesmo tempo, compartilhadas socialmente e instituídas por idealizações biomédicas de higiene e que também passam pelas percepções individuais, de cada patroa, de como deve ser e estar a sua casa e sua intimidade. Essa “cultura doméstica” molda o que é exigido de uma trabalhadora doméstica remunerada. A “cultura doméstica” é, pois, explicitada nas representações, nos símbolos e posicionalidades que constroem as noções do que seja uma casa bem limpa e organizada, uma comida bem feita, uma mesa bem servida, um banheiro impecavelmente limpo e desinfetado, uma roupa perfeitamente lavada e passada, quintal sem sujeiras, móveis e cantinhos sem absolutamente qualquer vestígio de pó, quartos discretamente cheirosos e organizados, além das posições dos sujeitos em espaços determinados e hierarquizados da casa e das exigências de comportamentos, práticas e posturas morais e controle dos corpos. 171


Nesse sentido, compreendo que as exigências sobre os parâmetros do que seja uma boa limpeza, uma boa organização, comida bem preparada e por fim uma “boa” trabalhadora doméstica remunerada são mecanismos de acesso ao poder, e que essas exigências – muitas vezes chamadas de “cricris” – são parte de uma construção subjetiva das patroas em relação ao seu exercício de poder e à administração de suas necessidades. É importante dizer que, além de construir comportamentos, práticas e noções sobre a organização, limpeza e culinária de uma casa, a “cultura doméstica” forma subjetividades ligadas ao “familiar”, que simbolicamente passam a representar o mais íntimo dos sujeitos. (FELSKI, 2000). Isso significa dizer que, dicotomicamente, a esfera privada preserva os afetos, as intimidades, “os segredos”, o domiciliar essencializado, construindo subjetividades e compreensões de “si mesmo” embasadas por esse contexto. As patroas dessa pesquisa compartilhavam de uma ideia sobre as suas posições enquanto esposas, mães, donas-de-casa e profissionais, que se demonstravam com poucas variações em relação aos modelos já tradicionalmente estabelecidos sobre o casamento, a maternidade e os “papéis de mulher”. Elas se colocam como as principais responsáveis pela manutenção do lar, pela organização da vida de cada membro da família e como detentoras dos cuidados, atenções e do amor por todos eles. No entanto, sentem-se aprisionadas por esse espaço, por essas posições e pelas tarefas domésticas. Costa (2002) nos remete à ideia dos interstícios, ou os espaços chamados in-between, onde as subjetividades são construídas por essas ambiguidades posicionais. As experiências múltiplas e conflitantes do sujeito patroa simbolizam um processo reflexivo entre as representações essencializadas da casa e do lar conectadas com os cuidados e os amores femininos, ao mesmo tempo em que escolhem uma vida “moderna” em termos estéticos, profissionais vinculados aos pressupostos dicotômicos da esfera pública. Nesse complexo jogo reflexivo, ao sentirem as pressões advindas das imposições e necessidades da manutenção da casa, as patroas não introduzem novas formas de pensar a relação doméstica e de compartilhar as responsabilidades com a sua família; elas repassam todas as desigualdades geradas pela divisão sexual do trabalho para a trabalhadora doméstica remunerada, como já extensamente analisado por Ávila (2009). Mas, ao repassarem essas responsabilidades, elas enumeram diversas ordens, estabelecem normas, organizam e querem que a trabalhadora contratada faça 172


tudo impecavelmente, da maneira como elas subjetivamente já pensaram como deve estar suas casas. Assim, ao repassarem as responsabilidades domésticas para outra pessoa, essas mulheres passam a se verem e a se posicionarem em relação ao seu exercício de poder, instrumentalizando as subjetividades construídas nos pressupostos de intimidade e de familiaridade. Suely Kofes (2001) nos mostra que os mecanismos de diferenciações, que ocorrem constantemente nas iterações entre as patroas e trabalhadoras, são formas de esclarecer as posições, não tornando-as “borradas” ou híbridas, já que a trabalhadora assume as posições que seriam destinadas às patroas naquela casa. Para além disso, julgo que os pressupostos da “cultura doméstica” estabelecem as interações entre as patroas e as trabalhadoras domésticas remuneradas, embasando não somente a organização e a limpeza da casa, a maneira de agir e falar uma com a outra, constituindo parâmetros meritocráticos, moldando as exigências e ordens, mas também construindo interações que vinculam os cuidados ao poder e à própria construção de si mesmas frente às “contradições” narradas: mantêm seus papéis enquanto mulheres, mas se sentem aprisionadas neles. A maior parte das entrevistadas se percebiam como mulheres modernas, que tinham um trabalho no mercado formal de trabalho, responsabilidades domésticas, a educação dos filhos, mantinham uma programação de viagens e férias com toda a família e tentavam se manter “informadas sobre o que acontecia no mundo”. Essas mulheres se opunham à ideia de ter uma vida sem movimento, sem liberdade e que o seu tempo fosse de fato produtivo – a compreensão do sujeito moderno em relação ao tempo e à vida cotidiana, como já foi analisado por Rita Felski (2000). Nesse sentido, nada mais “antigo”, “antiquado”, “escravocrata” do que tratar mal uma trabalhadora doméstica remunerada, com pressupostos racistas e discriminatórios. As patroas também “dão” liberdade para as suas trabalhadoras – “tratar bem a empregada, só isso, é o mínimo esperado” – como me disse uma empregadora. No entanto, no discurso das patroas ainda ressoam pressupostos servis, práticas discriminatórias, relações baseadas em negociações da vida cotidiana e não dos preceitos legislativos, nas representações e símbolos da casa organizada e limpa. Esses discursos, muitas vezes, apareceram declaradamente abertos, em algumas das entrevistas e, em outras, de uma 173


forma camuflada. Assim, penso que a resistência em assimilar novas práticas sobre o trabalho doméstico remunerado seja uma das formas de apresentação da “cultura doméstica”, que tenta preservar posições hierárquicas dentro das relações de poder e cuidado, mesmo inseridas em contexto “moderno”. A maior parte das patroas entrevistadas eram mães, e me relataram que a contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada se tornou primordial em suas vidas a partir desse preciso momento. De acordo com elas, a vida com apenas adultos compartilhando o mesmo lar é mais dinâmica, não precisando ter horários fixos para as refeições, nem estas serem necessariamente saudáveis, com variedades – “adulto se vira com um sanduíche, com uma pizza, sai para comer”, como uma patroa me exemplificou. O cuidado com os filhos também envolve o tempo gasto ao dar banho, lavar mais roupa, “deixar pronto para ir para a escola”, além da bagunça adicional da casa com brinquedos e material escolar. De acordo com Dominique Vidal (2007), a classe média brasileira muitas vezes justifica a contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada, porque não pode contar com uma boa infraestrutura estatal em relação a creches, escolas, saúde pública, espaços públicos com segurança etc., como nos países europeus ou como nos Estados Unidos. Mas, como lembra o autor, justamente essa classe, que não acessa esses serviços públicos, é a classe que se alia ao pensamento político de privatizações como saída para encontrar uma boa qualidade nos mesmos, distinguindo-se como a classe que gera o desenvolvimento do país e que se enxerga como parte de uma elite, não ocupando os mesmos espaços que o restante da população. Para Vidal (2007), esses seriam discursos contraditórios que camuflam as justificativas para as desigualdades de classe. De fato, o Brasil não oferece uma gama de serviços estatais de qualidade para toda a população, dificultando enormemente diversos setores econômicos e principalmente a entrada de mulheres das classes mais populares no mercado formal de trabalho, ampliando assim uma rede de cuidados parental feminina – avós que cuidam de netos, tias e madrinhas que se responsabilizam pelas demandas de sobrinhos e afilhados, vizinhas que agrupam várias crianças para levar a escola. (FONSECA, 1998). Todavia, me aproximo da interpretação de Dominique Vidal (2007) de que a contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada é uma forma de se perceber como uma classe social distinta, pois a não realização do trabalho doméstico 174


ou não se ocupar das tarefas mais pesadas no cuidado das crianças são formas de se diferenciar enquanto classe média – demostrando um aspecto da “cultura doméstica”. Mas, não podemos deixar de notar que essas mulheres se posicionam como as principais responsáveis pelas demandas da casa, e a chegada de filhos realmente traz uma sobrecarga de trabalho que as limitam em seu cotidiano. A “ajuda” contratada então é um escape da desigualdade gerada pela divisão sexual do trabalho e também uma forma de se posicionar, enquanto mulher de classe média, frente às novas exigências que a casa produz na rotina familiar. Por outro lado, importa salientar que, se a chegada dos filhos e das filhas traz demandas novas e mais pesadas para a rotina do trabalho doméstico, estes passam a ser igualmente mais um alvo de vigilâncias e exigências em relação à limpeza, organização e o preparo de alimentos. E é justamente nessa parte que aparecem as narrativas sobre a “falta de profissionalismo”, as falhas, as constantes reclamações, os motivos de desgaste, do fato de ter que se impor enquanto patroas, de frustrações de expectativas, de motivos para demissões e de negociações (inclusive de direitos trabalhistas). A limpeza é o ponto crucial para saber se uma trabalhadora doméstica remunerada é realmente “boa” ou não; é necessário enxergar a limpeza, sentir o cheiro de limpo, estar tudo no lugar, guardado, passado, feito no capricho, deixando os detalhes impecáveis, fazendo tudo da forma mais higiênica possível. As excessivas ordens de limpeza e os padrões estabelecidos para saber se uma casa está realmente limpa ou não – limpa-se o invisível, como já nos apontou Brites (2000) – são as características que mais se conectam com os pressupostos construídos pela “cultura doméstica”. Pesquisadora: quais são as principais falhas que você considera em uma trabalhadora doméstica? Que você vê e pensa: ah, não vai mais poder ficar aqui em casa. Patroa: Ai, falta de higiene, né. Porque ter, já vi várias vezes, é, lavar pano de chão com pano de cozinha. Essas coisas, é, sabe? Logo no começo eu falava muito pra, porque quando a babá veio, a babá era filha da empregada. Aí eu precisava de uma pessoa para cuidar do meu filho que eu estava voltando a trabalhar, e ela falou: eu tenho a minha filha. Então enfim veio a filha, e eu sempre falava para ela: “olha, o que é de banheiro é banheiro, o que é de cozinha é de cozinha; você nunca pode

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misturar uma coisa com a outra. Pano de cozinha é pano de cozinha, esponja que lava cozinha não pode ir no banheiro”. Então, eu sempre falava as coisas assim, sabe? Meio que marcava, olha: escova de banheiro, escova de cozinha, para não misturar. Então isso também é uma coisa importante. Sabe, ela é bem, ela é limpinha também, porque funcionário fedido também não dá, né. E gente que mistura, deixa pano de louça, pano de chão, lava calcinha com pano de prato? Também não dá. Aqui na minha casa é tudo separado, então ela lava tudo que é de cozinha, pano de mão, pano de louça, lavo, toalha de mesa essas coisas não têm problema. E roupa, tudo separado, roupa de adulto lava separado de roupa de criança, que lava separado de roupa de bebê. (Entrevista realizada em 2015).

As patroas entrevistadas não só gostam de ver a limpeza, sentir que a casa passou por uma transformação higiênica enquanto elas não estavam lá, como também precisam saber se essa limpeza foi feita da forma mais organizada, separada e “higiênica” possível. Lavar as roupas de adultos, crianças e bebês em separado significa triplicar o trabalho de quem faz, aumentar a vigilância sobre o trabalho e estipular padrões de higiene que são formas de controle, de exercício do poder. Além disso, elas querem ver os lugares não visíveis limpos, as gavetas que não são usadas, os armários que dificilmente são abertos, o cantinho atrás do sofá que só aparece se o sofá for mudado de lugar, até o teto precisa ficar livre da sujeira, absolutamente tudo precisa estar impecavelmente limpo, desinfetado e sem pó – mesmo que não seja usado, que não faça parte dos espaços ocupados cotidianamente e que sejam “invisíveis”. Cozinha e banheiros são os cômodos para os quais mais se exige uma limpeza e uma higiene redobrada. Possivelmente, porque nesses espaços o trânsito de pessoas é maior; o banheiro é o espaço da limpeza dos corpos; então este não pode conter o resto de gordura corporal, pelos do corpo, cabelos, unhas, lixinho retirado cotidianamente, além do depósito das roupas sujas. O banheiro não pode ser simplesmente limpo, ele tem que ser lavado. Isso significa que todo o espaço, as paredes, o chão, box, pia, torneiras, vaso sanitário, os espelhos precisam ser esfregados com água e sabão, desinfetados com água sanitária, passar produtos de limpeza com cloro, álcool, desinfetantes, sapólio, enxugar e finalizar com um produto aromático. 176


A variedade de produtos de limpeza utilizados para “verdadeiramente” higienizar o banheiro também é um veículo de vigilância e observação das patroas. O mercado oferece uma gama de possibilidades de desinfetantes, sabão, soluções aromáticas, etc. Afinal de contas, a limpeza não produz necessariamente cheiros e odores; a tão famosa e desejada sensação de “cheirinho de limpo” advém dos produtos utilizados para a limpeza. No clássico livro de Corbin (1987), sobre os odores e sabores e as transformações sociais e históricas em relação a estes, o autor expõe que, no final do século XVIII, a construção do espaço privado foi de suma importância para idealizar o sujeito individualizado, o “eu”. O espaço privado e íntimo também passa a ser o lugar de “esconder” ou “reservar” os odores íntimos; o ato de defecar e seus cheiros incidentes passam a ser delimitados longe da cozinha e da sala de receber as visitas, por exemplo. Mas “o fato de que os odores do eu tenham sido mais bem definidos, mais intensamente ressentidos, só fez estimular a repulsa contra os odores do outro”, contra o “cheiro da multidão, os suores nos lugares apertados do espaço público”. (GOMES, 1988, p. 85). É aqui que tem início a etapa da insularização dos odores pessoais na qual estamos inseridos. (GOMES, 1988). É importante lembrar que a maior parte das casas, nas quais fiz a pesquisa, tinha mais de um banheiro e todos tinham que ser limpos e desinfetados da mesma forma. A limpeza do banheiro é imprescindível para as patroas que entrevistei; é aí que elas podem ver se a trabalhadora doméstica remunerada é de fato “boa” e “eficiente”, se retira todas as sujeirinhas e “lodos” dos rejuntes, se não sobrou um pelo ou fio de cabelo no azulejo, se a torneira está brilhando, se foram jogados produtos em quantidade suficiente – não podem ser usados em demasia, nem em extrema economia – para matar os germes que se instalaram no vaso sanitário, box e pia. A cozinha, por sua vez, é o espaço da higiene, dos cuidados extras com a alimentação e um lugar de segregações e diferenciações. Uma cozinha limpa é caracterizada, de acordo com as patroas, pela louça lavada, seca e devidamente guardada, a pia sem sujeiras e seca, os armários organizados e sem poeira, os panos de prato lavados adequadamente, geladeira limpa e organizada; e, assim como o banheiro, este cômodo também deve ser lavado, porque é assim que se retira a gordura do fogão, do chão, das paredes. A limpeza da cozinha também é alvo das mais minuciosas vigilâncias, pois 177


a comida não pode ser preparada em um lugar “sujo”, “mal arrumado”, “engordurado”, “com mofo”, pois as refeições podem ser contaminadas. Os germes precisam desaparecer. Apesar de a exigência sobre os aspectos da limpeza da cozinha ser tão alta quanto a do banheiro, o que as patroas entrevistadas mais listavam como pontos de ruído nas relações com a trabalhadora doméstica remunerada era a parte do preparo dos alimentos. Muitas reclamavam que não encontravam mais trabalhadoras dispostas a cozinhar e isso era o grande desafio atualmente, já que o tempo para cozinhar todos os dias era elevado e elas precisavam de alguém que pudesse suprir essa necessidade. Cozinhar e cozinhar bem, com variedade no cardápio, com higiene, usando toucas e garantindo a nutrição dos membros da família ainda é uma atividade compartilhada entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas, pois a patroa precisa comprar verduras, legumes, carnes, grãos, farinha, formas e panelas específicas, para que a trabalhadora execute o seu trabalho da melhor forma possível. Essa exigência saudável do cotidiano alimentar foi observado, principalmente, com as patroas que tinham crianças. Uma comida tradicionalmente conhecida como saudável para essas mulheres é poder ter na mesa, todos os dias, pelo menos, arroz, feijão, carne e salada, que é uma refeição já incorporada no cotidiano das famílias, mas que demanda muito tempo no preparo e nas variedades. Muitas vezes, as patroas me diziam que cozinhar a mesma comida todos os dias era extremamente cansativo, utilizando da cozinha somente quando querem fazer algum prato diferente, mais elaborado ou nos finais de semana. Outras me confidenciavam que o principal motivo para ainda se contratar uma trabalhadora doméstica remunerada era porque “alguém” devia cozinhar, manter a rotina dos alimentos em casa, com temperos caseiros, com a mesa bem servida. Se o ato de cozinhar é tarefa primordial para as patroas, tanto no fato de se responsabilizar por fazer, comprar os alimentos e gerenciar o seu preparo pelas mãos das trabalhadoras domésticas remuneradas, mostrando assim as características, símbolos e representações da “cultura doméstica” e como ela pode se reconfigurar nas dinâmicas familiares contemporâneas, por outro lado, é também a comida que é utilizada como alvo de diferenciações camufladas por essas mulheres. Há duas “regras” em relação a esse aspecto: patroa não cozinha para a trabalhadora doméstica remunerada e trabalhadora não pode comer tudo que tem na casa. Essas são as formas 178


de se diferenciar enquanto classe, enquanto mulheres não iguais, enquanto alguém que precisa servir e outra que precisa ser servida. No entanto, como já mencionado anteriormente, separar comida, não chamar a trabalhadora para se sentar à mesa e comer as refeições junto com a família empregadora, não oferecer o que ela mesma cozinhou, não são práticas ditas “modernas”. Essas patroas não querem ser vistas como mulheres que tratam mal, com desrespeito, que enxergam a trabalhadora como inferior; isso é “antigo”, “antiquado”, “escravocrata”, e elas não querem ser associadas à imagem da reprodução de desigualdades. Assim, muitas vezes, as patroas me relataram que elas são boas, mas que a trabalhadora doméstica remunerada também tem que ter noção do que ela pode e não pode fazer, pode e não pode comer, pode e não pode estar. Se ela já sabe onde se posicionar, a patroa não precisa agenciar esses mecanismos velados de diferenciação, “eu falei para ela comer, mas ela não quis” – como disse uma das entrevistadas. Dessa forma, essa relação continua sendo desigual, mas com uma narrativa que nada mais é do que igual à do passado, porque elas estão fazendo a sua parte e respeitando a vontade da trabalhadora. Patroa: A gente nunca fez assim, distinção de coisas - olha, isso, isso a senhora não faz – e a empregada aqui de casa é uma pessoa que tem noção, sabe? Que nem assim, eu compro uma caixa de...vou falar, minha filha gosta de uma fruta diferente, ela vê que são frutas diferentes e ela tem noção que é para minha filha. Ela não vai lá comer a caixa de cereja. Eu compro banana, maçã, é, as outras frutas, ela come as outras frutas. Ela não vai lá comer o que é da, ela percebe que foi comprado para a criança, sabe? Do mesmo jeito as outras coisas, então ela é uma pessoa que tem muita noção. (Entrevista realizada em 2015).

As cerejas são caras, são especiais, são frutas diferenciadas; é por isso que somente as pessoas da família “podem” comer. Muitas vezes essas práticas são justificadas através do discurso de que, em empresas, no mercado formal de trabalho, os funcionários também não comem juntamente com seus chefes, ou não comem a mesma refeição que seus superiores; assim, essa lógica seria totalmente compreensível, já que os empregadores não teriam 179


que compartilhar suas refeições com a trabalhadora contratada. Ao mesmo tempo, o discurso de que a casa não é uma empresa e que arcar com todos os direitos trabalhistas é demasiado para uma família é amplamente usado pelas patroas, mostrando as dificuldades em manter essa contratação trabalhista de acordo com os parâmetros legislativos. Os discursos são acessados e manipulados para que a ordem hierárquica permaneça nas casas, usando os pressupostos do mercado formal de trabalho para que as diferenças sejam mantidas e trazendo à tona as dicotomias público/privado para os interesses das posicionalidades dos sujeitos. Outra característica usada em relação à comida e a formas para estabelecer diferenciações com as trabalhadoras domésticas remuneradas é o modo de se pensar as compreensões do que é “sujo”, “impuro”, “fedorento”, “nojento”. Como já citado anteriormente, algumas vezes a ideia de sujeira se vincula à trabalhadora e logo o que ela prepara, o que ela toca e o que ela faz também se torna “sujo”, “nojento” e passa a não ser mais acessado pelas empregadoras. A obra de Corbin (1987), em que o autor conectava a ideia da purificação dos odores, cheiros com os comportamentos sociais através da classe social, onde as elites passavam por um processo de segregação dos espaços e lugares com mau cheiro, o saneamento básico passa a ser uma arma do Estado e começa a se criar uma ideologia política frente aos odores que vinham das ruas, das multidões, lixos, muretas, cemitérios e até os cheiros dos corpos dos trabalhadores que produziam suor. “Sem dúvida, o primeiro grupo a manifestar náuseas em relação a este tipo de comportamento foi a elite. Desse modo, os odores passaram a constituir um dos cenários privilegiados por onde se tratava a luta de classes. De fato, a burguesia elaborou um extenso aparato ideológico fundado exclusivamente no aspecto olfativo”. (GOMES, 1988, p. 262). Essas definições de cheiros, do que é simbolicamente sujo, como já apontou Fleisher (2002), tem se mostrado um mecanismo de poder hierarquizante das classes sociais, considerando os aspectos, afetos e emoções das interações sociais dentro de uma residência; essas micro diferenciações tornam-se essenciais e fundamentais para a posicionalidade dos sujeitos. A literatura específica sobre as compreensões do que seja impuro e puro, sujo e limpo, nojento e aceitável nas relações de sociabilidade, nos processos sociais, culturais e econômicos, nos mostra que essas dicotomias foram utilizadas para moldar a ideia de “civilização” ocidental, além de ter caracterizado um teor ideológico de separar e diferenciar os sujeitos, 180


como nos apontam Mary Douglas (1976), Marcel Mauss (1974), Goffman (1988), Elias (1991), por exemplo. O que tenho tentado demostrar é que essas práticas ideológicas dicotômicas não foram sanadas, quando se trata de pensar em relações contemporâneas nas contratações de trabalhadoras domésticas remuneradas; de fato, elas tem sido reconfiguradas. A limpeza e a comida são formas de perceber essa características de diferenciações mais veladas, camufladas na narrativa do convite para sentar à mesa, de fazer parte da festinha de aniversário de algum membro da família, ou de comprar frutas distintas – uma para a família e outra para quem trabalha para ela – demostrando como aspectos da “cultura doméstica” se apresentam atualmente. Ao realizar a análise das narrativas, dos discursos, das práticas e lógicas das empregadoras, em relação ao trabalho doméstico e ao trabalho doméstico remunerado, através das narrativas dessas empregadoras, percebeu-se como as representações e os símbolos da “casa ideal” eram concebidos. As patroas idealizavam uma casa impecavelmente limpa e organizada, em que nada estivesse fora do lugar, nenhuma poeira ou sujeirinha acumulada em algum dos mais escondidos cantinhos da casa, que a roupa estivesse lavada e passada, quartos devidamente acomodados, banheiros absolutamente desinfetados e cheirosos, cozinha sem gordura e impurezas, além da alimentação diária nutritiva e variada. Essa era uma idealização que as desgastava emocionalmente, as fazia sentir que seu tempo era improdutivo e as subjetivava em aspectos ligados à inferioridade. Essa casa ideal estava no rol das competências exigidas enquanto esposas, mães e donas-de-casa, utilizando da contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada como uma forma de administrar as demandas que essa idealização estabelecia. Nesse sentido, a faceta conservadora que ainda estava estabelecida dentro desses lares vai além das subjetivações frente à contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada; o conservadorismo também se expõe na dificuldade de estabelecer debates e de concretizar os cuidados de uma forma politizada, com o qual uma sociedade democrática deveria se comprometer enquanto elemento essencial para sanar essas diversas formas de desigualdades. Enquanto isso, as mulheres pertencentes à classe média e classe média alta insistem na alternativa da contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada, trazendo elementos que sustentam relações de poder hierarquizadas, que nada ampliam as percepções democráticas do cuidado. 181


A contratação era percebida como o caminho da “liberdade” por essas mulheres, que as retiravam do aprisionamento entediante e desgastante do cotidiano cíclico do lar. Mas essa tão sonhada liberdade lhes custa caro”; a capacidade para conduzir todas as complexidades que se inseriam em suas vidas privadas, ao colocar outra mulher no espaço residencial, da intimidade, do cuidado, da nutrição e da manutenção desse lugar, requer muita habilidade nas formas de negociações, tanto as que precisavam realizar consigo mesmas, quanto em suas posições de poder. Nas negociações subjetivas, as patroas precisam agenciar suas posicionalidades para que nada fique “fora do lugar” nessa relação; elas demandam os cuidados a outra mulher, mas são elas que mandam, observam, vigiam, estabelecem os parâmetros do que consideram bom ou não; querem ser livres, mas continuam vinculadas ao lugar primordial estabelecido como o da responsabilidade feminina. Tendo em mira tal intuito, as negociações enquanto sujeitos administrando suas posicionalidades e o seu exercício de poder para manter os diversos sentidos de pertencimento do lar, as patroas acessam variados aspectos de diferenciações que se interpõem nessa relação empregatícia, sobretudo as de classe social e étnico-raciais. Todavia, importa lembrar que se as patroas pagam “caro” na contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada, quer economicamente quer emocionalmente, as trabalhadoras continuam ainda a receber as misérias das desigualdades de classe e étnico-raciais, além de não saírem de um quadro marginalizado economicamente, sem seus direitos plenamente reconhecidos. A “cultura doméstica”, antes de mais nada, pauta os parâmetros da não empatia, do não reconhecimento e de uma idealização da casa, do lar e da família irreais, reproduzindo uma violenta realidade que angustia e causa infelicidade nas patroas e mantém uma precária relação trabalhista ainda vinculada aos pressupostos de servilismo. O rompimento real com a “cultura doméstica” se mostra, pelas análises realizadas nessa pesquisa, como um caminho para se concretizar parâmetros minimante modernos, em termos contratuais legais e igualitários, no que tange às relações travadas cotidianamente no lar. Enquanto isso, as patroas continuam tentando encontrar a trabalhadora “perfeita”, que cubra seus desejos de liberdade, suas idealizações referentes ao lar e que sejam o contraponto posicional de seus exercícios de poder.

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CUIDADO, GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: ESSENCIALIZAÇÕES E INVISIBILIZAÇÕES NO TRABALHO DE CUIDADORAS DE PESSOAS COM A ENFERMIDADE DE ALZHEIMER Sandro Marcos Castro de Araújo28

Introdução A necessidade crescente de algum tipo de cuidado e a constatação de que as pessoas são ora receptoras, ora provedoras do care ainda não produziram, mesmo que minimamente, uma democratização desse trabalho material e afetivo. Persiste a concepção de que se trata de uma atividade circunscrita ao mundo privado, ao espaço doméstico, assim como, de forma naturalizada e essencializada, a uma atribuição de mulheres ou de pessoas que estejam em algum tipo de relação de subalternidade. O mercado consumidor de alguma modalidade de cuidado, especialmente os destinados à parcela idosa de suas populações, tem crescido num ritmo frenético, sobretudo em nações cujo poder econômico de seus cidadãos permite a contratação de careworkers, normalmente pessoas oriundas de regiões empobrecidas e com uma situação social e econômica desfavorável. Essas/es trabalhadoras/es representam, por um lado, a solução para o problema da falta de mão de obra vinculada ao cuidado nesses países e, por outro lado, a principal fonte de recursos econômicos para suas famílias e para a economia do local de origem. O que se observa é uma atual e complexa rede de transnacionalização de trabalhadoras do care. No âmbito da regulamentação estatal dessa atividade no Brasil, o que se verifica é um quadro de completa falta de institucionalização e proteção jurídica. A profissão de cuidador não existe, sendo que o projeto que trata 28 Membro do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Desenvolve pesquisas abordando as áreas do cuidado, gênero e suas interseccionalidades, especialmente no que concerne ao desenvolvimento de políticas públicas destinadas ao care e a suas trabalhadoras. Exerce atividades de pesquisa, ensino e extensão no Instituto Federal do Paraná, campus de Campo Largo. sandro.araujo@ifpr.edu.br

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dessa questão tramita no Congresso Nacional a passos lentos e sem a atenção política necessária. Não existe motivação nem ações concretas do Estado, no que diz respeito ao desenvolvimento de políticas públicas que constituam o cuidado como algo prioritário e direito/dever de todos os cidadãos. Nos raros casos existentes ou em que apenas se tangencia a problemática social do cuidado, reproduz-se de forma explícita ou, em alguns casos, através de linguagem sofismável, a perpetuação de essencializações e distorções que estabelecem a mulher como seu quase único responsável, bem como o não reconhecimento do valor social e econômico desse trabalho. Esta invisibilização das/dos trabalhadoras/es do cuidado e da complexidade que está presente no que elas/eles executam e como isso incide objetiva e subjetivamente sobre as suas vidas e das demais pessoas que passam a constituir relações sociais perpassadas por algum tipo de care, está a constituir, portanto, uma questão social e política que requer reflexões e ações efetivas de transformação. Neste capítulo, tendo como referência uma pesquisa realizada entre cuidadoras de pessoas com a enfermidade de Alzheimer, no período de 2012 a 2016, nos estados do Paraná e Santa Catarina29, analisar-se-á como essas trabalhadoras estão compreendendo suas atividades de cuidado e como se sentem em relação ao não reconhecimento jurídico e social do que fazem, uma vez que não existe a profissão regulamentada de “cuidador de idosos” no Brasil.

A gênese do care na trajetória de vida das mulheres cuidadoras De maneira geral, o percurso que as pessoas desenvolvem até ingressar no círculo do cuidado, seja ele o que ocorre nas relações familiares ou na perspectiva de uma atividade remunerada, é marcado por circunstâncias e fatores tais como parentesco (cônjuges e filhas/os), gênero (na sua maioria mulheres), proximidade física (quem vive com a pessoa), proximidade afetiva, bem como a necessidade de alguma forma de rendimento financeiro. (MENDES, 2005; SANTOS, 2010; ARAÚJO, 2016). Nos depoimentos obtidos 29 Trata-se da tese de doutorado realizada no período de 2012-2016, junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná, intitulada “Cuidado e Gênero entre Cuidadoras de Pessoas com a enfermidade de Alzheimer”.

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com mulheres cuidadoras de pessoas com a enfermidade de Alzheimer30, isso ficou notadamente verificado: Na verdade, na época foi necessidade, até porque eu era quem ficava mais em casa, eu era a filha mais nova. Todos trabalhavam fora, aí acabei cuidando, até porque tem o envolvimento familiar também, eu sou a filha dele, que eu não ia deixar outra pessoa qualquer cuidar dele [pai doente]. Eu prefiro cuidar, porque nem sempre a gente pode confiar em outra pessoa. (Clarice) Não sei, uma porque minha mãe trabalhava fora, outra porque eu gostava deles. Minha mãe morava praticamente ao lado deles, eu gostava de tá com eles, com os dois [avós], sempre assim. Tanto que quando ela morreu, pra mim foi um choque, porque morreu comigo. Ela [avó] sempre dizia “quero morrer com você”; daí eu dizia, não, não quero que você morra comigo. Ela morreu comigo. E aí depois o meu avô ficou doente e ele não aceitava ninguém que não fosse eu. Não tinha mais ninguém, ninguém queria. Ele também morreu em meus braços. (Rachel)

Em ambas as narrativas, o aspecto da necessidade impõe-se como algo determinante no processo de construção de suas trajetórias como cuidadoras, assim como os laços de parentesco e de afeto. Num primeiro instante, essa necessidade decorre, revelando a gendrificação do cuidado, da ausência de outras mulheres, mãe, tias, irmãs mais velhas, que poderiam 30 Tive a oportunidade de conhecer as trajetórias de doze mulheres cuidadoras. Estas, no período da pesquisa, viviam e trabalhavam nas cidades de Curitiba e de Campo Largo, Estado do Paraná, e nas cidades de Florianópolis, São José e Palhoça, Estado de Santa Catarina. A faixa etária variou entre vinte e dois anos e cinquenta e cinco anos de idade. A escolaridade apresentou-se entre seis que possuíam ensino fundamental completo, três com ensino médio incompleto, duas com ensino médio completo e uma graduada em Curso de Enfermagem. Duas dessas cuidadoras são solteiras, cinco separadas, uma divorciada e quatro estão casadas. No que concerne ao tempo em que exercem a atividade do cuidado, de forma remunerada ou não, verificaram-se os extremos de dois e dezenove anos. Dessas trabalhadoras, sete não possuem qualquer registro em sua carteira de trabalho. As cuidadoras com registro em carteira são alocadas no grupo das trabalhadoras domésticas. Não foram questionados nessa pesquisa dados relacionados ao número de filhos dessas mulheres, bem como aspectos ligados a suas identidades raciais.

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assumir para si as tarefas do care familiar, mas que estavam impossibilitadas em função de terem saído de casa para trabalhar em outras ocupações. Esses depoimentos evidenciam também que, normalmente somado à esta dimensão da necessidade e da proximidade afetiva, existe o conteúdo moral do care, da resposta dada à necessidade manifestada; isto é, para essas cuidadoras, a necessidade e a responsabilidade decorrente de terem que assumir o cuidado de suas casas e parentes constituem uma espécie de dever, de acordo moral, onde a dependência mútua pressupõe a preservação das relações. (GARRAU; LE GOFF, 2010). Esta noção de dever moral, constituída pelo vínculo afetivo e pela feminilização das atividades de care, socialmente estabelecida, efetiva-se com toda sua carga normativa na vida e na subjetividade dessas mulheres cuidadoras e em suas interações sociais. Pascale Molinier e Patrícia Paperman (2015), analisando essa dimensão moral do care nas sociedades contemporâneas, consideram: As relações de cuidado são, primeiramente, interpessoais, quer se trate de trabalho remunerado ou não, mas fazem parte também de um processo social mais amplo, que comporta diferentes fases ou momentos morais que envolvem protagonistas múltiplos (indivíduos, grupos e instituições), em relações frequentemente hierarquizadas. (MOLINIER; PAPERMAN, 2015, p.34).

Todavia, a dimensão da necessidade, que atinge as trajetórias dessas cuidadoras em seus encontros e aproximações com a afetividade, e uma moral estabelecida a partir das relações de cuidado requerem uma consideração adicional, sob outro enfoque, isto é, como uma possibilidade do exercício de uma atividade laborativa remunerada, que cobra inegavelmente novas composições do trabalho doméstico e do trabalho de care. O depoimento de Conceição explicita esse aspecto: Foi com a senhora que eu comecei a cuidar como te contei [...]. Os filhos me pagavam um dinheiro pra eu cuidar. Ahh, eu não sei, não vejo nenhum problema né, eu estou trabalhando, estou lá cuidando [...] não sei, mas acho que é um trabalho como qualquer outro, né. (Conceição)

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Para Conceição, seu trabalho como cuidadora requer ser considerado, em sua importância e valoração financeira, como qualquer outra atividade profissional. Na mesma perspectiva segue a narrativa de Hilda. Sua fala evidencia que, na contratação de uma/um trabalhadora/or do cuidado, se estabelece uma relação de trabalho como todas as outras, com as suas nuances, conflitos, interesses e, em muitos casos, injustiças e disputas trabalhistas. Nossa Senhora, eu começo nove da manhã e vou até às 5 horas, sem parar; não tem horário de almoço. Aí quando eu viajo, se for pra ver, no caso eu vou ficar quatro meses diretos, não tem férias, não tem feriado, não tem fim de semana. Eles não pagam por isso, não pagam por esse tempo da gente [...]. (Hilda)

O tempo do cuidado, à que se refere Hilda, não é o tempo fabril, o tempo do relógio, da máquina. O começar e o findar, no âmbito do cuidado, não são circunscritos pelo ponteiro do relógio. Trata-se de uma “atividade do afeto”, onde a combinação de sentimentos, de afeição e das responsabilidades é acompanhada de ações que surgem das necessidades ou do bem-estar da pessoa dentro de uma interação face a face. (CANCIAN, apud MOLINIER; LAUGIER; PAPERMAN, 2005). Este tempo, que também não é alcançado pelo dinheiro, mas que se insere na troca pela remuneração financeira em forma de salário, também é de uma lógica da moral que acompanha uma ética do cuidado que, por sua vez, exige da trabalhadora do care resposta e capacidades ao que se lhe apresenta no cotidiano de suas atividades, independentemente de estar ela sendo paga com justiça ou não. (MOLINIER; LAUGIER; PAPERMAM, 2005). Nesta perspectiva, o reconhecimento dos custos financeiros do cuidado apresentase como uma questão central, especialmente quando se pensa num processo de politização e democratização do care. (TRONTO, 2007; ZELIZER, 2012). Nas entrevistas realizadas, todas as cuidadoras revelaram que estavam, nesse momento de suas vidas, desempenhando a atividade do cuidado por necessidade financeira; ou seja, para elas o care constitui inegavelmente uma fonte de renda; em alguns casos, a única fonte de renda em seus domicílios. A necessidade de ganhos financeiros, os valores obtidos em forma de salário, vistos por elas como injustos, em muitos casos, e a afetividade emanada de relações tão próximas, como as que ocorrem com o cuidado de 189


pessoas fragilizadas por enfermidades como o Alzheimer, se interpenetram e atingem diretamente a subjetividade dessas trabalhadoras. A desconsideração da forma pela qual esses elementos se conectam e determinam tanto estados psicológicos distintos quanto práticas de cuidado consideradas “boas” ou “más” resulta numa visão estereotipada do care e de suas/eus executoras/es, em sua maioria mulheres. Da mesma forma, associar o trabalho do cuidado à dimensão da filantropia segue essa visão distorcida, isto é, aquela que transforma o care numa atividade vinculada ao plano da caridade, práticas de pessoas abnegadas, espiritualizadas. Não se trata de desconsiderar que alguns elementos da idiossincrasia dos indivíduos informem as visões que se tem sobre o trabalho e as motivações para o mesmo. Isso acontece no trabalho desenvolvido pelas cuidadoras. Todavia, desconsiderar que, além desses elementos intrínsecos de cada pessoa, também existam outros legítimos interesses (necessidades) em sua disposição de trabalhar com o care, como por exemplo, o recebimento de um valor financeiro, constitui uma forma perversa e histórica da manutenção de formas de exploração do trabalho feminino, bem como de representações estereotipadas do devotamento e cuidado como expressão de amor. (MOLINIER, 2012).

Cuidado, envelhecimento e suas vicissitudes A longevidade é uma das mais relevantes conquistas do ser humano nos últimos séculos, alcançada pela conjunção de vários fatores, tais como o desenvolvimento de novas tecnologias na área da saúde e medicamentos, acesso a formas mais equilibradas de alimentação, desenvolvimento de políticas públicas destinadas ao bem-estar e à saúde, entre outras. Essa conquista que de alguma forma alcança grande parte das pessoas no mundo contemporâneo, por um lado deve ser mantida através de contínuos esforços da sociedade civil e dos governos; por outro, o aumento da expectativa de vida das pessoas suscita novos desafios, novas vicissitudes e, consequentemente, carece de estratégias de solução. Dentre esses desafios, está a manutenção e a conquista de direitos direcionados a essa parcela da população, especialmente àqueles que proporcionam condições objetivas de viver a velhice com qualidade de vida. Aqui deve-se incluir todas as possibilidades de realização dos projetos 190


pessoais e uma contínua e qualitativa inserção dessas pessoas e de suas experiências no todo da vida comunitária. Disso se conclui que esses direitos, incluído aqui principalmente o direito à saúde em sua plenitude, deve ser meta preponderante na elaboração de políticas públicas destinadas a essas pessoas. Neste capítulo, em que se aborda o trabalho das mulheres cuidadoras de pessoas com a enfermidade de Alzheimer e de como essa atividade permanece socialmente invisibilizada, é preponderante a discussão do aumento exponencial de casos de pessoas portadoras de enfermidades neurodegenerativas, uma vez que esta experiência, perpassada por eventos de dor e sofrimento (dos portadores e de todos os que estão à sua volta), está vinculada à forma como o cuidado, enquanto atividade material e afetiva, estará sendo ofertada ou não a esses cidadãos. Em países como o Brasil essa problemática é acentuada pela velocidade com que a população entrou nesse processo de envelhecimento. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2013), a expectativa de vida aumentou, no período de 2002 a 2013, em 3 anos; em média, vive-se até 74,6 anos (para o sexo masculino, a expectativa é de 71 anos; e para o sexo feminino, esse índice alcança os 78,3 anos). As projeções desse Instituto indicam que tal valor deverá alcançar a média de 81,2 anos de idade, para ambos os sexos, em 2060. No que concerne aos dados que revelam esse ininterrupto processo de envelhecimento da população brasileira, segundo o IBGE (2013), em 1960 o número de pessoas com 60 anos ou mais correspondia a 2,7% do total da população (70 milhões de habitantes). Em 2010, esse percentual já atingia a marca dos 7,4% do total da população (190 milhões de habitantes). Na outra ponta do perfil da sociedade brasileira, em 1950, o percentual de jovens, isto é, pessoas incluídas na faixa etária de 15 a 29 anos de idade, era de 42%, passando para 30%, em 2000, e projetada para 18%, em 2050. Outro dado relevante é a expectativa que se tem para a população brasileira idosa; no ano de 2025, essa faixa etária representará algo em torno de 32 milhões de indivíduos, saltando para 59 milhões, em 2060. Desta forma, no que diz respeito ao problema das doenças incapacitantes típicas dessa faixa etária, a falta de preparo e de políticas públicas para o atendimento a essas pessoas e famílias exige ações urgentes. (IBGE, 2014). Esses dados revelam que o envelhecimento da população brasileira é um fenômeno inquestionável e suscitador de debates e de ações políticas 191


que busquem compreender e atender aos significados e às necessidades sociais e individuais desse processo. No que tange mais especificamente aos propósitos desse capítulo, diante do aumento das doenças crônicas nessa faixa etária, especialmente das neurológicas, faz-se necessário o debate em torno da construção coletiva de políticas públicas que atendam a esses cidadãos, seus familiares e às trabalhadoras do care, para assim se criar capacidade de responder de forma eficaz a essas novas demandas. Outro elemento que permite um olhar analítico sobre os conteúdos do cuidado, dentro da problemática que se está apresentando, reside em perceber como as doenças neurodegenerativas, seus portadores e quem está próximo a essas pessoas, sejam familiares ou cuidadoras (remuneradas ou não), são analisados e descritos pelos discursos externos e distantes de sua realidade, isto é, pela lente do especialista31 e de seu arcabouço teóricocientífico. Dessa forma, a enfermidade de Alzheimer tem se tornado, segundo esses discursos advindos especialmente das áreas ligadas às ciências da saúde, a mais severa demência que, associada normalmente a outras doenças típicas, mas não exclusivas do processo de envelhecimento, tende a afetar pessoas em todo o mundo. O vertiginoso acréscimo do número de pessoas que são diagnosticadas com esta enfermidade crônica e degenerativa indica que essa constitui uma das maiores preocupações das autoridades públicas ligadas à área da saúde, sobretudo por demandar cuidados de longa duração. Esses cuidados necessitam ser compreendidos como todo o tipo de atenção prestada a pessoas com doença crônica ou deficiência, que não podem cuidar de si mesmas por longos períodos de tempo. (CAMARANO, 2012). A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Alzheimer’s Disease International (ADI) apontam, em seus relatórios32, dados indicando que 31 No caso dos interesses manifestados nesse capítulo, refiro-me especialmente aos discursos e às práticas provenientes da área da saúde, em que o especialista é representado pelo médico e os agentes públicos estão envolvidos na gestão pública, no Estado e em sua burocracia, a qual detém o saber-poder de estipular e desenvolver programas para todos os segmentos sociais envolvidos nesse universo de enfermidades neurodegenerativas ou não. 32 A ADI (Alzheimer’s Disease International) publica anualmente relatório sobre a doença de Alzheimer e suas circunstâncias médicas, políticas, econômicas e sociais, em cada região do mundo. Reporta também números e estatísticas sobre o avanço da doença, resultados de pesquisas vinculadas ao tratamento da enfermidade, modelos de planos e ações políticas já implementadas em alguns países para o enfrentamento desse problema de saúde pública, bem como uma série de informações para as famílias dos pacientes, para os próprios

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a enfermidade de Alzheimer constitui uma problemática sem fronteiras física, étnica, cultural, de gênero ou econômica. Segundo relatórios dessas duas organizações, a cada quatro segundos surge um novo caso de doença neurodegenerativa no mundo (7,7 milhões de novos casos anualmente), sendo essa uma estimativa até o momento progressiva. No ano de 2013, mais de 44 milhões de pessoas viviam com Alzheimer, distribuídas pelas várias regiões do mundo e dos países. A projeção, segundo essas instituições, é que muito em breve o número de casos diagnosticados seja muito maior, ressalvando que esse diagnóstico se dá muitas vezes pela exclusão de outras possíveis demências; portanto, é possível considerar que no ano de 2030 esse número de pessoas portadoras de Alzheimer será, infelizmente, de 75,6 milhões, alcançando no ano de 2050 a marca dos 135,5 milhões de doentes. (ADI, 2014). Pesquisas realizadas pela ADI indicam também que a maioria das pessoas portadoras de Alzheimer está vivendo sem receber um diagnóstico formal da enfermidade. Em países cuja população possui uma alta renda per capita apenas 20-50% dos casos de doenças neurodegenerativas são reconhecidos e documentados, sendo que esse déficit de documentação é certamente muito maior nos países de baixa e média renda. Um estudo desenvolvido na Índia indicou que 90% dos casos de demências permanecem não identificados. Se esses dados forem extrapolados para outros países, especialmente aos mais empobrecidos, é possível que a maioria das situações de pessoas com esse tipo de enfermidade não tenha recebido diagnóstico oficial e, portanto, esteja sem condições, inclusive formais, para ter acesso ao tratamento, aos cuidados e apoios necessários por parte de políticas públicas, quando existentes. (ADI, 2014). O desconhecimento acerca do diagnóstico da doença, do número de pessoas que são dela portadoras, bem como de sua associação com outros tipos de enfermidades e/ou características da senilidade, serve como elemento norteador para a identificação de como o care se coloca objetivamente às sociedades contemporâneas. No Brasil, segundo a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz)33, as estimativas sobre o número de portadores de pacientes e a comunidade em geral. O acesso e a crítica aos dados desse relatório e a todos os outros documentos e tecnologias desenvolvidos pela ADI podem ser feitos pelo endereço eletrônico. Disponível em: < http://www.alz.co.uk>. Acesso em: 02 fev. 2015. 33 A Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) foi fundada em 16 de agosto de 1991, no município de São Paulo. Trata-se de uma entidade privada, de natureza civil e sem fins lucrativos, tendo como objetivo principal ser uma espécie de núcleo central, em todo país,

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Alzheimer, ainda que a maioria esteja vivenciando essa enfermidade sem um diagnóstico médico, giram em torno de 1,2 milhão de pessoas. Importa ressaltar que em muitas famílias e no próprio âmbito da saúde pública e de seus responsáveis, o desconhecimento sobre a doença, seus sintomas, diagnóstico e tratamento, assim como de sua associação com outros tipos de problemas neurodegenerativos, decorrentes do avanço da idade, acabam por camuflar a gravidade do problema ou por induzir ao equívoco da não representatividade da realidade por esses coeficientes estatísticos. Por isso, ao se considerar que enfermidades como o Alzheimer são debilitadoras e exigem atenção e cuidado permanentes, incluindo pessoas que desenvolvam esse trabalho, quer sejam familiares, voluntários ou cuidadoras remuneradas, constatar-se-á que não se pode considerar, de fato, esse quadro como um problema individual, localizado e específico dessa ou daquela família, mas sim na perspectiva de um problema público de saúde. Esse cenário, que não pode ser vislumbrado sob a ótica impessoal da estatística, deve ser considerado prioridade na agenda das políticas públicas nacionais, pois impacta tanto os indivíduos que portam essas doenças, quanto suas famílias e entorno social. Ou seja, as doenças degenerativas criam custos emocionais e econômicos, frise-se, passando por necessidades objetivas de care que precisam ser consideradas como sendo de todos os cidadãos que convivem em sociedade. Trata-se, portanto, fundamentalmente de um problema político. Tanto a situação atual quanto o quadro projetado deveriam ser utilizados como valioso instrumento para o planejamento e execução de políticas públicas que atendam a essas demandas crescentes de suas populações e que, como indica Tronto (2007, 1997), deveriam constituir um conjunto de ações concretas, executadas por mulheres e homens pertencentes a comunidades democráticas de cuidado.

O espaço sociopolítico que (não) ocupa a(o) trabalhadora(or) do cuidado destinado aos idosos De maneira geral, as pesquisas que abordam a temática do trabalho de care das pessoas envolvidas com a D.A. e outras demências. Atualmente, possui 13 mil associados, distribuídos em 21 divisões regionais e em 51 sub-regionais em todas as cinco regiões do Brasil. Faz parte da Federação Brasileira das Associações de Alzheimer que, por sua vez, representa os interesses de seus associados na Alzheimer’s Disease International (ADI) e na Alzheimer Ibero-Americana (AIB).

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apontam para um cenário de significativas carências, quanto aos direitos fundamentais desses cidadãos e a falta de políticas públicas que reconheçam e atendam às necessidades das pessoas que se dedicam a essa atividade, especialmente quando se desconsidera os impactos que o cuidar tem sobre a saúde física e mental dessas/es trabalhadoras/es. Pesquisadoras brasileiras do cuidado como Altafim (2007) e Brito (2009) propõem uma análise desses impactos, abordando-os em duas perspectivas, ainda que de forma apenas didática: a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva na forma como isso se manifesta na vida da/o cuidadora/or. Na dimensão objetiva estariam aquelas situações vinculadas ao cotidiano, como as alterações nas relações familiares do cuidador, a diminuição considerável de suas atividades sociais, a falta de qualificação e remuneração justa pelo trabalho que executam e, principalmente, uma sensível propensão ao desenvolvimento de agravantes em sua saúde. A dimensão subjetiva está atrelada ao processo de adoecimento psíquico da cuidadora. Isso é verificado na experiência de Adélia e Cecília: Querendo ou não, o sofrimento de uma pessoa passa pra gente; você vê que a pessoa está sofrendo, você não fica esperando; nossa, a pessoa está sofrendo. Você retém aquilo e ninguém pergunta se você sente aquilo, se você está sofrendo ou não. Eu sofro muito por causa dela, tem dia que chego em casa e só quero chorar [...] meus filhos perguntam por que to chorando. (Adélia) Têm dias que parece uma tortura, mexe muito com o lado emocional da gente, ao mesmo tempo que é gratificante, as vezes massacra. (Cecília)

A pesquisa de Caldeira e Ribeiro (2004) indica que o trabalho desenvolvido pelas pessoas que passam a cuidar de um idoso debilitado, especialmente dos portadores de algum tipo de doença neurodegenerativa, – situações em que as dificuldades são maiores, normalmente afetando áreas cerebrais responsáveis pela capacidade de comunicação verbal e gestual, – aumenta consideravelmente sua vulnerabilidade a doenças físicas, depressão, perda de peso, insônia, abuso de medicamentos psicotrópicos e álcool. 195


Esses aspectos debilitantes decorrentes da atividade do cuidar também são confirmados em pesquisa desenvolvida por Paiva e Flausino (2006). Dados dessa investigação indicam outro grave problema nessa relação entre quem cuida e quem é cuidado, a saber, a faixa etária avançada de algumas das pessoas que desempenham essa atividade. Os dados apontados por essas estudiosas indicam que, em muitos casos, trata-se de pessoa idosa, que já tem uma problemática relacionada à sua saúde pessoal, cuidando de outro idoso debilitado. Para Doornbos (2002), o cuidador, por força de sua exposição prolongada aos diferentes estressores presentes na situação de cuidado, está sob o risco de apresentar problemas de saúde semelhantes aos evidenciados pela pessoa para a qual ela provê o cuidado, tais como artrite, hipertensão arterial, doenças coronarianas, processos dolorosos, alterações em seu sistema imunológico, dispepsia, úlceras, etc. A situação vivenciada por Cora é reveladora dessa problemática. Eu adquiri o túnel do carpo, tendinite, bursite. E agora eu tô com um problema no joelho, na rótula do meu joelho, que está com a cartilagem gasta. Eu vou fazer mais exames e iniciar um tratamento. (Cora)

A pesquisa realizada por Pinto (2009), intitulada “Qualidade de vida de cuidadoras de idosos com a doença de Alzheimer”, demonstra o quão complexo é esse processo, sendo que existe uma forte prevalência de doenças similares em ambas as pessoas. Também se confirmam por essa análise as indicações de que em muitas situações o que está ocorrendo é uma espécie de “endocuidado”34 na velhice. Em amostra observada de 118 cuidadoras/es, quase 60% dos casos são de pessoas acima dos 55 anos de idade. O número de mulheres que realizam as atividades do cuidado atinge os 86%. Outro dado revelador dessa pesquisa está na indicação de que 96,6% das cuidadoras entrevistadas apresentavam algum tipo de doença, antes de começar a trabalhar com o care: 34 Pesquisa de Lapola, Caxambu e Campos (2008), com cuidadores de pacientes com Alzheimer numa unidade de saúde de referência no município de Curitiba, também confirma o cenário da cuidadora pertencer à mesma faixa etária do paciente (65% dos casos analisados nessa amostra). Não há dúvida que isso indica um cenário onde o cuidado ainda não foi percebido como uma dimensão fundante da vida social, assim como ausência e ineficácia de programas públicos de atendimento a essas pessoas, pacientes e suas cuidadoras.

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Cuidadores de pacientes com Alzheimer possuem maiores chances de ter sintomas psiquiátricos, problemas de saúde, maior frequência de conflitos familiares e problemas profissionais, se comparados a pessoas da mesma idade que não exercem esse papel. Até 60% dos cuidadores de pacientes com a enfermidade de Alzheimer podem desenvolver distúrbios físicos e psicológicos; e os mais comuns são hipertensão arterial, desordens digestivas, respiratórias, propensão a infecções, depressão, ansiedade e insônia. (PINTO, 2009, p.652).

Nesse sentido, são oportunas as considerações de Dejours (1996), ao se referir aos estados psíquicos que incidem sobre a vida dos indivíduos, quando estabelecem relações consigo e com outras pessoas, em função de uma ocupação. Para ele, o trabalhador inserido numa determinada organização de trabalho desenvolve uma carga psíquica resultante das excitações exógenas e endógenas às quais está constantemente submetido. No caso das cuidadoras, isso fica muito evidente, conforme indicaram as pesquisas citadas anteriormente. Isso alcança um grau ainda mais acentuado, ao se perceber que não existe um muro a separar a vida pessoal e a vida profissional. De certa forma, portanto, estados de tensão que propiciam um determinado nível de sofrimento, sobretudo em situações concretas de patologias onde não há prognóstico de melhora, são como que inevitáveis no exercício do cuidado. Para Dejours (1996, p.101), “a relação subjetiva com o trabalho leva seus tentáculos para além do espaço da fábrica ou do escritório e coloniza profundamente o espaço fora do trabalho”. Existe, nessa afirmação, uma rejeição categórica, aplicável ao mundo do cuidado, de espaços estanques e distintos, isto é, expressões obsoletas que se referem a um dentro e a um fora do trabalho. Assim, ao se analisar os impactos que a atividade do cuidar produz sobre as cuidadoras, sobre como sua subjetividade é atingida, sobre como seu corpo somatiza e manifesta-se em função desse trabalho, deve-se considerar um Outro real, o “homem concreto” de Dejours (1996), ou ainda, conforme Souza (2012), a parte viva, sensível, reativa e sofredora do trabalhador, os elementos constituintes da sua forma de ser, que não pode ser negligenciada na análise da relação ser humano versus trabalho. 197


Entretanto, apesar de pesquisas indicarem, em sua maior parte, aspectos que diretamente ou não debilitam o estado de saúde física e mental das cuidadoras, não é pertinente desconsiderar que, para algumas dessas trabalhadoras, existe uma espécie de valoração positiva dos aspectos de sua vida pessoal e social, ao desempenharem atividades de care. O trabalho de Caldas (2002) indica, por exemplo, que, ao realizarem atividades relacionadas ao cuidado, algumas pessoas relatam ganho em sua autoestima, em especial por verem que estavam de alguma forma atendendo satisfatoriamente às necessidades de outra pessoa. Sommerhalder e Neri (2001) constataram que a execução do care pode desencadear, em algumas pessoas, um processo de ressignificação existencial onde a saúde, doença, a vida e morte passam a ser considerados dentro de um conjunto de situações complementares. Na análise que Santos (2010) fez sobre o cuidado prestado por e para membros familiares, ele constatou uma mobilização de toda a família, no sentido de compreender o fenômeno que está ocorrendo em seu interior, o que, por sua vez, possibilitaria um amadurecimento nas relações e decisões tomadas entre seus membros. Associados aos resultados obtidos nas pesquisas citadas estão presentes também elementos considerados positivos pelas pessoas que cuidam que se ligam a um sentimento de gratidão pelo que já receberam de outras pessoas, inclusive, da pessoa assistida, de realização pessoal e, inegavelmente, de satisfação por cumprirem bem uma missão perpassada pelo discurso religioso. (SANTOS, 2010). Os depoimentos a seguir seguem essa direção: Cuidado é dar atenção que a paciente precisa, o carinho, o amor, porque nessa fase eu acho que eles precisam bastante do carinho e amor que é o principal, pra eles terem um pouquinho de estabilidade, um pouquinho de bem-estar. É uma coisa, eu gosto, sinceramente, eu gosto, quando eu vi o cartaz ali no postinho, porque naquele dia eu levantei assim, se aparecesse assim uma pessoa idosa, porque eu tava em casa, não tava trabalhando, não tenho como trabalhar agora por causa do meu problema de saúde também, e se aparecesse alguém pra eu cuidar seria bom, pelo menos também eu ocupava a minha cabeça. Porque eu tava sem fazer nada, daí eu vim nesse

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postinho e em seguida eu liguei, já vim aqui e no outro dia, dois dias depois eu já comecei. Estou muito bem, muito feliz trabalhando. (Bertha) Eu consegui perceber assim, eu estava muito em depressão quando estava em casa e eu já melhorei depois que eu vim pra cá, já melhorei porque eu tô fora de casa. O trabalho me faz bem. (Hilda) Sim, eu me tornei, como é que vou te dizer, uma pessoa mais bondosa. Eu já era antes, mas agora eu sou mais, sou mais dedicada, mais preocupada com aquela situação. (Simone)

Por isso mesmo, a criação de estratégias que visem a garantir algum suporte, tanto no aspecto da execução de suas atividades, quanto na observação e manutenção das condições de saúde e da qualidade de vida de quem executa os trabalhos de cuidado, é urgente e deve ser uma corresponsabilidade de todos os segmentos sociais liderados pelo Estado. Nesse sentido, a falta da regulamentação jurídica da profissão de cuidador de idosos no Brasil explicita de forma inequívoca uma orientação política do Estado e de seus gestores (HEIDEMANN, 2009), assim como um obstáculo ao processo de reconhecimento do cuidado como atividade material e afetiva de todos os cidadãos, e não como algo feito para e por pessoas que ocupem posição de subalternidade (de gênero, econômica, política) nas sociedades. Essa desconsideração institucionalizada pelo conjunto de pessoas que se dedica ao trabalho do cuidado a idosos explicita também como tradicionais formas de divisão sexual do trabalho são produzidas e reproduzidas. O cuidado persiste dentro do imaginário social e cultural do país como uma atividade doméstica e de mulheres. Isso ficou evidenciado nos conteúdos das narrativas das cuidadoras entrevistadas, revelando, entre outros sentimentos, um profundo mal-estar e indignação com o fato de não terem reconhecimento social, moral e financeiro, nos locais onde executam o seu trabalho como cuidadoras de idosos. Uma dessas entrevistadas, Rachel, revelou, em seu depoimento, num momento de indignação, ao ser indagada porque não estava registrada em carteira de trabalho como cuidadora de idosos e sim como trabalhadora doméstica, que não desejava estar assim registrada, que não era empregada doméstica, mas sim cuidadora. Todavia, 199


essa situação era imposta a ela e, pela necessidade do trabalho, ela acabava se submetendo e de algum modo isso atingia sua saúde emocional, sua motivação e sua auto percepção como cuidadora. Sandro- E registro em carteira, você tem? Rachel- Hoje eu tenho. Sandro- E como está registrada? Rachel- Como doméstica. Sandro- Por que não é registrada como cuidadora? Rachel- Eu acho que pelo piso. Sandro- O piso é maior? Rachel- É bem maior e eu como não tinha nenhuma anotação no registro, aí a minha patroa nem me perguntou, ela registrou como doméstica, porque foi naquela época, com todos aqueles direitos, que a doméstica tinha e tudo e ela falou que seria praticamente a mesma coisa. Só que eu tô registrada com um salário e ela me paga mais do que tá... Sandro- Ela paga por fora? Rachel- Paga por fora. Sandro- Então no seu registro profissional é empregada doméstica? Rachel- Empregada doméstica. Sandro- Você preferiria que fosse cuidadora? Rachel- Sim. Sandro- Por quê? Rachel- Porque eu sou cuidadora, não faço serviço doméstico [ênfase]. Tanto que quando eu trabalhava como doméstica eu não queria que me registrasse, porque eu não queria ter no meu registro o doméstica, mas me registrou como doméstica e eu fiquei como doméstica. Sandro- Você tentou conversar com ela para alterar isso? Rachel- Não, porque ela comentou comigo, vou colocar como doméstica por causa dos direitos que está tendo agora. Sandro- Como se fosse algo melhor pra você? Rachel- Sim. Sandro- Mas na prática é melhor? Rachel- Não, porque se você ver a quantia que ganho hoje, não é a quantia que uma cuidadora de idosos ganha.

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Esse desejo manifesto por Rachel de ser reconhecida em sua carteira de trabalho pelo conjunto de atividades que de fato executa, isto é, relacionadas ao cuidado que presta, explicita aspectos conflituosos das relações estabelecidas entre quem oferece e quem contrata esse tipo de labor. Guita Debert, ao tratar dessa questão, que imbrica afeto e reconhecimento financeiro pelo trabalho que as cuidadoras executam, considera: É, no entanto, preciso reconhecer que as situações vividas pelas cuidadoras são muito mais ambíguas do que as análises de cunho estrutural tendem a revelar. As relações de trabalho não evidenciam apenas a tendência dos empregadores de tirar partido dos trabalhadores, tidos como escravos modernos indefesos. Processos de negociação entre cada uma das partes estão envolvidos: da cuidadora com o idoso assistido, dela com os seus familiares, dos familiares e cuidadores com a equipe técnica. Nessa relação, que é muito diferente daquelas típicas dos contratos trabalhistas e do trabalho em linhas de montagem, fatores emocionais e psicológicos estão sempre envolvidos. O entendimento entre as partes requer uma interação dinâmica, contextual e frequentemente conflitiva, porque é nas tarefas cotidianas que direitos e deveres dos diferentes atores são definidos e é a vida diária que reforça ou embaça as fronteiras entre essas duas esferas de interação. (DEBERT, 2012, p. 7).

Como pondera Zelizer (2012), essa zona conflituosa, típica de ambientes onde se estabelecem visões estereotipadas da atividade do cuidar, sejam as que apenas observam problemas e obstáculos no binômio care e dinheiro, pertencentes invariavelmente a mundos distintos, hostis e incomunicáveis, seja em percepções que limitam o cuidado como outra forma, exclusiva, de comércio, portanto, requerente apenas de acordos sobre um preço justo pelo trabalho ofertado, como, supostamente ocorre em outras atividades profissionais, além de não vislumbrar um poder comunicativo e emancipatório, para ambas as partes, no próprio conflito, não compreende e não debate os aspectos centrais da relação cuidado e afeto, cuidado e remuneração financeira. (ZELIZER, 2012). 201


Além disso, como se constata na narrativa de Rachel, a formalização do contrato profissional na carteira de trabalho revela, dentre outros elementos, um direito assegurado constitucionalmente a todas/os trabalhadoras/es no Brasil e, no caso específico do cuidar, vem ao encontro de um conjunto de atividades que, ideologicamente, sempre foram vistas como tarefa moral e gratuita destinada às mulheres. Esse direito, até esse momento, é negado às cuidadoras de idosos. Além das questões financeiras e trabalhistas, o registro profissional como doméstica impacta diretamente na percepção dessas trabalhadoras. A hierarquia de reconhecimento do valor e relevância do trabalho coloca as domésticas na última posição, de modo que ser reconhecida formalmente como cuidadora implicaria não apenas melhorias salariais e trabalhistas, mas também outro status social, o conferido aos que executam tarefas consideradas socialmente relevantes. Para essas trabalhadoras, ser cuidadora as coloca num estatuto diferenciado em relação às trabalhadoras domésticas. Enquanto o que fazem lhes concede um certo empoderamento, por outro lado, enxergam, no registro em carteira profissional como domésticas, uma marca de “incapacidades”, de estigmas socioculturais e históricos permanentes. São pertinentes as abordagens que postulam que o trabalho das cuidadoras não pode ser reduzido à condição de trabalho doméstico, na medida em que este não leva em conta as especificidades desses empregos, que fornecem condições para relações sociais às pessoas atendidas, em determinados casos e momentos e condições de vida autônoma. (TRABUT; WEBER, 2012). No entanto, há que se considerar até que ponto esse processo que historicamente tem estigmatizado o trabalho doméstico e suas trabalhadoras não ocorre de modo semelhante com as trabalhadoras do care. A questão moral que produz uma visão romanceada da cuidadora como possuidora de uma “aura do bem”, do belo, da abnegação, do “lugar” que socialmente foi construído como da mãe, da crença sobre virtudes e qualidades, que supostamente a empregada doméstica não possui, não tem condições de estabelecer o lugar político que o cuidado necessita ocupar nas sociedades como atividade democrática, especialmente o care que esteja livre desses estereótipos e essencializações. Nesse sentido, tratando dos conteúdos do trabalho de cuidado e de como isso é percebido pela sociedade, Martinez, Marques e Silva (2009, p.6) consideram: 202


O cuidador muitas vezes acaba invisível aos olhos da sociedade, ora confundido como empregado doméstico, ora como profissional da enfermagem, não sendo atingida ainda a real compreensão do seu trabalho de apoio ao idoso, devido à falta de informação da família e da sociedade.

Retornando ao necessário processo de regulamentação e de valorização das/os trabalhadoras/es, mulheres e homens, que se dedicam ao cuidado de pessoas idosas, faz-se necessário reconhecer que o mesmo já ocorreu em diversos outros países, acarreando consigo benefícios sociais para os envolvidos. Países como o Japão e, especialmente as nações do continente europeu, passaram pelo processo de envelhecimento de suas populações ao longo dos últimos 100 anos, mas de forma distinta das experiências vividas pelo Brasil, onde esse fenômeno é mais recente e propiciou um debate político muito mais profícuo em torno dessa problemática. Foram sendo criados programas públicos de assistência aos idosos necessitados, a suas famílias, assim como houve uma série de medidas, econômicas e políticas, que incentivaram a qualificação de trabalhadoras do care. Na França, por exemplo, dada a importância que os cuidados a idosos adquiriram, a partir do final da década de 1970, novos tipos de direitos sociais foram surgindo, que, por sua vez, segundo Trabut e Weber (2012), produziram uma situação altamente complexa de ajuda informal, trabalho não declarado e serviços de cuidados oferecidos pelo mercado ou pelos governos. No que concerne à profissionalização das trabalhadoras do cuidado, nesta realidade social, é possível identificar certa tradição; isto é, a primeira convenção coletiva para definir a profissão de cuidador foi assinada em 1980. Nesse momento, as relações trabalhistas entre contratantes e cuidadoras baseava-se na negociação interpessoal. Num segundo momento, 1983, quando já havia forte presença de associações de trabalhadores do cuidado, o care foi definido como complementar aos serviços médicos, o que notoriamente, por um lado, gerou na opinião pública maior atenção sobre o mesmo. Outro aspecto relevante nesse processo de contratação de prestadores de cuidado a idosos, também aplicável na realidade francesa às cuidadoras de crianças e pessoas com alguma necessidade especial, foi a dispensa do pagamento da contribuição previdenciária sobre os salários de 203


seus contratados. Essa estratégia lançada pelo governo francês propiciou um aumento considerável na contratação desses profissionais. Nos dias atuais, o que rege o campo da prestação de cuidado na França, seguindo uma tendência comum no continente europeu, é a introdução de uma lógica comercial no setor de cuidados, sobretudo, com a utilização de mão-de-obra resultante dos fluxos migratórios. Essa perspectiva “inscreve-se na vontade de transformar os empregos de cuidadores numa ‘oferta industrial’ capaz de implementar suas próprias inovações: segurança, reprodutibilidade e homogeneidade”. (TRABUC, WEBER, 2012, p.140). Segundo Guimarães, Hirata e Sugita (2012), a situação profissional das trabalhadoras do cuidado na realidade japonesa, que também são conhecidas pela expressão homehelpers, está associada ao tipo de formação que obtiveram. Isso resulta na existência de três categorias distintas de profissionais: na primeira, estão aquelas que fizeram curso para se tornarem cuidadoras/es com pelo menos 230 horas; a segunda exige um total de 130 horas; e, a terceira estabelece como patamar mínimo de formação um curso com 50 horas de duração. Em todos os três casos, apesar da concessão de diplomas e certificados, não existe qualquer tipo de exame ou prova que possa aferir os conhecimentos e a competência dos concluintes. Existem também diplomas conferidos pelo Estado que titulam especialistas na área do cuidado. Como indicado anteriormente, não existe a regulamentação da profissão de cuidador de idosos no Brasil, assim como não existe para as demais ocupações do código 5162 (Classificação Brasileira de Ocupações), isto é, para os que trabalham com o cuidado de crianças, jovens e adultos. Um dos problemas decorrentes dessa situação está na falta de cobertura jurídica para os direitos trabalhistas dessas pessoas, assim como, em muitos casos, nos arranjos informais para a contratação e acordos, tais como a duração da jornada de trabalho, as atribuições esperadas pelo contratante e, claro, o valor a ser pago em forma de salário. Até esse momento, o cuidador de idosos submete-se a três tipos básicos de contrato: regular, autônomo e doméstico. No caso de contratos regulares, a cuidadora é normalmente contratada por uma empresa e o vínculo empregatício é regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Segundo Ribeiro (2015), as empresas contratantes prestam atendimento domiciliar ao idoso e podem ser particulares ou Organizações não governamentais (ONGs) 204


cofinanciadas pelo poder público. Essas entidades são obrigadas a cumprir os direitos trabalhistas previstos na legislação, tais como assinar a carteira de trabalho, estabelecer carga horária de até 44 horas semanais, pagar hora extra, adicional noturno, adicional de periculosidade e insalubridade, repouso semanal remunerado, inscrição no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Para as trabalhadoras autônomas, como não se estabelece relação de emprego ou qualquer subordinação jurídica, os contratos são regidos pelo Código Civil Brasileiro e não pela CLT. A cuidadora de idosos que desenvolve suas atividades na casa da pessoa assistida é contratada diretamente pela família, sendo que a legislação que orienta essa relação é a mesma aplicada às/os demais trabalhadoras/es domésticos (Lei 11.324/2006). Nesse caso específico, deve-se considerar a recém regulamentada “PEC das Domésticas” (01/06/2015). Essa emenda constitucional garante aos empregados domésticos direitos assegurados aos demais trabalhadores. (RIBEIRO, 2015). A existência de uma legislação específica para as cuidadoras de idosos pressupõe a regulamentação de sua profissão. É preciso, portanto, considerar os conteúdos presentes na atual proposta de regulamentação que tramita no Congresso Nacional, desde maio de 2011. Trata-se do Projeto de Lei do Senado (PLS) 284, que dispõe sobre o exercício da profissão de cuidador de idoso, assinado pelo Senador Waldemir Moka, via Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Deve-se considerar que a autoria do projeto pertence à Tânia Mara Garib, então responsável pela Secretária de Trabalho e Assistência Social do Mato Grosso do Sul. Segundo análise feita por Ribeiro, o projeto original estava assim configurado: Apresentava quatro artigos que versavam sobre o âmbito de atuação (domicílio e instituição de longa permanência para idosos), funções (prestação de apoio emocional e na convivência social do idoso; auxílio e acompanhamento na realização de rotinas de higiene pessoal e ambiental e de nutrição; cuidados de saúde preventivos, administração de medicamentos de rotina e outros procedimentos de saúde; auxílio e acompanhamento no deslocamento de idoso), sobre quem pode exercer a profissão (maior de 18 anos que tenha concluído o Ensino Fundamental e curso de cuidador de pessoa) e restrições (desempenho de

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atividade que seja de competência de outras profissões da área da saúde legalmente regulamentadas). (RIBEIRO, 2015, p.80).

Após ser publicado no Diário do Senado Federal, o projeto foi recebido na CAS que, por sua vez, através de sua presidência, designou a senadora Marta Suplicy como sua relatora. O itinerário regimental estabeleceu ainda no ano de 2011 requerimento para Audiência Pública para instruir o referido projeto. Essa primeira audiência ocorreu em 20 de outubro de 2011, em Brasília, sendo seguida de consulta pública realizada no período de 01 de dezembro de 2011 a 25 de fevereiro de 2012 e de uma segunda audiência pública em São Paulo (01 de junho de 2012). Como confirma a pesquisa de Raquel Noel Ribeiro (2015), em todas essas etapas ocorreu a participação de instituições e pessoas que trabalham na área, sendo que na segunda audiência houve participação in loco de várias pessoas que estavam no recinto da discussão, mas que não faziam parte da mesa de discussão, tais como representantes de idosos, cuidadoras de idosos, conselhos profissionais, profissionais, “que puderam contribuir com posicionamentos variados e explicitar concordâncias e discordâncias com as ideias apresentadas, tanto nas falas, como na vaias e aplausos”. (RIBEIRO, 2015, p.85). Todo esse processo político e administrativo, que ocorre quando se objetiva a regulamentação de uma profissão, é permeado por conflitos de interesses entre categorias profissionais. Isso não deixa de ocorrer quando se trata da questão do cuidado e de suas/eus trabalhadoras/es. Da mesma forma, é salutar refletir sobre os discursos que ou positivam de maneira exacerbada os aspectos benéficos de uma regulamentação profissional ou, pelo contrário, só vislumbram dificuldades provindas desse tipo de decisão. A linha de abordagem principal adotada pelos defensores da regulamentação da profissão do cuidador de idoso baseia-se no pressuposto de fortalecer a qualificação desses trabalhadores, conferindo-lhes maior visibilidade, reconhecimento e possibilidade de integração e inserção nas políticas públicas. Outro argumento levantado nesse sentido está no possível esclarecimento que esse processo pode trazer, especialmente quanto ao papel e responsabilidade que cada instância deve assumir, isto é, empregadores, cuidadoras e poder público. 206


Também é extremamente oportuno colocar na fileira dos argumentos favoráveis à reflexão de Guimarães, Hirata e Sugita (2012), em especial por se ver nesse movimento de questionamento e busca de direitos, por parte das cuidadoras, uma possibilidade de crítica a um modelo que essencializa o care como atribuição “natural” de mulheres. Para essas estudiosas, a emergência do cuidado como profissão pode implicar um processo de ruptura e distanciamento da concepção de que esta atividade ocorra como uma “servidão” voluntária e naturalizada do trabalho feminino doméstico. No mesmo sentido, é pertinente a reflexão de Camarano e Kanso (2009), especialmente por vislumbrar na formalização e mercantilização do cuidado uma forma de suprir as carências que as novas configurações familiares já não conseguem satisfazer. Por outro lado, as maiores dúvidas sobre os benefícios que a regulamentação da profissão de cuidador de idosos pode trazer para todos os segmentos sociais envolvidos, sobretudo para os trabalhadores que já estão em atividade e para aqueles que vislumbram nessa atividade profissional uma forma de entrar no mercado de trabalho, residem na elevação dos custos econômicos do care. O receio de que a regulamentação da profissão do cuidador de idoso gere elevação nos custos econômicos desse trabalho ficou muito evidenciado no campo da pesquisa realizada com as cuidadoras de pessoas portadoras da enfermidade de Alzheimer. As cuidadoras, apesar de não conhecerem o conteúdo do projeto que preconiza esse reconhecimento jurídico e formal diante do Estado, estão em seu cotidiano percebendo através das falas de quem lhes contrata um certo temor, uma preocupação com os gastos que esse processo virá a determinar. Algumas cuidadoras revelaram preocupações quanto à permanência delas nos atuais empregos, assim como dificuldades em conseguirem novos locais e boas condições de trabalho. De um lado, elas reconhecem a importância de serem reconhecidas e contratadas pelo que fazem, isto é, cuidadoras. Por outro, na concretude de seu cotidiano, estão cientes de que a elevação de custos na contratação e permanência em seus locais de trabalho pode vir a constituir um risco a seus empregos. O depoimento de Carolina explicita esse sentimento ambíguo existente entre essas mulheres cuidadoras, de um lado, o receio de que uma eventual profissionalização possa redundar em demissões e falta de trabalho e, por outro, o desejo de ter seus direitos enquanto cidadã e trabalhadora respeitados: 207


Olha, eu vou ser muito sincera com você, mas sincera mesmo, isso de criar uma lei, de criar uma profissão de cuidadora não sei se vai ajudar muito não. Sandro, o povo não quer pagar direito, não adianta, a gente precisa de trabalhar, precisa sustentar os filhos, manter a casa [...]. Veja, esse negócio mesmo, essas leis aí das outras empregadas (refere-se às empregadas domésticas), tenho um monte de conhecida que tão morrendo de medo de perder o emprego. Então, não adianta ter a profissão e depois não ter o trabalho né [...]. Agora, se tiver a profissão e respeitarem os direitos da gente, daí eu acho que seria bom. (Carolina)

De fato, a regulamentação de uma profissão enseja, entre outras coisas, a pressão da classe no sentido de se estabelecer uma espécie de piso salarial para a categoria. Para os críticos, tal desencadearia um expressivo encarecimento desses serviços e a dificuldade de acesso por parte de famílias e idosos em situação econômica desfavorável. A exigência de qualificação dessas profissionais, estipulada pela legislação que regulamenta a criação da profissão, também é percebida como um fator que pesará na definição dos custos do cuidado, pois o profissional qualificado requererá um salário condizente com sua formação. A pesquisa de Martins e Mello, “A contratação do cuidador de idosos: quem pagará essa conta?”, aborda essa preocupação com o aumento dos custos do cuidado que decorre da regulamentação da profissão do cuidador de idosos. Em breve levantamento com familiares de dez idosos que possuem cuidadores domiciliares, percebeu-se que a diferença percentual entre o menor e o maior salário pago é de 190%, sendo que a média salarial é de R$ 1.219. Observou-se que 70% dos cuidadores não possuem registro em carteira, 70% fizeram curso de formação de cuidador e 40% dos maiores salários são atribuídos aos profissionais que fizeram o curso, embora não haja correlação entre fazer o curso e ser registrado. (MARTINS; MELLO, 2013, p.60).

Além desses argumentos que seguramente estão coadunados com uma orientação econômica que enxerga, na livre iniciativa, nas leis do 208


mercado, as melhores formas de adequar demandas e respostas satisfatórias às mesmas, no presente caso de contratação da mão-de-obra disponível na sociedade, existe também a defesa dos interesses de categorias de outros profissionais da saúde. Fica notório que emanam desses setores as críticas mais severas a todo esse processo. Normalmente, o argumento principal que tem sido utilizado para rechaçar os defensores da regulamentação e seus discursos centra-se na competência necessária para o desempenho de algumas das atividades que, a partir da regulamentação, poderiam vir a ser atribuições do cuidador de idosos. Como se trata de disputas travadas no interior de uma área fundamental para a população, ou seja, em relação ao acesso à saúde e obviamente aos riscos que podem ser gerados pela inabilidade técnica de um profissional mal preparado, não são raros os argumentos que possuem, em seus conteúdos, falácias e um tom exagerado de emocionalismo. Esse processo de disputa e de busca de manutenção de um mercado de trabalho, por parte de determinadas categorias, não é algo novo, como, muito menos, deixa de seguir pressupostos de uma filosofia econômica neoliberal. Também não deve ser visto como algo exclusivo de trabalhadores da área da saúde. Nesse sentido, é muito provável que essa não seja a questão de fundo de todo esse processo, até porque seria um enorme contrassenso, caracterizado por ilegalidades, estabelecer para as cuidadoras de idosos atribuições para as quais não foram e não estão preparadas. A discussão poderia ser muito mais produtiva se, por exemplo, o problema do acesso aos cuidados e o trabalho do care fosse democraticamente distribuído, fundamentando decisões políticas de governos; enfim, se fosse enfrentado por ações das políticas públicas em mais de um setor, estando aqui incluída a Saúde, a Assistência Social, os Direitos Humanos, o mercado profissional e, afinal, a sociedade como um todo.

Considerações finais A situação das/os trabalhadoras/es do cuidado no Brasil é de abandono e invisibilização perante ao Estado e à sociedade de maneira geral. Nas poucas políticas públicas que visam a construir algum tipo de atendimento e acompanhamento para as famílias de pessoas enfermas, assim como para as pessoas que são responsáveis e executoras do cuidado, esse trabalho é realizado por outras mulheres. 209


De qualquer modo, o que se constata nesse tipo de iniciativa é que se trata de mulheres, agentes do serviço público, cuidando de mulheres, mulheres e cuidado, ou ainda, que a participação masculina, quando existe, é mínima e pontual, como nos momentos em que se definem os recursos financeiros dessas políticas, suas orientações, objetivos e fins. A questão que se coloca é que mais uma vez são as mulheres que são responsabilizadas pelo cuidado, reforçando-se essencializações e naturalizações. E isso dificulta ainda mais a politização do cuidado enquanto exigência para o exercício democrático da cidadania. O cuidado com as trabalhadoras do care, quando existente, ocorre sob condições precárias, resultando em mais um obstáculo para a sua democratização. Um reflexo dessa invisibilização política do cuidado e de suas trabalhadoras, no caso brasileiro, está nas condições de trabalho às quais são submetidas essas pessoas, especialmente, por não possuírem, através da regulamentação de sua profissão, amparo jurídico e institucional por parte do Estado. Todavia, é preciso pensar essa problemática em sua complexidade, evitando posturas ingênuas que postulam que a regulamentação de uma profissão, como seria o caso da profissão do/a cuidador/a de idosos, seja condição única ou exclusiva para se obter o reconhecimento e a valorização do cuidado e de suas/eus trabalhadoras/es. Não há dúvida de que esta é uma etapa necessária, mas a democratização do cuidado e sua necessária politização não serão alcançadas de maneira simplista, muito menos ao se estabelecer que um fator isolado seja causa e solução de estruturas e ideologias tão arraigadas no imaginário e nas práticas sociais. Assim, a omissão do Estado e da sociedade, de maneira geral, para com essas cidadãs trabalhadoras, está a revelar de maneira categórica que o cuidado ainda não adquiriu centralidade na elaboração de políticas públicas democráticas. O care é tomado como um apêndice de outros poucos programas sociais, algo secundário, destituído de sua real importância social e política. Nesse sentido, é oportuna a reflexão de Joan Tronto, ao falar da necessidade do estabelecimento de sociedades assistenciais democráticas, isto é, “se não ocorrer uma transformação do contexto social e político, o cuidado é condenado a permanecer uma ética marginal e de subalternos”. (TRONTO, 2013, p.180).

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O CUIDADO DE CRIANÇAS: DESAFIOS CULTURAIS, SOCIAIS E POLÍTICOS Marcela Komechen Brecailo35 O cuidado e a maternidade se entrelaçam social e culturalmente por aspectos vinculados à naturalidade e à feminilidade da maternagem; e, contextualmente, o cuidado materno foi tomado como um valor moral nas diversas estruturas sociais como a médica, jurídica e econômica, em saberes que associam a feminilidade com o cuidado. Por se tratar de um dos pilares da desigualdade social entre homens e mulheres, a produção teórica feminista não poderia ficar aquém da perspectiva do cuidado e, dentro dela, da maternagem e do cuidado de crianças. O cuidado, o cuidar e, mais precisamente, a necessidade de cuidado são temas não apenas pessoais e privados, mas também sócio-políticos, dado que, em algum momento da vida, todas as pessoas precisam ou precisarão de algum tipo de cuidado e, em algum momento, dispensam ou dispensarão atos de cuidado. Trata-se de uma relação que ganha mais importância por se tratar de uma dinâmica cotidiana que afeta, no mínimo, quem cuida e quem está sendo cuidado. (TRONTO, 1997). O cuidado concerne à experiência e a tudo o que fazemos para cuidar e reparar o mundo. Assim, ele ganha sentidos tanto de prover o cuidado quanto de experiência pessoal. Colocado no centro da discussão democrática, Joan Tronto (1997) mostra como a maior parte deste tipo de trabalho é realizado pelas mulheres, escravos e classes mais pobres. Estes aspectos trazem as razões históricas da desvalorização constante dessas práticas, aspectos que, segundo Tronto, precisam ser superados, porque todos em algum momento precisam de cuidados. Para ela, cuidar comporta uma visão ética e política para a vulnerabilidade. Vulnerabilidade e dependência não 35 Nutricionista, Mestre em Nutrição, Doutora em Sociologia. É docente do Departamento de Nutrição da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR), nas áreas de Saúde Pública, Bioética, Sociologia da Alimentação e Antropologia da Alimentação. É pesquisadora das áreas de Nutrição em Saúde Pública e Cultura, Gênero e Saúde. marbrecailo@gmail.com

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são momentos acidentais na vida; todas as sociedades sabem que precisamos de cuidado e que somos igualmente doadores de cuidado. Para tal, o desafio é sair da descrição normativa e superar a separação entre ética do cuidado como elemento exterior à prática. Ainda segundo a mesma autora, os atos de cuidado envolvem não apenas uma eficácia técnica, mas também uma eficácia simbólica, acompanhada de vínculos afetivos, principalmente quando ocorre no âmbito familiar e não profissional, como é o caso do cuidado das crianças por mães, tias e avós. De fato, a carência de uma visibilidade como produto mercadológico ou serviço profissional é um dos motes mais importantes para manter o cuidado na esfera privada, escamoteando em uma ética deturpada o trabalho afetivo como um cuidado que deve ser dispensado sem qualquer interesse. Cristaliza-se, desta forma, o cuidado como um trabalho doméstico, do feminino e desprovido de valor econômico, reforçando as estruturas diferenciadoras de gênero e constituindo-se em instrumento de análise das relações sociais de desigualdade e poder. É que, segundo Brunella Casalini (2011), ele se relaciona com colocar crianças no mundo e assisti-las, assim como assistir a outras pessoas necessitadas de carinho e de atenção, e também com a limpeza das casas e das roupas, a preparação da comida e de todas as atividades cotidianas orientadas à satisfação de necessidades físicas e afetivas, e que são, tradicionalmente, realizadas por mulheres, no âmbito do lar, de forma gratuita ou parcamente remunerada. Embora algumas mudanças venham se delineando nas conformações familiares, as mulheres mantêm-se como prioritárias na responsabilidade pela casa, muitas vezes mantendo uma dupla jornada de trabalho. (OLIVEIRA, 2007). São elas também as responsáveis pelas crianças e idosos, necessitando muitas vezes o auxílio de outras mulheres, em redes de solidariedade, que incluem mães, irmãs, tias, primas, amigas, vizinhas e filhas mais velhas. A maternidade, como função historicamente atribuída às mulheres, se conecta aos cuidados maternos e à naturalização da capacidade de cuidar, incluindo a obrigatoriedade do aleitamento materno, considerado no discurso médico e político como sendo natural para a mulher que gerou uma criança, além de moralmente desejável como ato de cuidado prestado por uma “boa mãe”. Este capítulo remete à relação social e cultural que se faz da mulher com as atividades do cuidado de crianças e do amamentar e o entrecruzamento 218


político nesta relação, a partir de políticas públicas que não estão sensíveis para as formas como as mulheres são afetadas pela responsabilização diferenciada das atividades do cuidado de uma criança. Para impulsionar a discussão, serão utilizadas as entrevistas feitas com 12 mulheres, mães de crianças entre 6 meses e dois anos de idade, sobre suas rotinas de cuidado de seus filhos e suas filhas, retratando suas experiências de maternagem e amamentação. Estas mulheres recebiam informações sobre cuidado, saúde e aleitamento materno institucionalizado, provindo da Estratégia Saúde da Família36 e das suas relações sociais e familiares, como suas mães, irmãs, tias, primas, vizinhas e amigas. As entrevistas foram realizadas em um município de médio porte no estado do Paraná, Brasil. Todos os nomes citados são fictícios, para garantir o anonimato das participantes e de seus filhos e filhas.

As experiências de cuidado e o aleitamento materno Por fazer parte de um tema do cotidiano, relacionado à história e à cultura de um local, a maternidade, o aleitamento materno e as formas de se cuidar de uma criança aparecem em diversos modos e por diversas vozes, assim como retratado por Fernanda (21 anos, 1 filho): “Sempre vai ter alguém que vai dar um palpite, sobre o filho, sobre a gravidez, se é a roupa passada, se é o cabelo, sempre vai ter alguém para dar um palpite [risos]. Sempre tem! Sempre tem!” A forma como as mulheres gestantes e as mães recebem, acolhem e ressignificam estas falas varia na sua rede de interdependências para a prática e de acordo com suas experiências. O pertencimento ao grupo social como mãe não pode definir isoladamente sua posição, mas marca sua sociabilidade em relação aos profissionais e outros membros da família, especialmente outras mulheres. 36 A Estratégia Saúde da Família (ESF) é um programa federal de racionalização da atuação dos serviços básicos de saúde, composta, no mínimo, por um médico da família, um enfermeiro, um auxiliar ou técnico de enfermagem e de cinco a 12 Agentes Comunitários de Saúde (ACS) – majoritariamente mulheres – que visitam os domicílios perto de cada Unidade Básica de Saúde (UBS), abarcando o maior número possível de pessoas com diabetes, hipertensão, gestantes e crianças menores de dois anos e repassando informações em cuidado e saúde para a mulher residente no domicílio (a mãe, a dona da casa). A Estratégia Saúde da Família potencializa a assistência básica em saúde, que posiciona a mulher como terreno da intervenção médica, reforçando seu lugar como auxiliar para as questões de cuidado dos outros membros familiares.

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As vantagens e os constrangimentos específicos de ser mãe são elementos de suas trajetórias, mas não são os únicos; a interação entre diferentes elementos, em cada contexto específico, caracteriza o indivíduo, socialmente, em sua trajetória e pertencimento e sua subjetividade. (BIROLI, 2013). Embora todas as mulheres entrevistadas tenham, em maior ou menor intensidade, e com variadas expressões de importância, feito referência ao aconselhamento institucionalizado de profissionais sobre o aleitamento materno, outras falas dão maior segurança às mulheres, principalmente às provindas das mulheres mais experientes da família, como suas mães, tias, irmãs e primas. Suzana (21 anos, 1 filho) e Joana (25 anos, 2 filhos), por exemplo, referem a confiança nos aconselhamentos de suas mães e sogras, uma vez que tiveram e criaram seus próprios filhos; portanto, são pessoas que podem aconselhar, pois “ela entende”, e “eu tenho ela pra me guiar, né, nas coisas para eu fazer com ele”, uma vez que a experiência demonstrou adequação da forma de cuidado prestado por elas. A falta de uma proximidade linguística também se torna um obstáculo para estas mães, no contato com os profissionais de saúde. Além da ligação afetiva com as mulheres de sua família e a confiança na experiência – em desapreço às teorias contidas em livros – estas mulheres entendem-se com seus pares, podendo tirar dúvidas e seguir suas recomendações. Bruna (18 anos, 1 filha) conta que sua mãe a “orientava mais”, “o que ela sabia ela me explicava, o que ela podia passar ela me passava”. Ela explica porque esta forma era mais adequada para ela: No posto, lá, eles querem mais explicar do jeito deles, né. Agora, a mãe explica mais do jeito dela, o que ela viveu. Agora, o do posto, eles querem explicar mais o que eles estudaram. [...] tem mulher que “Ah, sente dor pra ganhar, mas é pouca”, daí minha mãe perguntava “Você já tem filho?”, “Não, não tenho nenhum, e nem quero ter”. Então acho, assim, que falta um pouco de [...]. Certo, os livros ensinam muito, mas você tem que também viver a experiência pra saber. [...] acho que eles deviam explicar mais de um jeito natural pra gente e não tanto, tanto como de livro, livro [...] ah, as palavras [...] complicam, acho que é isso. (Bruna, 18 anos, 1 filha).

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Bruna explicita em sua fala que a dinâmica da relação é mais importante para a tomada de decisões sobre o como fazer. Sinaliza que os conhecimentos que circulam na estrutura do Setor Saúde e, portanto, pelas profissionais da Unidade de Saúde, falham em traduzir o conhecimento para a rede familiar e para as necessidades e especificidades do vivido por ela com a filha. No diálogo entre pessoas leigas e profissionais da saúde, existem interrupções, desencontros de interpretações e de entendimentos, que dificultam a interação. A tradução, porém, não se refere a uma simples troca de palavras, mas, sim, a uma sensibilidade em relação aos significados que aproximam as categorias médicas e as categorias nativas. (GOOD, 1994). Trata-se de compreender as relações que perpassam as práticas e ordens simbólicas do fazer das mães e de entender a experiência mediada por estas categorias. A fronteira entre o saber técnico e o social poderia assim ser reconhecida como complexa e fluida, onde a pluralidade de conhecimentos seria intrínseca à ciência. (SANTOS, 2005). Separados e hierarquizados, os saberes não se encontram; ao contrário, muitas vezes se chocam em uma disputa de legitimação da verdade, que, simbolicamente, vem privilegiando o discurso médico, em detrimento da experiência, pois o primeiro está totalmente descolado da realidade prática. Mas se, simbolicamente, ele é tido como verdadeiro, quando gera um conflito frente a um outro saber mais adequado à ela, a reflexividade se volta para o saber não técnico e para as informações e a ajuda de suas relações pessoais e familiares. Laís (25 anos, 1 filha), por exemplo, demonstra que o discurso institucionalizado não foi adequado para ela. Não se recordava do que foi dito a ela na Unidade de Saúde e no hospital, demonstrando que não lhe pareceu importante ou não foi compatível ao seu entendimento. As explicações da mãe e da tia, no entanto, bem como a ajuda objetiva com o cuidado da filha, ensinaram a Laís o que era necessário para ela se sentir segura, pois “[Minha mãe e minha tia] estavam me ajudando ali, tipo, se elas não me falassem, eu ficava sem entender, né, porque não sabia... era o primeiro filho. [...] Se elas não me explicassem nada, eu ia ficar igual um peixe fora d´água, sem saber fazer nada” (Laís, 25 anos, 1 filha). Da mesma forma, as recomendações institucionalizadas não fizeram sentido para Suzana (21 anos, 1 filho), que não reproduz em discurso as 221


recomendações fixas, porém oferece o peito por livre demanda a seu filho, não porque aprendeu desta maneira pela teoria, – embora em algum momento ela possa se inter-relacionar com os conteúdos subjetivos –, mas, pelo que observou em sua prática, da forma como “o peito sustenta, porque ele mama e depois fica quietinho”. Relata que já sabe que “Quando ele chora eu sei que ele quer mamar.” (Suzana, 21 anos, 1 filho). Gabriela (30 anos, 3 filhos) seleciona o que acolhe do discurso médico e o que, ao contrário, se conflita com ele, e decide seguir sua própria experiência e o aconselhamento de sua mãe. Para iniciar a introdução dos alimentos para seus filhos, escolheu seguir o recomendado por sua mãe: Então, no postinho, a médica dizia que era depois dos seis meses. Mas só que aqui na casa da minha mãe – ela é, assim, do tempo antigo – então ela achava que com três meses já podia dar. Então ela começou a dar com três meses. Começou a dar água, dava suco, dava papinha. Então com seis meses ele já estava comendo de tudo. No postinho eles diziam, com seis meses, mas eu comecei a dar com três. [...] [as informações do postinho] é de se aproveitar, algumas coisas, porque já outras, eu já… [...] Só isso que eu não levei a sério, mas o resto eu levei tudo a sério, o mamá, o cuidado, né, as vacinas que têm que estar todas em dia... (Gabriela, 30 anos, 3 filhos)

Demonstra-se que, não necessariamente, há uma discordância no fundamento do que é recebido como aconselhamento vindo da teoria médica. E também a transgressão destas normas não é sentida como discordância. A prática, no entanto, baseia-se na experiência, que tem várias formas de conjugar o vivido com as novidades aprendidas por meio da teoria. Para Joana (25 anos, 2 filhos), a oferta de chazinho para seu bebê, encorajada pela sua sogra, não é incoerente com o discurso do aleitamento materno exclusivo. A confusão entre este tipo de alimentação e a alimentação artificial é resolvida pela sua própria percepção, concluindo que o aconselhamento de sua sogra trouxe melhores resultados do que a recomendação de sua médica. Daí ela [médica] dizia: “Até os seis meses, só leite do peito, não dê água, não dê chá, não dê nada”. Daí, agora, eu estou dando,

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porque eu acho que com o leite [fórmula infantil] ele sente sede, daí alguma coisa eu sempre dou pra ele. [...] Daí eu acho que agora ele está se alimentando mais. Eu acho, né, não sei se isso é verdade. (Joana, 25 anos, 2 filhos).

Já as boas experiências com o aleitamento materno na família encorajam o seguimento da recomendação, como no caso de Simone (24 anos, 2 filhos), que acompanhou sua madrasta no amamentar seu irmão exclusivamente por seis meses e de forma complementar por mais de dois anos, recusando-se a oferecer mamadeira, mesmo com o aconselhamento contrário de outras mulheres da família. Simone observou que o modo como sua madrasta escolheu amamentar seu irmão foi efetivo na sua percepção, pois “eu vi, assim, que meu irmão era forte, gordo assim, bem gordão, né, então só o peito, entendeu?”, decidindo-se pela mesma forma de alimentação para seus filhos. As trocas de experiência fazem parte das relações destas mulheres, com suas mães, tias, irmãs e filhas. Quando, porém, é necessário confrontar o vivido por seus pares e a experiência, é o que é vivido pela própria mulher, no cuidado de outras crianças e na amamentação de seus primeiros filhos, que é considerado o mais importante. Andréa (39 anos, 6 filhos), por exemplo, em seu sexto filho, considerou que sua prática dispensa aconselhamentos, relatando não ter conversado com ninguém sobre gestação, parto e cuidado de recém-nascidos na última gestação. Ao ser questionada sobre uma possível conversa com sua filha de 17 anos, que estava grávida de 5 meses no momento da entrevista, sobre a amamentação e o cuidado do bebê, Andréa respondeu em negativa, explicando que sua filha já auxiliou no cuidado de seus irmãos e cunhados, então, “ela já sabe [...], acho que ela está tranquila”, demonstrando que é a experiência e a prática cotidiana que são relevantes, e não os aconselhamentos. Gabriela (30 anos, 3 filhas), que relata ter sempre se aconselhado com sua mãe e ter experiência com o cuidado de sua sobrinha, antes de ter seus filhos, também confia na sua prática, frente ao discurso institucionalizado. Conta que ouviu sobre aleitamento materno, cuidado, forma de colocar o bebê para dormir, entre outras coisas, mas que são “essas coisas que a gente já sabe, né”. 223


De fato, verifica-se que é a própria experiência, atual ou anterior, que faz com que estas mulheres confrontem ou confirmem o discurso médico e estabeleçam o seu próprio ideal de aleitamento. Ana Rosa (37 anos, 4 filhos) fala sobre as palestras realizadas na maternidade para ensinar as mães a amamentar com o seio. Ela considera que, quando é o primeiro filho de uma mulher, algumas informações são úteis; porém, ela “já tinha um pouco de experiência; então [...] já não [...] aquilo dali foi mais, mesmo, pra estar ali, junto com elas”. Luana (26 anos, 2 filhas) também só teve confiança no discurso médico quando o confirmou com a sua experiência, pois relata que anteriormente teve medo, porque não acreditava que “Uma coisa que é branquinha, que não tem nem cor direito, pudesse ser rico em tanta vitamina, pudesse sustentar”. Mas, com o passar dos dias, fui vendo que estava engordando, que estava tendo um desenvolvimento bom; aí comecei a parar com a neura de [...] de que o leite não adiantava”. Joana (25 anos, 2 filhos) credita valor à recomendação médica e o reproduz, em conformidade com a norma da necessidade de se oferecer exclusivamente o seio até os seis meses de idade da criança, confiando nas palestras a que assistiu no puerpério e nos conhecimentos adquiridos no curso técnico de enfermagem. Na prática, entretanto, cotejou isso com a sua rotina e decidiu por interromper a aleitamento materno exclusivo, pouco antes de seu filho completar três meses de idade, e reconheceu vantagem nesta prática, com base em sua observação. Eu intercalava, quando comecei a dar [fórmula infantil]. Eu dava uma mamadeira, daí depois de três horas eu dava o peito. Daí eu e a [sogra] começamos a contar. Quando ele pegava no peito demorava uma hora ele já queria mamar de novo, e [a fórmula infantil], a gente dava, ele demorava mais. [...] Daí eu acho que agora ele está se alimentando mais. (Joana, 25 anos, 2 filhos)

Assim, Joana, mesmo considerando o leite do peito o melhor para uma criança, refletiu e confrontou a recomendação com sua prática. Verbalizou que “o leite materno é excelente”, mas ponderou que seu filho “só chora”. A médica a aconselhou a dar, “até os seis meses, só leite do peito”; mas, com a mamadeira, ele ficou “bem tranquilinho”, chora menos e dorme mais. 224


Por acolher o discurso médico, Joana (25 anos, 2 filhos) passou por um período de dúvida para introduzir a mamadeira; mas, depois observou que o não seguimento da recomendação melhorou seu cotidiano e parece ter sido benéfico ao filho: eu pensei, quando eu comecei a dar o [fórmula infantil], eu falei: “Ah, eu vou dar o [fórmula infantil]”, só que daí eu fiquei pensando “se ele pegar [...]”, porque eu já sabia que se ele pegasse mesmo o [fórmula infantil] ele iria largar o peito. Então eu sabia esse lado, mas mesmo assim eu queria dar o [fórmula infantil]. Acho que foi o momento que eu pensei que ele iria largar do peito. [...] Eu fiquei, assim, em dúvida: “Será que eu dou ou não dou [fórmula infantil]?” E optei por dar mesmo, porque ele, olha, está bem tranquilinho aqui. (Joana, 25 anos, 2 filhos).

Da mesma forma, Melissa (31 anos, 3 filhas), ao encontrar dificuldades no manejo da amamentação, começou a fazer negociações consigo mesma a respeito do tempo que amamentaria sua filha. Da consideração inicial de, no mínimo, seis meses, por causa da importância do aleitamento materno para a criança, Melissa passou a ponderar que deveria amamentar pelo menos um mês, quando começou a ter fissuras que não cicatrizavam e lhe causavam muita dor. Ao ser auxiliada pela irmã, que lhe aconselhou uma pomada cicatrizante específica, Melissa chegou ao terceiro mês de amamentação. O conflito com a norma médica, a relativização de sua subjetividade e a reflexividade levaram Melissa a tomar a todo momento decisões que se adequassem ao vivido na experiência com a filha. Então, mesmo conhecendo a norma médica e verbalizando inicialmente sua concordância, existe uma reflexão com base na experiência, naquilo que se verifica em sua família e em sua rede de relações. Com isto, para considerar a prática do aleitamento materno, as mães contrapõem os prós e os contras verificados na experiência concreta. Isto também foi expresso por Andréa, que reconhece a individualidade de cada criança e, portanto, a diferença no cuidar de uma ou de outra, e também que as repercussões de um mesmo ato, como amamentar, não necessariamente, são as mesmas para duas crianças diferentes.

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Ah, tem bastante criança que não mamaram no peito e é saudável [risos]. Eu acho que não tem muita diferença em dar de mamar na mamadeira ou no peito, né. Tem criança que mama na mamadeira e são mais saudáveis que as que mamam no peito [risos]. Depende também de cada organismo da criança também, né. (Andréa, 39 anos, 6 filhos).

Com base nesta individualidade de cada criança, observa-se também que esta experiência prévia é bastante influente, mas não é absoluta, para o cuidado e a amamentação do filho mais novo, pois uma criança é diferente da outra. Joana (25 anos, 2 filhos) conta que “vê a diferença hoje em dia” entre os dois filhos. Diferente da sua primeira filha, Marco Antônio queria mamar frequentemente (“de quinze em quinze minutos”). A recomendação institucionalizada prevê que o aleitamento materno deve ser oferecido sob livre demanda e esta recomendação é conhecida por Joana. Entretanto, neste caso, torna-se inviável sua aplicação, fazendo com que Joana buscasse outras estratégias de alimentação do filho, que não lhe exigisse mantê-lo ao seio o dia inteiro. Ao contrário do que está observando de sua experiência, a recomendação é fixa e Joana, mesmo considerando a importância do que aprendeu nos cursos na área da saúde, seguiu até quando considerou adequado para si mesma. Valentina (39 anos, 4 filhos), por exemplo, possuía uma percepção pessoal sobre a necessidade das crianças, que é diferente da que é veiculada pela ciência médica, e está bastante convencida de que sua prática é a melhor para seus filhos, além de facilitar sua rotina. Dizia não concordar com a recomendação de dar água, chá e iniciar a alimentação apenas após os seis meses de idade da criança. Começou a fornecer alimentação complementar aos seus filhos aos dois meses, explicando que considera que quanto mais se espera, mais dificuldade a mãe terá depois com a alimentação da criança, e “a vida da mulher hoje está muito corrida; então, quanto mais fácil puder, melhor”. Bruna (18 anos, 1 filha) declara ter seguido a norma apenas enquanto era ‘obrigada’ pela política de pós-parto do hospital, que só autoriza a alta da mãe quando considera que o aleitamento materno está estabelecido. Contou que lhe diziam: “Se você não aprender a dar de mamar pro nenê você não vai embora”. Assim que possível, iniciou a alimentação conforme considerou melhor para ela, ou seja, “[no primeiro dia em casa] eu pus na mamadeira”. 226


Da mesma forma, Gabriela (30 anos, 3 filhos) se aconselhou com a mãe, que tinha outra opinião em relação ao aleitamento materno exclusivo. A experiência da mãe é predominante para a prática de Gabriela, mas a recomendação médica transgredida fica escondida, para evitar desgastes; utiliza-se desta forma o silêncio como um jogo estratégico, mas onde prevalece sua decisão, tomada a partir de outras relações. Na consulta, ouvia as recomendações da médica, mas fazia em casa conforme era coerente com a sua percepção. Gabriela – Quando eu ia na médica: “Ah, agora você comece com a água, com o suquinho”, e eu já estava dando suco a tempos, né, mas o resto não [...]. Pesquisadora – E você falou para a médica que você já estava dando? Gabriela – Não [risos]. Não, porque ela brigava. Porque uma vez que eu fui, que tinha palestra, sempre que a gente ia, todas as mães que iam consultar tinham palestra sobre o nenê. Daí ela começou a falar disso, que era pra dar comida depois dos seis meses, e a menina falou: “Ah, eu já dou comida para o meu filho”, ele já tinha quatro meses, ela pegou e brigou com a menina, né, falando que dilata o estômago [...]. falou um monte de coisas lá, mas só que [...]. Daí eu não falava pra ela, mas eu dava comida pra ele. (Gabriela, 30 anos, 3 filhos)

No caso de Valentina (39 anos, 4 filhos), sua percepção sobre o que é mais adequado para um bebê e para ela mesma, em termos de amamentação e alimentação, é vista como uma transgressão do aconselhamento médico e lhe rendeu um desconforto na consulta médica; ela relata que “era chamada à atenção algumas vezes pelos pediatras”, quando contava que antes dos seis meses oferecia água, frutas, papas e sopas. Pesquisadora – E como você se sentia quando o médico chamava a tua atenção? Valentina – Ah, muito segura da minha posição [risos]. Muito segura, não me traz confusão aquilo que eu tenho certeza

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que não está fazendo mal. [...] E na questão do pediatra teve, inclusive, um episódio, que foi um episódio que foi mais marcante, que a pediatra era mãe também, e eu falei pra ela: “Olha, eu estou dando sopinha [...]”, na época era para a [terceira filha], “[...] já, de batata, cenoura[...]” ela já tinha cinco meses. [...] a pediatra bateu na mesa assim, quando eu terminei de falar, ela disse que eu estava louca [risos], disse que iria me processar, que iria me levar no conselho tutelar [risos], porque eu estava sobrecarregando o estômago do bebê. Mas ela estava dentro do peso normal, ela estava feliz e contente, você viu ela ali, né, feliz e contente. (Valentina, 39 anos, 4 filhos)

Uma ciência médica, que parte apenas do abstrato e invisibiliza as representações da mãe sobre o corpo e a alimentação de seu filho, torna impossível um diálogo entre os dois saberes. A separação mente/corpo feita pela medicina ocidental reduz a pessoa a parâmetros bioquímicos; e esta base estatística, objetiva e quantificável não permite espaço de comunicação entre as duas realidades, das mulheres e da medicina, reiterando a superioridade do conhecimento médico. O seguimento da orientação médica, a transgressão de tal orientação, a escuta das falas experientes de outras mulheres, as próprias experiências e a individualidade da criança formam arranjos para o aleitamento materno que geram um caleidoscópio de possibilidades, gerenciados de acordo com as possibilidades, saberes e empoderamento de cada mulher. “A singularidade da trajetória dos indivíduos e seu investimento criativo na sua própria vida não estão em contradição com o reconhecimento dos constrangimentos estruturais à sua agência”. (BIROLI, 2013, p.61). Estas mulheres atuam articulando a cultura e sua posição frente às necessidades e estratégias de conhecer, mas não necessariamente decidem assumir. Elas decidem suas práticas a partir de uma interdependência com outros saberes, trocados com mães, amigas, mães desconhecidas que encontram na Unidade de Saúde, bem como com as profissionais de saúde. As relações podem ser concebidas como a formação de um tecido por uma teia que está em constante mudança e movimento, com diversos polos interligados. As representações abstratas e simbólicas sobre cada situação vivida posicionam esses polos e os põem em movimento; a cada ação em uma direção, todo o tecido se reorganiza, reposicionando os polos e originando 228


as novas tomadas de decisão. (ELIAS, 1993). Os polos de interdependência desta teia se formam na relação com outras mulheres, com as representações prévias, com a experiência em curso, com os profissionais da área da saúde, com a estrutura da saúde e com outros fatores da vida cotidiana. O entrecruzamento entre elas ainda pressupõe uma reciprocidade. Entretanto, não é uma reciprocidade com isonomia ou equilíbrio destas relações. A maior ou menor dependência de um ou de outro polo da teia puxa a tomada de decisão para uma ação. (ELIAS, 1993). Deste modo, as mulheres que necessitam de suas mães para o cuidado dos filhos tendem a considerar mais os seus conselhos; as que ingressaram como profissionais no setor saúde podem dar mais valor a estas informações; e as que dependem da manutenção de seu emprego para o sustento da família podem dar ainda maior peso aos horários de seu cotidiano para decidir sobre a alimentação dos filhos. Mesmo que estes fatores reorganizem toda a teia, porém, nenhum é decisivo para a tomada da decisão final, que depende da situação concreta. É a partir dela, vivida no cotidiano, que a mulher aciona os polos que forem mais convenientes para o momento e organiza a sua rotina.

A dimensão cultural e social do cuidado de crianças As diferentes formas de cuidar, esperadas para um homem e para uma mulher, incidem na forma com que as crianças serão implicadas no cuidado. Para explorar este tema, teremos em mente as teorizações da ética da justiça e da teoria moral universal revisitadas pela teoria moral de Carol Gilligan, para assim chegarmos à proposição de uma ética feminista do cuidado e posteriormente desenvolvê-la na política do cuidado. Na medida em que a gestação significa uma conexão de grande amplitude, esta fase se traduz como uma das principais responsabilidades da vida, na visão das mulheres. É neste sentido que a “mãe boa” é julgada pela sua capacidade de satisfazer a necessidade dos outros – os filhos e o marido –, enquanto que a “mãe ruim” desiste ou escapa deste autossacrifício, instaurando-se aí um conflito entre compaixão e autonomia. Tomando em conta que a moralidade reside no cuidado, a mãe se questiona sobre o egoísmo de incluir suas próprias necessidades na esfera do cuidado e passa a incorporar em seu julgamento interno o que as outras pessoas pensam. “Quando a incerteza sobre o próprio valor impede uma mulher de reivindicar 229


igualdade, a autoafirmação cai vítima da velha crítica do egoísmo”. (GILLIGAN, 1982, p.98). Algumas das mulheres entrevistadas contam como começaram a cuidar de seus filhos ainda na gestação, deixando de realizar algumas atividades fora de casa, alimentando-se da maneira que consideravam mais adequada ao bebê, entre outras condutas, e lembrando-se constantemente de que a partir daquele momento uma outra pessoa dependia delas, fato que muitas vezes foi relacionado com a necessidade de esquecer-se dos seus problemas e necessidades para poder atender à criança, “fazer de tudo por ela” e “colocar o filho sempre em primeiro lugar”. A conexão entre a moralidade e o cuidado gera o egoísmo como antônimo de responsabilidade, uma vez que a satisfação pessoal é contrária à moralidade em atos considerados bons e responsáveis. O ideal moral, portanto, torna-se o dar aos outros sem receber nada em troca. Esta noção de autossacrifício marca o desenvolvimento das mulheres, contrapondo a moral da bondade com a possibilidade de assumir responsabilidades e escolhas para si. Tal antagonismo entre egoísmo e responsabilidade, portanto, interfere de maneira profunda na possibilidade de as mulheres fazerem escolhas, uma vez que sua identidade é pautada pelo padrão de relacionamento e de cuidado. (GILLIGAN, 1982). As relações de cuidado que se formam são determinantes nas possibilidades de acesso a recursos, bem como um fator de organização das relações afetivas, configurando-se, nos padrões atuais, como reprodutor das desigualdades de gênero. As mulheres são as mais responsabilizadas pelo cuidar e, por isso, as mais afetadas pela desvalorização social do trabalho do cuidado. Ser mulher permanece sendo um motivo organizador da esfera privada, de forma desvantajosa para as mulheres, que continuam a ser as principais responsáveis pelo trabalho cotidiano de reprodução da vida, naturalizando-se este processo e mantendo-as em uma tarefa tida como natural, pré-política e, assim, longe do acesso à igualdade. A responsabilização desigual pelos atos de cuidado, portanto, está no cerne de várias questões que perpetuam a desigualdade de gênero. (BIROLI, 2015). A partir do conhecimento do curso de uma gestação, às mulheres é cobrado o comportamento de proteção de sua cria. Suas ações não dizem respeito ao seu corpo, à sua saúde e à sua liberdade; remetem-se agora ao bemestar dos filhos. As mulheres entrevistadas nesta pesquisa, por muitas vezes, 230


expressaram-se responsáveis pelos filhos a partir de um reconhecimento de que seria natural à mulher fazer sacrifícios quando se torna mãe, apenas pelo motivo de ser mulher e mãe. O cuidado das crianças remete à sua importância, à sua centralidade na família, o que se coloca desde o momento em que a mulher se descobre grávida. Suzana (21 anos, 1 filho), conta que “desde a barriga, eu já estava cuidando. Comia as coisas certas que tinha que comer. Não fazia muita força, né, não pegava peso”, realizando as tarefas conforme seu entendimento aconselhava como o melhor para seu bebê. Como o cuidado está naturalizado na figura da mulher e essencializado na aptidão para cuidar, ele envolve sacrifícios que devem ser feitos por seu/sua filho/a, como parte de sua função de mãe e na busca pela auto intitulação e prazer de se reconhecer como “boa mãe”. Quando ficou grávida, Laís (25 anos, 1 filha) conta que parou de sair, “ficava mais dentro de casa”, por medo dos riscos que o bebê poderia correr, mesmo não tendo experienciado nenhum problema durante a gestação. Joana (25 anos, 2 filhos), da mesma forma, conta que “amadureceu”, quando soube que estava grávida, e passou a agir da forma que considera coerente a alguém que será solicitada pela necessidade de um bebê. Considera que sua filha lhe deu “juízo”, principalmente por pensar que “vai criar alguém que precisa da gente”. No puerpério, o cuidado de si é mantido pensando no bem do recémnascido, principalmente porque a mãe está alimentando a criança com seu corpo e percebe uma relação entre seu corpo e o cuidado de si com a saúde de seu filho, como se depreende na fala a seguir: Depois que eu ganhei, eu segui tudo certinho, comida sem cebola, sem sal, sem alho. Tanto que o meu bebê nunca teve cólica, e daí quando os dentes dele estouraram, né, porque está estourando ainda, ele não teve febre, diarreia, nem nada. Acho que por tudo que eu segui, certinho a alimentação depois do parto. Daí eu acho que trouxe uma boa consequência, porque ele não sofre quando os dentes dele estouram, ele não chora, não dá dor de cabeça, não dá diarreia, nada, se alimenta direitinho, nunca teve cólica. (Fernanda, 21 anos, 1 filho)

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A normatização dos corpos se dá, no curso de uma gestação, de uma forma em que a mulher não é mais vista como uma pessoa, livre e autônoma de suas decisões e responsável por si mesma. O autocuidado tem caráter obrigatório, pois, por seu corpo, uma criança está sendo cuidada. A gestação, na esfera do social e do cuidado médico, tem como objetivo a saúde da criança, em prejuízo das escolhas, da subjetividade e da corporeidade da mãe. O sacrifício, se tiver que existir, é visto como parte natural deste processo e deve ser encarado pelas mulheres pelo bem do bebê. O sacrifício em prol da criança pode também gerar uma satisfação que é utilizada para amenizar os dissabores da maternidade, como o imaginado para o parto, as dores e as demais dificuldades no cuidado dos filhos. Suzana (21 anos, 1 filho) imaginava o parto como algo que traria uma “dor horrível”, mas consolava-se a si mesma pensando que, pelo filho, iria aguentar. Este lugar possível da maternidade é o projeto de vida realizável para muitas mulheres, especialmente das dos estratos mais empobrecidos, onde a realização de outros projetos de vida tem o acesso mais dificultado. Embora constrangida, estruturalmente, a escolha pela maternidade é uma realidade vivida por estas mulheres, que obtêm prazer na relação com os filhos, na satisfação de ser boa mãe e no enaltecimento de suas capacidades para vencer as dificuldades da vida. (BIROLI, 2013; SILVA, 2013). O pensamento de que elas são as responsáveis prioritárias pelas crianças faz com que estas mulheres mães ganhem forças para a tarefa do cuidado e encontrem reconhecimento de sua capacidade para o trabalho e autovalorização, em comparação ao que consideram que um homem poderia fazer, como exemplificam as mulheres entrevistadas: eu sentia que alguém iria precisar de mim, por isso que eu reagia. (Joana, 25 anos, 2 filhos). eu tive as duas [filhas mais velhas] e sempre corri sozinha, quando elas ficavam doentes, eu ia sozinha para o médico, quando elas ficavam internadas eu ficava com elas, eu não abandonava elas em nenhum momento. Porque eu penso assim, a gente que é mãe, a gente nunca pode abandonar os nossos filhos, né. (Gabriela, 30 anos, 3 filhos). Não é fácil, a gente, mãe, sofre mesmo. Por isso que eles até

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falam [...] que a mulher [...] o homem não aguentaria o que a mulher aguenta. (Ana Rosa, 37 anos, 4 filhos)

O próprio aleitamento materno é uma forma de sacrifício com o corpo. Ele é demandante de tempo e energia; e as intercorrências podem agravar o sacrifício exigido. Melissa (31 anos, 3 filhas) conta que da sua primeira filha ela teve fissuras no seio que a faziam “chorar de dor, mas tinha que amamentar”, permanecendo aproximadamente vinte dias desta forma, até as feridas melhorarem. O sacrifício pela filha ou filho e a relação biológica com a criança também são fontes de diferenciação entre mãe e pai, suas aptidões e amor pela criança, conforme explicitado nas falas de Bruna e Simone: Aquele amor, aquela coisa que a mãe tem [...] 9 meses, passar aquela dor. Eu passei por tudo isso pra ter esta criança. Agora, o homem não, ele faz, ali, pelo prazer na hora, não por que ele vai fazer filho; o homem é mais pelo prazer de homem. Depois ele acompanha o que a mulher diz, né, então ele não sente, né. (Bruna, 18 anos, 1 filha) [...] a partir do momento que você vê aquela coisinha ali, que saiu de você, você ficou 9 meses ali [...] da tua carne, estava dentro de você, saiu de dentro de você, saiu de dentro de mim, é minha carne, é meu sangue, é um amor assim que, sabe, é uma coisa, assim, quando você ganha o nenê bota no teu colo, é uma coisa maravilhosa, muito bom, muito bom. (Simone, 24 anos, 2 filhos)

A aptidão para o cuidado é vista de forma diferenciada para homens e mulheres, conforme relatam as entrevistadas. As mulheres cuidam, os homens não têm paciência, isto é, são inaptos para o cuidado. Quando ficam um pouco com as crianças, é para brincar; mas quando começam a chorar, as crianças são entregues para quem “tem o dom”, como conta Joana (25 anos, 2 filhos), que relata que seu marido “não tem paciência para ficar com ele”, alegando que apenas a mãe e a avó sabem acalmar a criança. Suzana (21 anos, 1 filho) diz que se ela deixa o seu filho ao encargo do pai, este transfere a responsabilidade para sua mãe, assim que encontra uma dificuldade: “Daí eu deixo com ele, ele joga no colo da mãe dele. [...]. Eu deixei com ele, 233


fui lá, e estava com a mãe dele. ‘Ah, ele chorou, deixei com a mãe’”. Sem perspectivas de ajuda por parte do pai de seus filhos, Gabriela (30 anos, 3 filhos) se pergunta: “[...] se eu não cuidar, quem é que vai cuidar? Eu que tenho que cuidar”. Poder-se-ia supor que são atividades a serem cumpridas por qualquer pessoa. O pai, porém, não é elencado pelas mulheres como a pessoa mais adequada ao cuidado de uma criança pequena. Para o auxílio nas atividades de cuidado, a inserção das mulheres se inicia desde cedo, como no caso das sobrinhas de Laís (25 anos, 1 filha), que passam o dia com ela cuidando da bebê, e Joana, que incentiva sua filha a cuidar do irmão pequeno, solicitando a sua ajuda nas trocas de fralda e explicando que ela “tem que cuidar do seu irmãozinho, ele precisa de você” (Joana, 25 anos, 2 filhos). Gabriela também explica que “quando eu era nova, eu sempre trabalhei de cuidar de criança” (Gabriela, 30 anos, 3 filhos), adquirindo experiência para hoje cuidar de seus próprios filhos. Na família, o cuidado claramente é visto como uma atividade de mulheres, que se unem, se revezam e se ajudam nesta tarefa. Até aqui foram citadas, prioritariamente, as mães como fonte de ajuda, mas também acorrem tias, irmãs, sogras, primas, filhas mais velhas, vizinhas e amigas. Mesmo quando suas mães estão geograficamente longe, elas auxiliam no cuidado subjetivo e no aconselhamento. O cuidado objetivo de fazer e oferecer comida, dar banho, tomar conta, também fica por conta das mulheres da família, que se ajudam mutuamente formando redes de solidariedade, principalmente quando já possuem suas próprias experiências. a vó dele vinha e ajudava, e as sobrinhas dele [do pai], né, vinham aqui ajudar, minha mãe ajudava, todo mundo ajudava, assim. (Suzana, 21 anos, 1 filho, grifos nossos) Tinha essa minha prima, ela já estava com dois filhos já. Então o que eu não sabia, assim, porque a [filha] era a primeira, ela daí dizia: “Jo, olha, não é assim”, “Faz assim”, então ela me ajudava um pouco nessa fase que eu não sabia. (Joana, 25 anos, 2 filhos, grifo nosso) Daí também tem a minha sogra, que já teve três filhos, já teve um monte de netos, então ela me ajuda, ela fala: “Olha, filha, é assim”, “Ó, dá o chazinho”, daí eu tenho ela pra me guiar, né,

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nas coisas para eu fazer com ele. (Joana, 25 anos, 2 filhos, grifo nosso) Pra cólica, a mãe deu chazinho até os 6 meses [...]. Camomila, erva doce [...]. Daí ela [filha] até dormia. (Bruna, 18 anos, 1 filha, grifo nosso) Eu já tinha base assim, né, por causa que minha prima teve neném antes de mim, né, daí eu cuidava do filhinho dela [...] eu gostava de cuidar [...] trocava fralda, dava comida, então já sabia como tinha que cuidar, né, cuidava bastante da minha prima, assim. Daí já sabia cuidar [...]. (Simone, 24 anos, 2 filhos, grifos nossos)

A construção social da maternidade, que se faz a partir do corpo, coloca a mulher mais próxima à ideia de natureza e ligada às questões de reprodução e cuidado. A mulher fica relacionada, e muitas vezes limitada, ao seu útero e a todas as atividades ligadas à reprodução como naturalmente femininas e ainda, em um nível de hierarquia, abaixo do ocupado pelos homens. A visibilidade das funções da mulher na reprodução cria um vínculo com as atividades que precisam ser exercidas posteriormente ao parto, como a amamentação e o cuidado da criança. A responsabilidade foi dividida socialmente de forma não justa e igualitária, porque se cria esta percepção de que a natureza está influenciando na capacidade de cuidar. (ORTNER, 1979). Existe uma valorização subjetiva no trabalho do cuidado para estas mulheres, um sentir-se bem com suas tarefas e uma dignificação em ser “boa mãe” e “boa dona de casa”, alcançando assim seu projeto de vida realizável. As poucas perspectivas de vida, em outras esferas, trazem na maternidade um lugar social e uma sensação de valorização a que teriam acesso muito mais difícil por outras vias. (SILVA, 2013). O cuidado da casa e a execução das atividades domésticas também ficam sob a responsabilidade das mulheres, que se sobrecarregam fazendo tudo sozinhas, ou encontram apoio nas outras mulheres da família, como Joana (25 anos, 2 filhos), que cuida dos filhos enquanto a sogra cuida da casa, e Suzana (21 anos, 1 filho), que, quando ainda mantinha um relacionamento com o pai de seu filho, tinha a sogra e as cunhadas para auxiliar no cuidado do filho, enquanto ela limpava a casa e lavava a roupa. Ao se separar do marido, 235


Suzana voltou para a casa de sua mãe e não encontrou o mesmo auxílio para o cuidado do filho, pois sua mãe “tem os dela”. Desta forma, é ela que sozinha passa o dia inteiro cuidando do filho. Isto lhe dá a impressão de que, quando está longe do pai, o filho “fica mais chato”, o que se configura como uma sobrecarga para Suzana, que pede para sua sogra que “leve ele lá um pouco”, pois fica “sem paciência para cuidar dele” e chega a ter pensamentos extremos: “Às vezes, dá vontade de largar ele, assim. Esses dias [...] eu até pensei em dar ele já, pensei até em dar ele pra alguém. Sério, esses dias eu pensei: ‘Vou dar ele pra alguém’”. As relações de parentalidade, com a biologização do parentesco, e a naturalização da maternidade criam uma moralidade que é diferenciada para as distintas pessoas da família e para homens e mulheres. A última pessoa a abandonar é a mãe, e ela não poderia abandonar (ou ela é “desnaturada” – não corresponde à sua natureza). A condenação da mãe por abandono não está fora de qualquer outra lógica imposta à mãe, ao contrário da paternidade, que tolera separações sem colocar em risco a moralidade ou o seu status de pai. (FONSECA, 2009). O trabalho é da mãe, mesmo quando as condições exteriores não são favoráveis e são injustas para quem permanece cuidando. Além da mãe, as redes de solidariedade para o cuidado das crianças se constroem ao redor das mulheres, nas diversas fases da gestação, puerpério e infância das crianças. Bruna (18 anos, 1 filha) relatou que sua mãe foi “sua médica”, orientando e cuidando com tudo o que podia durante a gestação. Gabriela (30 anos, 3 filhos) precisou de auxílio no puerpério, também contando com a ajuda de sua mãe, que assumiu os cuidados com o bebê enquanto ela permaneceu no hospital para um tratamento de saúde. A rede de solidariedade de Gabriela na família também serviu de suporte financeiro, uma vez que os pais de suas duas primeiras filhas são de “relacionamentos rápidos”, conforme ela descreveu. Ora sua mãe cuidava das meninas para Gabriela poder trabalhar, ora ela obtinha suporte financeiro de seus pais para “sustentar as meninas”. Atualmente, Gabriela fica a maior parte do tempo em casa, mas quando ela trabalha, sua mãe, sua irmã e suas cunhadas se revezam no cuidado dos menores e para levar os maiores para a escola. A solidariedade possui um componente material e outro afetivo, e isto constitui a base dos relacionamentos familiares. Uma grande parcela da população acima de 60 anos auxilia seus filhos financeiramente ou com a prestação de serviços, estabelecendo-se, muitas vezes, como o único apoio 236


existente, principalmente nos casos em que as políticas sociais falham. (PEIXOTO, 2007). As atividades de cuidado das crianças são frequentemente assumidas pelas avós, quando as mães trabalham fora de casa. Para as camadas populares, esse tipo de arranjo impede a superação da situação de pobreza, pois não atua no sentido de promoção social, mas, sim, de suprir as necessidades cotidianas de sobrevivência. (PEIXOTO, 2007). Não restritas às avós, as mulheres parecem se dividir na família entre as que trabalham e as que cuidam dos filhos de quem trabalha. O último filho de Andréa (39 anos, 6 filhos) foi cuidado pela filha mais velha, para que Andréa pudesse trabalhar. Gabriela (30 anos, 3 filhos), quando nova, cuidava de sua sobrinha, para a irmã trabalhar. Simone (24 anos, 2 filhos) deixa seu filho mais velho com a bisavó, quando sai para trabalhar, para esta arrumá-lo e alimentá-lo, antes de ele ir para a escola. Não é possível que todas trabalhem fora, pois não haverá quem cuide. Não dá para todas cuidarem (especialmente as separadas), pois não haverá renda suficiente. A rede de solidariedade funciona como subsistência, mas não prevê a superação da condição atual. Estas redes de solidariedade são formadas por mulheres – e muito relacionadas às avós maternas – e funcionam o quanto possível seja como estratégia de manutenção da vida. Há revezamento de mulheres que cuidam e trabalham, o que gera, porém, menores possibilidades de autodesenvolvimento por educação, emprego e renda para umas e/ou outras. Portanto, não há, desta maneira, expectativas de superação da pobreza, pois o trabalho do cuidado continua desvalorizado e tido como algo pré-político, invisibilizado e mantido na esfera privada. O cuidado de crianças é uma função social e deve ser pensado como tal. A responsabilização diferenciada e a falta de apoio estatal são as bases das desigualdades e estão no centro das questões de autonomia das mulheres que são mães. Ao contrário do que acontece com a percepção das atribuições da mãe, os homens não são vistos como aptos para o cuidado de crianças, nem pelas mulheres, nem por eles mesmos, que conseguem utilizar-se do estereótipo para alocar as atividades do cuidado às mulheres da família. Suzana (21 anos, 1 filho) conta que tem medo de deixar seu filho apenas com o pai, pois “Não sei se ele sabe cuidar, assim. Nunca fiz um teste, deixar um dia com ele sozinho. Daí eu deixo com ele, ele joga no colo da mãe dele”. Ana 237


Rosa (37 anos, 4 filhos) diz que seu marido pega no colo, por algum tempo, mas ao menor sinal de choro ou de agitação, o pai leva a criança de volta à mãe dizendo para ela que “ele não sossega”, “ele não fica quieto”. A divisão sexual do trabalho do cuidado implica que haverá responsabilização desigual das atividades, no caso, entre homens e mulheres. (BIROLI, 2015). O trabalho de cuidar realizado por homens não é de responsabilidade consciente e, muitas vezes, é tomado como ajuda. Simone (24 anos, 2 filhos) conta que o pai de seus filhos “nunca foi de ajudar”. Ao ser questionada do por que, ela explica que “tem homem que tem jeito com criancinha pequena, tem homem que já tem medo, porque é muito pequenininho”. Ao mesmo tempo, pensa que ele não se responsabilizou por alguma esfera qualquer de cuidado, mesmo que não envolvesse a criança, como, por exemplo, “não lavava louça, não passava uma vassoura na casa, nada”. A participação do pai está quase que restrita à esfera do econômico, da vida pública. A figura paterna é um bem em si mesmo. Uma vez que a mãe é naturalmente apta ao cuidado, esta tarefa não cabe ao pai. A definição de um “bom pai” está vinculada ao provimento da casa. Este é o outro lado da divisão sexual do trabalho, que não será rompido se o acesso das mulheres à vida pública não atingir igualdade. Para isto, é necessário que o cuidado saia da esfera pré-política e seja entendido como algo compartilhado entre os membros da família e de responsabilidade da esfera social e estatal. A divisão entre o trabalho produtivo realizado por homens e o realizado por mulheres está presente de maneira bem marcante nas falas destas mulheres, porque eles estão marcados também em seus cotidianos. É corriqueiro vermos estas mulheres trabalhando o tempo todo (em casa ou fora dela), sem tempo de descanso, pois assumem o cuidado da casa e das crianças da família, em tempo integral, ou após chegarem do trabalho fora do domicílio. Ou seja, “quando é teu, você é obrigada a olhar, é obrigada, tipo... é teu. Quem pariu Matheus que balance, né, como diz o ditado” (Simone, 24 anos, 2 filhos). Os homens, por sua vez, descansam quando estão em casa, porque já trabalharam durante um período, assim como conta Suzana (21 anos, 1 filho), cujo pai de seu filho trabalha à noite, e “O dia inteiro ele está em casa dormindo, para trabalhar de noite”. Esta visão do trabalho produtivo, que se considera como tal se realizado fora do lar, quando remunerado, é compartilhada por algumas 238


mulheres entrevistadas, mesmo em face de suas dificuldades para cumprir as obrigações que consideram de sua competência. Luana (26 anos, 2 filhas) conta que teve de parar de trabalhar, quando teve sua primeira filha. Agora, com duas meninas em casa, relata que não consegue dormir e não tem tempo de realizar todas as atividades domésticas: “Por que eu não consigo... eu mal consigo lavar minha roupa, que é só jogar na máquina e estender, né. Eu não consigo”. O marido trabalha em regime de escala. E quando questionada sobre a ajuda que recebe em casa, explica que o esposo “tem que descansar”, porque “ele trabalha”; então, “os dois dias de folga que ele tem, ele dorme”. As mulheres ficam quase que exclusivamente responsáveis pelo cuidado das crianças, ainda que algumas não possuam uma rede de solidariedade eficiente nas suas relações familiares e de amigas. Ana Rosa (37 anos, 4 filhos) tem uma filha mais velha, que tem seus próprios filhos, razão pela qual não a auxilia. A cunhada de Ana Rosa tem a mesma idade, filhos mais velhos e também um filho temporão, da idade de seu filho mais novo. Por se perceberem na mesma situação, as duas se auxiliam conversando e se aconselhando, mas não prestam ajuda material uma a outra. Pensando em uma pessoa que poderia ajudar com todos os afazeres, Ana Rosa lembra que também não encontra corresponsabilidade em seu companheiro: “É tudo eu. Eu sou sozinha pra tudo, mesmo, pra cuidar dele”. As mudanças ocorridas no caráter institucional da família, como as impulsadas pela esfera jurídica das formas de união e separação, e as mudanças culturais das relações entre homens e mulheres enfraqueceram a autoridade do pai. A família, porém, é um espaço de interação afetiva onde as demandas à mãe são mais preeminentes. Se foi aberto às mulheres o acesso à esfera pública e se existe a possibilidade de rompimento de um relacionamento insatisfatório, as atribuições das mulheres na esfera privada, no entanto, pouco se modificaram, com vantagens para os homens, que se beneficiam do trabalho do cuidado deles mesmos e de seus filhos, ainda que não participem ou participem pouco deste trabalho. (ARAÚJO; SCALON, 2005). Essa divisão sexual do trabalho proporciona objetivamente diferenças nas possibilidades de acesso à esfera pública, pela socialização e pela responsabilização diferenciadas, que restringem as possibilidades de escolha às mulheres. A desvalorização do trabalho do cuidado, por sua vez, contribui para o silenciamento das experiências das mulheres, e a superação 239


dessa questão implicaria que os homens teriam que se desfazer de seus privilégios. (BIROLI, 2015). Esta clivagem de gênero está na ordem da subjetividade e gera novos conflitos, permitindo-se repensar o trabalho do cuidado enquanto algo da esfera do privado e da responsabilidade feminina. Novas dinâmicas de organização entre homens e mulheres precisam emergir, garantindo condições iguais a todos os membros. Ao se tratar do cuidado de crianças, no entanto, o cuidado não pode ser negado; precisa ser pensado por políticas públicas que sejam adequadas às novas relações sociais. (ARAÚJO; SCALON, 2005). Denegá-lo significa mantê-lo desvalorizado e despolitizado, o que amplia a vulnerabilidade social das pessoas que exercem o trabalho do cuidado. (BIROLI, 2015).

A dimensão política do cuidado de crianças As entrevistas realizadas com as 12 mulheres, mães de crianças pequenas, alvos de seu cuidado, permitem afirmar que o cuidado de crianças fica restrito à esfera privada e invisibilizado para se pensar políticas públicas que permitam que estas mulheres alcancem condições iguais de renda, de busca de um trabalho remunerado, ou de que gozem de alguma rede de apoio estatal que lhes permita autonomia sobre suas vidas e suas condições na maternidade. Sem este apoio, as mulheres criam arranjos entre elas, em uma divisão e uma troca de mulheres que cuidam em casa e mulheres que trabalham fora de casa para obter renda. Entretanto, de uma forma ou de outra, alguém permanece no domicílio, o que incide sobre suas próprias possibilidades atuais ou futuras. Desde modo, passamos a refletir agora sobre o cuidado como uma questão política. Atualmente, as práticas sociais em muitos contextos ainda estão embasadas nesta visão essencialista da mulher, em que o cuidado é visto como sua tarefa natural e, portanto, mesmo trabalhando fora de casa, ela se mantém no papel de responsável pela casa e pelos filhos. É um ranço de longa data que mantém as relações e as práticas entre homens e mulheres. Mesmo quando negam seu papel de provedor, são as mulheres que assumem a responsabilidade abandonada pelos homens, haja vista o número de famílias pobres chefiadas por mulheres, sem negar as tarefas de cuidado como contrapartida. (OLIVEIRA, 2007; SCAVONE, 2004; GIDDENS, 1993). 240


Se o cuidado é político, como também um instrumento para a observação da dinâmica das relações sociais, e a maternidade faz parte de uma prática social impregnada de normatização dos corpos, as políticas públicas não estão isentas de criar ou aprofundar as diferenças existentes entre os sexos. As políticas brasileiras de Saúde Pública refletem o desequilíbrio entre as funções maternas e as paternas. Pensam e agem no sentido da manutenção das desigualdades sexuais relacionadas ao planejamento e à execução de políticas, programas e estratégias de saúde e alimentação na agenda da Saúde Pública brasileira, que reafirmam o modelo de maternidade e excluem a possibilidade da participação igualitária. As desigualdades impostas pela divisão sexual do trabalho também passam pela maior vulnerabilidade da posição da mulher em um casamento e cerceamento de sua livre vontade, pois a decisão de rompimento tem custos diferenciados para homens e mulheres. A independência econômica das últimas é mais difícil de ser alcançada, pela socialização diferenciada entre os gêneros e pela responsabilização desigual que sobrecarrega seu tempo e energia. Ela resulta em uma apropriação coletiva do trabalho das mulheres, liberando os homens. (BIROLI, 2015; 2016). As desvantagens das mulheres para participar na esfera pública as tornam vulneráveis e, muitas vezes, dependentes de um relacionamento ou de políticas públicas que também se formam como reprodutoras das desigualdades e não contribuem para o alcance da autonomia feminina, o que ocorre porque as mulheres são responsabilizadas por tarefas cotidianas que deveriam ser de responsabilidade de cada um e do coletivo; como problema político, tal desigualdade permanece invisibilizada. Se às mulheres é permitido o divórcio, ou a maternidade sem casamento, esta escolha pode estar relacionada a constrangimentos materiais, a depender de sua dinâmica social. Não são as escolhas que geram constrangimentos. A exploração de seu trabalho na vida doméstica afeta as outras áreas de sua vida. Os movimentos feministas muito contribuíram para alargar as possibilidades das mulheres na vida pública e para a ressignificação das relações de gênero. A família, porém, “permanece, ainda assim, como nexo na produção do gênero e da opressão às mulheres” (BIROLI, 2016, p.731), mantendo a posição desvantajosa para elas, revelando conexão entre a vulnerabilidade feminina e a divisão sexual do trabalho. 241


Ana Rosa, mãe de quatro filhos, considera como invariavelmente dela as atividades domésticas, mas observa que o cuidado do filho menor, incluindo o aleitamento materno fornecido a ele, é também uma tarefa extenuante e que, na combinação das duas, não resta muito tempo de organização ou para ela mesma: Mas, agora, assim, de casa... pra fazer as coisas de casa, com ele, pra dar conta... daí não tem como. É muito complicado. Você tem que esperar ele dormir um pouquinho pra poder fazer as coisas, porque, tipo assim, eu não tenho ninguém que me ajude [...]. Você não tem tempo pra você, tipo assim... nem pra tomar banho, se você ficar dependendo dele, tem que colocar ele junto com você no banheiro pra poder tomar banho, sete, oito horas da noite. (Ana Rosa, 37 anos, 4 filhos)

Luana (26 anos, 2 filhas), que teve que deixar de trabalhar como manicure, após o nascimento de sua primeira filha, também considera exaustiva a rotina de cuidado das crianças e da casa, dificultando a realização de todas as atividades. Conta que não consegue manter a casa limpa e arrumada, “sempre tem bagunça” e as outras atividades são feitas conforme consegue: “mal consigo estender a minha roupa, a comida tem que ser feita rápida, correndo”. Algumas das entrevistadas trabalham fora, ou pensam em poder trabalhar. Neste momento, lançam mão de estratégias para arranjos familiares que lhes permitam, ou que permitam a outras mulheres da família procurarem emprego. Assim, vemos uma rede de solidariedade para o cuidado, formada exclusivamente por mulheres – mães, tias, avós, primas, irmãs – em que algumas trabalham e outras cuidam dos filhos das que trabalham. Por exemplo, Laís (25 anos, 1 filha) permanece em casa cuidando de sua filha e também das sobrinhas e irmãs menores, para que sua irmã trabalhe e sua mãe possa fazer diárias, a fim de contribuir para a renda familiar. Ela não tem condições de buscar um emprego, pois cuida de todas as crianças. Simone (24 anos, 2 filhos) deixa seus dois filhos com a bisavó, para manter um trabalho remunerado formal, muito embora o pai dos meninos tenha tempo disponível para cuidar. Andréa (39 anos, 6 filhos) considera que “depende” de suas filhas, em especial da filha mais velha, para o cuidado dos irmãos menores, pois 242


a logística de levar os filhos à creche não se encaixaria em seu cotidiano, criando ainda mais dificuldades, uma vez que o município não possui vagas suficientes, em lotações convenientes para as mães, e próximas de seus domicílios ou trabalhos, e que aceitam crianças com a idade de todos os seus filhos. Deste modo, a filha de Andréa, que tinha 20 anos no momento da entrevista, permanecia em casa cuidando dos irmãos menores. Por precisar trabalhar, considera que não consegue cuidar bem de seus filhos, pois não possui tempo para aconselhá-los. Relaciona sua falta de disponibilidade para a família com as frequentes faltas de seus filhos à escola, culminando em sua perda do benefício do Programa Bolsa Família, o que dificultou ainda mais a vida de Andréa. Desta forma, ela não enxerga outra solução, que não manter sua filha mais velha em casa para cuidar dos dois filhos menores, enquanto ela trabalha para o sustento da família. O modo como são ofertadas creches no município não se ajusta ao cotidiano, que ficaria mais complicado sem a ajuda de sua filha. Vemos, entretanto, uma mulher sendo necessária ao cuidado, permanecendo em casa, para que outra trabalhe. A desvalorização e a despolitização do trabalho do cuidado geram enormes desvantagens para quem exerce esta tarefa. Como são as mulheres as responsabilizadas, seu tempo será gasto em benefício dos outros membros familiares, gerando para elas maiores dificuldades de provimento da vida. Estas dificuldades serão maiores quanto menor for o apoio de instituições públicas. Atreladas à atividade do cuidado, as mulheres veem “reduzidas não apenas suas condições para o exercício de trabalho remunerado, mas também seu acesso a tempo livre e oportunidades de autodesenvolvimento”. (BIROLI, 2015, p.111). A falta de apoio estatal é sentida também por Melissa, que não possui trabalho remunerado formal, mas recorre à ajuda de sua prima, quando aparece uma diária, o que aumenta seu rendimento. Conta que recebe o benefício do Programa Bolsa Família e, assim, pode permanecer em casa com suas três filhas. Se conseguisse um trabalho formal, analisa que gastaria mais em creche para suas duas filhas menores do que o salário recebido em um emprego de acordo com sua formação; portanto, não possui condições objetivas para trabalhar fora de casa. Eu precisava de creche, no caso. Porque pra eu trabalhar, familiares, não tem ninguém. Minha irmã trabalha, os que

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poderiam ficar também trabalham, então eu precisaria de, agora, no caso, pra eu poder trabalhar, mesmo, o que está difícil é creche para elas, mesmo. Para as duas [menores], né, porque a outra [mais velha] é [escola] integral. (Melissa, 31 anos, 3 filhas)

Nas ocasiões em que consegue trabalhar em regime de diária, ela paga para sua prima cuidar das filhas. Neste caso, Melissa tem seu pagamento subtraído, para pagar o cuidado de suas filhas; e outra mulher também é subpaga pelo seu serviço de cuidado, propagando-se a vulnerabilidade econômica entre mulheres. Nesta divisão entre mulheres que trabalham e mulheres que cuidam, na família de Melissa (31 anos, 3 filhas) existem mais mulheres que trabalham ou estão procurando emprego, o que faz com que ela sinta mais a carência de políticas públicas que lhe deem este suporte, como a necessidade de vagas em creches municipais. Esta condição limita as escolhas das mulheres, que ficam com a responsabilidade de cuidar das crianças e só podem trabalhar quando contam com ajuda, que, permanecendo na esfera do privado, limita a escolha e oportunidade de outra mulher. A prima de Melissa (31 anos, 3 filhas), que cuida de suas filhas esporadicamente, deixa clara a inviabilidade desta rede de cuidados, quando se recusou a trabalhar em tempo integral cuidando das filhas de Melissa, caso esta arrumasse um emprego formal, alegando que “ganha muito pouco pra cuidar de criança. Nem quero, não compensa”. Valentina (39 anos, 4 filhos) relata outro tipo de dificuldade para encontrar um emprego formal, que ela relaciona com o fato de possuir quatro filhos. Ela é técnica em contabilidade e possui experiência na área. Deixou um emprego que considerava bom para acompanhar o novo marido (pai de seu filho mais novo), mudando de município. Continuou prestando serviço remotamente por algum tempo, mas quando acabou seu contrato de trabalho e também sua licença maternidade como autônoma teve que procurar alternativas para manter no mesmo patamar a renda familiar suficiente para a família de seis pessoas e para pagar a pensão dos três primeiros filhos do marido. Mesmo sem familiares próximos para auxiliar no cuidado das crianças, caso fosse trabalhar fora, Valentina procurou emprego, pois considera que, com sua formação, seu salário seria suficiente e compensaria pagar alguém ou algum local para cuidar dos filhos menores, diferentemente do quadro 244


imaginado por Melissa em suas possibilidades. A dificuldade, no caso de Valentina, foi sentida no que se refere à reação de possíveis empregadores frente à sua quantidade de filhos, sendo um deles ainda bebê. eu creio que algo que atrapalhou [...] que vem atrapalhando, eu acredito, além da quantidade de filhos, eu tenho um bebê, porque eles sempre perguntam: “Está amamentando?” Eu: “Não, não estou amamentando, tem creche, tem pessoas que cuidam”, né. [...] Mas mesmo assim eu achei tudo muito difícil, estou achando uma dificuldade muito grande nessa parte. [...] porque sempre as pessoas: “Ah, que pena”, eles falam logo assim, então existe esse termo, eles deixam bem claro, né. (Valentina, 39 anos, 4 filhos)

Desta forma, Valentina começou a fazer salgados em casa para vender, pois após a perda do seu rendimento “já caiu metade, mais da metade da renda que entrava na casa, em seis pessoas. Então está bem complicado agora para nós; então só está o meu esposo trabalhando”. (Valentina, 39 anos, 4 filhos) Além da quantidade de filhos, Valentina credita à sua falta de titulação parte da dificuldade para encontrar emprego (“30%, por não ter graduação”). Conta que não conseguiu terminar sua graduação, em contabilidade, “justamente devido à falta de recursos”. Valentina ficou muito tempo solteira, após a separação do primeiro marido, cuidando dos três primeiros filhos. Com um valor insuficiente de pensão, os recursos eram destinados à sobrevivência, impossibilitando-a de concluir a graduação. Para situações como a dela, acredita que deveria haver um recurso público, “por exemplo, programas para ajudar” na conclusão dos estudos, para mulheres com filhos, que não conseguem ter recursos disponíveis para criar os filhos e também para poder pagar cursos profissionalizantes ou manter-se na graduação. A fruição de prazer e os sacrifícios impostos pelo exercício da maternidade coexistem e não chegam a ser contraditórios na experiência destas mulheres. “[...] a ênfase nas experiências singulares dos indivíduos é um passo importante na atribuição de relevância social e política a suas perspectivas e interesses” (BIROLI, 2013), tomando-se o cuidado de considerar que as preferências socialmente aprendidas não se tornem dispositivos reprodutores de desigualdades e relações de poder, como ocorre 245


na maternidade como valor positivo, mas que naturaliza a divisão sexual do trabalho. A experiência vivida pelas mulheres mães não está dissociada da maneira como representa a naturalização da maternidade. O que vemos é a manutenção das relações de cuidado como um problema para a democracia, pois que mantém a mulher na responsabilidade do trabalho desvalorizado socialmente, natural, pré-político, mantendo a desigualdade. A divisão precisa ser vista como um gerador de arbitrariedades que restringem os indivíduos em suas possibilidades de escolha. A responsabilização diferenciada entre homens e mulheres para as atividades de cuidado é definidora da construção de alternativas e oportunidades. (BIROLI, 2015). Ainda que não se configure na forma de uma coação propriamente dita, o trabalho do cuidado é assumido pelas mulheres, que veem seu tempo e seu esforço despendido em prol de outros. Elas não são controladas e não têm, a priori, seu acesso à esfera pública negado. Suas condições de exercer esse direito, porém, não são as mesmas de quem não é responsabilizado pelo trabalho do cuidado. O cuidado, portanto, atua como modulador da sua posição em outras esferas da vida. Não se trata de uma exclusão, mas, como Flávia Biroli (2015) coloca, de “formas desiguais de inclusão”, e que, portanto, “A escolha do casamento e a reprodução das formas convencionais da família [...] pode ser explicada [...] pelo ônus imposto, quando as mulheres procuram construir suas vidas de outras formas”. (BIROLI, 2015, p.91). No caso do cuidado de crianças, é necessário considerar que quem está sendo beneficiado é uma pessoa que ainda não pode realizar sozinha vários tipos de tarefa. O cuidado de crianças é, portanto, uma contribuição social, de responsabilidade de todos e que deveria pressupor igualdade na distribuição de tarefas, na esfera pública e privada. A necessidade impõe que se estruture a oferta de serviços públicos de forma suficiente (creches, escolas em período integral, Unidades de Saúde, ações de lazer), além de alternativas sociais, como cozinhas coletivas, rodízio no cuidado, entre outras ações. (BIROLI, 2015). A realidade, no entanto, é que mulheres e homens possuem responsabilizações diferenciadas no cuidado de crianças, de maneira desvantajosa para mulheres, que gastam seu tempo e sua energia neste trabalho invisibilizado, enquanto que suas oportunidades de autodesenvolvimento diminuem. As responsáveis são mães e mulheres relacionadas a ela, e uma ou 246


outra, em cada uma das relações, verá afetada sua possibilidade de participar igualitariamente da vida social e pública.

Considerações finais O trabalho do cuidado, como um trabalho gendrificado, acarreta prejuízos sociais e democráticos para as mulheres. Elas se organizam na família, em uma rede feminina de solidariedade para com o cuidado de crianças, diminuindo as possibilidades de autodesenvolvimento de quem permanece cuidando, na esfera do privado, o que é determinante para o acesso a recursos, educação e renda, configurando-se, assim, em um potente reprodutor de desigualdades de gênero. E afeta as mulheres, porque elas estão responsabilizadas pela tarefa de cuidar, naturalizando este processo e mantendo-as responsáveis pelo trabalho cotidiano de reprodução da vida. O lugar de mãe é, neste caso, o projeto de vida realizável para muitas mulheres, especialmente daquelas de classes socioeconômicas menos favorecidas, em que os projetos de estudo e trabalho enfrentam maiores obstáculos. As desvantagens engendradas pela divisão sexual do trabalho terão consequências no sentido de sua dependência de um relacionamento ou de políticas públicas. Ambas as formas reproduzirão as desigualdades em longo prazo; a primeira, por manter a hierarquia entre os gêneros dentro da família, com a suposta posição de neutralidade do masculino, político; e a segunda, porque as políticas públicas são elaboradas a partir da mesma visão de naturalidade do cuidado na figura da mulher, que se responsabiliza pela família. Reforçam as desigualdades, ao invés de combatê-las, pois vinculam as mulheres a um trabalho que deveria ser de responsabilidade de cada um e do coletivo e como tema político, e não privado. As mulheres gastam seu tempo e energia em benefício de outros membros familiares. Não é uma atividade coercitiva e envolve fruição de prazer, mas elas terão maiores dificuldades com as provisões para as suas vidas. Quando envolve a separação do pai de seus filhos e filhas, sua situação de vulnerabilidade econômica pode se agravar ainda mais. A elas não está sendo negado espaço na esfera pública, mas o acesso a ele se dá por uma forma diferente de inclusão, em que elas não possuem acesso a seu tempo livre e a oportunidades de desenvolvimento da mesma maneira que ocorre para quem não se ocupa com o trabalho do cuidado. 247


O cuidado de crianças envolve uma relação com alguém que ainda não consegue realizar seu autocuidado sozinho. As relações de cuidado, na verdade, são fluidas ao longo da vida e todas as pessoas passarão pela experiência de necessitarem de ajuda neste sentido. Deve ser tratado, portanto, como uma atividade de contribuição social e de igual responsabilidade para todos. As redes de solidariedade formadas pelas mulheres dão conta de desempenhar as tarefas imediatas, reproduzindo a vida e criando condições de subsistência para a família. Mas não dão conta de tirar o cuidado da esfera pré-política e invisibilizada, impossibilitando as expectativas de superação da pobreza para muitas famílias. Para se pensar em democracia do cuidado, há que se pensar em serviços públicos, em alternativas sociais e participação igualitária dos gêneros que representem medidas para superar as desigualdades e enfrentar as dificuldades sentidas pelas mulheres. Trata-se de reformas políticas e sociais, em que creches, Unidades de Saúde, cozinhas coletivas, escolas e dinâmicas relacionais estejam atentas às necessidades de cada criança e de cada mãe, para o cuidado como função social. As dinâmicas de organização entre homens e mulheres precisam garantir as mesmas condições a todos os membros da família, compreendendo a possibilidade de inserção igual para as mulheres, em termos de escolarização, trabalho e renda. E ainda ultrapassar o cuidado para a esfera política, combatendo no longo prazo a reprodução da estrutura que mantém as mulheres em vulnerabilidade social, por não conseguirem livrar-se de um exercício exclusivo do trabalho do cuidado.

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“MULHER AGUENTA TUDO”: CATADORAS, CUIDADO DA FAMÍLIA E TRABALHO PRECÁRIO Daniela Isabel Kuhn37 Gilson Leandro Queluz38

Introdução39 As reflexões propostas neste texto originam-se da minha pesquisa de doutorado, da qual resultou a tese intitulada: “‘Eu não sou lixo’: abjeção na vida de catadoras e catadores de materiais recicláveis” (KUHN, 2016). Abordo, nesta tese, a rotina de trabalho das catadoras e dos catadores de materiais recicláveis, buscando compreender como a noção de abjeção se expressa na vida destas pessoas. Ao refletir sobre estes aspectos, foi significativo perceber que uma concepção atuante na sociedade de que o cuidado dos afazeres domésticos e da família deve ser assumido prioritária 37 A autora possui Bacharelado e Licenciatura em Dança (1995) pela UNICAMP, mestrado em Artes/Artes Corporais (2001) pela mesma instituição e doutorado em Tecnologia e Sociedade (2016) pela UTFPR. Atua como docente no curso de bacharelado em Educação Física da UTFPR. Tem experiência em Artes, especificamente em dança, atuando nos seguintes temas: dança, consciência e expressão corporal, cultura popular brasileira, corporeidade, catadoras/es de materiais recicláveis, relações de gênero e educação para a consciência. Nota do revisor: É a autora Daniela Kuhn que se expressa na primeira pessoa do singular, para assim indicar que o texto é de sua lavra, mas também para reconhecer a contribuição que recebeu do coautor na forma de orientação acadêmica em seu projeto de doutorado. kuhndaniela@hotmail.com 38 O coautor tem graduação em História (1989) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestrado em História pela mesma UFPR (1994). Realizou doutorado sanduíche no Departamento de História da University of Delaware (1998-1999) e concluiu o doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, em 2000. Realizou estágio pós-doutoral em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP (2009). É professor no Departamento de Estudos Sociais e no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. É vice-presidente da ESOCITE.BR (Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias) e membro da diretoria da ESOCITE (Asociación Latinoamericana de Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología). Entre as suas principais publicações estão os livros Concepções de Ensino Técnico na República Velha (2001) e Representações de Ciência e Tecnologia no Modernismo Conservador Brasileiro (2016). gqueluz@gmail.com 39 Agradecemos a leitura do texto realizada por Lennita Ruggi.

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ou exclusivamente pela mulher colabora como um dos fatores que empurra muitas das mulheres catadoras para a zona inóspita da abjeção. A relação entre lixo, sustentabilidade e cuidado foi uma questão que atravessou o estudo, demonstrando um potencial a ser explorado e sobre o qual aqui proporei uma reflexão. Para desenvolver a pesquisa do doutorado, foi realizada uma pesquisa de campo inspirada em etnografia. Esta vivência ocorreu no ano de 2014 em uma Associação de catadoras/ es na região metropolitana de Curitiba, além de abarcar experiências em eventos referentes ao mundo da catação que contaram com a participação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR)40. Parti da compreensão de que o trabalho das/os catadoras/es tem sido uma atividade plenamente vinculada à estrutura do sistema capitalista. A prática da produção e do intenso consumo gera uma volumosa quantidade de materiais descartados, condição básica para a existência do trabalho de catação na sua atual configuração. Além disso, a profissão de catadora/r tem sido exercida, de maneira geral, em condições precárias e indignas, o que permanece como uma característica de vários outros trabalhos no sistema capitalista. Os dados de campo se mostraram férteis para a reflexão sobre as relações entre as condições precárias deste trabalho e a construção de um corpo considerado abjeto, como parte da vida das/os catadoras/es, sobretudo pelo fato de trabalharem com o lixo. A vida das mulheres e dos homens que trabalham como catadoras/ es de materiais recicláveis apresenta certas características específicas e tem instigado diversas/os pesquisadoras/es a estudar o cotidiano desta categoria de trabalhadoras/es a partir de variados enfoques e abordagens. (ALENCAR, 2008; BORTOLI, 2012; BOSI, 2008; BURGOS, 2009; ESCURRA, 2011; FREITAS, 2010; GOMES, 2014; GRECCO, 2014; JUNCÁ, 2004; MEDEIROS; MACEDO, 2006; MAGALHÃES, 2012; MIURA; SAWAIA, 2013; SOUZA, 2013). De certa forma, estes estudos apontam, cada um a seu modo, para 40 Optei pelo anonimato do nome da Associação, para manter protegidas as pessoas envolvidas na pesquisa. O nome de cada catadora foi alterado pelo mesmo motivo e escolhido pela própria pessoa participante da pesquisa, pois estas demonstraram o desejo de poderem identificar a si mesmas nos textos oriundos do estudo. Contudo, nos trechos em que são expostas questões mais íntimas que me foram confiadas, optei por não atribuir nem mesmo o nome escolhido, com o intuito de resguardar fatos dolorosos da história e vida das pessoas. No caso do MNCR, todos dados expostos de forma pública, explicito a origem e autoria. No capítulo da tese sobre a metodologia, exploro as particularidades e motivos que balizaram estas escolhas.

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as condições adversas e desafiantes nas quais estas/es trabalhadoras/es desenvolvem a atividade de catação. O trabalho como catadora e catador envolve o desafio de ter que enfrentar significativas limitações para a conquista de condições dignas no ambiente de trabalho e, também, para garantir a sua sobrevivência e a de sua família muitas vezes em situações de extrema precariedade, desrespeito e violência no âmbito da família. Em consonância com esses estudos, as experiências que conheci em relação a esta realidade, antes e durante o curso de doutorado, me permitiram um entendimento de que existe uma concepção social depreciativa e permeada de preconceitos sobre as/os catadoras/es41. O fato de trabalharem com lixo produz um contexto que coloca estas pessoas em uma condição de abjeção, porque elas são enquadradas socialmente em uma classificação de pessoas menos importantes, desprezíveis no sentido proposto por Julia Kristeva (1982) e Judith Butler (2012)42. As condições de trabalho das/os catadoras/es na Associação conduziram-me a refletir sobre a indignidade presente nesta atividade desenvolvida por estas pessoas. Portanto, no enfoque deste estudo, as condições de trabalho das/os catadoras/es são vetores que impulsionam estas pessoas para o que Butler (2008, p. 113) descreveu como as “zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito”. Com o intuito de contextualizar, cabe expor, ainda que de maneira breve, que na Associação na qual realizei a pesquisa as pessoas estavam 41 Na condição de Professora do Departamento de Educação Física da UTFPR, desenvolvi um projeto de extensão com catadoras de materiais recicláveis na cidade de Piraquara. Este projeto contou com a colaboração das Prof.ªs Leandra Ulbricht (UTFPR) e Márcia Oliveira (UFPR) e com o financiamento da Fundação Araucária. O projeto desenvolveu várias ações, como a criação e apresentação do espetáculo de dança intitulado “Catadoras de si: o que você faz com o seu lixo?”, e a realização de um documentário sobre o processo da pesquisa. Este processo durou cerca de um ano e seis meses e meu envolvimento foi intenso. As alunas e bailarinas-criadoras eram Luiza Santini e Valleska Zych, e o documentário foi dirigido por João Marcelo Gomes. 42 No texto da tese, desenvolvo, em diversos momentos e por múltiplos vieses, uma articulação entre o conceito de abjeção proposto por Judith Butler (2008; 2012) e seu confronto com a experiência de minha convivência na pesquisa de campo com as/os catadoras/es. No presente artigo, cabe fazer um recorte desta abordagem da abjeção que nos auxilie a pensar sobre as relações entre um imaginário do cuidado e a presença predominante das mulheres no trabalho de catação.

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expostas a diversas situações questionáveis, do ponto de vista dos direitos trabalhistas e do ambiente de trabalho43. Vi de perto a falta de luva para lidar com os materiais, a ausência de máscara para proteger narinas e boca, o estado depreciado em que as sacolas e objetos chegam até a Associação – resultando em muita sujeira, mau cheiro e material orgânico apodrecido – o trabalho repetitivo na esteira, a dificuldade em debater e dialogar temas e demandas internas individuais ou de grupo e a exploração por parte dos atravessadores44. O trabalho das/os catadoras/es, na configuração da Associação na qual realizei a pesquisa, fundamenta-se numa realidade que naturaliza a existência dessas pessoas no domínio dos corpos abjetos. Proponho, incialmente, um debate sobre alguns desafios que perpassam o mundo da catação e que ocorrem no campo da política e das decisões que cabem ao Estado. Pensar no corpo abjeto das/os catadoras/es implica levar em consideração que os desafios que brotam das dependências e das vulnerabilidades das pessoas que vivem na pobreza dependem em grande parte das decisões e práticas políticas que ocorrem no país. Assim, pensar na responsabilidade da produção advinda das empresas e indústrias e de cada cidadã/ão em relação ao consumo e ao lixo que produzem, requer averiguar como têm sido as políticas públicas em relação ao meio ambiente.

Lixo, sustentabilidade e cuidado Para Leonardo Boff (2012), sustentabilidade e cuidado são dois valores centrais para uma nova abordagem da organização social. A primeira “significa o uso racional dos recursos escassos da Terra, sem prejudicar o capital natural, mantido em condições de sua reprodução, em vista 43 Demonstro na tese como o MNCR vislumbra que a maior parte das/os catadoras/ es vem enfrentando “condições precárias” de trabalho e “exploração”, além de compararem a relação com os atravessadores com a “exploração do trabalho nos tempos da escravidão”. (MNCR, 2009). 44 Atravessadores são pessoas para as quais as/os catadoras/es vendem os materiais coletados e triados. Eles recebem os materiais e revendem para as diversas indústrias recicladoras. Trata-se de um comércio cheio de meandros e que, segundo o MNCR, tem explorado historicamente a mão de obra das/os catadoras/es. A figura do atravessador tem sido combatida pelo Movimento Nacional dos Catadores, pois é encarada como um grande inimigo. Aqui, adere-se à meta de domínio do processo produtivo inteiro da reciclagem, sendo que, desta forma, o atravessador seria eliminado da cadeia. Para se atingir tal meta, o papel de negociação com as indústrias de reciclagem seria assumido pelas/os catadoras/es.

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ainda ao atendimento das necessidades das gerações futuras que também têm direito a um planeta habitável”. (BOFF, 2012, p. 21). Ou seja, a sustentabilidade tem relação direta com as condutas da sociedade, requer ação consciente e inovadora da política e do Estado e se relaciona com a vida de cada pessoa. O cuidado, define o autor, “representa uma relação amorosa, respeitosa e não agressiva para com a realidade e por isso não destrutiva”. (BOFF, 2012, p. 127). Portanto, a sustentabilidade estaria atrelada a uma responsabilidade mais direta do Estado, na medida em que “representa o lado mais objetivo, ambiental, econômico e social da gestão dos bens naturais e de sua distribuição”. (BOFF, 2012, p. 21). Entendo que, com ações políticas neste sentido, estaríamos sendo educados e estimulados a uma cultura do cuidado, ao escolher “as atitudes, os valores éticos e espirituais que acompanham todo esse processo sem os quais a própria sustentabilidade não acontece ou não se garante a médio e longo prazo”. (BOFF, 2012, p. 227). Catadoras e catadores de materiais recicláveis têm sido vinculadas/os ao papel de “agentes ambientais”. Quais seriam os significados deste tipo de asserção? De maneira geral, nas andanças de minha pesquisa de campo, essa era uma expressão amplamente utilizada como estratégia para a valorização de sua profissão. As/os catadoras/es têm sido consideradas/os “agentes ambientais”, porquanto cumprem um relevante papel no reaproveitamento das matérias primas; contudo, em grande parte, realizam esta contribuição à sustentabilidade em uma situação de exploração, precarização e exclusão social. Isso contrasta radicalmente com os preceitos do cuidado, dos direitos humanos e da justiça social. É neste sentido que Alencar (2008, p. 3) argumenta “que não há possibilidade de sustentabilidade enquanto existir exclusão social” e, portanto, “a proposta de desenvolvimento sustentável não se integra ao paradigma de acumulação capitalista”. (ALENCAR, 2008, p. 6). Ou seja, neste cenário, sustentabilidade e cuidado encontram-se um tanto destorcidos e desarticulados. Aos meus olhos, o selo verbalizado por algumas pessoas, sobretudo enquanto representantes do Estado, de “agentes ambientais” parecia uma forma de engodo, já que, – apesar de estas/es trabalhadoras/es colaborarem para o meio ambiente, para o bem social de muitas pessoas, cuidando do meio ambiente, – no seu dia a dia laboral, a sustentabilidade e o cuidado não pareciam atuantes, gerando condições de trabalho precárias e, por vezes, insustentáveis. 255


O estudo desta realidade me levou a refletir que, para considerar as/ os catadoras/es de materiais recicláveis como “agentes ambientais”, devese partir de uma abordagem que enfoque o desenvolvimento sustentável como aquela invocada por Ignacy Sachs (2004). Tal abordagem se baseia na universalização dos direitos humanos fundamentais, o que abrange um “desenvolvimento a partir de dentro, ou seja, socialmente inclusivo, ambientalmente sustentável e sustentado”, destacando-se a necessidade de as pessoas estarem exercendo o chamado “trabalho decente”45. (SACHS, 2004, p. 102). A lógica da produção, do consumo e do descarte segue persistente com um encaminhamento numa configuração que representa uma situação nociva, que macula o direito ao respeito que possui cada pessoa que trabalha como catadora e catador. Um dado que nos auxilia a compreender esta configuração nos informa que a geração de lixo no país aumentou 29% de 2003 a 2014, o equivalente a cinco vezes a taxa de crescimento populacional no período, que foi 6%. (ABRELPE, 2015). Entretanto, a quantidade de resíduos com destinação considerada adequada não acompanhou o crescimento da geração de lixo. Em 2014, apenas 58,4% do total foi direcionado a aterros sanitários. Segundo a mesma pesquisa, das 78,6 milhões de toneladas de resíduos sólidos gerados no Brasil em 2014, cerca de 41% delas tiveram como destino lixões e aterros controlados que são considerados locais inadequados, por oferecerem sérios riscos à saúde pública. Estes dados originam-se do primeiro estudo realizado após a vigência da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) de 2010 e demonstra a situação da gestão dos resíduos. A pesquisa retrata uma evolução de 7,2% em relação à reciclagem de materiais. No ano de 2010, apenas 57,6% dos municípios nacionais possuíam alguma iniciativa de coleta seletiva. Em 2014, o percentual aumentou para 64,8%. Diante deste crescimento substancial do descarte de materiais e dos números menos expressivos quanto a reciclagem dos mesmos e da coleta seletiva nos municípios, podemos compreender a urgente demanda de que o Estado assuma de forma intensa estas questões como parte de sua política. Sachs (2004) faz uma diferenciação que nos interessa, para pensar essa situação das/os catadoras/es. Ele classifica como excludente (do mercado de consumo) e concentrador (de renda e riqueza) o padrão de crescimento perverso que muitos “países menos desenvolvidos” adotam. O desenvolvimento ideal para o autor seria inclusivo, o que vem a requerer a garantia do exercício dos direitos civis, cívicos e políticos: assistência aos necessitados, educação, saúde, moradia etc. 45

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Contudo, existe ainda mais um fator relevante em relação ao lixo e às/aos catadoras/es para refletirmos sobre as articulações relativas às responsabilidades do Estado, isto é, a sustentabilidade e o cuidado, envolvendo as ponderações de Leornardo Boff (2012) e Ignacy Sachs (2004). Precisamos considerar as condições em que o material tem chegado às associações ou cooperativas. No cotidiano de trabalho destas pessoas, esse fator acarreta um grande diferencial. Estando na mesa de triagem com as/os catadoras/es como estive, pude vivenciar o descaso, o descuido, o despreparo e uma despreocupação generalizada com estas condições. Coisas melecadas, contaminadas, quebradas, perfurocortantes e fétidas são uma constante na prática do manuseio na mesa de triagem. Isso pareceu algo naturalizado, como parte do trabalho, embora muitas/os catadoras/es também se queixassem desta situação, classificando-a como “falta de respeito”. Penso que esta realidade exige que se acionem e se formulem problematizações com base nas sugestões de Boff (2012) e Sachs (2004). Podemos questionar quais são as responsabilidades do Estado sobre garantia de sustentabilidade e cuidado que devem ser aplicadas ao lixo de cada cidadão a ser descartado de sua casa. Importa questionar o papel do Estado no entendimento de que a sustentabilidade se articula com o cuidado e que, desta articulação, pode-se pensar sobre um trabalho sustentável para as/os catadoras. Devemos refletir sobre a responsabilidade compartilhada pelo cuidado com o lixo, em que o Estado estimule e cobre este cuidado de todo e qualquer cidadão, das empresas, indústrias e dos ambientes públicos, não admitindo que reste para a/o catadora/r lidar com a “sujeira” e o descaso de outra pessoa. Na atual configuração, as razões atuantes que parecem predominar, para que este descarte seja feito, são as que restringem a responsabilidade do poder público e das/os cidadãs/ãos em relação a este descarte. Outra razão que explica o encaminhamento dos resíduos, da maneira como hoje se faz, parece encontrar-se no propósito de se buscar o máximo de lucro possível para as empresas que trabalham com a reciclagem. E o imaginário que perpassa estas condutas possivelmente é aquele que apregoa que as pessoas que habitam os espaços da abjeção são vidas que não merecem viver, vidas que não merecem cuidado e vidas que merecem lidar com aquilo que Ricardo de Souza (2013) definiu como “experiência insuportável da vida urbana” – o lixo. Ainda que hoje exista uma positivação destes materiais, pelo seu uso 257


na reciclagem, o autor reforça uma percepção de dejetos humanos como indesejados socialmente; segundo ele, portanto, esta parcela da sociedade acaba encarando a tarefa de cuidar daquilo de que ninguém quer cuidar, daquilo de que as pessoas querem se livrar; e que o Estado segue deixando de assumi-la como uma parte indispensável da tríade formada por produção, consumo e descarte. Em outras palavras, existe uma estrutura cultural, social, econômica e política que sustenta um encadeamento de discursos e de práticas que nos autorizam a desenvolver hábitos de consumo e descarte que afetam diretamente o corpo das/os catadoras/es. A materialidade do resíduo descartado – por não se incorporar uma conduta que compreenda a articulação entre sustentabilidade e cuidado – contribui para que este corpo habite os espaços da abjeção. Este lixo marca seu corpo e demarca ou reforça seu espaço social. Este lixo é um dos carimbos que incidem no corpo de cada catadora/r e chancela a rubrica da abjeção. Este lixo reivindica ser parte de um projeto político assumido pelo Estado.

Catadoras e catadores: estudos e convergências Diversas pesquisas que tematizam o mundo da catação denunciam condições de trabalho, em diferentes contextos, que apresentam características semelhantes àquelas que vim a conhecer. Trata-se de concepções sobre o trabalho das catadoras/es que guardam semelhanças e articulações com a definição de corpos abjetos. Representam outras formas de abordar questões que compreendem aderência entre elas, preservando, evidentemente, algumas peculiaridades, de acordo com a linha de pensamento adotada. Reuni algumas concepções e expressões propostas por pesquisadoras/ es que nos apresentam um recorte de como o trabalho das/os catadoras/es vem sendo enunciado e pensado na academia. Podemos, desta forma, ampliar a nossa percepção sobre problemas presentes na vida das/os catadoras/es. A “pobreza e a precariedade”, os processos de “exploração, opressão e alienação” (BORTOLI, 2012) e a incidência da “violência” na vida das/os catadoras/es (GRECCO, 2014) articulam-se com a abjeção e com a realidade encontrada na pesquisa de campo. A situação em que vivem permite enquadrar estas/es trabalhadoras/es como um “lumpemproletariado”, menção a grupo de pessoas classificadas como “refugo humano” (FREITAS, 258


2010), como “excluídas e marginalizadas” ou como parte fundante de uma “liminaridade”. (MAGALHÃES, 2012). Tal atributo faz alusão a uma condição social que se encontra entre os signos de uma “exclusão explícita” e de uma “inclusão indireta ou incipiente” (MAGALHÃES, 2012), o que situa estas pessoas como potenciais componentes da zona de abjeção. São vidas preenchidas pelo “sofrimento ético-político”, permeadas pela “vergonha” e pela “humilhação”, decorrentes, sobretudo, da “discriminação” e do “preconceito”. (MIURA; SAWAIA, 2013). Ser a/o alcunhada/o como corpo abjeto está plenamente vinculado a bulir com o lixo, como já foi comentado, – “experiência insuportável da vida urbana” (SOUZA, 2013) – podendo ser alocada/o ao ambiente daquelas/es que são “varridas/os do mundo”, numa condição de “desumanização”. (JUNCÁ, 2004). As/os catadoras/es categorizadas/os como “trabalhadoras/es sobrantes” (BURGOS, 2009), como a “população excedente” (ESCURRA, 2011), atrelada à “lógica da acumulação capitalista”, que labuta sob “difíceis condições, sob permanentes pressões” e constantemente sofrendo da “exploração da mão-de-obra” (ESCURRA, 2011), podem ser pensadas como corpos abjetos. Cada qual com quem cruzei e tive a oportunidade de conhecer, no percurso da pesquisa de campo, me possibilitou entender o mundo da catação de materiais recicláveis, dentro desta ótica que, mesmo trazendo múltiplas interpretações, soma sentidos, nexos e proporciona um panorama que assegura um profícuo debate sobre a precariedade no trabalho das catadoras. Estas são realidades variadas e espalhadas em todo o vasto território brasileiro, onde as catadoras têm em comum a dura realidade de trabalhar em meio a condições degradantes. Foi esse transe que me conduziu a questionar o que leva estas mulheres catadoras a aguentar tal situação.

Catação, trabalho precário e corpos abjetos: uma maioria de mulheres A percepção do que ocorria na Associação fazia saltar aos olhos alguns fatos: havia ali um número maior de mulheres e a maioria trabalhava na triagem, tendo algumas atribuições exclusivas, como a divisão de tarefas de limpeza e de preparo de alimentos, enquanto a prensa era um local de 259


domínio masculino, raramente contando com a participação de mulheres. Também ficou latente a percepção de fortes traços de hierarquia de gênero, predominando mulheres com histórias vinculadas afetivamente a homens – como pai, padrasto, namorado ou marido – que causaram sofrimento, histórias sobre desilusões amorosas, violências e abandono46. Como o trabalho que ali se desenvolve é assumido por uma maioria de mulheres, algumas indagações se impuseram: já que há uma história de segregação e desvalorização das mulheres, presente em diversos contextos da sociedade humana e fortemente afirmada na sociedade capitalista, o trabalho destas catadoras significa a única opção, aquela que “sobra” para elas enquanto trabalhadoras e enquanto mulheres? O fato de uma categoria de mulheres pobres e excluídas ser considerada “desprezível” permite atribuir a essa categoria um trabalho que a coloca – ou a acrescenta – em uma posição de abjeção? Existe relação entre esta maioria de mulheres que trabalha na catação e a insistente sugestão de que o cuidado direcionado às/aos filhas/os e às tarefas domésticas são condutas “naturais” para as mulheres, ou mesmo obrigação predominantemente destas (e não dos homens pais)? Na convivência e nas conversas, durante todo o período em que desenvolvi a pesquisa de campo, uma visão que as catadoras expressaram sobre estas questões tem relação com a ideia de que alguns homens teriam vergonha de exercer este trabalho, mas que as mulheres não teriam. “Mulher já enfrenta tanta coisa, não tem frescura. Tem filhos, tem que fazer as coisas”47, foi a fala da catadora Laura, a qual, do meu ponto de vista, resume a percepção acima exposta e que será retomada logo adiante. Importa que se diga que a existência de uma maioria de mulheres não foi um atributo exclusivo na Associação. Embora ocorresse uma intensa flutuação no número de associadas/os, nela o percentual de mulheres sempre foi maior. Durante a pesquisa de campo de nove meses, o número mais estável foi de dezessete catadoras/es: doze eram mulheres e cinco eram homens. Nos eventos de catadoras/es, esta conjuntura de a catação abranger uma provável maioria de mulheres foi um tema frequentemente comentado, tanto por integrantes do MNCR como nas entrevistas que fiz individualmente com diferentes catadoras/es. Em meu caderno de campo, posso apontar nove membros de associações ou cooperativas de catadoras/es de diferentes 46 Todos estes aspectos foram explorados na tese e articulados com as concepções de corpo abjeto no capítulo 4, “MULHERES CATADORAS: VIOLÊNCIA E ABJEÇÃO”. 47 Caderno de campo, 16/10/2014.

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regiões do país que afirmaram trabalhar ao lado de uma maioria de mulheres. Em uma ocasião, no “Fórum Estadual Lixo e Cidadania”, presenciei uma catadora representante do MNCR questionando o resultado de um relatório de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no qual constava existir no país uma maior parte de homens trabalhando na atividade de catação. “A gente que anda por este Brasil afora, que conhece as catadoras, os catadores e os barracões, sabe que a realidade é outra. Sempre tem mais mulher, é só mulherada nos barracões”48. Ela estava se referindo ao relatório da “Situação social das catadoras e dos catadores de material reciclável e reutilizável” (IPEA, 2013), no qual divulgava-se que, no Brasil, 68,9% destas/es trabalhadoras/es são homens. Entretanto, no próprio relatório são expostos questionamentos quanto ao resultado destes dados, explicando-se que sua dubiedade se deve a “fatores sociológicos”. É esclarecido que, como algumas mulheres exercem outras atividades, como os afazeres domésticos, elas interpretam a coleta de resíduos como uma atividade complementar. Mesmo trabalhando como catadoras, estas mulheres acabam não se identificando enquanto tais para quem coleta os dados do referido relatório, informando sua atividade como domésticas ou trabalhadoras do lar. Existe um bom número de estudos que apontam indícios que corroboram os dados da pesquisa de campo e as falas de membros do MNCR e das/os demais catadoras/es com quem conversei durante a pesquisa. Ao estudarem a temática das/os “catadoras/es”, diversas/os autoras/es afirmam que nos grupos de trabalhadoras/es em que realizaram suas pesquisas foi encontrada uma maioria de mulheres trabalhando como catadoras. É o caso, por exemplo, das pesquisas de Salgado e Teixeira (2012) que relatam 100% de catadoras mulheres no grupo em que realizou sua vivência; de Feitosa (2005), com 95%; de Wirth (2010), que aponta 75%; de Gomes (2014), com 70%49; de Bortoli (2012), que apresenta 61%; e de Barros e Pinto (2008), que descrevem um total de 57% de mulheres como catadoras em sua pesquisa. Estes números aproximam-se de outras duas referências. Na tese de doutorado de Caballero (2008, p. 63), que também enfoca o trabalho 48 Caderno de campo 07/11/2013. 49 A autora não apresenta estes dados em percentagens. Este foi um cálculo que realizei a partir de seus dados do estudo, no qual consta que as/os “participantes foram 30 associados que integravam a associação de catadores de materiais recicláveis, 21 mulheres (incluindo a presidente) e nove homens”. (GOMES, 2014, p. 62).

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de catadoras/es, embora não sejam indicados os percentuais relativos a gênero, entre estas/es trabalhadoras/es encontra-se o depoimento de um funcionário do departamento que gerencia os resíduos sólidos da prefeitura de Porto Alegre, que declara que 80% das pessoas que trabalham com catação são mulheres. Outra referência é do MNCR, na voz de um dos seus representantes, Alex Cardoso, o qual afirma que das/os 85 mil catadoras/ es organizadas/os no Movimento, mais de 70% são mulheres50. Presente no “4º Encontro Nacional de Mulheres Catadoras de Materiais Recicláveis”, a mesma liderança declarou no microfone para a plateia quase exclusiva de mulheres participantes do evento que encabeçaria uma proposta de alteração do nome do coletivo. Propôs que o nome fosse alterado para “Movimento nacional dos catadores e das catadoras de material reciclável”. A proposta de inclusão das catadoras no nome do Movimento se deu pelo reconhecimento da relevância da participação das mulheres no movimento, no qual, segundo Alex, representam o maior número. Com base na realidade mais singular da Associação, somada às demais vivências na pesquisa de campo e incluindo dados de outras fontes de pesquisa, constituiu-se um panorama no qual visualizamos um grande número de mulheres envolvidas na atividade de catação de lixo. Seguindo as mesmas fontes, na maioria das vezes, estas catadoras têm desenvolvido sua atividade em condições precárias de trabalho, que envolvem conviver com situações perigosas e, por vezes, humilhantes, o que me permite afirmar que a realidade destas mulheres – aqui evidenciada como inseridas socialmente nas zonas inóspitas dos corpos abjetos – vai ao encontro de um cenário que vem sendo pesquisado e denunciado pelos estudos da divisão sexual do trabalho como sendo de extrema vulnerabilidade. Nestes estudos são abordadas as relações de poder entre homens e mulheres e, portanto, as relações de dominação, exploração e opressão dos homens sobre as mulheres, mais especificamente no mundo do trabalho, amplamente discutidas nos estudos de gênero. Segundo Helena Hirata (2001; 2002; 2007; 2010), a divisão sexual do trabalho assenta-se num princípio de hierarquia, no qual o trabalho masculino é sempre mais valorizado do que o trabalho feminino, por exemplo, com os homens recebendo maiores salários e maior reconhecimento.51 50 Notícia vinculada no site do MNCR. Disponível em: http://www.mncr.org.br/ box_2/noticias-regionais/mncr-propoe-programa-de-reciclagem-popular-ao-governofederal. Acesso em: 10 mar. 2015. 51 São muitos os estudos que demonstram a existência desta hierarquia. Segundo

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Historicamente, a intensificação da inserção da mulher no mercado de trabalho no sistema capitalista ocorreu em meio a uma tendência voltada a diminuir custos, com a exploração cada vez maior da mão-deobra, sedimentando-se a força da engrenagem da acumulação capitalista assentada na exploração das pessoas. Denise Carreira (2004) enfatiza que estas características nutrem potenciais de desigualdades, sendo uma delas a de gênero. Este contexto “gera grandes impactos na vida da maioria das mulheres, aumentando a vulnerabilidade, a precariedade das condições de vida e a perda dos direitos”. (CARREIRA, 2004, p. 16). Estes impactos têm uma relação direta com os ideais da família burguesa, pois nela vislumbramos fortes traços da essencialização do espaço doméstico e das relações interpessoais como sendo o ambiente da mulher, assim como o espaço público seria aquele de domínio do homem. (SCOTT, 2002). No bojo desta divisão de papéis, percebemos uma outra essencialização específica, qual seja, aquela que identifica as mulheres como cuidadoras por excelência, em decorrência de seus atributos femininos que, nesta visão de mundo, seriam inatos e essenciais. (MARCONDES; YANNOULAS, 2012). A história da precarização do trabalho feminino encontra-se articulada com a concepção do papel de cuidadora atribuído às mulheres. Segundo Cláudia Nogueira (2010), a construção deste cenário, com estas características, ocorre porque o capital não ignorou a hierarquia de gênero instalada historicamente nas relações sociais construídas no processo de desenvolvimento da sociedade humana. Ao contrário, reforçou e explorou a dominação e a subordinação de gênero, com mais contundência no modo de produção capitalista. De tal modo: A intersecção do trabalho com a reprodução, na configuração capitalista, serve ao capital, não somente pela exploração da força de trabalho feminina no espaço produtivo, mas também porque as atividades desenvolvidas pelas mulheres na esfera dados do DIEESE, de 2003, as mulheres recebem 65% do que recebem os homens. A Fundação Carlos Chagas (2007) reafirma esta realidade na qual as mulheres ganham um salário menor, independente do setor de atividade econômica em que estão inseridas, da posição que ocupam (como empregadas, autônomas, empregadoras ou trabalhadoras domésticas) e da jornada semanal. Somado a isso, a mesma pesquisa afirma que, embora seja verdade que quanto mais elevada é sua escolaridade, maiores são as oportunidades de alcançar melhores rendimentos para ambos os sexos. Ainda assim, este é um fator que parece se aplicar mais aos homens do que às mulheres.

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doméstica garantem, entre outras coisas, a manutenção de “trabalhadores/as” para o mundo do trabalho assalariado, bem como a reprodução de futuros trabalhadores/as que acabam por se constituir enquanto forma de trabalho disponível para o capital. (NOGUEIRA, 2010, p. 59)

E nesta intersecção encontram-se as mulheres de “carne e osso”, que trabalham fora de casa e fazem mais de uma jornada de trabalho por dia, pois precisam dar conta das tarefas domésticas em casa e do cuidado com as/os filhas/os. Essas tensões e desafios para a mulher que trabalha fora e dentro de casa ainda acarreta debates acirrados e são fatores que exercem impacto direto na vida das mulheres catadoras, segmento no qual tal ocorre de maneira sistemática. Não conheci uma catadora que relatasse que, ao chegar em casa após o dia de trabalho, contava com um companheiro ou marido que dividisse as tarefas dos afazeres domésticos. Trata-se ainda de uma sobrecarga que ganha contornos intensos nos muitos casos vivenciados com a ausência de um pai participativo nos cuidados com as/os filhas/os. No caso das catadoras com as quais convivi, muitas delas relataram ser as únicas responsáveis pela criação de sua prole e especificaram que este foi um dos fatores que as levaram a escolher o trabalho como catadora, principalmente por existir nele uma certa flexibilidade de horários. Isso assegura a possibilidade de cuidar das/os filhas/os, frente às necessidades de comparecer a reuniões de escola, enfrentar fila para vaga em creches ou em escola e ficar com elas/es quando adoecem. Estas são situações que, de fato, pude testemunhar na minha vivência na Associação. Foram diversas as circunstâncias em que alguma catadora se ausentou do trabalho, chegou mais tarde ou saiu mais cedo, por conta dessas demandas relacionadas com os filhos. Quando faltava, quase sempre era por algum motivo relacionado ao cuidado com a prole, nomeadamente por problema de doença com a/o filha/o. Nos relatos era comum ouvir a ressalva, como a de Andrea: “se fosse em outro emprego, numa firma, ou como doméstica, já me descontavam ou me mandavam embora”52. Inclusive, por vezes, uma ou outra catadora me contou sobre situações na sua história em que foi despedida por este tipo de dificuldade. Nesse sentido, o trabalho torna-se uma exigência, sobretudo, para adquirir a renda necessária para o sustento das/os filhas/os e ser 52

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Caderno de campo 23/08/2014.


catadora foi relatada como sendo uma opção quase que única, diante das exigências dos trabalhos mais formais e das demandas que são projetadas a estas mulheres, por conta do fato de serem mães. Outra situação que ilustra o trabalho de catadora como uma das únicas alternativas visualizadas por uma mulher refere-se aos casos de trabalhadoras que engravidam. Quando Marcela começou a trabalhar na Associação, já estava no início da gestação. Ela contou-me que precisava de dinheiro para custear as despesas com o bebê que estava chegando. O pai não estava assumindo os cuidados nem os gastos relativos à filha pequena do casal e tampouco estava contribuindo para cobrir os gastos referentes aos preparativos para a criança que vinha chegando. Indaguei: “e por que você começou a trabalhar aqui? Você não acha um trabalho pesado, com a gravidez, né?” Ela me respondeu: “É pesado, mas tudo bem, a gente faz. Que outro lugar ia aceitar eu barriguda deste jeito? Nenhum, não aceitam mulher grávida para trabalhar. Só aqui na Associação”53. A responsabilidade do cuidado atribuída exclusivamente à mulher de criar e sustentar economicamente a prole exige que esta catadora se exponha a um trabalho que ainda segue existindo sem condições agradáveis e dignas para qualquer pessoa. No caso da gravidez, podemos problematizar duas características que aparentam ser prejudiciais à gestação. A primeira deve-se ao fato de muitas dessas mulheres carregarem um peso bem grande, sacos com 70 quilos de materiais, por exemplo, o que pode ser inadequado para uma gestante, a depender do desenvolvimento de sua gestação. Outra característica preocupante são as substâncias que estas pessoas manipulam e inalam na lida com os materiais. Presenciei inúmeras situações de alimentos em estado de putrefação, produtos químicos, material hospitalar e outras possíveis substâncias às quais as/os catadoras/es ficam expostas. Estes riscos à saúde devem ser percebidos, levando-se em consideração que nesta Associação, bem como em outras realidades da catação que conheci, as/os trabalhadoras/es não fazem uso de máscaras nem de luvas, estando a pele e as mucosas de boca e narinas mais expostas a possíveis contaminações. Cumpre destacar que, durante a pesquisa na Associação, fizeram parte do quadro de associadas/os outras três mulheres grávidas, suscitando um peso ainda maior para este dado. Percebo, desta forma, que o cuidado com as crianças – que socialmente vem sendo atribuído como um encargo 53

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quase que exclusivo de mulheres – parece ser um fator agudo que empurra estas mulheres para a atividade de catação, mesmo que tenham que se expor a condições adversas. Este significa o trabalho possível, neste contexto.

“Mulher aguenta tudo”: o cuidado e o trabalho na catação Na intenção de investigar os motivos pelos quais existe nesta profissão esse grande número de mulheres, conversei com as próprias catadoras sobre o assunto. Quando perguntei à catadora Rosinha: “Por que será que a maioria das pessoas aqui na Associação é formada por mulheres?”, ela respondeu: “Isso aqui não é para qualquer um não. Muitas vezes, homem não aguenta o tranco. E ainda, às vezes, homem tem vergonha de trabalhar com lixo. Mulher aguenta, aguenta de tudo nessa vida, não tem frescura. Tem que aguentar, né, por causa dos filhos!”54. Esta modo de viver que demanda responsabilidade e uma lida cotidiana e laboriosa com relação à criação da prole tem conexão com uma norma social vigente, em que as mulheres continuam sendo alocadas como protagonistas na responsabilidade pelo atendimento às necessidades do cuidado e à articulação de outras estratégias de provisão das/os filhas/os. (MARCONDES; YANNOULAS, 2012). Na análise aqui proposta, esta percepção de Rosinha encontra-se vinculada a uma expressão que foi recorrente na pesquisa. Muitas mulheres, ao relatarem episódios tristes de sua história de vida envolvendo relações afetivas com homens, inseriam em sua fala expressões como: “eu fui tratada como lixo” ou, “eu me senti como um lixo”. Desta forma, considerando os estudos que apontam as diversas formas de segregação histórica das mulheres, na tese refleti sobre as articulações entre estes depoimentos: aqueles que definem que “mulher aguenta”, e os outros, segundo os quais as catadoras se identificam com o lixo – o fato de trabalharem como catadoras de materiais recicláveis e a condição de corpo abjeto na qual estão socialmente inseridas. De um lado, parte-se do depoimento que abaliza que a existência de uma maioria de mulheres na atividade da Associação se justificaria porque, diante das adversidades atualmente inerentes ao trabalho da catação, as mulheres teriam um perfil mais adequado para suportar tais condições, 54

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Caderno de campo 05/06/2014.


já que “mulher aguenta tudo”. De outro, são apresentadas as histórias das catadoras que evidenciam que estas mulheres, de fato, “aguentaram” intensos sofrimentos e violências em diferentes momentos de suas vidas, quase sempre provocados por homens com os quais mantinham algum tipo de relação afetiva e certa proximidade. Estas histórias as conduzem a escolher como representação dessas situações a metáfora de ser tratada ou de se sentir como um lixo. O “corpo lixo” destas mulheres, já identificado nos estudos que fiz na área de dança, foi assim lapidado a custo de intensos e diversificados sofrimentos e privações. São trajetórias de vida marcadas pela abjeção, que acarretaram a produção de estratégias de sobrevivência. Nas histórias que foram contadas, desvelou-se que estas catadoras são corpos abjetos, também porque são mulheres e sofrem as violentas segregações advindas de características já amplamente debatidas pela literatura dos estudos de gênero55. Piscitelli (2002, p.2) define que a subordinação feminina é assumida como ainda presente em nossa sociedade, embora não se trate de algo dado, inquestionável e imutável. Ainda que se saiba que existem alguns espaços sociais com maior flexibilidade nas formas de alguém ser mulher – ou homem, ou outra denominação mais fluida qualquer de gênero – e que se sucederam conquistas importantes de vários movimentos sociais, a divisão social que regula os gêneros permanece atuante em nossa sociedade e demarcou seu espaço na realidade da pesquisa de campo. Os modelos daquilo que pode ser considerado dentro de uma “normalidade” atuam constantemente e estabelecem limites que segregam as mulheres. Mesmo quando a mulher já está no mercado de trabalho, com frequência isso ocorre em condições precárias, além de ainda caber predominantemente a ela ser responsável pelo cuidado dos afazeres domésticos, incluindo os cuidados com as filhas e os filhos. (HIRATA, 2009; NOGUEIRA, 2004). Essa é uma realidade que tem se replicado na vida das mulheres catadoras. Deste modo, a vida das catadoras que conheci, além de todas as características já apontadas, que as conformam numa condição social de abjeção, reclamou alguns questionamentos específicos. Inicialmente, pelo fato de elas comporem a maioria e, no desenvolvimento da pesquisa, por 55 Estes também são conteúdos sobre os quais reflito no capítulo 4, “MULHERES CATADORAS: VIOLÊNCIA E ABJEÇÃO”, de minha tese de doutorado.

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reunirem muitas histórias de vida carregadas pela violência de gênero. Ser catadora e ser mulher significa ser vista como um corpo abjeto, guarnecido de uma carga a mais de abjeção pelo fato de ser considerada mulher56. As mulheres aguentam mais, aguentam estar no meio do lixo, trabalhar em condições inóspitas, como disse Rosinha, porque como mulher e como homem cada qual de nós aprende, reforça e naturaliza comportamentos que se enquadram nestas características. E Rosinha sabe das coisas, ao associar à capacidade de “aguentar” da mulher a realidade de ter que cuidar das/os filhas/os. Ela sabe que às mulheres têm sido atribuído o papel, muitas vezes exclusivo, de cuidar. Rosinha sabe que se uma mulher não cuidar da casa e das/os filhas/os, existe o risco de que ninguém cuide. As catadoras que participaram desta pesquisa confirmaram que os números apontados sobre as mulheres “chefe de famílias” no Brasil vão muito além das estatísticas, pois revelam uma realidade composta por tramas complexas. Os impactos relativos a esta situação são intensos em seu cotidiano, na intimidade dos lares e nas escolhas pessoais destas mulheres. O “relatório anual socioeconômico da mulher” (BRASIL, 2015), organizado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, veiculou que em 56 A escolha da expressão “ser considerada mulher” é proposital e aborda uma indagação que aqui não será possível desenvolver. Em consonância com os debates que questionam a abordagem de “mulher” que está presente nos estudos de gênero, naqueles sobre patriarcado ou nos próprios estudos de “mulheres”, este estudo se identifica com as problematizações feitas por Judith Butler. Está próximo do questionamento que a autora faz da categoria gênero, principalmente naquilo que ela entende como uma possível fluidez e plasticidade performática, nas denominações de “masculino”, de “feminino”, de “homem”, de ‘mulher”, reivindicando um questionamento tanto teórico como político a respeito desse binarismo. Se adoto aqui uma perspectiva binária, abordando os homens e as mulheres, é porque entendo que na realidade pesquisada estas demarcações estão bem estabelecidas e, portanto, esta classificação entre homens e mulheres funciona bem para a análise. Outra reflexão é a que discute, no campo de pesquisa, como este binarismo presente na realidade é um dispositivo de poder, refletindo como poderiam se configurar outras estratégias de relação entre as pessoas, numa perspectiva mais igualitária e que respeitassem as diferenças; uma perspectiva na qual as pessoas não precisassem apoiar suas identidades nestas classificações binárias. Uma excelente referência sobre a temática pode ser conferida nas obras de Leticia Lanz, em sua dissertação de mestrado “O corpo da roupa: A pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero”. Disponível em:< http://www.leticialanz.org/wrdp/wp-content/uploads/2014/10/ Let%C3%ADcia-Lanz-O-corpo-da-roupa-vers%C3%A3o-final-05-10-14.pdf, e seu livro “O Corpo da Roupa: Uma introdução aos Estudos Transgêneros”, da editora Transgente, 2014.

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quase 38% dos domicílios a “pessoa de referência” – pessoa responsável pelo domicílio, ou assim considerada por seus membros57, – era mulher. Entre essas famílias com “pessoa de referência” do sexo feminino, 42,7% eram compostas por mulheres com filhas/os e sem cônjuge. Quando se observa estes dados na parcela de famílias que tem como “pessoa de referência” alguém do sexo masculino, este percentual chega somente a 3,5% das famílias. Assim sendo, embora minoria entre as pessoas de referência (38%), segundo o relatório, as mulheres representam um número maior entre as famílias sem cônjuge e com filhas/os. Este panorama brasileiro elucida a divisão desigual do cuidado com dependentes entre mulheres e homens. O peso nesta balança pende, sem a menor sombra de dúvida, para o lado das mulheres, devido ao papel social que lhes é atribuído. O cuidado tende a pender para as mãos, o corpo e o investimento afetivo das mulheres. Conheci diversas catadoras que se enquadram neste percentual, criando suas/eus filhas/os sem a presença do pai, quase sempre sem a sua participação na educação, no cuidado cotidiano e nas despesas financeiras. Quando indagadas sobre o que pensam sobre esta circunstância, e se têm a pretensão de pleitear que o progenitor venha a cumprir com sua obrigação legal de, pelo menos, arcar com parte das despesas das/os filhas/os, a resposta que recebi de três catadoras revela-se sintomática. Elas argumentam que não desejam tomar esta atitude, porque querem “manter distância” de seu antigo parceiro. Alegam: “eu sofri muito”, “ele me batia”, “melhor ele ficar longe, eu me viro”, “ele me tratou como lixo”58, ao relatarem casos de violência que sofreram. Elas preferem assumir sozinhas esta responsabilidade do que estabelecer algum tipo de vínculo com o pai da criança, devido ao sofrimento que passaram e por considerarem a ocorrência de possíveis novas agressões e desgastes, caso venham a estabelecer qualquer tipo de relação com o pai 57 Parece existir uma tendência recente, nestes estudos, em dar preferência à expressão “pessoa de referência”, mais do que “chefe de família”, embora eu não tenha encontrado uma bibliografia específica sobre esta tendência. Penso que isso vem ocorrendo devido aos significados que a palavra “chefe” deva evocar, pois se trata de uma expressão munida de uma carga grande de força masculina na família tradicional. 58 Este depoimento e os demais que estão presentes no decorrer da análise deste capítulo foram extraídos do meu caderno de campo, ou fazem parte das entrevistas que realizei. Contudo, neste capítulo, não especifiquei a data, quando trato de temas que possam expor o sofrimento e a intimidade das pessoas que confiaram suas histórias a mim, para que não seja identificada a fonte de origem. Isso foi aplicado tanto em relação aos eventos quanto à pesquisa de campo na Associação.

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da prole. Por mais desafiante que seja, “aguentam tudo” sozinhas e querem distância dos pais de suas/eus filhas/os. Constata-se que esta tem sido uma responsabilidade assumida pelas mulheres num contexto que apresenta elos de uma complexa teia, com raízes que se espraiam e se nutrem de concepções historicamente assentadas em nossa sociedade. Trata-se de uma situação exemplar de como se expressam as relações de gênero no mundo das catadoras.

Considerações finais Neste estudo considera-se que o trabalho de catadora/r continua a ser precário e tem exposto muitas mulheres a situações degradantes. Na pauta de luta apresentada pelo MNCR, estão explicitadas proposições de condições dignas de trabalho, com uma lista ampla de pleitos a serem atendidos, admitindo-se que no cenário nacional ainda existem muitas demandas urgentes a serem transformadas. No desenvolvimento das lutas por melhores condições, as articulações entre sustentabilidade e cuidado configuram uma urgência para que se pense as políticas ambientais. Quando o trabalho de catação envolver o cuidado com os seres humanos, o que, necessariamente, reclamará uma outra relação – mais cuidadosa – com o lixo produzido por cada pessoa, poderemos pisar um espaço menos abjeto na vida das catadoras e dos catadores. Nesta perspectiva, conjecturo qual seria o contexto deste trabalho, caso boa parcela dessas transformações almejadas fossem conquistadas. Se fosse este um trabalho com melhores condições, “sobrariam” tantas oportunidades para as mulheres? Esta foi uma indagação que me acompanhou durante toda a pesquisa. O ato de assumir sozinha e a todo custo as tarefas de cuidado da casa e da prole tem restringido as possibilidades de escolha de um trabalho mais digno para muitas catadoras. Caberia, sem dúvida, uma pesquisa sobre as dificuldades enfrentadas por essas mulheres, para o acesso ao estudo formal e à creche para suas/eus filhas/os. Sabemos que estes são direitos das mulheres e crianças e que ambas as chances possibilitam uma maior autonomia econômica e o reconhecimento de seu direito ao trabalho. Aqui, novamente, se advoga que problematizemos as responsabilidades do Estado, como aquele que gera e garante estas oportunidades e estes direitos. Cabe mencionar que na pesquisa de campo várias catadoras relataram que deixaram de estudar 270


porque tiveram filhas/os na adolescência e que enfrentaram dificuldades para colocar suas/eus filhas/os em alguma creche. Contudo, esses foram dados até então não desenvolvidos neste estudo e que reconheço como parte importante para se ampliar a reflexão aqui proposta. Neste capítulo explorei o quadro que projeta que à mulher permanece sendo atribuído o papel social preponderante de cuidadora e isso tem gerado consequências graves para sua vida. Segundo dados de 2015, 83,6% (8,6 milhões) das crianças brasileiras com menos de 4 anos tinham como primeira responsável uma mulher (mãe, mãe de criação ou madrasta). (IBGE, 2015). Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) expressam que as mulheres chegaram a dedicar entre 20 e 25 horas semanais aos cuidados com a casa e os filhos, mesmo que cumpram jornadas de trabalho de 40 a 44 horas semanais, enquanto que em média os homens aplicaram em torno de 9 horas semanais a esse fim. Quando estão desempregadas, a jornada de trabalho doméstico sobe para cerca de 26 horas semanais. (OLIVEIRA; MARCONDES, 2016). Ainda com base no estudo de Oliveira e Marcondes (2016), chega-se à conclusão que as mulheres que trabalham fora respondem por uma jornada média em afazeres domésticos três vezes superior à dos homens, principalmente as que são mães. Parece-me relevante sublinhar que estamos falando de atividades cotidianas muitas vezes inadiáveis, que sempre demandam que sejam refeitas e sustentadas, como limpar a casa, fazer faxina, cozinhar, ir ao mercado e cuidar das/os filhas/os. No dia a dia, elas cobram dedicação de tempo, esforço corporal e geram cansaço e estresse. A expressão que afirma que as “mulheres aguentam tudo” e que tal ocorre principalmente em função da responsabilidade de cuidar das/os filhas/os nos ensina muito sobre a realidade da vida das catadoras. Nesta fala – que amplia sua potência, quando articulada à etnografia que vivenciei e a outros dados de pesquisas – vemos o peso projetado às mulheres com a responsabilidade de cuidar da casa e da família. “Aguentar tudo” produz desgaste emocional e corporal excessivo para qualquer pessoa e tem exposto estas mulheres a um ambiente de trabalho que ainda precisa ser melhorado, para que nenhuma mulher tenha que aguentar um cenário tão abjeto como aqueles que conheci. Por isso, a problematização da leitura essencialista do cuidado que ainda está a influenciar os comportamentos sociais pode significar a tomada 271


de condutas mais equilibradas, justas e dignas, tanto na divisão de tarefas domésticas e cuidado com as/os filhas/os entre homens e mulheres, quanto nos debates, nas concepções e nas decisões sobre as políticas públicas. Joan Tronto (1997, 2007) recomenda que lutemos para que o cuidado seja tratado como pauta de âmbito público e seja reconhecido o seu cunho político, enquanto uma estratégica de traços feministas que busque alternativas para que muitas mulheres possam se livrar da carga que ele pode representar. “Aguentar tudo” é uma carga que compromete a possibilidade de dignidade. Reconheço como crucial a proposta dessa autora de que o cuidado seja entendido como uma contribuição à vida coletiva e seja plenamente possível de ser comparado aos empregos considerados relevantes no mercado de trabalho formal. Isso implicará, segundo Tronto (2007), uma revisão das fronteiras entre moral e política, moral e afetos e entre o privado e o público, a partir de uma sensibilidade feminista. Reclamará, pois, que mulheres como as catadoras resguardadas ao espaço dos corpos abjetos deixem de ser alocadas a realidades em que “aguentar tudo” é naturalizado e atribuído como parte da essência feminina.

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CUIDAR DE SI A PARTIR DAS TECNOLOGIAS DO EU: O CUIDADO NA ECONOMIA SOLIDÁRIA DESDE AS EXPERIÊNCIAS NOS CLUBES DE TROCA Maria Izabel Machado59 Os clubes de troca, como uma das expressões da economia solidária no contexto brasileiro, reúnem pessoas com o objetivo de fazer circular produtos sem a intermediação do dinheiro. Os encontros regulares oportunizam que, além das trocas, se desenvolvam diversas experiências que ultrapassam a circulação de objetos. Pensar, pois, o cuidado a partir das experiências das mulheres nesses clubes conduz o olhar para práticas que envolvem o cuidar de si e o cuidar do outro. As reflexões acerca dessa temática têm procurado visibilizar a complexidade do tema bem como os desafios enfrentados cotidianamente tanto por quem cuida quanto por quem demanda cuidados. De participação majoritariamente feminina, os clubes convertemse em espaço onde as mulheres trocam saberes e práticas, produtos e experiências. Desenvolvem para isso estratégias, metodologias e processos que têm no falar um importante vértice. Submetidas a contextos de violências múltiplas, acentuadas pela pobreza, as participantes encontram nos clubes uma escuta atenta e respeitosa, condição necessária para ressignificar o falar. Dizer-se nos contextos dos clubes significa, em muitos casos, mover-se do sentimento de inadequação para a percepção de si como sujeito. O fio condutor da análise aqui proposta é a percepção de que o cuidado como vivido pelas mulheres participantes dos clubes é uma das faces da agência. Se, desde os contextos socioeconômicos em que vivem, as possibilidades de reinventar-se se mostram limitadas, a partir de uma experiência coletiva na qual as reciprocidades se estabelecem e se repactuam em cada interação, as margens do existir ficam tensionadas. Se não há 59 Professora colaboradora na Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG, defendeu tese em março de 2017 com o título “Mulheres, economia solidária e a reinvenção de trajetórias”, junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Com mestrado e graduação pela mesma instituição, atua como pesquisadora nas áreas de gênero, economia solidária e trabalho. izabelpjmp@gmail.com

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dinheiro, há a moeda social60, se não há psicólogo na unidade de saúde, há as colegas que ouvem atentamente, se não sobra dinheiro para cuidar da aparência, há as trocas trazendo a “roupa de sair”, as bijuterias. Os caminhos teóricos em torno do sujeito e da agência não raro nos conduzem a armadilhas conceituais pouco frutíferas. Delimitar a condição de sujeito, como aquele que reproduz estruturas e modelos, em contraste com a noção da agência, por vezes encharcada de racionalidade instrumental, não é suficiente para apreender o que vivem as mulheres em questão. Quando a noção de agência é acionada no contexto desta pesquisa, traz como conteúdos significativos a compreensão de que, não obstante as contingências impostas pela fragilidade econômica e pelas assimetrias de gênero, essas mulheres não são telespectadoras de sua própria história. Agem, se movimentam, criam estratégias e se reinventam. O cuidado é, pois, o modo como as participantes dos clubes colocam essa agência em curso, ou seja, cuidar de si e dos outros a partir da pertença comunitária permite a essas mulheres responder aos desafios de forma que o existir não seja uma condenação.

Os clubes de troca e suas participantes A partir de 1990, na Argentina, e do ano 2000, no Brasil, em resposta à recessão econômica e com a baixa circulação de moeda, alguns grupos organizaram-se para trocar produtos e serviços, utilizando troca direta (produto por produto) e moeda social. No bairro curitibano de Sítio Cercado, em 2001, teve início o primeiro Clube de Trocas, com a motivação de contribuir para a superação do assistencialismo, através da distribuição de cestas básicas. A ideia era que as famílias necessitadas dessa assistência pudessem gradativamente partir para esquemas alternativos de geração de renda e autonomia, rompendo com o ciclo de assistencialismo–dependência. O primeiro passo foi implicar ou envolver, de alguma forma, os que receberiam os alimentos na produção de algo. A cada encontro desse grupo que se formava, era preciso aportar algo de produção própria: artesanato, hortaliças, pães etc. O que levavam era trocado entre eles e, ao final das reuniões, se distribuíam também os alimentos doados. 60 Moeda utilizada pelos clubes de troca, para intermediar as trocas em substituição ao dinheiro. No caso dos clubes pesquisados, a moeda social utilizada recebe o nome de “pinhão”.

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Rapidamente, a experiência se multiplicou, sendo seu sucesso atribuído em parte ao CEFURIA61, centro de formação e educação popular que atuava com suporte político e metodológico aos grupos. Ao mesmo tempo em que animadores ligados ao centro contribuíam para a multiplicação dos grupos, também se gestavam as balizas de seu funcionamento. A distribuição de cestas básicas, por exemplo, passou em alguns casos a ser condicionada à participação assídua nos encontros. Outros princípios comuns diziam respeito à gestão democrática do grupo, com coordenações rotativas eleitas entre os participantes, e à partilha equitativa dos recursos, fossem eles alimentos ou outros itens. Durante o período mais efervescente, Curitiba e região contavam com cerca de 50 grupos em funcionamento. Por inúmeras razões, o número de Clubes de Troca foi paulatinamente reduzindo-se. Atualmente, são quatro os que estão em funcionamento regular e um que está retomando suas atividades, depois de um hiato de aproximadamente três anos. O decréscimo no número de grupos precisa ser analisado de forma articulada à conjuntura política, religiosa e econômica do país. Na década de 90, quando se ouve falar pela primeira vez em Economia Solidária no Brasil e quando se multiplicam rapidamente os empreendimentos, o país enfrentava uma ofensiva neoliberal pós-consenso de Washington. Na década seguinte, ainda que mantendo políticas neoliberais no plano macroeconômico, foram implementadas políticas sociais, destinadas especialmente às camadas mais vulneráveis da população. Esse é um dos elementos que pode ter contribuído para o esvaziamento dos grupos, uma vez que estes atuavam na mitigação da pobreza extrema através da distribuição de alimentos. No entanto, a resposta precisa à questão de por que as pessoas deixaram de participar e se isso estaria relacionado a programas como Bolsa Família62, por exemplo, exigiria a compreensão das razões dos que abandonaram os grupos, tarefa impossível, considerando61 Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo, com sede em Curitiba, Paraná, Brasil. 62 Programa de complementação de renda destinado ao combate à pobreza e à desigualdade no Brasil, promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA), com gestão descentralizada entre União, estados e municípios. Podem acessar o benefício famílias com renda por pessoa de até R$ 85,00 mensais e famílias com renda por pessoa entre R$ 85,01 e R$ 170,00 mensais, desde que tenham crianças ou adolescentes de 0 a 17 anos. Disponível em: < https://mds.gov.br/assuntos/bolsa-familia/o-que-e/comofunciona>. Acesso em: 4 jan. 2017.

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se a inexistência de registros com dados que permitissem o acesso a esses participantes. Entretanto, fazendo-se o caminho inverso, constata-se que não há entre as entrevistadas beneficiária alguma de programas como Bolsa Família e não foi sequer possível identificar famílias entre as demais participantes que se enquadrassem nas condicionalidades do programa. Entre as possibilidades explicativas, mais especulativas que inferenciais, estaria o alcance efetivo dos programas sociais na mitigação da pobreza extrema que, de certa forma, teria desobrigado os beneficiários da dependência de cestas básicas ou de outras doações feitas por organizações religiosas e/ou do terceiro setor, somada a outro fator importante que foi a escassez de recursos para a animação e o suporte aos Clubes. Assim, da mesma forma que outras organizações do terceiro setor, o CEFURIA dependia totalmente de projetos internacionais vinculados a organizações religiosas. O encerramento desses projetos produziu uma impactante redução de educadores no quadro de funcionários, levando a organização a trabalhar com o mínimo possível, no que se refere a pessoal e a recursos materiais. Nesse cenário de adequação entre recursos humanos disponíveis e frentes de trabalho abertas, priorizaram-se outras iniciativas, como as padarias comunitárias. Formadas também por mulheres e em bairros periféricos, as padarias tinham maiores possibilidades de obter financiamento, principalmente porque têm foco direto na geração de renda. Este é um ponto crucial para os clubes. Nenhuma organização, mesmo as filantrópicas, estão dispostas a financiar grupos que “não produzem nada”. O fato de não circular dinheiro e de não se poder quantificar, segundo os parâmetros do mercado, o que se produz nos clubes, coloca essas mulheres – que já estão em posição de fragilidade econômica – em uma situação de total invisibilização. Não obstante o esvaziamento e a ausência de apoio, há grupos que permaneceram em funcionamento, mesmo sem a presença constante de animadores externos. Estes grupos mantêm, em grande parte, os princípios básicos que direcionam o funcionamento dos clubes, compartilhando elementos entre si. Entre eles está a manutenção de uma estrutura comum para a realização dos encontros: na chegada, cada participante apresenta os produtos que trouxe para troca, descrevendo-os brevemente e faz-se uma acolhida com a apresentação dos membros, caso haja algum participante novo ou visitante. Segue-se um momento conhecido como mística, no 282


qual se desenvolvem reflexões sobre a solidariedade ou temas afins. Após esse momento, dedica-se um tempo à formação, ocasião em que alguém do grupo ou um convidado expõe um assunto de interesse do grupo. Também há espaço para avisos e encaminhamentos de ações que envolvam o clube, comumente ligados a atividades que relacionam os coletivos entre si e que mobilizam a Rede Pinhão dos Clubes de Trocas, ou ainda iniciativas das comunidades locais em que os participantes estão inseridos. O ponto central dos encontros, contudo, é o momento em que são realizadas as trocas. A pesquisa de campo foi realizada durante os anos de 2014 e 2015 e compreendeu a observação participante de quatro clubes de troca (CT1, CT2, CT3, CT4), sendo dois deles em Curitiba e dois na região metropolitana (um deles na área rural). Foram realizadas também entrevistas em profundidade com 12 participantes selecionadas por meio de sorteio. Os perfis são diversos, em muitos aspectos. Em comum, pode-se dizer que são mulheres acima dos 40 anos de idade, migrantes, casadas, com filhos, com pouca escolarização, sendo que apenas duas das entrevistadas conseguiram ir além do ensino fundamental. A exceção entre as entrevistadas é Julia, assistente social designada por uma organização religiosa para acompanhar o Clube de Trocas 2. As inserções no mercado de trabalho, em geral, se deram em ocupações de baixa remuneração, comumente como empregadas domésticas ou cozinheiras. Apenas em um caso, a aposentadoria se deu por contribuições próprias à previdência social; dentre as que recebem o benefício, este se deve à condição de pensionista por viuvez. Nos clubes urbanos, as experiências religiosas apareceram com mais intensidade, enquanto que no clube da área rural os vínculos familiares, por sua vez, emergiram com mais força. O lazer na cidade é ir à igreja, ao culto, à missa; no campo, é sair pra se distrair e visitar a família. Do ponto de vista das condições de vida, apenas o clube de trocas de Colombo (CT3) destoa dos demais. Nele, as condições de pobreza se acham mais acentuadas. A distribuição de alimentos ganha uma maior relevância que as trocas propriamente ditas e é preciso criar estratégias como bingos para garantir o frete63 e a distribuição da comida. 63 O Clube está inserido em um programa de distribuição de alimentos adquiridos pelo governo federal diretamente de pequenos produtores. A distribuição é gratuita, mas fica a cargo dos beneficiários a retirada dos mesmos do local onde são distribuídos. Ainda que os

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Há ainda em comum entre as entrevistadas os modelos tradicionais de família, com a clara demarcação do que sejam atribuições femininas e masculinas, não apenas no que toca à divisão do trabalho, mas às práticas cotidianas como um todo. Em alguns casos, é preciso pedir autorização ao marido para ir ao clube de trocas; quando não é preciso pedir, é necessário ouvir as queixas. O direito de ir e vir, de falar e ser ouvida e o direito ao próprio corpo está sob a tutela do outro: “Eu falo pra ele [marido]: eu vou sair pra igreja e pro troca, eu fui mãe de 10 filhos, porque fiz todos os teus gosto, agora é os meus”. (D. Rosana, 76 anos, CT2). As narrativas sobre as experiências e as trajetórias que emergem a partir das entrevistas têm em comum, não apenas condições similares de existência prática e simbólica, mas também alguns pontos de inflexão em que as trajetórias foram sendo alteradas. A experiência da morte, da doença, do sofrimento psíquico, como situações limítrofes que exigiram novas respostas, no caso dessas mulheres foram respondidas em grande medida no exercício da convivência com outras mulheres. A economia colocada em curso nos clubes pode ser alocada ao campo da dimensão pragmática, do cotidiano que conecta experiências e sujeitos, tendo o cuidado principalmente com os filhos como fio condutor. As experiências que se dão no âmbito dos clubes de troca transcendem não apenas aos limites do econômico como às próprias fronteiras do grupo. Possuem potencial de informar novas posicionalidades aos sujeitos, como novas percepções de si e de reconhecimentos entre os pares. As relações intragrupo favorecem o restabelecimento de sociabilidades primárias, resultando não apenas na mitigação da miséria absoluta, mas no estabelecimento de redes de proteção que incluem o combate à fome, o combate à violência contra a mulher, a proteção da velhice e da infância e um espaço de reconhecimentos mútuos.

Cuidar de si a partir das tecnologias do eu Durante os períodos de realização das entrevistas individuais, foi possível confirmar a importância da fala e da escuta atenta entre as participantes. De maneira geral, as sorteadas para serem entrevistadas inicialmente se valores sejam baixos (cerca de R$ 20,00 por frete), este não é um valor do qual as famílias disponham. O clube organiza, pois, pequenos bingos, cujos prêmios são objetos doados, a fim de levantar a cada quinze dias o montante necessário.

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mostravam tímidas, mas, uma vez quebrado o gelo, demonstravam certo orgulho. Alguém achava suas histórias relevantes: “Eu não fui sorteada, mas eu quero falar. A Economia Solidária promoveu muita coisa boa na minha vida, nessa idade, da terceira idade”. (D. Raquel, 73 anos, CT2). O narrar-se durante os encontros nos clubes, que nem sempre ocorre de maneira formal, é perpassado pela reciprocidade que aciona uma escuta sempre atenta e produz identificações. Ali pode-se falar de muitas coisas que, ditas em casa, não encontrariam ressonância. Esse é, sem dúvida, um dos principais motivadores para a permanência nos clubes. Com o par fala/ escuta, cria-se uma primeira dimensão do cuidado, o cuidar de si. Para Michel Foucault (2010), cuidar de si passa necessariamente pelo conhecimento de si, mas não no sentido grego do “conhece-te a ti mesmo”; nesta acepção estão implicadas práticas do conhecimento de si interditadas à maioria das pessoas: Ocupar-se consigo mesmo é, evidentemente, um privilégio de elite [...] ocupar-se consigo aparecerá como um elemento correlato de uma noção – que será necessário abordar e elucidar um pouco melhor: a noção de ócio (scholé ou otium). Não se pode ocupar-se consigo sem que se tenha, diante de si, correlata a si, uma vida em que se possa – perdoem-me a expressão – pagar o luxo da scholé ou do otium. (FOUCAULT, 2010, p. 102).

Em Foucault, o conhecimento de si está relacionado ao autogoverno, condição necessária para o governo de outros. Chega-se a esta condição através do que o autor chama de tecnologias do eu (FOUCAULT, 2010), um conjunto de práticas sobre as quais convergem saberes. É por essa via que o indivíduo reúne as condições necessárias para tornar-se sujeito. O autor reforça a diferença entre o cuidar de si e o ‘conhece-te e ti mesmo’, lidando com quatro famílias de expressões que tratam do assunto. A primeira seria o estar atento a si, como o ato de prestar atenção a si mesmo, voltar a olhar para si, examinar-se. A segunda família de expressões consiste nas práticas da existência, a concentração em si mesmo como um refúgio, uma fortaleza. No terceiro conjunto de expressões relacionadas ao cuidar de si, estão condutas e práticas a respeito de si mesmo: ir ao mais profundo de si e a partir daí sanar-se, curar-se, reivindicar-se. (ALBANO, 2005). O quarto grupo de expressões ligadas ao cuidado de si compreende a relação 285


permanente consigo mesmo, tornar-se senhor de si, auto satisfazer-se, exercer soberania sobre si. As tecnologias do eu, na experiência das mulheres nesses clubes, passam necessariamente por um narrar-se. Falar, aprender a falar e ter sua fala reconhecida são estágios de um processo que envolve enunciações e posicionalidades. Há, durante os encontros, determinados procedimentos que dão pistas de como essas tecnologias do eu são produzidas e operacionalizadas. O primeiro é a disposição física do espaço. Dá-se grande ênfase ao círculo e à sua função: todas as participantes têm que ser vistas por todas. Demarca-se também, pela disposição circular das cadeiras, a horizontalidade como indício da democratização das relações; há lideranças instituídas e espontâneas, mas não se sentam em posição de destaque. Outro elemento importante é o da apresentação das participantes. Cada uma diz seu nome, há quanto tempo está no grupo e o que trouxe para a troca. Dizer o nome, mesmo quando a voz tímida é quase inaudível, é um primeiro exercício para o “aprender a falar”, um exercício pelo qual todas devem passar e ninguém é dispensado de fazê-lo. O saber falar, para estas mulheres, está comumente associado à escolaridade, de maneira que é preciso não tolher as que não tiveram acesso à educação formal ou a tiveram de maneira limitada. Para que percam o medo de falar, parte-se de algo que elas sabem, de um conhecimento que dominam; no caso da apresentação, dizer o nome é falar sobre quem são e cada uma sabe de sua trajetória melhor que qualquer outra pessoa. No entanto, mesmo o ato de dizer o nome pode não ser simples, para algumas das participantes. Em um dos encontros, no momento de arrumar os produtos para troca e colocar em cada mesa o nome de quem os trouxe, houve um acontecimento de veras importante. Uma das pessoas escrevia em letras grandes os nomes; para isso, seguia a ordem do círculo. Ao chegar a vez da senhora ao meu lado, ela hesitou e disse: “ah, põe Maria”. Ao perceber a insegurança, a pessoa que escrevia perguntou: “como as pessoas te conhecem? – Ah, é Lurdes, né?”. Quem escrevia arrematou: “então vamos pôr o certo, é Lurdes, né?! O nome é a coisa mais sagrada”. O que parece um pequeno incidente revela questões importantes sobre a ideia de tecnologias do eu. À pergunta “diga quem você é?”, seguem-se tensões acerca do eu, que são explicitadas através da dificuldade em escolher entre nome oficialmente atribuído ou o nome socialmente instituído. O que 286


significa que mesmo dizer apenas o nome pode não ser uma tarefa simples ou óbvia; implica saber quem se é. Dois outros momentos de fala são importantes: o das trocas, em que é preciso dizer o que se levou; e o momento final da avaliação, no qual são apontadas críticas e sugestões. Falar sobre o que levaram para trocar não pareceu, ao longo das observações, produzir constrangimentos. A dificuldade estava sempre na atribuição de valores aos produtos, o que também revela muito sobre o modo pelo qual as mulheres chegam aos clubes, com visões inferiorizantes sobre os trabalhos que produzem. Essa dificuldade é driblada nos clubes, consultando-se as que participam há mais tempo, e, ainda assim, se consideram que o valor está abaixo do que vale o produto, quem troca acaba pagando a mais por ele. O mesmo ocorre se acham que o valor é alto; o produto não é trocado. Já nas avaliações, momento em que a fala não é obrigatória, se multiplicam falas positivas e sugestões: “foi tudo bom”, “tem que trazer mais gente, mais produto”, “faltou produto de comer, chá...”. Passado o período de ambientação, quando a participante novata já se sente familiarizada com a apresentação própria e dos produtos, se inicia outra fase daquilo que estou considerando aqui como parte das tecnologias do eu, ou estratégias para “aprender a falar”. A convite das participantes mais antigas, a novata é motivada a assumir alguma tarefa no encontro. São basicamente duas as atividades propostas: a coordenação e a mística. A coordenação concentra-se entre as mais “experientes”, cabendo, portanto, às com menos tempo de grupo a mística do encontro. Por mística se entende, nos clubes, um momento de reflexão sobre valores como solidariedade e partilha; pode ser a leitura de um poema, uma oração. A distribuição de tarefas se dá sempre ao final do encontro em curso, para que no seguinte não haja improvisos. O ponto principal é que não se tenha medo de falar; por isso, fica a critério de quem conduzirá esse momento o tipo de reflexão que irá proporcionar. A partir desse nível, que se pode considerar como intermediário no aprendizado da fala, desdobram-se outras tarefas, como: a representação do grupo na reunião de animadoras e a animação de outros grupos. Participar da reunião de animadoras é responder pelo grupo, decidir pelo coletivo, contar a história do clube. Para isso, é preciso tempo, experiência e conhecimento do perfil do clube e suas dinâmicas. Não há eleição nesses casos; normalmente, se chega ao nome da representante por indicação ou pela consideração da 287


disponibilidade. Além do fator tempo disponível, é preciso considerar o dinheiro para o deslocamento de ônibus; nem todas podem dispor desse recurso. Já a tarefa da animar outros grupos é encarada com mais leveza, por se tratar, na maioria das vezes, de ensinar aos grupos que estejam começando como funcionam as trocas; e isso elas aprendem bem rápido. Viajar para outras cidades e Estados, representando o Clube de Trocas e a Rede Pinhão, que reúnem os clubes de Curitiba e região metropolitana, é menos recorrente, comum, mas poderia ser considerado o último estágio nas estratégias do saber falar. Quando há grandes eventos, a exemplo da feira de economia solidária que se realiza anualmente em Santa Maria, no RS, os movimentos sociais se articulam e costumam participar enviando uma delegação. Em ônibus fretado, vão representantes dos grupos, levando produtos de todos eles. Nem todas, certamente, seguem o mesmo caminho, especialmente quando se trata de ausentar-se de casa ou dispor de escassos recursos financeiros para os deslocamentos de ônibus. Mas, em comum, está a ideia de que ter a experiência no clube resulta da combinação de elementos como tempo de participação, ciência das dinâmicas internas e conhecimento das colegas. Este último determinante serve para se evitar tensões e malentendidos, especialmente durante as trocas. Então, ser membro significa que esta mulher, em primeiro lugar, “aprendeu” a falar sobre si, sobre o que produz, e aprendeu a escutar para conhecer as demais participantes. Sob a perspectiva foucaultiana das tecnologias do eu, o narrar-se, na experiência vivida pelas mulheres nos clubes, converte-se em mais do que um instrumento de ajuda mútua, no plano psicológico; ele constitui processos que envolvem prestar atenção em si, concentrar-se nas próprias necessidades, reivindicar-se, no sentido de fazer valer seus direitos (FOUCAULT, 2010, p. 78) e na manutenção de um tipo de relação consigo que a conduz a uma espécie de soberania. Essa ideia de soberania é bastante interessante para se pensar como o cuidar de si, o voltar-se sobre si e auto-satisfazer-se é processual entre as mulheres. Cecília relatava: “os maridos tão falando ‘você vai lá [no clube de trocas] ouvir o que não é pra você’, só que o grupo tá valendo a pena”. (D. Cecília, 63 anos, CT4). Neste mesmo grupo, durante os momentos que antecediam o começo do encontro, ouvi: “ela [participante ausente] tem pinhão pra trocar, mas ela não vem. O marido não deixa”. E nesse mesmo 288


encontro ainda se ouviu: “eu não tenho filho pequeno, tenho um marido que me obedece; então, pra mim é mais fácil tá representando o grupo.” (Marina, 50 anos, CT4). A fala de Marina produziu risos e um pedido: “você tem que ensinar à gente como se faz isso”. Em conjunto, as três falas dão um panorama dos caminhos percorridos por cada uma das participantes em direção, se não à soberania, à mais autonomia. A que chegou a um estágio considerado privilegiado pelas demais explicou: “minha caminhada não começou aqui; eu venho na luta tem muito tempo já; comecei em São Paulo, envolvida nos problemas da escola do meu filho”. (Marina, 50 anos, CT4). Cuidar de si pela perspectiva das tecnologias do eu, como pensadas por Foucault, exige coragem e suporte para alargar as margens. Não se trata de auto-satisfazer-se em um plano genérico, abstrato; as que se lançam nesse empreendimento são mulheres concretas, reais, equilibrando-se entre contingências. O fato de serem mulheres marca de forma determinante o modo como esse cuidado de si pode ser empreendido. Ainda que os clubes não tenham como propósito articularem-se em torno de posicionalidades de gênero, eles não se auto-denominam como grupos de mulheres; ao contrário, sempre reforçam que não importa se são homens ou mulheres, o clube está aberto a todos; e os encontros acabam se convertendo em espaço privilegiado de escuta para as participantes. Por essa razão, pensar o cuidado pela perspectiva das mulheres e a partir dos clubes demanda passos que se estendam além das noções de cuidado de si e de tecnologias do eu à maneira foucaultiana.

Cuidar de si a partir das tecnologias de gênero Ainda que as reflexões em torno do gênero não tenham sido um problema sobre o qual Foucault tenha se debruçado, este autor chama a atenção para o fato de que o cuidado de si esteve historicamente atravessado por um “outro” idealizado, normativo, na figura do diretor espiritual, do mestre, do sábio. No contexto das mulheres nos clubes, a tutela é recorrente, não só masculina, mas relacionada a qualquer figura de autoridade. Essa dependência em relação à figura de um outro idealizado está profundamente marcada nas trajetórias, exigindo das mulheres estratégias variadas para driblar as contingências:

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Eu sofri muito nesse tempo lá da chácara, daí eu pensei: a única coisa que vai me dar alegria é ter esse filho que eu quero. Aí sentei e perguntei: você não quer ter mais filho? Eu queria tanto! Pra ver se vinha uma menina. Eu peguei e disse pra ele: o médico falou pra eu parar um pouco de tomar o remédio [anticoncepcional]. Aí fui levando assim, até engravidar. Quando deu certo, ele falou ‘porque você foi inventar isso agora que os piá já tão indo pra escola, tão grande, a gente tá sossegado...’. Sossegado ele, né, porque eu nunca tive sossegada, que ele me enchia de compromisso pra mim não sair de casa e daí ele dava os pulo dele. (D. Sandra, 65 anos, CT 2).

Na estratégia de Sandra, o argumento para não tomar o anticoncepcional precisou do discurso médico, inventado por ela, para ter legitimidade. O marido não contestou e ela conseguiu o que queria: engravidar de uma menina. Este não é um movimento exclusivo ou inédito; os relatos das pequenas mentiras, dos ajustes são recorrentes. Como afirmou uma participante: “tudo vai do jeito que a gente conta a história”, sobre como negociava com o marido, quando precisava pedir dinheiro para algo considerado supérfluo. As teóricas feministas vêm, portanto, não apenas preencher lacunas da teoria, mas propor abordagens intersectadas de forma mais complexa. Na perspectiva da análise feminista, as ordens sexual e econômica operam juntas, as relações perpassadas por sexo e gênero estão profundamente imbricadas com os sistemas produtivos, com a produção de representações, com as teorias e as epistemologias. E isso nos leva a perceber como operam os sistemas que atribuem à mulher, não um lugar separado, mas uma posição dentro da existência social em geral. Ou seja, as hierarquizações a partir das representações de gênero, como instâncias primárias de ideologia, perpassam todas as esferas sociais, não se limitando a este ou aquele espaço. As qualificações para ser sujeito, a partir disso, especialmente para algumas mulheres dos clubes de troca, passavam pela tutela masculina: estudar até onde o pai achasse necessário, mudar-se para onde o marido achasse conveniente, como narra D. Márcia, ao falar sobre as mudanças, primeiro de Francisco Beltrão para Santa Catarina, por melhores condições de trabalho para o marido, depois de lá para Curitiba: “na verdade, a gente se mudou pra cá, porque eu não tinha ninguém dos meus parente lá na 290


época [em Santa Catarina]; aí a gente veio pra cá [Curitiba], porque ele tem família aqui. A condição de tutela exercida sobre a mulher reitera o feminino, definindo-se e sendo definido pela diferença, pelo que falta, nunca como sujeito. O que não significa um apagamento total, sobretudo se considerarmos as estratégias criadas pelas mulheres nos clubes. Esse tipo de abordagem exige, inclusive e principalmente, uma vigilância epistemológica (BOURDIEU, 2010) capaz de trazer para a análise elementos que foram ignorados ou negligenciados em pesquisas anteriores. Um dos elementos que carecem de um olhar mais atento é o silêncio das participantes do Clube quanto às situações de violência contra a mulher. O silêncio sobre as situações de violência, situação encontrada em campo, não significa que ela não existe; ao contrário, não falar já é por si uma informação bastante relevante sobre os silenciamentos e sobre a forma como atua a violência simbólica contra as mulheres. Julia, assistente social que acompanha um dos grupos, comentava: Quando a gente fala de idoso, por exemplo, esse contexto, que elas apresentam, geralmente é sobrecarga nesse contexto familiar até de responsabilidade tanto financeira de às vezes ajudar o neto ou os próprios filhos e conflito mesmo de geração. Porque ali é vó, geralmente são três gerações: vó, neto e filha. Então elas trazem essa questão de [...] questão financeira, às vezes do filho tomar conta ali do dinheiro que elas recebem de aposentadoria, dessa sobrecarga da responsabilidade que é transferida de mãe pra vó[...] isso tem bastante. (Julia, 35, CT2).

O controle sobre o dinheiro é um dos mecanismos mais eficazes e perversos de controle sobre elas. Seja o salário ou a aposentadoria, é o livre manejo desses recursos que dá a essas mulheres condições mínimas para se perceberem e se posicionarem como sujeitos. No caso dos clubes, há ainda a ausência de equipamentos públicos como creches ou centros de educação integral/lazer, que não deixam às mães outra alternativa senão deixar os filhos com as avós. O controle sobre os recursos, o controle sobre o tempo livre e sobre a possibilidade de ir e vir acabam por sobrepor-se, dessa forma. Durante o tempo de observação, os netos acompanhavam as avós aos clubes, mesmo 291


quando o avô estava em casa e tinha condições de saúde para atender às crianças, como relataram informalmente as participantes. Entre as alternativas estava o rodízio entre as mulheres: a cada encontro, uma delas ficava com as crianças em outro espaço. Conhecido como “ciranda”, esse recurso é o mais usual: “ah, tem que ter, né?! Cada dia vai uma, daí é bom que a gente fica sem o atrapalho das crianças”. (Margarete, 39 anos, CT1). Outra alternativa é manter as crianças junto das avós, durante o encontro, e realizar entre elas um “clubinho”, no qual se troca brinquedos, material escolar, figurinhas. Esta é menos comum, mas assegura que todas, mulheres e crianças, participem do encontro. Os ciclos de cuidado, primeiro dos filhos e depois dos netos, ilustra o acúmulo de desvantagens enfrentadas pelas mulheres, apenas pelo fato de serem mulheres. A naturalização da tarefa de “olhar as crianças” se essencializa, cristalizando-se de maneira que se torna de difícil dissolução. Uma das razões da difícil desconstrução de essencialismos é que a perpetuação da desigualdade é assegurada exatamente por ser ignorada como arbitrária. Segundo Lauretis (1994), negar gênero equivale a negar as relações sociais de gênero que validam a opressão sexual das mulheres; além disso, se permite permanecer dentro de uma ideologia que invariavelmente faz a reversão em favor do sujeito do gênero masculino. Nesse sentido, o grupo demonstra potencial enquanto instrumento para a tomada de consciência dessa prática arbitrária. (BOURDIEU, 2010). Os momentos de mística nos clubes são importantes, nesse processo. Por eles se oportunizam reflexões, diálogos, que motivam as participantes a olharem para si a partir de outras perspectivas: A questão de vínculo mesmo, de superação de problemas, isso acontece no grupo, acho que até pelo fato da minha própria profissão como assistente social que a gente já tem essa escuta; então a gente vê que acontece mesmo. Tem sábados que a gente desenvolve a acolhida, traz um tema, teve um momento, até há uns dois meses atrás, um momento no clube que elas se apresentaram deprimidas, não era uma ou duas, eram cinco. Então o perfil do clube naquele momento tava assim, de eu fazer ou através da mística ou através da conversa mais paralela com elas, que elas trazem todo esse contexto, a dificuldade familiar, né; então isso acontece mesmo. Ou, as vezes, até na própria

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acolhida, quando a gente desenvolve de elas lerem um texto, acabarem chorando, colocarem todo esse contexto mesmo que elas vivem, o grupo mesmo abraçar, o clube mesmo acolher... então não tem como deixar de fora. Elas trazem, uma hora, um momento isso aflora mesmo e a gente dá essa atenção. O grupo mesmo, elas como colegas e a gente como profissional, que muitas vezes tem que fazer um direcionamento, ou encaminhar pra unidade de saúde, ou encaminhar pro próprio Cras64, que são os centros de referência, de assistência... Então as situações vão surgindo mesmo. (Julia, 35 anos, CT2).

Nesses momentos de acolhida, de mística, se estabelecem vínculos relacionais e identificações, perpassadas pelo gênero. Segundo Teresa de Lauretis, o termo gênero é a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma determinada classe, grupo ou categoria. Gênero, diferente de sexo, é, portanto, “a representação de cada indivíduo a partir de uma relação social preexistente ao próprio indivíduo e predicada sobre a oposição “conceitual” e rígida (estrutural) dos dois sexos biológicos”. (LAURETIS, 1994, p. 211). Nos processos de identificação, se trocam histórias de vida semelhantes. O sentimento de pertença e de perceber que não se está sozinha é um importante propulsor para movimentos possíveis. O choro compartilhado no espaço do clube não se limita aos “problemas de mulher”; todas passaram ou passam por situações similares e veem nos clubes o espaço onde podem falar sobre isso sem serem julgadas. O número de mulheres com depressão apontado por Julia é alarmante; representa 25% daquele universo. Se faltam creches ou outros espaços para deixar as crianças, faltam também sistemas mais efetivos de saúde pública, saúde da mulher, saúde mental como estruturas de políticas de cuidado. A insuficiência de aparatos públicos e a ausência total de condições para subsidiar um tratamento privado reforçam o papel dos clubes e o esforço despendido pelas participantes no cuidado de si. O desafio de passar por um quadro depressivo, sem a devida assistência, encontra uma possibilidade de superação por meio da 64 São unidades de execução dos serviços de Proteção Social Básica destinados à população em situação de vulnerabilidade social, em articulação com a rede socioassistencial. Disponível em: < http://www.fas.curitiba.pr.gov.br/conteudo.aspx?idf=198>. Acesso em: 8 jan. 2017.

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pertença a um coletivo. Nesse espaço, o sujeito encontra condições para se auto-constituir e o faz, não por obediência a um padrão de conduta, mas por identificação. Em Foucault, considerando que o cuidar de si era privilégio de uma pequena elite, quem propicia o conjunto de técnicas necessárias é a religião: Nas classes menos favorecidas, encontram-se práticas de si muito fortemente ligadas à existência, geralmente, de grupos religiosos, grupos claramente institucionalizados, organizados em torno de cultos definidos, com procedimentos frequentemente ritualizados. Aliás, é esse caráter cultual e ritual que tornava menos necessárias as formas mais sofisticadas e mais eruditas de da cultura pessoal e da investigação teórica. O quadro religioso e cultual dispensava um pouco esse trabalho individual ou pessoal de investigação, de análise, de elaboração de si por si. Entretanto, a prática de si, nesses grupos, era importante. (FOUCAULT, 2010, p. 103).

Os elementos presentes nos clubes que partem do narrar-se cumprem junto às participantes um papel pedagógico importante. Embora o religioso não seja a tônica dos momentos de mística, há, sem dúvida, lógicas religiosas organizando a subjetividade e a vida cotidiana. Subjetivamente, se estabelecem balizas para as trocas, para servir sem se envaidecer: “aquilo que a gente faz por amor a gente não conta” (D. Regina, 66 anos, CT 1), não conta no sentido de quantificar nem no sentido de dizer a outras pessoas. Já na experiência cotidiana, essa maneira religiosa de ordenar o mundo dá cadência aos encontros. Nenhuma delas tem um roteiro das etapas, embora exista um dizendo o que se deve fazer antes ou depois das trocas; mas todas sabem como fazê-lo, assim como sabem como proceder nos rituais religiosos. Fazer esse tipo de associação é sempre um risco; não se pode universalizar o religioso como sendo do universo do feminino, tampouco se pode ignorar o peso desse componente. As discussões entre sexo e gênero, os contornos e conteúdos desses conceitos têm ocupado teoristas e militantes ao longo do tempo. A desconstrução de essencialismos, desnaturalizando sexo e gênero, é uma das tarefas que continuam atuais. De acordo com Gayle Rubin (1998), por exemplo, o sistema sexo/ gênero é um conjunto de disposições pelas quais a sociedade transforma a 294


sexualidade biológica em produtos da atividade humana. Distanciar gênero das discussões acerca da natureza feminina e suas essencializações foi de importância salutar para o avanço dos estudos de gênero, especialmente sobre mulheres, e constitui neste trabalho um ponto de partida para compreender a condição das participantes do clube de troca, partindo das posições que ocupam, não porque sejam mulheres, mas porque a elas foram determinados ou atribuídos lugares sociais que, segundo o caminho de aproximação proposto, elas tentariam reinventar, a partir do grupo. Segundo Rubin, o enfrentamento dessas questões, através do simples revezamento entre os que ocupam a posição de dominadores, não seria suficiente para solucionar o problema das desigualdades. Por duas razões: a primeira, porque seria uma mera inversão da pirâmide, na qual uma categoria de pessoas se posiciona e se constitui pela subjugação de outra; em segundo lugar, porque o exercício do poder e da dominação só pode ser efetivamente compreendido de maneira relacional, contextualizada. Para Rubin, através da ação política, o sistema sexo/gênero poderia ser reorganizado. É certo que os lugares sociais atribuídos às mulheres, a construção histórica de sua subordinação ao sexo masculino e suas consequências constituem marcas indeléveis; contudo, a fixidez das posições de sujeitos sociais tocam igualmente homens e mulheres. Inverter a pirâmide, propondo uma espécie de dominação feminina, continuaria organizando o mundo social a partir do marco natural. A ação política atuaria, nesse caso, no sentido de suprimir a obrigatoriedade de papeis sexuais, o sujeito e o seu lugar social não determinados pela anatomia sexual. Em um dos encontros, nos momentos que antecedem o início das atividades, algumas mulheres conversavam sobre uma colega que tinha um bebê de poucos meses em casa: “essa mãe é doida, não dá mais banho no nenê no quarto, dá no banheiro, se pega um ventinho...”. O tom da conversa era de crítica à mãe adolescente que não sabia cuidar da criança. Uma senhora que ouvia comentou a respeito de uma reportagem sobre uma escola que ensinava os meninos a cuidar de bonecas: “eles ensinam tudinho, trocar, chacoalhar, fazer parar de chorar, achei boa ideia; assim, eles fica sabendo que não é só fazer”. Mesmo que a ideia de papeis pareça estar cristalizada nas práticas, há movimentos em outras direções. A senhora que apresentou o contraponto, de que os meninos também têm que aprender a cuidar, era, coincidentemente, a 295


mais velha do grupo. Não é apenas um comentário sobre uma notícia; a fala traz uma espécie de convite à ação: “assim, eles fica sabendo”; se os homens não percebem que precisam se responsabilizar pelo cuidado da casa ou dos filhos, é preciso avisá-los. Os passos são lentos; a noção de ajuda é muito presente; o trabalho do homem em casa é ainda um trabalho complementar, marcado pelo não saber como desempenhar as tarefas: Em casa, meu marido ajuda, ele pica lenha, às vezes quando tá apurado, o pátio ele limpa também. Já lavar roupa, limpar a casa, toda vida sou eu; nunca paguei nada, ninguém pra ajudar; [...] já o Márcio [filho] fazia até pão pra mim; ele não sabia, mas ele sovava o pão, ponhava no forno, assava. Um dia eu fui no médico, ele disse ‘mãe, eu vou lavar roupa pra senhora’. Eu disse que não precisava que eu lavava; quando a gente voltou, ele tinha lavado a roupa... tava tudo aquelas roupa ‘de pezinho’, dura de sabão. Daí eu comecei a dá risada e falei ‘não faz mal’, que se a gente caçoar dele, ele não faz mais. (D. Sara, 54 anos, CT4).

Embora a ideia de ajuda apareça para as mulheres, de maneira positiva, e o é de fato na experiência delas, no plano teórico, defender a complementaridade entre os sexos ou os papeis não altera assimetrias; apenas confere um verniz de equidade às relações, corroborando a perpetuação da lógica binária, na medida em que mantém inalteradas concepções como as de natureza e cultura, por exemplo. As críticas em relação à dicotomia natureza/cultura se recolocam com atualizações discursivas, mas sobre o mesmo substrato. Os problemas se dão, à medida que a diferença da cultura é seu potencial de transcendência em relação à natureza, o que a coloca hierarquicamente em posição privilegiada. É na capacidade de transformação da cultura que se assentaria sua superioridade em relação à natureza, como o polo ativo, portanto masculino, retomando as representações aristotélicas. Além disso, essa aproximação com a natureza estaria em paralelo com a associação das mulheres ao contexto doméstico, motivada pelas funções de lactação, ao reafirmar a proximidade das mulheres com grupos considerados infrassociais, como as crianças. Não obstante sua capacidade de socializar e cozinhar, consideradas parte do processo cultural, as situe na 296


fronteira entre os dois domínios. A limitação da participação feminina nas práticas culturais está fortemente ancorada em dados biológicos que tomam o sexo como determinante do comportamento, da personalidade, de suas potencialidades, mas, sobretudo, de seus limites. Essa noção de fronteira, trazida por Ortner (1979), também precisa ser problematizada. Ainda que tenha cumprido uma importante função analítica, atualmente ela contribui pouco para uma compreensão mais precisa da experiência das mulheres. Entendo que não se trata de relegar a mulher ao doméstico e o homem ao público. No caso das participantes, “ir para a rua” em busca de trabalho não é uma conquista de gênero, é um imperativo de sobrevivência. O que nem de longe significa melhores condições de vida ou indício de autonomia. Trata-se, efetivamente, de voltar o olhar para as posições ocupadas nos múltiplos espaços, por homens e mulheres, como bem nos lembra uma das entrevistadas: As filhas não conseguem vir pro troca, os homens não conseguem manter a casa sozinhos [...] as mulheres não tão aceitando qualquer coisa, qualquer trabalho e dizem ‘arroz e feijão’ eu tenho em casa. Então tá ficando pesado pros rapazes; elas têm que se virar também. Ficar parado não dá, não é só o arroz, o feijão; a depressão agora dá em homem, dá até em criança, em bicho [...]. (Margarete, 39 anos, CT 1)

A fala de Margarete é mais integradora do que os recursos analíticos que somos capazes de acionar. Dela não escapa ninguém: mulher, homem, criança, bicho. Daí a necessidade de pensar gênero como a representação de uma relação (LAURETIS, 1994), dando às abordagens mais fôlego analítico. Entre os desafios de delimitar as fronteiras entre sexo e gênero, está o de perscrutar o caminho das diferenças na estrutura corporal de homens e mulheres, se perguntando sobre as implicações dessa configuração. É preciso dizer quais são essas diferenças; mas, ao fazê-lo, incorreríamos no risco do determinismo, em que um fenômeno específico é atribuído totalmente à biologia. (NICHOLSON, 2000). O segundo problema relaciona-se com a consolidação das dicotomias, em especial a natureza e a cultura, que estruturam historicamente políticas públicas, práticas sociais institucionais e individuais. Os pares antagônicos seriam, para Harding (1993), empiricamente falsos, mas não podem ser descartados como irrelevantes, 297


enquanto continuam estruturando práticas. Enquanto essas práticas dualistas não forem repensadas, somos obrigadas a “pensar em existir no interior da própria dicotomização que criticamos”. (HARDING, 1993, p. 26).

Do cuidar de si ao cuidar do (s) outro (s) Ainda que em Foucault o gênero não seja um elemento de análise, ele lançou luzes sobre a importância do cuidar de si e de como apreender esses processos exige captar os nexos explicativos com base em perspectivas menos dicotômicas. Nesse sentido, o sujeito se constitui, não por práticas de dominação (poder) ou técnicas discursivas (saber), mas pelo conjunto dos procedimentos necessários para que o indivíduo fixe, mantenha ou transforme sua identidade. Isso é possível, graças a “relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si sobre si’. (FOUCAULT, 2010, p. 462). A análise e a compreensão das identidades como móveis, fragmentadas ou ainda posicionais, nos permite “apreciar um novo tipo de sujeito, não predeterminado, que esteja sendo produzido e em constante processo de transformação.” (HITA, 2002, p. 341). Os processos de reconfiguração das trajetórias e das identidades a partir das experiências, no contexto dos clubes de troca, são ao mesmo tempo produtos e produtores de práticas e representações acerca do trabalho, da cidadania e da igualdade. Autoras como Miriam Nobre (2016) e Lena Lavinas (2016) argumentam que a tradução da igualdade legal em igualdade substantiva requer a integração da economia, cultura e política, tendo em vista que a superação das desigualdades de gênero requer não apenas emprego remunerado, mas expansão da proteção social e provisão pública de serviços sociais. Os programas de transferência de renda, nesse sentido, ainda que logrem atenuar déficits monetários, não revertem de forma duradoura desigualdades e assimetrias de gênero. Crítica similar é feita por Bila Sorj (2016), em relação às políticas sociais que não rompem as barreiras estruturais e as normas discriminatórias de gênero, ao manterem a distância entre igualdade substantiva e igualdade formal. Operacionalizadas dessa forma e como amortecedoras de políticas macroeconômicas, as políticas sociais, em especial as que são voltadas à distribuição de renda, reiteram a lógica essencializante do trabalho reprodutivo como da esfera do feminino. 298


Ao se enfatizar o econômico e seus resultados quantificáveis, nos processos de institucionalização da economia solidária, reproduz-se essa mesma lógica, uma vez que a emancipação econômica via trabalho remunerado, se desacompanhada de igualdade no compartilhamento das atividades domésticas e do cuidado, segue subtraindo às mulheres o tempo e as condições necessárias a seu pleno desenvolvimento. Renda suficiente, compartilhamento do cuidado e demais afazeres, no âmbito doméstico, e o tratamento digno no trabalho comporiam, para a autora, parte de uma reengenharia social que, somada à expansão de serviços públicos condizentes com as demandas da população, propiciariam a diminuição da distância entre a igualdade meramente nominal em relação à igualdade substantiva. Contudo, as contingências não impedem que as mulheres construam suas próprias tecnologias do eu. A noção de posicionalidade reforça esse argumento. As mudanças promovidas no cotidiano das entrevistadas podem não corresponder às mudanças estruturais necessárias e esperadas, mas certamente produzem outros sujeitos. Há alterações no conhecimento de si que informam os lugares que essas mulheres passam a ocupar. Não se trata, necessariamente, de rupturas; nenhuma delas separou-se do marido, por exemplo, mesmo as que se achavam em relações explicitamente abusivas. No entanto, permanecem no casamento a partir de outro lugar, conquistado aos poucos e a muito custo; o relato de Sandra é um dos casos mais emblemáticos nesse sentido: Em 43 anos de casada, a primeira vez que eu fui viajar sozinha foi com o troca, pra representar o grupo. Eu agradeço a Deus que agora eu to feliz, eu to vivendo, eu to feliz. Depois que eu tive o derrame, ele soltou a rédea, quer dizer, eu arrebentei o nó. Porque quando eu tava melhorando, começando a falar, ele chorava de soluçar. [...] eu dizia ‘eu não quero riqueza, eu não quero nada, eu quero viver, deixa eu viver. (D. Sandra, CT 2).

Arrebentar o nó é assumir que se pode ir a muitos lugares e conquistar essa possibilidade. Não é pacífico, não significa que, de uma conquista como viajar sozinha, todas as demais virão de maneira automática. Ao contrário, há micro batalhas cotidianas que seguem sendo enfrentadas: “agora eu não digo ‘posso ir lá, você deixa eu ir lá?’. Eu vou. Eu me arrumo e vou. Às vezes, 299


ele diz: ‘larga eu sozinho e sai’; eu falo pra ele vim comigo no grupo; ele de birra almoça e não tira nem o prato da mesa.” (D. Sandra, 65 anos, CT2). Sandra fez da doença o ponto de reinvenção que precisava. Passou, a partir daí, a arrebentar vários nós para tecer outros. Com exceção do clube, cuja participação é relativamente recente, ela segue ocupando os mesmos espaços, agora em outra posição. Por essa razão, já não faz sentido apegar-se à ideia de uma fronteira real e efetiva entre os espaços públicos e privados. Os processos que nos constituem sujeitos concretos não se dão de forma separada: mulheres se constituem no plano doméstico e homens na esfera pública. Trata-se efetivamente de engendramentos que se dão a partir de conjuntos inter-relacionados de relações sociais. Ou seja, o “lugar de mulher” não é uma esfera separada; é, sim, uma posição dentro da existência social em geral. (LAURETIS, 1994, p. 216). De modo que pensar níveis de emancipação das mulheres, a partir dos clubes, significa apreender como elas passam a ocupar os lugares que sempre ocuparam. Não mudam os lugares, muda a maneira de estar neles. Para Sandra, a mudança posicional se deu a partir de um conjunto de movimentos, ou de tecnologias sociais: Quando a gente passou a trabalhar na cidade e conviver com pessoas mais experientes, as coisas foram mudando. Ele [o marido] mudou o jeito dele, não saiu mais atrás de mulher; aqui ele ficou firme, porque o patrão nosso dizia ‘eu acho absurdo o homem que larga a família por causa de outra’; ele tinha medo do patrão, morria de medo. E eu também fui convivendo com as pessoas; a gente vai se informando; tem a delegacia da mulher, tem isso, tem aquilo[...] ele não vai te bater[...] então aqui eu tive mais força. (D. Sandra, 65 anos, CT2).

Novamente, o cuidar de si remete ao falar e ouvir, conviver com os outros, olhar a experiência das pessoas com quem se convive. Esse relato, especificamente, chama à atenção ainda para as tecnologias de gênero. Do ponto de vista prático, a “força” para fazer os enfrentamentos necessários vem tanto do convívio social quanto da ciência das políticas de atendimento às mulheres que estão em situação de violência, formando um conjunto de tecnologias sociais. A noção de experiência, que se explica a partir dos modos como o sujeito compreende a própria trajetória, impede que se caia na armadilha 300


teórica da polarização entre sujeito e agência. Para Teresa de Lauretis, o gênero enquanto representação de uma relação e enquanto tal é um locus potencial, tanto para a mudança quanto para a reprodução. Olhar para a experiência das mulheres no cuidado de si, a partir do gênero, é procurar apreender nas narrativas e nas práticas os elementos capazes de persuadir as participantes dos clubes a investirem em outros posicionamentos. Para Sandra, a angústia de viver sob o ciúme do marido foi determinante: A cabeça dele era assim: que eu ia na mãe pra deixar os filhos e ia sair com alguém. Na cabeça dele era assim, que eu ia traindo ele a vida inteira. Por que que eu tive o derrame? Tudo por causa disso[...] ele abriu uma gaveta e achou o telefone da casa da patroa; ele ligou pra esse número e quem atendeu foi o irmão dela, da patroa, aí eu chego o homem tava que tava tremendo, daí ele falou: deixe, você já vai saber, espera, vai chegar a hora. Quando foi de noite que as crianças dormiam e a gente deitou, de repente, num piscar de olho, ele virou pro meu lado, pôs a mão em cima de mim aqui [mostrando o pescoço] e dizia: agora você vai me dizer quem é esse Francisco. Eu dizia que não sabia, que nunca vi [...]; esse homem me deixou quase louca; ele não me bateu, mas me deixou quase louca. (D. Sandra, 65 anos, CT 2).

Frente a uma situação limítrofe, Sandra se viu impelida a “arrebentar o nó”, quando, a partir do contato com outras tecnologias sociais, pôde perceber que o lugar até então atribuído a ela poderia ser revisto. Sem acesso à própria renda, que era apropriada pelo marido, e dentro de um modelo de relação comum a muitas mulheres de sua geração, Sandra se viu dentro de um vínculo que afetava sua construção subjetiva. Para Lauretis (1994), é exatamente no fato de que a representação social de gênero afeta sua construção subjetiva, e vice versa, que se abre a possibilidade de agenciamento e autodeterminação. Assim como a outras mulheres, o acesso à informação e a convivência com pessoas de fora do círculo familiar possibilitou à Sandra olhar-se, debruçar-se sobre a própria trajetória. Ver-se dentro e fora do gênero. Estar dentro, nesse contexto, porque estava engendrada por uma representação de mulher que estabelecia parâmetros do aceitável e do reprovável. E fora 301


do gênero, porque gradativamente percebeu que ser esposa e mulher não precisa ser um destino fixo e inevitável. Esse cuidado de si, que tem nos clubes de troca um vértice de possibilidades, levanta suspeitas. Nas instâncias institucionais, há o receio de que a ênfase nos laços de amizade e convivência converta os clubes em grupos de autoajuda. Não se trata disso, e, ainda que os clubes se restringissem apenas a serem espaços de autoajuda, estariam cumprindo um importante papel, considerando-se a ausência de serviços públicos que pudessem atender a essa demanda. As suspeitas sobre o que se faz nos grupos e a relevância disso aparecem de muitas formas. Um homem que participa esporadicamente de um dos clubes e é tido como pessoa de referência na economia solidária desabafava: A economia solidária é como um barco no mar; a gente nota que a onda vem; se a gente não tiver um daqueles coletes, a onda vem e a gente se afoga. Eu fico com medo da gente afundar. No começo, eu tinha aquela, desculpe eu falar isso pra você, eu tinha aquele gás, eu pegava uma coisa pra fazer e via acontecer. Mas agora eu vejo pouco grupo, eu não conheço grupo vivendo daquilo mesmo. A gente fundou um monte de grupo, a gente tinha vontade de trabalhar, [...] mas eu não vejo nada disso; a gente tem muito que aprender, tá muito difícil. Eu tenho medo que os poucos grupos que têm acabem virando grupo só de lazer. (João, 66 anos, animador, membro CT1).

A angústia por resultados quantificáveis não está ausente do interesse das mulheres. Todas elas aguardam as trocas como o momento mais importante. O que muda é que para elas não há problema algum em que o grupo se converta em um espaço de lazer: “eu sinto falta de um espaço pra conversar” (D. Paula, 65 anos, CT 3). O lazer para elas é uma economia restitutiva, que devolve o que foi tirado pelos vários mecanismos de esmagamento dos sujeitos, contemporaneamente; devolve o tempo. Os clubes, ao cultivarem uma mística, uma ordem sequencial de tarefas, ao mesmo tempo ritualizada e informal, uma vez que não é engessada, oferece previsibilidade, uma ideia de ordem que permite pensar um futuro, mesmo que próximo. Frente ao conjunto de coisas sobre as quais 302


elas não têm poder decisório, frente às incertezas econômicas, à instabilidade emocional, estar nos encontros representa um espaço de fuga e encontro: fuga do cotidiano sem largos horizontes, e encontro de si e do coletivo. Richard Sennett (2005) chama a atenção para a importância do senso de comunidade sequestrado pelo capitalismo flexível. A flexibilização dos processos produtivos teria nos conduzido para um modelo de sociedade que tem como marcas a ausência de longo prazo e a quebra dos laços de confiança. Confiar e estabelecer lealdades do tipo que desembocam em compromisso mútuo exige tempo. Contudo, neste cenário não há tempo a perder. Para o autor, é exatamente essa dimensão temporal a que mais afeta a vida emocional das pessoas, dentro e fora do ambiente de trabalho. Dentro dessa lógica, em que se tem a perene sensação de encurtamento ou de aceleração do tempo, desenvolver uma narrativa de vida assemelha-se ao trabalho de um artista de mosaicos: é preciso criar algo coerente, a partir de fragmentos episódicos. O caráter corrosivo deste tipo de capitalismo de curto prazo está exatamente no fato de ele retirar do horizonte a noção de longo prazo, a ideia de carreira e a possibilidade de segurança na velhice. A permanência em um estado contínuo de vulnerabilidade, afirma Sennett, ofusca o olhar de quem está nessa posição. Não se consegue enxergar o caráter estrutural da condição de instabilidade e o movimento naturalizado é de que se responsabiliza o indivíduo, no caso as mulheres, por não possuírem os códigos exigidos para o sucesso. Algumas abordagens feministas, como a de Rosi Braidotti (2000), têm procurado ler esses sujeitos, não apenas como fragmentos, mas como agentes que se movimentam e buscam novas posicionalidades. Os sujeitos passam a ser processos, em constante nomadismo, e a apreensão desses processos é sempre a partir das condições concretas, situadas. (BRAIDOTTI, 2000, p. 114 [M1). As técnicas de si, por essa perspectiva, colocam o gênero como uma política de subjetividade. É a partir do modo pelo qual mulheres concretas e situadas se veem e interpretam o mundo que elas se posicionam nele. Ser mulher, nesse caso, longe de um essencialismo ou de uma reificação da diferença, marca o lugar da própria enunciação: La idea del sujeto como proceso significa que ya no es posible suponer que él/ella coincide con su propia consciencia, sino que ha de pensarse como una identidad compleja y múltiple,

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como el sitio de interacción dinámica del deseo con la voluntad, de la subjetividad con el inconsciente: no sólo el deseo libidinal sino, más bien, el deseo ontológico, el deseo de ser, la tendencia del sujeto hacia el ser, la predisposición del sujeto a ser. (BRAIDOTTI, 2004, p. 40)65.

O que os clubes estão proporcionando é devolver às pessoas o tempo. Para estar junto, para bater papo, jogar conversa fora, para produzir identificações e articulações. Um tempo que não se converte apenas em conhecimento de si para cuidado de si, mas oportuniza recursos para reinterpretar o mundo. A maneira como fazem uso desse tempo cria identificações e especificidades. Os clubes de troca, com o tempo, converteram-se em grupos de mulheres. Contudo, os essencialismos acerca do feminino também precisam ser contextualizados. De acordo com Cláudia de Lima Costa (2002), “mulher” é uma categoria histórica, construída de maneira heterogênea, a partir de um conjunto amplo de práticas e de discursos que fundamentam o movimento das mulheres. Abrir mão disso traria mais prejuízos do que contribuições, em algumas situações. Não é possível reivindicar políticas públicas para mulheres, se não existe “mulher”; nesse caso, não se trataria de essencializar, mas de tomar a noção de mulher como uma estratégia de ação política, mobilizadora e capaz de amenizar desigualdades, ainda que reconheçamos sua temporalidade. Quando se elencou, entre os objetivos, apreender e analisar a reinvenção das identidades de mulheres participantes dos clubes de troca, não havia como apriori a ideia de que antes do grupo não existisse identidade, ou ainda, que não houvesse uma identidade enquanto mulheres. As mulheres, certamente, chegaram ao grupo com representações de si bastante consistentes, construídas a partir das posições que ocupavam até então e das relações que estabeleceram. Claudia Lima Costa contribui para essa análise, evidenciando a possibilidade de produção de identidades “nas 65 “A ideia do sujeito como processo significa que já não se pode supor que ele/ela coincide com sua própria consciência, mas que deve se pensar como uma identidade complexa e múltipla, como o lugar da interação dinâmica do desejo com a vontade, da subjetividade com o inconsciente: não só o desejo libidinal, mas também o desejo ontológico, o desejo de ser, a tendência do sujeito para o ser, a predisposição do sujeito a ser”. (Tradução de Maria Izabel Machado)

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margens, nos space-offs e nos interstícios das estruturas e dos discursos dominantes”. (COSTA, 2002, p. 78). É imperativo, pois, nos reportarmos às especificidades históricas desse sujeito, a fim de captar, da maneira mais aproximada possível, as relações entre ele e seu contexto; suas diferentes localizações proporcionaram diferentes leituras dos textos sociais e diferentes práticas narrativas. Nesse sentido, a leitura das trajetórias das participantes dos Clubes, a partir de suas enunciações e contextos, amplia as possibilidades analíticas: A fim de evitar a indiferença em relação à diferença [...], pensar sobre o lugar do sujeito na teoria se torna premente, já que tal reflexão poderá revelar os modos pelos quais esse sujeito (do feminismo) constrói novos loci de enunciação, proporcionandolhe outras formas de ver e saber e, o que é mais importante, de aprender a partir da experiência daquelas que vivem em outros lugares. (COSTA, 2002, p. 90). As reinvenções se dão de variadas formas, subvertendo a lógica de mercado e consumindo sem ter dinheiro, ou confrontando os limites impostos pela maternidade; se for preciso, leva-se os filhos e netos, mas não se deixa de sair de casa, dando pouca ou nenhuma importância aos critérios de relevância institucionalizados. Nas brechas, reinventam-se também formas de interpretar o mundo. Durante um dos encontros, a mística procurou reproduzir, com um vaso de terra e algo enterrado nele, a parábola bíblica sobre os talentos: Pois será como um homem que, viajando para o estrangeiro, chamou seus servos e entregoulhes seus bens. A um deu cinco talentos, a outro dois, a outro um. A cada um de acordo com a sua capacidade. E partiu. Imediatamente, o que recebera cinco talentos saiu a trabalhar com eles e ganhou outros cinco. Da mesma maneira, o que recebera dois ganhou outros dois. Mas aquele que 305


recebera um só, tomou-o e foi abrir uma cova no chão. E enterrou o dinheiro de seu senhor. Depois de muito tempo, o senhor daqueles servos voltou e pôs-se a ajustar contas com eles. Chegando aquele que recebera cinco talentos, entregou-lhe outros cinco, dizendo: ‘Senhor, tu me confiaste cinco talentos. Aqui estão outros cinco que ganhei. Disse-lhe o senhor: ‘muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem, alegra-te com teu senhor!’ Chegando também o dos dois talentos, disse: ‘Senhor, tu me confiaste dois talentos. Aqui estão outros dois talentos que ganhei’. Disse-lhe o senhor: ‘muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te com teu senhor!’ Por fim, chegando o que recebera um talento, disse: ‘Senhor, eu sabia que és homem severo, que colhes onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste. Assim amedrontado, fui enterrar o teu talento no chão. Aqui tens o que é teu’. A isto respondeu-lhe o senhor: ‘servo mau e preguiçoso, sabias que colho onde não semeei e que ajunto onde não espalhei? Pois então devias ter depositado o meu dinheiro com os banqueiros e, ao voltar, receberia com juros o que é meu. Tirai-lhe o talento que tem e dai-o àquele que tem dez, porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado. Quanto ao servo inútil, lançai-o fora, nas trevas. Ali haverá choro e ranger de dentes! (BÍBLIA, 2002, p. 1749). O texto é bastante conhecido e as interpretações usuais dizem respeito a aproveitar o que se recebe e fazer multiplicar, render, sejam bens, vocações, talentos. Ao final da leitura, quem conduzia a mística perguntou que coisas cada um dos servos tinha feito com os talentos recebidos: “o primeiro usou pra dar de comer pros cachorros, pros gatos, cuidou da criação”; “o 306


segundo deve ter feito alguma coisa com o dinheiro, produziu algo e vendeu”. Na explicação sobre o terceiro, surgiu um diálogo interessante: “ele enterrou e ficou parado”. “Mas o talento é só dinheiro? Porque, se for uma semente, ele fez certo!”. Todas as tarefas listadas são familiares às mulheres. Cuidar da criação, porcos, galinha, cachorro, cuidar do que vive. Ou fazer algo, produzir com o que se tem e transformar isso em dinheiro. Nas explicações para o terceiro servo, são as posicionalidades que informam o certo ou o errado, mesmo quando o “senhor” manda punir o servo por ele não ter seguido as recomendações. Há enunciados novos sendo produzidos. Na medida em que é possível enunciar-me, a partir de outra posição, o mundo pode ser lido por outra perspectiva, a linha que conduz o que as mulheres enunciam está perpassada pelo cuidado, de si e do outro.

Considerações finais Para enfatizar o ponto central dos encontros e a importância da produção própria, há que dizer que as trocas se mostraram catalizadoras de múltiplos significados. A materialidade do que se troca ganha relevância para as mulheres que têm acesso limitado à renda e ao consumo. Se não produz autonomia financeira, a troca sem dinheiro, apenas utilizando moeda social, possibilita acessar comida, roupas, utensílios domésticos, bijuterias, artesanatos, coisas que não poderiam ser obtidos de outra forma. Em contextos em que é necessário pedir ao marido dinheiro para qualquer aquisição, do pão ao uniforme dos filhos e netos, o poder de acessar um circuito de consumo de modo autônomo restabelece para essas mulheres elementos para que se leiam como sujeitos, e não assujeitadas. Saber falar, que, ao fim e ao cabo, é perder o medo de falar, não são exercícios de retórica ou técnicas para vencer a timidez. São enunciados que, como tais, dizem respeito a posições de sujeito. Empoderar-se pela fala é deslocar-se de posições de apagamento e sujeição para lugares de afirmação, reinvenção e produção de novas posicionalidades e identificações. É também por aí que passa a solidariedade entre as mulheres: ouvir e ser ouvida. O falar, como uma tecnologia do eu, possibilita conhecimento de si sobre si e dos códigos necessários para estar no mundo sem ser esmagado 307


por ele. Os passos que cada nova participante dá, até se considerar membro dos clubes, incluem começar a falar sobre o que ela mais conhece: o próprio nome, a própria trajetória. A estes, se seguem motivar uma oração, uma dinâmica de grupo, um momento de mística. Conquistada a posição, em que é possível se reconhecer como um sujeito cujos desejos, medos e anseios merecem e devem ser escutados, é hora de ajudar outras colegas a também percorrer esse caminho, assumindo a tarefa de coordenar encontros ou de representar o grupo em outros espaços. O pretexto é ensinar a trocar; o que se alcança é ensinar que nenhuma posição é ou deve ser fixa. Ser mulher não é uma condenação. As tecnologias do eu estão encharcadas, portanto, de tecnologias de gênero. Ser mulher, para além dos essencialismos, engendra cada uma das participantes e todas elas. Enunciadoras de uma “economia que toda mulher sabe fazer”, elas se colocam o tempo todo dentro e fora do gênero. Reproduzem lugares sociais e cavam outros. Cuidar, nesse contexto, é cuidar de si, não só para cuidar de outros, embora também seja para isso, mas cuidar de si, porque este é um empreendimento dos mais relevantes. Reivindicar para si o status de sujeito, como uma tomada de consciência do próprio valor e das próprias necessidades de cuidado, fez com que elas retirassem os interditos sobre o belo, o saboroso, tudo o que antes era considerado supérfluo, como a roupa bonita para ir à igreja no domingo, o doce para a sobremesa, as bijuterias; tudo está perpassado pela ética do cuidado, de si e dos outros.

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PRÁTICAS DE CUIDADO NO TRATAMENTO DA TUBERCULOSE NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NA ROCINHA/RJ: A VISÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE, DOS USUÁRIOS E DE SEUS FAMILIARES Raquel Barros de Almeida Araújo (SMS-RJ)66 Marly Marques da Cruz (DENSP/Fiocruz)67 Eliane Portes Vargas (IOC/Fiocruz)68 Tuberculose: uma doença multifacetada para se pensar o cuidado No presente estudo nos propomos a descrever as práticas de cuidado no Tratamento Diretamente Observado (TDO) da Tuberculose (TB), no âmbito da Estratégia Saúde da Família (ESF), no bairro da Rocinha, Município do Rio de Janeiro, dando voz aos sujeitos da ação. Para poder situar o leitor, buscouse nessa descrição valorizar as particularidades das práticas de cuidado e do contexto em que essas se realizam, por meio dos depoimentos coletados nas entrevistas que retrataram a visão dos três sujeitos do estudo: o profissional de saúde, o usuário portador de TB e seus familiares. 66 Mestre e especialista em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), enfermeira da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro/Divisão de Ações e Programas de Saúde (DAPS) da Coordenadoria Geral de Atenção Primária da AP 4.0/RJ, atuando junto às equipes Nasf e Linhas de Cuidado nas Unidades de Atenção Primária desta AP. raquelbarros.smsrio@gmail.com 67 Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Pesquisadora titular em saúde pública do Departamento de Endemias Samuel Pessoa (DENSP/Fiocruz). Docente de Pós-Graduação no Programa de Saúde Pública da ENSP/Fiocruz nas modalidades acadêmica e profissional. Integra o Laboratório de Avaliação de Situações Endêmicas Regionais (LASER/DENSP/Fiocruz), cuja atuação enfatiza a pesquisa, o ensino e a cooperação técnica em monitoramento e avaliação em saúde, com ênfase em HIV/AIDS, tuberculose, vigilância nutricional e redes de atenção à saúde. marly@ensp.fiocruz.br 68 Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ), área de concentração em Ciências Sociais e Humanas e Saúde (2006). Pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz e Docente da Pós-Graduação de Ensino em Biociências e Saúde (IOC/FIOCRUZ), Brasil, atuando em pesquisas sobre, principalmente, os seguintes temas: Corpo, Sexualidade, Reprodução, Tecnologias Reprodutivas e Relações Familiares e de Gênero, Alimentação e Cultura. epvargas@ioc.fiocruz.br

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A tuberculose é uma doença infecto-parasitária, causada pelo bacilo de Koch ou Mycobacterium tuberculosis, cuja localização mais frequente são os pulmões. Sua transmissão é feita por via aerógena, através da eliminação dos bacilos no ar. Após a infecção, entre 5% e 10% destes indivíduos apresentam formas evolutivas da TB e os demais permanecem assintomáticos (KRITSKI; SOUZA, 1998). A tuberculose, uma das doenças infecciosas mais antigas, ainda se apresenta como grave problema de saúde pública, sendo a segunda causa de morte por doenças infecciosas no mundo, mantendo-se como um dos agravos com múltiplas determinações relevantes, não só em âmbito nacional, bem como internacional. (BARREIRA; GRANGEIRO, 2007; SAN PEDRO; et al., 2017). O Brasil é um dos 22 países priorizados pela OMS onde se concentram 80% de todos os casos de TB no mundo. A taxa de incidência da TB no Brasil, em 2011, foi de 36,0/100.000 habitantes. (BRASIL, 2012). A capital do Estado do Rio (região metropolitana I, conforme divisão político-administrativa), em 2011, apresentou 50% dos casos registrados no Estado, com uma taxa de incidência de 89,0/100.000 habitantes, o que atribuiu ao município do Rio de Janeiro a 6ª posição entre as capitais do país e a 3ª entre os municípios do Estado. Neste município, estão concentradas comunidades cujas condições de vida da população são precárias e com grandes aglomerações, entre elas o Complexo do Alemão e a Maré, Jacarezinho e a Rocinha, em cujas comunidades a incidência é de 386/100.000 habitantes. (RIO DE JANEIRO, 2013). A TB apresenta determinados mecanismos de transmissão e a sua transmissão está relacionada ao contato entre uma pessoa infectada e uma suscetível. Este momento, da produção das novas infecções, corresponde diretamente à taxa de contato social, que é elevada pela densidade populacional, pela aglomeração dos espaços confinados e pela circulação nos espaços urbanos. Entre os indivíduos infectados, apenas uma parcela desenvolverá a doença, e assim poderá ser uma fonte de transmissão. Entretanto, em virtude da complexa relação entre o bacilo e o hospedeiro humano, o bacilo pode ficar latente por anos ou até décadas. (SABROZA, 2001). Os doentes, cuja baciloscopia do escarro é positiva, são a principal fonte de infecção da doença. Para interromper a cadeia de transmissão da TB, há duas medidas importantes: a descoberta precoce, através da busca ativa do sintoma respiratório, e o tratamento correto dos indivíduos infectados. (BRASIL, 2011a). 312


Com o advento da AIDS ou SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), a TB é a doença que mais mata no mundo entre os portadores de HIV/AIDS, com 4.500 mortes por dia ou 1,6 milhões de mortes por ano, o que vem contribuindo negativamente para o controle da tuberculose em todo o mundo (WHO, 2009). Estimava-se que 10% das pessoas que viviam com TB fossem HIV-positivas e que aproximadamente 20% das pessoas portadoras de HIV e AIDS desenvolviam tuberculose pulmonar. A existência de ambas as doenças aumenta consideravelmente o risco de morte desses portadores. Para Sabroza (2001), a tuberculose possui uma perspectiva de dupla polaridade, onde a co-infecção com os vírus da AIDS alcança diferentes grupos integrados, além de esta doença se encontrar vinculada à miséria e ser mais prevalente entre os excluídos. Esta questão é apontada também por San Pedro et al. (2017), que reconhecem que as iniquidades sociais e as condições de vida são as condições que colaboram para a aquisição, adoecimento e disseminação da tuberculose. Esse é um dos aspectos da vulnerabilidade que exerce influência durante todo o processo de tratamento do portador de tuberculose, o que indica que apenas o cuidado clínico não é suficiente para o êxito do tratamento. Nesta mesma perspectiva, Neto (2011) ressalta, a partir da experiência de Vila do Rosário, que a tuberculose não pode ser combatida somente por meio do tratamento da doença, mas que a estratégia de controle também deve englobar o combate à miséria. Desta forma, este autor (2011, p.15) sugere que a “tuberculose da miséria” é a “categoria social da tuberculose”, um elemento relevante a ser considerado para a eliminação do agravo. Apesar de a TB ser uma doença tratável e curável, sua produção depende de diversos fatores que estão associados a questões biológicas e a questões socioambientais e de condições de vida. Neste sentido, Fasca (2008), refere que nos centros urbanos os grupos mais vulneráveis e os excluídos são os que estão mais propensos a contrair a infecção e a desenvolver a tuberculose, o que está intimamente relacionado às condições de vida a que estão submetidos. A partir desta visão da produção da TB e da sua relação com as condições de vida dos indivíduos e seus contextos sociais, este agravo deve ser valorizado pelos profissionais de saúde, principalmente os que trabalham na ESF, entendendo a ESF como um modelo de reorientação da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil69. A APS deve ser a porta de entrada 69

A implantação da Estratégia Saúde na Família se deu a partir de 1991 com a

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ao Sistema de Saúde, onde a maior parte dos problemas de saúde é resolvida. É nesse primeiro nível de cuidado que outros cuidados mais abrangentes são coordenados, ao longo do tempo, e cujo foco e base do planejamento são as famílias e a comunidade em que estão inseridas (OPAS, 2007). Na organização das práticas de atenção primária à saúde, no Brasil, as propostas de humanização e integralidade no cuidado à saúde apresentam-se como uma alternativa de ação pública e têm sido apontadas como estratégias de enfrentamento para a crise na assistência à saúde.

O Cuidado no contexto do Tratamento da Tuberculose A TB tem sido considerada um agravo emergente, ou reemergente, em alguns países europeus e até nos Estados Unidos da América; no Brasil, entretanto, é caracterizada por Ruffino-Netto (2002, p.51) como “um problema presente e ficante há longo tempo”. A partir do aumento considerável do número de casos de TB no mundo, em 1993 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou este agravo como uma urgência e propôs a estratégia DOTS (Directly Observed Treatment Short-course) para seu controle, cujas metas eram alcançar 85% de casos tratados e 70% de detecção de casos. (WHO, 2012). Essa estratégia é compreendida pelos seguintes componentes: compromisso político com fortalecimento de recursos humanos e garantia de recursos financeiros e elaboração de planos de ação e mobilização social; diagnóstico de casos, por meio de exames bacteriológicos de qualidade; tratamento padronizado, com a supervisão da tomada de medicação e apoio ao paciente; criação das Equipes de Agente Comunitário de Saúde (ACS) e ampliou-se em 1994 com as equipes de saúde da família no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os profissionais de saúde que compõem estas equipes, principalmente o ACS, têm a possibilidade de atuar diretamente nos espaços comunitários e nos domicílios onde se encontram os doentes com TB e suas famílias. A discussão da Atenção Primária à Saúde (APS) é reforçada pela Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS/OMS, no documento “Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas”. (OPAS, 2007, p. 8). Nesta publicação é apresentada uma nova visão no desenvolvimento dos sistemas de saúde cuja base estaria na Atenção Primária à Saúde, pois um sistema de saúde com base na APS deve ser capaz de responder às necessidades de saúde da população e fomentar a “qualidade, a responsabilidade governamental, a justiça social, a sustentabilidade, a participação e a intersetorialidade. Este sistema precisa garantir a cobertura universal, garantir a equidade e o acesso aos serviços, além da oferta de amplos cuidados, priorizando a prevenção e a promoção da saúde. As famílias e as comunidades se apresentam como as bases deste planejamento e das ações em prol da saúde.

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fornecimento e gestão eficaz de medicamentos e sistema de monitoramento e avaliação ágil que possibilite o monitoramento dos casos, desde a notificação até o encerramento. (BRASIL, 2011b). No entanto, no Brasil, o componente “tratamento padronizado com a supervisão da tomada de medicação e apoio ao paciente” passou a ser denominado Tratamento Diretamente Observado (TDO), que tem como foco a observação direta da tomada da medicação anti-TB. O TDO apresenta quatro modalidades de supervisão: a domiciliar, na qual a observação realizada ocorre na residência do usuário ou em local por ele solicitado; na unidade de saúde, onde a observação é realizada em unidades de Estratégia de Saúde da Família, unidades básicas de saúde, serviço de atendimento de HIV/AIDS ou hospitais; na unidade prisional, onde a observação ocorre no sistema prisional; e a compartilhada, quando o doente recebe a consulta médica em uma unidade de saúde e faz o TDO em outra unidade de saúde, mais próxima a seu domicílio ou trabalho. (BRASIL, 2011). O Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT), em 2004, incluiu o controle da TB na ESF, com o intuito de consolidar suas ações na APS e, desta forma, propôs algumas ações, dentre elas o tratamento da tuberculose e a ampliação do TDO a todas as Unidades de Saúde dos municípios prioritários do PNCT. Na ESF, as equipes de saúde da família realizam ações de prevenção, promoção, recuperação, reabilitação e cuidados paliativos, na concepção da integralidade da assistência à saúde. Estas ações são direcionadas à unidade familiar, quando são considerados o contexto socioeconômico, cultural e epidemiológico da comunidade onde a família está inserida. (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA, 2009). A realização do TDO possibilita, para o profissional de saúde, a ampliação do seu contato com o usuário portador de TB e sua família. São nestes encontros diários que surgem a oportunidade de uma construção compartilhada dos “atos de cuidar”. Esta prática, dentro do tratamento da TB, pode ser reduzida à observação da tomada da medicação ou pode ser ampliada para além dos cuidados em TB. Nesta perspectiva, é preciso compreender a observação da tomada da medicação como uma ação importante a ser valorizada pelos momentos de encontro diário, como um momento de encontro humanizado, oportuno para o fortalecimento do vínculo entre o profissional de saúde e o usuário, e não apenas para a confirmação da tomada da medicação. Essa concepção nos reporta a uma visão do TDO que rompe com uma lógica de trabalho em saúde 315


que ainda privilegia a produção de procedimentos e a reprodução do modelo tecnicista e biologicista. (BRASIL, 2012). O TDO, dessa forma, é valorizado, não apenas por seu aspecto “fiscalizador”, mas também pela ampliação do contato entre o profissional de saúde/equipe de saúde e o usuário/família, o que, de fato, pode contribuir para uma mudança de paradigma na atenção e no cuidado de quem vive com tuberculose. A realização do TDO, sem dúvida, deve estar inserida em um conjunto de práticas incorporadas aos processos de trabalho pertinentes à ESF, sendo que estas últimas devem se configurar como facilitadoras do cuidado integral. Merhy (2002) aponta que a produção dos atos de cuidar é para onde o encontro entre o trabalhador da saúde e o usuário converge. No processo de trabalho em saúde, o trabalhador traz suas ferramentas, que são seus conhecimentos e tecnologias, e o usuário ou agente consumidor apresenta suas intencionalidades e representações, que são expressas em como eles elaboram suas necessidades de saúde. Mattos (2004, p.1415) ainda traz uma concepção mais ampliada do cuidado em saúde, em que ele assegura que, “na perspectiva da integralidade, não devemos reduzir um sujeito à doença que lhe causa sofrimento”; é preciso manter o sentido da intersubjetividade, levando em consideração, além dos conhecimentos dos profissionais de saúde sobre as doenças, também o conhecimento sobre os “modos de andar a vida” dos sujeitos com quem se mantém uma interação nos serviços de saúde. A partir do diálogo que se mantém nesses espaços, é necessário buscar construir os projetos terapêuticos individualizados, que emergem da capacidade de compreender cada contexto nos diferentes momentos. Numa mesma perspectiva, mas com o foco no tratamento da TB, Muniz et al. (1999, p.39) destacam que a proposta do TDO deve ser compreendida como “um modo diferente de agir na saúde”, em que são ampliados os espaços e as maneiras de intervenção no processo saúde-doença, tanto ao nível do indivíduo quanto ao da coletividade.

O cuidado integral à saúde: os aspectos técnicos e seus limites Autores do campo da saúde coletiva no Brasil assumem concepções convergentes sobre o conceito de integralidade do cuidado, ou cuidado integral, à saúde. A apresentação destas proposições apoia-se na reflexão sobre o cuidado ao usuário portador de tuberculose em TDO, a partir de uma perspectiva crítica. Tal reflexão se faz necessária, uma vez que as práticas 316


de saúde contemporâneas vêm se deparando com limitações, na busca de respostas efetivas às complexas necessidades de saúde dos indivíduos e das populações (AYRES, 2004), porquanto se centram em uma racionalidade técnica que se mostra insuficiente como resposta aos problemas deste campo. Dentre os alinhados com esta perspectiva crítica, Ayres (2006) se apresenta como um dos autores que afirma que, para se transformar as práticas de saúde, faz-se necessário que os critérios biomédicos utilizados na avaliação e validação das ações de saúde sejam entendidos de forma mais crítica, pois estes se revelam insuficientes diante de condições de saúde tão complexas. Assim, o autor ressalta a importância do ‘cuidar’ nas práticas de saúde, em que ocorre “o desenvolvimento de atitudes e espaços de genuíno encontro intersubjetivo e de exercício da sabedoria para a prática da saúde”. (AYRES, 2006, p 56). Estas práticas, embora tenham as dimensões técnicas como base, não podem se limitar a nelas, pois precisam estar interligadas a outras dimensões do adoecer. Assim, uma condição básica das ações de saúde, no sentido do cuidado, é a capacidade de diálogo, que deve estar presente no momento do encontro entre os sujeitos que ocupam lugares diferenciados neste cenário: os profissionais da saúde e os usuários. Esta capacidade de escuta e diálogo está relacionada, segundo Ayres (2006, p. 70), a um dispositivo presente nas propostas de humanização da saúde: o acolhimento. Este deveria estar presente em todos os momentos em que usuários interagem com profissionais de saúde/serviço de saúde. O acolhimento é um dispositivo de atenção humanizada que se caracteriza por aproveitar todos os momentos de encontro para que ocorra a escuta do usuário, nos espaços de interação entre ele e os profissionais de saúde. Durante estes encontros entre os usuários e os profissionais, devem ocorrer a valorização da dimensão dialógica e estar presente “um autêntico interesse em ouvir o outro”, para que as ações de saúde sigam na direção do cuidado. Para a efetivação deste cuidado, é preciso que haja, além do interesse, a decisão de escutar o outro, atitude que é compreendida a partir da responsabilidade assumida por um cuidador no momento do cuidado e a partir da própria construção do vínculo “usuário-serviço”. (AYRES, 2006, p.70). Segundo assinala Ayres (2006), além do acolhimento, outra questão necessária à efetivação do cuidado e intimamente relacionada à “decisão de escutar” é a responsabilidade para com o outro. Esta se torna relevante para o cuidado em vários níveis, desde a construção do vínculo profissional/ 317


serviço–usuário até a gestão dos serviços. Ao tomar a decisão de escutar o outro, o profissional de saúde assume a responsabilidade de um cuidador, o que permite a ele fazer algo além do que é preconizado tecnicamente. Alguns destes aspectos da integralidade do cuidado também são abordados por Merhy (2002), quando este se refere ao trabalho em saúde que não pode ser apreendido pela lógica dos equipamentos e dos “saberes tecnológicos estruturados”, pois suas tecnologias de ação operam como tecnologias de relações, de encontros e subjetividades. Estas tecnologias são classificadas como leves, pois podem ser exemplificadas pelas “tecnologias de relações do tipo de produção de vínculo, autonomização, acolhimento...”; como leves-duras, “no caso de saberes bem estruturados que operam no processo de trabalho em saúde”; e como duras, que seriam os “equipamentos tecnológicos, as normas e estruturas organizacionais”. Para o mesmo Mehry (2002), a tecnologia leve do trabalho vivo em ato na saúde é efetivado através do processo de produção de relações intercessoras em uma das suas dimensões-chave, que é o seu encontro com o usuário final, que representa, em última instância, necessidades de saúde como sua intencionalidade [...]. É neste encontro do trabalho vivo em ato, com o usuário final, que se expressam alguns componentes vitais da tecnologia leve do trabalho em saúde: as tecnologias articuladas à produção dos processos intercessores, as das relações que se configuram, p.ex., por meio das práticas de acolhimento, vínculo, autonomização, entre outros”. (MEHRY, 2002, p.50).

Outro autor dedicado ao aspecto conceitual da temática da integralidade, Mattos (2006) apresenta três conjuntos de sentidos: a integralidade como princípio orientador das práticas dos profissionais de saúde, o sentido da integralidade relacionado à organização do trabalho nos serviços de saúde e, por último, o sentido que se relaciona às respostas governamentais a determinados problemas de saúde e/ou a necessidades de grupos populacionais específicos. Para este autor, a integralidade se apresenta como um “valor a ser sustentado e defendido nas práticas dos profissionais de saúde” (MATTOS, 2009, p. 52) e que se expressa na forma como estes profissionais respondem aos usuários que os procuram. No 318


sentido da percepção mais abrangente destas necessidades, o autor sugere que a integralidade pode ser concebida como uma das dimensões das práticas de saúde. Esta assume a forma de encontro entre o profissional de saúde e o usuário, indicando ser a integralidade, em sua quase totalidade, de responsabilidade do profissional e, por consequência, de suas posturas. Nesta mesma direção, Cecilio (2009, p.119) sugere que a integralidade da atenção (do cuidado) necessita ser percebida a partir de duas dimensões, em que a primeira é denominada integralidade focalizada, que resulta dos diversos saberes da equipe multiprofissional de saúde, no encontro com o usuário, nos espaços “concretos e singulares dos serviços de saúde”. Tomando em consideração as concepções de integralidade em saúde assinaladas, principalmente no que se refere ao usuário portador de tuberculose em Tratamento Diretamente Observado, a realização do cuidado integral ao usuário na Estratégia Saúde da Família pode se efetivar de várias maneiras. Muniz, Villa e Pedersoli (1999) salientam a valorização do comparecimento do profissional ao domicílio do usuário, pois os encontros com o usuário possibilitam o conhecimento de sua realidade e condição de vida, além da realização de outras atividades com sua família, em termos de necessidades de saúde. Muniz, Villa e Pedersoli (1999, p.38) destacam que “estar presente” e “participar do cotidiano” é parte de uma tentativa de construção de uma nova forma de contato dos profissionais com os usuários em que aqueles são responsabilizados por aquele cuidado, estabelecem vínculo e os acolhem. Neste momento e espaço, as relações com os usuários e suas famílias se “tornam menos desiguais, exigindo que o profissional adote uma nova postura em relação ao paciente, tais como ouvir, conhecer, estar aberto ao diálogo”. Neste sentido, as propostas de humanização e integralidade no cuidado à saúde, referidas por Ayres (2005, p. 107), apontam, em tese, a Estratégia de Saúde da Família como uma nova estrutura que possibilita as articulações intersetoriais e assim promove a entrada de novos elementos no âmbito da assistência, de forma que haja “sensibilidade para os aspectos socioculturais do processo saúde-doença”. O cuidado a que Ayres (2004; 2006) se refere e que deveria estar presente nas ações da saúde pública, no entanto, ainda são incipientes, quando se trata das questões relativas ao controle da TB. A mera valorização das questões técnicas no cuidado ao usuário portador de TB pode dar um aspecto reducionista à realização do Tratamento 319


Diretamente Observado, quando se entende que apenas a supervisão da tomada da medicação é relevante para o controle da TB. Considerando este aspecto, Silva et al. (2007) afirmam que, mesmo entendendo que este tratamento é uma ação pontual, ele faz parte do processo de descentralização das ações de controle da tuberculose e, neste sentido, espera-se que as equipes de saúde da família incorporem, em seus territórios, além da supervisão medicamentosa, as ações de diagnóstico, o acompanhamento ao usuário e a avaliação dos comunicantes e das ações educativas. Entretanto, não são apenas os profissionais de saúde os implicados na construção reducionista do Tratamento Diretamente Observado na Atenção Primária à Saúde. Segundo indicam Barreto et al. (2012), há também um reducionismo por parte dos gestores que conduz a uma fragilização do cuidado integral à pessoa com tuberculose, reforçando a exclusão social e um modelo de atenção baseado nos aspectos biomédicos. A gestão tem papel importante na construção e ordenação de estratégias que incentivem o comprometimento dos profissionais de saúde na produção do cuidado aos usuários que se encontram sob sua responsabilidade.

Rocinha: o campo da pesquisa e a violência cotidiana no território Trata-se de estudo qualitativo, de caso único, realizado entre out/2014 a fev/2015, no CMS Dr. Albert Sabin, no Rio de Janeiro70. Na concepção de Flick (2009), a abordagem qualitativa visa a captar o mundo que se encontra fora dos contextos especializados, para melhor compreender, descrever e explicá-los. A pesquisa qualitativa no trabalho de campo se mostra importante, ao possibilitar não só uma aproximação com o objeto do estudo, mas um diálogo com a realidade dos atores sociais. (NETO, 1994). Esta Unidade foi selecionada por ser a unidade mais antiga da Rocinha a realizar o Tratamento Diretamente Observado da TB, tanto em domicílio como na própria unidade de saúde, possuindo seis equipes de saúde da família. 70 Como amplamente difundido no campo da saúde prevalece a exigência de submissão dos projetos de pesquisa aos Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, parecer nº. 610.621. Os participantes do TDO (profissionais de saúde, usuários portadores de TB e seus familiares) foram informados sobre as questões éticas envolvidas, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e sua identidade preservada.

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Diferentes estratégias metodológicas foram utilizadas: análise documental (de documentos oficiais e gerenciais) do PCT, no Centro Municipal de Saúde (CMS), e documentos usados na ESF para os portadores de TB em TDO; observação direta de TDO (nos domicílios e na USF); entrevistas semiestruturadas e gravadas (11 profissionais de saúde, 10 usuários e cinco familiares) e, em termos complementares, um diário de campo para registro de informações relevantes. Os dados produzidos permitiram identificar as concepções predominantes sobre cuidado na TB, conjugadas aos referenciais teóricos sobre integralidade do cuidado, partindo-se das categorias temáticas do acolhimento, vínculo e da relação dialógica entre os sujeitos da ação do cuidar. Três núcleos temáticos foram identificados: 1) a relação de vínculo usuário-profissional de saúde; 2) o TDO enquanto prática de cuidado; e 3) o lugar da família no cuidado aos portadores de TB. Em áreas de favela, comumente ocorrem situações de violência armada no território, mudando a rotina e a forma com que o TDO é realizado. Os tiroteios regulares impedem a realização do TDO e nele interferem de forma negativa. Os profissionais de saúde não conseguem chegar às residências dos usuários, o que pode prejudicar, além do tratamento da TB, outras atividades pertinentes à ESF. Nesse contexto, o usuário também não consegue sair de seu domicílio e chegar até a uma unidade de saúde, como Soares et al. (2013) observaram, por exemplo, em relação aos anos 2000-01, quando questões sociais e violência urbana foram identificadas como fatores limitantes na execução do TDO. Por causa da recorrência dos momentos de violência armada no território adscrito à unidade de saúde, os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) se valem de uma certa estratégia para realizar o TDO, de modo que o usuário não fique sem a medicação. Os ACSs, ao mesmo tempo em que moram no território de uma unidade de saúde, também são profissionais de saúde que realizam seu trabalho no território em que residem. Este conhecimento do território dá ao ACS elementos para que tome decisões voltadas a garantir o cuidado ao usuário, como referem abaixo uma Agente Comunitária de Saúde e uma usuária: eu deixo sempre uma reserva, um comprimido de emergência, para caso não dê para subir, eu ligo para ela e ela toma. Caso quando a área estiver impossibilitada de subir, aí ela toma. Aí não tendo isso, eu vou todo dia. (ACS 3)

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no meio do tiroteio ninguém vinha trazer, e eu é que ia ter que ir, eu “bala de aço” (queria dizer peito de aço) [...] a diretora manda vocês ficarem presos aí dentro e o povinho tem que ir no meio da bala [...]. (Usuária 8, de 25 anos)

As estratégias e o grupo de estudo Foram realizadas 26 (vinte e seis) entrevistas, que corresponderam a 5 (cinco) familiares dos usuários portadores de TB que se encontravam em TDO, 10 (dez) usuários portadores de TB em TDO domiciliar ou na unidade de saúde e 11 (onze) profissionais de saúde (ACSs e enfermeiros). Entre os familiares, 4 (quatro) eram do sexo feminino e 1 (um) do sexo masculino. A idade variou entre 39 e 78 anos e, quanto ao grau de parentesco, eram duas avós, um pai, uma irmã e uma mãe. Dos cinco familiares, apenas um referiu já ter tido TB anteriormente e quatro moravam na mesma residência em que moram seus familiares sob tratamento de TB. Quanto aos próprios usuários portadores de TB e em TDO, foram entrevistados 6 (seis) do sexo masculino, com idade entre 18 e 52 anos, e 4 (quatro) do sexo feminino, com idade entre 21 e 36 anos. Destes 10 (dez) usuários, 4 (quatro) tiveram seus familiares participando do estudo. No que concerne aos profissionais de saúde, dos 11 (onze) entrevistados, 02 (duas) são enfermeiras e 9 (nove) são ACSs, ocorrendo a participação de profissionais de todas as equipes desta unidade de saúde. Dos 9 (nove) ACSs, 5 (cinco) são do sexo feminino e 4 (quatro) do sexo masculino. Entre todos os profissionais, o que está com menos tempo de trabalho nesta unidade é uma das enfermeiras, que trabalha nesta unidade de saúde há pouco mais de um ano. A descrição das práticas de cuidado no TDO da TB baseou-se nos elementos coletados nas três etapas da coleta de dados, a saber: na observação direta do TDO, na análise documental e nas anotações feitas no diário de campo. Essas técnicas permitiram entender o papel do setor da farmácia e da farmacêutica nas práticas de cuidado, a dinâmica de gerenciamento da direção da USF e de sua equipe administrativa, além da organização interna das equipes de saúde da família, que tem o enfermeiro como o responsável junto ao ACS pelo “cuidado normativo” e acompanhamento dos usuários portadores de TB. As práticas de cuidado do TDO são exercícios que estão 322


incluídos nas ações de controle da TB na APS, que seguem as normativas do PNCT e as normas do PCT da SMS-RJ, através das Linhas de Cuidados da Tuberculose. No CMS Dr. Albert Sabin, além da equipe de direção da unidade, que coordena as ações de controle da TB, uma das enfermeiras das seis equipes de saúde da família é a responsável por conduzir, junto às demais equipes, a Linha de Cuidados da TB. A observação direta do TDO e o diário de campo puderam contribuir com outras questões relevantes para a descrição das práticas de cuidado do TDO da TB. Quando o TDO é realizado na unidade de saúde, os usuários se apresentam no guichê da sua equipe e o ACS responsável pelo TDO é chamado, caso esteja na unidade; ou o próprio ACS que está atendendo no guichê realiza o TDO ali mesmo, ou no corredor, próximo ao filtro de água. O TDO (na USF ou no domicílio) é realizado quase que exclusivamente pelos ACSs, conforme a residência dos usuários, de acordo com a lógica da ESF e a adscrição do território da equipe de saúde da família e da micro área do ACS.

Análise documental A análise dos documentos também foi utilizada na identificação dos portadores de TB, com base nos critérios de inclusão/exclusão dos sujeitos no estudo, sendo consultados os seguintes documentos:  Livro de Registro de pacientes e acompanhamento de tratamento dos casos de tuberculose – Programa Nacional de Controle de Tuberculose: nome, número do SINAN, resultados da 1ª. e da 2ª. baciloscopia, resultado do Raio X de tórax, resultado do exame Anti-HIV, forma clínica, tipo de entrada, esquema do tratamento, data do início do tratamento, forma de tratamento, baciloscopias de acompanhamento, número de contatos (pessoas que coabitam com os pacientes com TB) e a quantidade daqueles que foram examinados na unidade de saúde e a equipe de saúde e o ACS da micro área no campo das observações.  Livro de Registro e Investigação de Contatos de Casos de Tuberculose. É utilizado um livro por equipe de saúde. Variáveis observadas: número do SINAN, prontuário, nome do caso índice, data do início do tratamento, nome do contato, idade, sexo, grau de parentesco, PPD (aplicação e resultado), 323


Raio X (aplicação e resultado), 1ª. BAAR (aplicação e resultado), 2ª. BAAR (aplicação e resultado), Teste Anti-HIV (aplicação e resultado), destino (TDO-tratamento TB, QUI-Quimioprofilaxia, REC-recusa e ORI- orientação) e data final.  Livro de Registro de Sintomáticos Respiratórios – Secretaria do Estado de Saúde do Rio de Janeiro. É utilizado um livro por equipe de saúde. Variáveis observadas: número de ordem, data de identificação do sintomático respiratório, nome completo (sem abreviações), idade, sexo, endereço, resultado do exame de escarro para diagnóstico (datas dos resultados da 1ª.e 2ª amostras) e observações (ACS e micro área).  Ficha de Notificação/Investigação de tuberculose (Sistema de Informação de agravos de Notificação). Neste documento específico, foi observado o fluxo dentro da USF.  Livro de Registro de pacientes que se encontram em Quimioprofilaxia (documento específico do CMS Dr. Albert Sabin). É utilizado um livro para todas as equipes. Variáveis observadas: número de ordem, nome completo (sem abreviações), idade, data de nascimento, equipe de saúde do usuário, contato ou não de caso índice, data de início e alta do tratamento, peso, prescrição da dose; e, nas observações, também o nome do ACS da micro área.  Prontuário Eletrônico do paciente e Cartão espelho de acompanhamento da realização do Tratamento Diretamente Observado (TDO). Variáveis observadas: Registro da confirmação da TB, número do SINAN, data de Início do tratamento, tipo de entrada, resultado do raio X de tórax, form. de tratamento, esquema de solicitação do teste rápido de HIV, resultados da 1ª. e da 2ª. amostra de baciloscopia, forma clínica, contatos examinados e solicitação de exames, registro das consultas médicas, registro das consultas do enfermeiro, registro de acompanhamento do ACS – ficha B de TB, registro diário do TDO, registro dos demais membros da equipe de saúde. Na análise documental, foi observado como os profissionais/equipes de saúde utilizam documentos recomendados pelo PNCT e PCT da SMS-RJ. Conforme descrito na metodologia, os documentos e sistemas analisados foram: Livro de Registro de pacientes e acompanhamento de tratamento dos 324


casos de tuberculose – Programa Nacional de Controle de Tuberculose; Livro de Registro e Investigação de Contatos de Casos de Tuberculose, Livro de Registro de Sintomáticos Respiratórios – Secretaria do Estado de Saúde do Rio de Janeiro; Ficha de Notificação / Investigação de tuberculose (Sistema de Informação de agravos de Notificação), Livro de Registro de pacientes que se encontram em Quimioprofilaxia (documento específico do CMS Dr. Albert Sabin) e Prontuário Eletrônico do paciente e Cartão espelho de acompanhamento da realização do Tratamento Diretamente Observado (TDO). Alguns desses documentos, todas as equipes utilizam e possuem um exemplar por unidade de saúde do Livro de Registro de pacientes e acompanhamento de tratamento dos casos de tuberculose (“Livro Verde da TB”), do Livro de Registro e Investigação de Contatos de Casos de Tuberculose e do Livro de Registro de pacientes que se encontram em Quimioprofilaxia (documento específico do CMS Dr. Albert Sabin). Entre todos esses documentos, o que estava mais completo e atualizado era o Livro de registro de pacientes, mesmo faltando alguns dados que devem ser inseridos após o início do tratamento. Os demais documentos apresentaram um déficit maior no preenchimento. Os outros registros, com as exceções da Ficha do SINAN, do prontuário eletrônico e do cartão espelho, são individualizados por equipe e, desta forma, estão em poder das mesmas, em suas salas. Nestes documentos, os registros das informações apresentaram uma frequência menor que nos documentos gerais e uma importante desatualização dos dados. Além destes achados, também foi possível verificar que cada equipe se organiza internamente de uma forma diferente para conseguir acompanhar os seus usuários portadores de TB; uns usam pastas individualizadas por usuários, outros ACSs tinham pastas individuais com todos os registros. Outro fato que despertou a atenção foi o registro no cartão espelho do usuário. Este documento deve ser atualizado diariamente, à medida que o TDO é realizado e deve ficar ao alcance de toda a equipe para possível conferência quanto às doses de TDO que o usuário já fez. Foi observado que não há uniformidade na conduta dos ACSs com o cartão espelho, pois a maioria fica na sala da equipe; mas alguns profissionais guardam seu material e muitos se achavam desatualizados. O Prontuário Eletrônico (PE) é o sistema de registro de todas as atividades realizadas na ESF no MRJ. Todos os procedimentos que os profissionais realizam precisam ser registrados no PE, pois são 325


contabilizados para a produtividade do profissional, da equipe e da unidade de saúde, além de ser a fonte de informações sobre as famílias e os usuários. O seu preenchimento pode ser realizado nos computadores das equipes ou nos computadores da sala dos agentes de saúde. Todos os profissionais que participaram do estudo utilizam o PE e registram as ações pertinentes à TB, como a visita domiciliar para o TDO, já que há um campo específico para os registros do acompanhamento da TB.

Dimensões das Práticas de Cuidado Construção do vínculo usuário-profissional de saúde A ESF traz a possibilidade de aproximação entre o serviço de saúde/ profissional e o usuário e suas necessidades, em contexto de diálogo entre ambos os sujeitos (profissional de saúde e usuário), onde são utilizadas ferramentas e tecnologias em saúde, como o vínculo (VIEIRA et al., 2008). No tratamento da TB, particularmente no TDO, o vínculo tem um papel de destaque, pois é através deste contato diário e do grau deste contato, a depender do comprometimento do profissional ou de sua responsabilização pelo cuidado do usuário e de sua família, que as ações de controle da TB e as ações voltadas para um cuidado integral têm a possibilidade de se concretizarem. Neste sentido, Campos (2003) chama a atenção para o vínculo como circulação de afeto entre as pessoas, o que resulta da disposição de acolher de alguns e da decisão de solicitar apoio de outros. Esse vínculo é propiciado desde o primeiro contato estabelecido, que pode ser o diagnóstico, uma ação educativa, o início do tratamento ou busca ativa. Tanto na visão dos profissionais de saúde quanto dos usuários, o vínculo é tido como algo muito importante na relação. Uma das usuárias reconhece que se sente acolhida e que pode confiar na sua equipe de saúde, o que indica que o TDO é um indutor de fortalecimento das relações entre os usuários e os profissionais de saúde. O vínculo é construído conforme a disponibilidade dos profissionais, dos usuários e dos familiares e pode ser traduzido de forma positiva para o cuidado integral, transcendendo as questões relativas à doença da TB; ou pode ser traduzido de forma negativa, como uma relação truncada e não receptiva. A demonstração de como o vínculo vem se construindo com os profissionais de saúde da equipe de saúde 326


surge nos depoimentos dos usuários que expressam a ideia de que a equipe passou ‘muita confiança’ e foi ‘super bem tratada’ e pelo fato de os usuários se sentirem ‘à vontade’, a exemplo da Usuária 7, de 36 anos. Esta sensação de confiança e de uma “relação de mão dupla” entre usuário e profissionais de saúde também foi relatada no estudo de Nogueira et al. (2012), onde a satisfação com a atenção, principalmente dos enfermeiros e ACS, foi observada nos discursos dos usuários. Durante o trabalho de campo, essa relação de confiança e compromisso entre profissionais e usuários foi, de forma recorrente, atribuída sobretudo à proximidade que o profissional de saúde tem com o contexto de vida do usuário. Um dos profissionais de saúde relatou que também se sente valorizado quando um usuário se manifesta positivamente, reconhecendo a importância do trabalho que ele desenvolve. Uma das formas como o profissional percebe este vínculo com o usuário é quando este o procura por alguma necessidade de saúde e assim ele tem a chance de fazer a diferença positivamente. Isso não acontece somente por causa do tratamento da TB, mas também pela possibilidade de se agir sobre outras necessidades de saúde que o usuário possa estar apresentando. Ambas as situações foram referidas por profissionais participantes do estudo, conforme os discursos a seguir: [...] e eu já tive relatos de pacientes que falaram isso para mim: eu só estou tomando, porque você está aqui. Então eu me senti muito importante, naquele momento. (ACS 4) Porque o paciente chega e fala para você. Esse contato diário te mostra milhões de problemas que a família tem e acaba te mostrando várias coisas. E aí você acaba fazendo outras ações realmente. (Enfermeira 6)

Ao entrar em contato com os diferentes problemas enfrentados pelo usuário ou mesmo de sua família, os profissionais interagem com a dinâmica de vida do usuário e com os diferentes fatores que facilitam ou dificultam o seu tratamento. De qualquer forma, parece ser marcante para o usuário a presença do profissional fora do espaço do serviço e mais próximo do cotidiano de vida do usuário e com postura mais ativa de promoção de saúde. No estudo de Nogueira et al. (2012), tanto o ACS como o enfermeiro foram os profissionais que se destacaram pelo fato de os usuários desenvolverem uma 327


relação maior de vínculo. Nesta perspectiva, cabe ressaltar que geralmente é o ACS quem realiza o TDO (no domicílio ou na USF); ou seja, é o profissional que passa a maior parte do tratamento em contato com o usuário. Ele tem a oportunidade de fortalecer o seu vínculo (e o do serviço de saúde) com o usuário e perceber outras necessidades de saúde que precisam ser atendidas. O trabalho de campo mostrou que a atitude passiva, durante o tratamento, por parte de alguns usuários portadores de TB, foi mencionado pelos profissionais de saúde como sendo um aspecto muito negativo do TDO, pois o usuário precisa contribuir e ser mais participativo no tratamento, o qual não se restringe à tomada da medicação. Cabe destacar que o tratamento para a TB é longo (no mínimo seis meses) e as medicações podem causar reações adversas bastante desagradáveis, além do aspecto da apresentação dos comprimidos, que é um dificultador para a ingestão. Esses são fatores que podem desestimular o usuário a dar continuidade ao tratamento, o que faz do profissional de saúde, em especial o ACS, um aliado e parceiro no TDO. Entretanto, esse papel do ACS pode ser confundido pelo usuário que tem atitudes passivas e, por vezes, agressivas, quando o profissional não chega no horário, no decorrer do tratamento, conforme o relato de um profissional sobre como se vê realizando o TDO da TB: se não fosse a presença do agente ali, como despertador deles, eles não teriam essa vontade de continuar o tratamento, principalmente porque se sentem melhores. [...] Eu não vejo como sendo uma babá deles. Eu vejo como sendo aqui uma força do dia a dia. Que é um tratamento muito longo e desestimulante. (ACS 4) desvantagem que eu vejo assim é que o paciente pode ficar um pouco acomodado, aquele remédio em casa [...] às vezes quando a gente não consegue ir, eles vêm com uma agressividade. (ACS 1)

Esta postura de agressividade também é compartilhada pelo usuário portador de TB, que se mostra insatisfeito com o fato “de ter que ir todo dia no posto beber o remédio” na unidade de saúde, pois desagrada o usuário, “Pô já estava enchendo o saco”, conforme se queixa a usuária 9, de 21 anos, 328


mesmo que esta modalidade de TDO (na unidade de saúde) tenha sido uma escolha em conjunto com o ACS. Supõe-se que o vínculo construído entre o profissional de saúde e o usuário portador de TB traga benefícios para ambos, ou seja, deve ser positivo, como menciona Campos (2003); mas isto nem sempre se concretiza. A insatisfação do usuário decorre de uma relação de vínculo fragilizada por uma tecnologia leve do trabalho em saúde que pode contribuir para a construção da autonomização deste usuário, segundo argumenta Mehry (2002). A APS apresenta, como uma de suas diretrizes, estimular o usuário a participar na construção do cuidado de sua própria saúde e a da coletividade do seu território na busca pela ampliação de sua autonomia para o enfrentamento dos determinantes e condicionantes de saúde (BRASIL, 2012). Nesta direção, o profissional de saúde poderia encontrar na realização do TDO uma oportunidade para estimular o autocuidado, o ato de gestão do cuidado, o que é facilitado pela relação do vínculo. O profissional de saúde, sem dúvida, desempenha um papel fundamental nesse processo de construção do vínculo em busca também da autonomização desses usuários. No entanto, para que estas diretrizes se realizem, faz-se necessário que os usuários sejam vistos como sujeitos do cuidado e não meros “receptores” ou espectadores do mesmo.

O cuidado integral e a autonomia do sujeito Alguns profissionais de saúde conseguem fazer do tratamento da TB um momento oportuno para cuidar da saúde do usuário em tratamento e da sua família. Estes não seguem apenas as recomendações oficiais do PCT, como a visualização da tomada da medicação ou a investigação dos comunicantes, mas se preocupam também com outras necessidades que eles possam apresentar durante o tratamento. Tal acontece porque o olhar do profissional que faz o TDO da TB diariamente na residência do usuário e da sua família se amplia por meio de seu contato e da interação, neste contexto. Esta percepção esteve presente na narrativa dos profissionais. Outras necessidades, para além da TB, podem ser percebidas, o que acaba resultando nos encaminhamentos pertinentes às demandas apresentadas, para dentro ou para fora da unidade de saúde. Os depoimentos dos usuários apontam a satisfação de terem outras 329


demandas relacionadas à sua saúde atendidas no período de tratamento para TB, reconhecendo-se que o acesso às outras ações de saúde foi facilitado, conforme se ilustra a seguir: [...] a gente consegue observar muitas coisas, principalmente crianças, cadernetas de vacina desatualizadas. Já encontrei casos de crianças com 1 ano sem registro, sem vacina nenhuma, entendeu? (ACS 4) [...] o acompanhamento é ótimo. Passa mais coisa para fazer assim. Já tem até dentista marcado, fiz preventivo já também. (Usuária 2 de 33 anos)

Aproveitar a visita domiciliar do TDO para modificar o olhar do profissional de saúde, para ampliar suas ações de saúde e avaliar as condições de saúde de toda a família, também foi apontado por Muniz et al. (1999), quando alguns profissionais se referiram a mais esta finalidade do tratamento supervisionado da TB. Além de seus componentes técnicos, esta prática aproxima o profissional do usuário e de sua família, o que permite conhecer um pouco das suas condições de vida e de saúde; permite também priorizar o atendimento a essa família, de acordo com as vulnerabilidades apresentadas, no acesso às ações de saúde ofertadas por aquele serviço de saúde. Tanto os profissionais de saúde como os usuários relacionaram a interferência do TDO na rotina dos usuários principalmente ao horário de sua realização, pois ele ocorre de acordo com o horário de funcionamento da unidade de saúde e não com o horário de trabalho dos usuários portadores de TB. Em princípio, o TDO deve ser realizado em comum acordo entre os profissionais e os usuários; entretanto, algumas normas estabelecidas pelo PCT e pela própria SMS-RJ dificultam esse acordo, já que a medicação antiTB deve ser ingerida pela manhã, em jejum, e o horário de funcionamento das unidades de saúde nem sempre são ajustadas às atividades dos usuários. Esse possível desencontro de horários pode dificultar a adesão ao tratamento da TB e até comprometer a relação com o usuário e a sua família. Esta incompatibilidade de horário entre a unidade-profissional e o usuário foi considerada pelo profissional como um ponto negativo que dificulta a realização do TDO da TB. No relato de uma usuária, também se percebe a indignação com o horário em que o profissional de saúde chegava à sua casa 330


para lhe entregar a medicação anti-TB, exigindo que ela ainda estivesse em jejum. Em decorrência da rotina de acordar muito cedo, o horário em que o TDO era realizado não era adequado às necessidades e à realidade da usuária. Neste sentido, tanto a adesão ao tratamento como a relação construída com o profissional de saúde poderiam ser prejudicados. Para as pessoas que trabalham e a unidade, ela tem um horário de funcionamento e você tem um horário de trabalho, que é de 8 da manhã às 17 horas. O que acontece, nesse horário de 8 da manhã às 17 horas, as pessoas estão trabalhando ou estão no caminho do trabalho, que é a questão do fluxo sair do trabalho até a residência ou da residência até o trabalho. (ACS 9) [...] é [...] porque eu acordo cedo, aí ficava com fome e tinha que esperar 9 ou 10 horas, às vezes até quase meio dia pra tomar o remédio para poder comer. (Usuária 8 de 26 anos)

Da mesma forma que identificamos as interferências do TDO na rotina dos usuários e seus familiares, no estudo de Vendramini (2001) o tratamento supervisionado foi descrito como um elemento que pode impedir ou interferir na capacidade dos indivíduos, que se encontram em tratamento, de realizar as atividades do cotidiano, trazendo assim uma mudança no ritmo da sua vida. Esta interferência é compreendida como um aspecto negativo, como pode ser observado no depoimento anterior. O fato de o encontro do TDO ser diário também incomoda os usuários, já que estes precisam estar disponíveis tanto para comparecer à unidade de saúde como para receber o profissional de saúde em seu domicílio. Esta “obrigação diária”, pelo menos de segunda à sexta-feira, confere ao tratamento uma conotação ruim, mesmo que seja apenas pelo período de duração do tratamento. Este incômodo é nítido no depoimento de um usuário: Eu fico restrito [...] Tem que acordar todo dia a essa hora para vir tomar o remédio. Porque as vezes eu saio[...]. Tenho que voltar no domingo por causa do remédio na segunda.” (Usuário 6, de 25 anos)

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Entretanto, o TDO pode ser incorporado à rotina do usuário e assim ele consegue fazer o tratamento e manter as suas atividades, sem maiores complicações, adaptando-se bem à nova rotina e às medicações, como foi relatado por um familiar. Em outro caso, diferentemente do usuário 6, identificamos que não houve mudança no seu horário de acordar e o profissional de saúde adaptou o TDO de acordo. Esta adaptação resulta em um arranjo no qual quem vê a tomada da medicação pode não ser o profissional, mas o familiar que está acompanhando o usuário: Eles vêm todo dia aqui dar o remédio. Quando ele não vem no horário certo, geralmente ele deixa aqui. Eu acordo tarde, minha avó pega o remédio, traz. Aí, quando eu acordo, tomo. (Usuário 10, de 18 anos) O Pedro fez esse tratamento, foi muito ótimo. Porque o Pedro reagiu muito bem, porque do jeito que o Pedro fazia, tinha as atividades dele; ele tem as aulas de dança dele por aí. Eu ficava agoniada. [...] Pedro não teve nenhuma recaída, não teve nenhuma, graças a Deus. Continuou sempre melhorando, melhorando, até chegar agora. (Avó 5, de 75 anos) [...] a gente marca o melhor horário para ir na casa do paciente, para também não atrapalhar a vida dele. (ACS 3)

Outras interferências relevantes nas rotinas dos usuários estão relacionadas ao cuidado com a própria saúde, em que alguns hábitos como a ingestão de bebida alcóolica e o fumo são desaconselháveis, durante o tratamento da TB. No período do tratamento, principalmente, há necessidade de mudança de hábito, o que muitas vezes é difícil para os usuários, como está explícito no relato a seguir: [...] ah, eu fiquei mal por ficar, por ficar[...] como é que se diz, tipo preso. Não ter mais a liberdade que eu tinha de andar, de beber cerveja, de final de semana. (Usuário 6, de 25 anos)

O profissional de saúde deve buscar o máximo de alternativas possíveis para que o TDO seja realizado, tendo em vista que se mantenham, depois do término do tratamento da TB, o vínculo, a relação de diálogo, a 332


responsabilização e a corresponsabilização do cuidado, que se estabelecem nestes momentos. O TDO tem prazo para terminar, mas os “atos de cuidar” que serão construídos farão parte desta relação entre os sujeitos, entre o profissional e o usuário. A lógica para fazer o TDO da TB, ou para a escolha da equipe de saúde responsável pelo acompanhamento da família, segue a diretriz da ESF, em que uma equipe de saúde da família é responsável por uma determinada população adstrita a um certo território. Este território é dividido em seis micro áreas, estando cada uma delas sob a responsabilidade de um ACS. A responsabilidade de realizar o TDO segue esta lógica de trabalho da ESF; ou seja, não há opção de escolha da equipe de saúde, de quem será o seu ACS ou quem fará o seu TDO da TB, como relata um usuário: Não (não escolheu com quem eu ia tomar o remédio). Isso foi de [...] de áreas. Cada um tem a sua área, então não tem como escolher quem vai entregar ou não. (Usuário 1 de 19 anos)

Se houvesse a possibilidade de escolha da equipe de saúde ou do ACS, para a realização do TDO da TB, talvez os encontros entre os sujeitos fossem mais promissores, já que haveria o respeito pelos desejos e vontades de ambas as partes, durante as práticas de cuidado. Cumpre ressaltar que, nas situações em que não é valorizada a inclusão do usuário na produção do seu próprio cuidado, nem o modelo de supervisão diária da tomada da medicação, como no TDO da TB, poderá sair prejudicada a adesão ao tratamento, o que reflete o aspecto da medicalização na busca da cura da TB, como se percebe no discurso de um profissional de saúde, a seguir: A ACS fulana pedia para abrir a boca, para ver se ela tinha tomado mesmo. Eu não me lembro o nome da paciente, mas quando ela faleceu foi achado na casa dela um saco de remédio. Quer dizer, ela não tomava, ela só tomava, quando a ACS ia lá na casa. Isso me impactou bastante. (ACS 1)

A partir deste relato podemos refletir, com base na literatura (ALVES et al., 2012), que a participação do usuário no seu tratamento é fundamental para a efetivação das práticas de cuidado, bem como o usuário é assim reconhecido como sujeito do seu projeto terapêutico, o que resulta na integralidade do seu cuidado. 333


O apoio da família ao usuário portador de TB Segundo ressalta e valoriza o profissional de saúde, a família é fundamental para a continuidade e o sucesso do tratamento do usuário portador de TB. Conforme já se viu, anteriormente, os familiares se interpõem na tomada do medicamento, em virtude das interferências do cotidiano no horário de tratamento, apresentando-se como alternativa ao cumprimento do mesmo. A família desempenha o papel de parceira do profissional de saúde, para o cumprimento do TDO da TB. Desta forma, o cuidado com o usuário é compartilhado com os membros da família. A ausência de um familiar é relatada até como “um problema” para o ACS, pois, de acordo com sua experiência, o usuário vai dar mais trabalho durante o seu tratamento, se a família não estiver presente para lhe dar suporte. O papel da família apoiadora é um consenso entre todos os sujeitos, conforme se verifica nos seguintes depoimentos: Porque eu acho que você tendo uma pessoa da família que se preocupa, sempre vai estar chamando a atenção, ajudando, supervisionando e se for uma pessoa sozinha, dependendo se ela não tiver aquela cabeça, aquela personalidade, “eu quero me cuidar, eu quero me curar”, o ACS vai ter mais trabalho, vai ser mais complicado... não tinha uma estrutura familiar, que ajuda bastante, dependendo da família, aquela família estruturada. (ACS 1)

Os familiares também relataram que se sentem na obrigação de apoiar o seu familiar. O período da doença é delicado e o seu parente precisa de apoio, tanto na questão da organização da rotina para fazer o tratamento, quanto no apoio psicológico, após a descoberta da doença. [...] olha, filha, eu tenho dado apoio a ele como se fosse meu filho, entendeu? Ele é um pouco rebelde, mas eu entendo, que é da idade, mas o que eu posso fazer por ele eu faço. É como um filho. [...]. Pra mim, adoeceu, tem que ter o apoio de alguém”. (Avó 3, de 78 anos) Todo mundo está dando apoio. Meu esposo, minha irmã mora aqui em cima[...] está todo mundo junto[...] (a mãe ter vindo de

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outro estado), ajudou mais. Engordei dois quilos[...] ah, ótimo. Se não fosse a minha família e eles[...] acho que eu estava até em depressão. Porque no começo eu chorava muito, não queria aceitar que[...] eu não dormia direito, não conseguia comer, fraca da cabeça, começava a ficar tonta, a ficar tonta. Ele me ajudou muito. (Usuária 2, de 33 anos)

Da mesma forma que ocorreu a ênfase no papel desempenhado pelos familiares, no tratamento de usuários portadores de TB, no presente estudo, Yamamura et al. (2014), ao tentarem identificar, entre outras questões, a participação das famílias na gestão do cuidado do doente de TB, também verificaram que o envolvimento dos familiares foi reconhecido como importante na recuperação do seu familiar, doente de TB em TDO. O cuidado com a alimentação do seu familiar foi apontado pelos informantes da pesquisa como uma das principais ações de apoio da família, durante o TDO. A TB, muitas vezes antes de ser diagnosticada e tratada, traz alguns prejuízos graves para a saúde do indivíduo, como, por exemplo, o emagrecimento e a debilidade. Contei até 80, sucos de laranja, até 80[...] eu ficava preocupada com a comida dele, ficava insistindo pra ele comer, não quer isso aqui não, Pedro, quer isso aqui? Até ele comer, até ele conseguir comer e fazer o suco de laranja assim, pra não tomar leite, pra não tomar leite perto do remédio. (Avó 5)

Nestas circunstâncias, para o reestabelecimento da saúde e para suportar as medicações anti-TB, a alimentação é a principal preocupação de seus familiares, como se nota no relato de uma avó que cuidou do seu neto, durante o tratamento da TB. Nogueira et al. (2012) referem a importância da suplementação alimentar aos usuários com TB, que já é recomendada na busca de melhoria do seu estado nutricional. Na condução deste cuidado, os familiares são apontados como os principais responsáveis. A inclusão da família na gestão do cuidado se apresenta como potencialidade das práticas de cuidado no TDO da TB. É importante que o profissional de saúde entenda a dinâmica familiar e, assim, identifique o familiar que possa ser seu parceiro e corresponsável, junto com ele e o próprio usuário, nas práticas de cuidado da TDO da TB. Souza et al. (2010, p. 907) apontam que o desconhecimento da realidade familiar, por parte da equipe de saúde, leva à fragilização do vínculo 335


entre os sujeitos do cuidado; mas, quando este vínculo está fortalecido, a relação entre eles envolve “confiança, respeito e solidariedade”. A partir destas características, é possível que haja produção do cuidado nos encontros intersubjetivos dos sujeitos: o usuário, sua família e o profissional de saúde.

Considerações finais Neste estudo buscou-se caracterizar as práticas de cuidado do TDO da TB em uma unidade de saúde da família, no Bairro da Rocinha, no Rio de Janeiro, segundo a visão dos profissionais de saúde, usuários portadores de TB e seus familiares. Nesta descrição foram consideradas a análise documental dos documentos oficiais do PNCT e da PCT da SMS-RJ utilizados na unidade de saúde; os elementos obtidos no trabalho de campo, por intermédio da observação direta do TDO; e as entrevistas e informações registradas no diário de campo. O ponto de partida para caracterizar as práticas de cuidado foram as dimensões de acolhimento, de relação dialógica e de vínculo, que estão diretamente relacionadas com o conceito de integralidade do cuidado e os princípios da Estratégia Saúde da Família, contexto em que o TDO é realizado. Com base nas dimensões analisadas, se coloca o dilema entre o cuidado mais humanizado e centrado no cuidado do usuário e o cuidado medicalizado e centrado na organização do serviço. Trata-se de uma tensão que promove uma dicotomia a ser superada, pois ambas as dimensões do cuidado se sobrepõem, de modo a orientarem a lógica de ação dos atores envolvidos. No entanto, foi através dos depoimentos dos sujeitos do estudo e da observação direta que foi possível compreender um pouco melhor como as práticas de cuidado do TDO da TB estão ocorrendo de fato, no dia a dia da unidade de saúde. Ao serem questionados sobre o cuidado realizado durante o TDO, os usuários e seus familiares enfatizaram elementos referentes à execução do TDO como parâmetro de um “bom cuidado”, em que bastassem a ida, diariamente, do ACS à residência, a entrega dos medicamentos e o ato de olhar a medicação ser ingerida pelo usuário em tratamento. Em alguns discursos, também identificamos a satisfação de usuários e familiares com o estreitamento das relações com os profissionais/serviço de saúde, porquanto outras necessidades de saúde estavam sendo atendidas, durante esse 336


período do tratamento da TB, como, por exemplo, o agendamento de um exame preventivo e de uma avaliação odontológica. Estas ações refletem a busca pelo cuidado integral nas práticas de cuidado do TDO, o que é possível mediante uma postura acolhedora, a construção de uma relação de vínculo, em que o profissional mantém uma relação dialógica e se dispõe a escutar a demanda apresentada pelo usuário e sua família. Nesta perspectiva, o profissional assume como que uma autorresponsabilização pelo cuidado da saúde dos sujeitos em questão. Esta responsabilização de si também foi relatada por alguns profissionais, que assumiram a necessidade de realizar o TDO e de vigiar o usuário na tomada da medicação e, ao mesmo tempo, de se responsabilizar pelas ações de saúde voltadas para o usuário e sua família e até de compartilhar o cuidado com eles. No contexto das práticas de cuidado, o apoio familiar surgiu como um elemento fundamental na realização do TDO. Alguns profissionais até relataram o quanto é maior o seu trabalho com os usuários que não contam com o apoio da família ou de amigos. A família é incluída no acompanhamento do TDO e o cuidado também é compartilhado com ela. Ao término deste estudo, foi possível reafirmar alguns pressupostos submetidos no início. As ações preconizadas pelo PCT para o controle da TB, principalmente o TDO, estão centralizadas no fornecimento das medicações e na supervisão da tomada dos mesmos; neste sentido, as práticas de cuidado no TDO nos serviços de saúde da ESF, para o controle da TB, ainda não estão organizadas para contemplar as reais necessidades dos usuários e familiares, que transcendem as questões biológicas e técnicas que envolvem a TB. A ESF, modelo de reorientação da APS, pode contribuir de forma positiva para o cuidado integral do usuário portador de TB; entretanto, ainda prevalece a concepção de que o TDO é a principal forma de cuidado do usuário portador de TB. Espera-se que o presente trabalho contribua para estudos futuros, no que se refere à temática das práticas de cuidado, no TDO da TB na ESF. Foram apresentados elementos relevantes, principalmente no que concerne a uma escuta qualificada dos sujeitos no “ato de cuidar”. A qualificação das práticas de cuidado converge para melhorar a atenção prestada aos usuários que se encontram em tratamento para a tuberculose e estão inseridos na Estratégia Saúde da Família, que hoje se apresenta como o modelo de reorientação da APS e a porta de entrada ao Sistema Único de Saúde em todo o país. 337


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DESAFIOS PARA O CUIDADO NA ATENÇÃO AO PARTO DAS MULHERES IMIGRANTES Cláudia Medeiros de Castro71

Introdução Foi como docente e pesquisadora do único Curso de Obstetrícia em funcionamento no país72 que me aproximei da discussão sobre o cuidado voltado para a saúde da população imigrante. Ao ouvir os relatos das alunas sobre diversas situações envolvendo mulheres imigrantes e profissionais de saúde, nos campos de estágio, fui estimulada a elaborar os projetos de pesquisas sobre o tema que me levaram à discussão que apresento neste capítulo. A migração internacional tem ocupado agendas governamentais, mobilizado organizações humanitárias e diversos atores sociais que buscam lidar com o fenômeno que impacta tanto os países de destino como os países de origem das pessoas envolvidas nos deslocamentos transnacionais. O fenômeno ocorre por diferentes motivos: muitos saem dos países de origem para fugir de conflitos armados ou alguma forma de perseguição, como no caso dos refugiados73, condição que os coloca sob proteção do direito internacional; outros saem em busca de trabalho e estudo como é o caso dos imigrantes vindos da Bolívia e Peru, que têm como destino o Brasil, sendo submetidos à legislação específica de cada país. Seja qual for o motivo do 71 Doutora em Ciências, Mestre em Psicologia Social, Psicóloga. Docente do Curso de Obstetrícia e do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, da Universidade de São Paulo. clau.medeiros@uol.com.br 72 O Curso de Obstetrícia foi criado em 2005 e é oferecido na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, unidade conhecida como USP-Leste. Tratase do único curso no Brasil que forma profissionais universitários para a atenção obstétrica com entrada direta, ou seja, não requer uma especialização após a graduação, como é o caso da Medicina, que requer especialização em Ginecologia e Obstetrícia, e a Enfermagem, que requer especialização em Enfermagem Obstétrica. 73 Informações sobre a condição dos refugiados podem ser consultadas na Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), disponíveis no endereço eletrônico www.acnur.org.

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deslocamento, ao chegarem, têm necessidades de habitação, saúde, educação, proteção trabalhista, entre outras, sendo, portanto, dirigidas para os diversos equipamentos públicos do país que os recebe. Neste capítulo, abordaremos as demandas para a atenção à saúde das mulheres imigrantes, com foco no cuidado no parto e pós-parto oferecido para imigrantes bolivianas no município de São Paulo. Discutiremos os (des)encontros que ocorrem no cotidiano dos serviços, palco em que as diferentes perspectivas culturais sobre cuidado em saúde se manifestam e impactam a experiência do parto das mulheres imigrantes. À discussão sobre cuidado em saúde, somaremos o relato de experiências de trabalho em saúde que adotam a perspectiva intercultural e buscam oferecer um cuidado culturalmente adequado.

Aproximações da migração internacional O aumento dos deslocamentos transnacionais, com fluxos migratórios dirigidos prioritariamente a algumas regiões, tem mobilizado diversos atores sociais que pressionam as agendas governamentais para que ofereçam respostas e realizem ações voltadas para os imigrantes. Tais ações têm sido fartamente noticiadas pela mídia, que destaca algumas respostas que se mostram bastante restritivas e outras que apresentam caráter humanitário e inclusivo. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), o fluxo de imigrantes internacionais cresceu 41%, nos últimos quinze anos, de 2000 a 2015. Estima-se a existência de 244 milhões de pessoas nesta condição. (UNITED NATIONS, 2015). O fenômeno tem múltiplas causas, entre elas as econômicas, pois se a globalização proporcionou o incremento do fluxo de informações, o fluxo de mercadorias e um afrouxamento das fronteiras financeiras e comerciais, o mesmo não se observou na redução das desigualdades sociais, uma vez que manteve a concentração de riqueza em alguns países e a extrema pobreza em muitos outros. Assim, a migração torna-se uma estratégia de sobrevivência para alguns grupos populacionais. (MARTINE, 2005). A saída do país de origem também pode ser motivada pela fuga dos conflitos armados, das disputas étnicas, enquanto que para outros está relacionada ao estudo, ao desejo de melhores condições de trabalho e de melhores condições de vida, ou até mesmo à necessidade de se reunir aos familiares. Migrante internacional é definido pela ONU como qualquer pessoa que mude de residência de seu país habitual, independentemente 344


da motivação para o deslocamento. Quando se trata de refugiados, porém, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) enfatiza a importância da diferenciação, uma vez que são pessoas que não podem voltar ao país de origem e, ao pedirem refúgio, passam a contar com a proteção do direito internacional. O Brasil recebe imigrantes vindos de diferentes continentes, como o continente asiático, africano e sul americano. Em décadas recentes, passou a ser o local de destino de imigrantes de alguns países do Cone Sul, especialmente da Bolívia. Algumas cidades de fronteira já recebiam migrantes da rota Cone Sul, mas, desde os anos oitenta, observa-se um deslocamento país adentro que tem como destino o município de São Paulo e outros que integram a região metropolitana da Grande São Paul. (BAENINGER, 2012). O município de São Paulo registrou aumento de 117% na imigração, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Censo 2010, que indicam a chegada de 39.165 imigrantes, considerando-se pessoas que residiam em outros países nos últimos cinco anos da realização do Censo. Os imigrantes correspondem a 1,3% da população total do município. (SÃO PAULO, 2015). Bolivianos constituem uma das três principais colônias de imigrantes em São Paulo, sendo a Bolívia o país de origem do maior número de imigrantes que chegaram ao município, conforme o Censo mais recente. Não é possível afirmar com exatidão quantos são os imigrantes residentes no município; os números oficiais diferem dos dados de organizações que prestam apoio aos imigrantes. A diferença numérica deve-se à dificuldade de obtenção da documentação; muitos dos homens e mulheres imigrantes vivem no país na condição de indocumentados. A Pastoral do Imigrante e o Consulado da Bolívia estimam, respectivamente, entre 70 e 50 mil os imigrantes bolivianos em São Paulo. (BIS, 2011). Quando chegam, vão trabalhar no setor têxtil, em oficinas de costura, sob condições de trabalho análogas à escravidão: são submetidos a longas jornadas de trabalho e não gozam dos direitos trabalhistas. Muitos moram e trabalham no mesmo local que, em geral, é um ambiente inadequado e insalubre, onde adultos e crianças vivem em meio aos tecidos e máquinas de costura. (SOUCHAUD, 2012; ILLES et al., 2008; WALDMAN, 2011). Os dados dos censos indicam que, a partir dos anos 2000, além do aumento do fluxo de bolivianos, também ocorreu incremento na chegada de sul-coreanos, chineses, argentinos e chilenos. Publicação do município de São Paulo indica a mudança no perfil 345


dos imigrantes do continente africano, que eram majoritariamente oriundos de Angola e Nigéria e, hoje, vêm de diferentes países. Mesmo não dispondo de dados precisos, há também que se destacar, após 2014, a chegada ao município de haitianos, muitos em fuga das condições miseráveis do país, que foram agravadas após o terremoto de 2010. (SÃO PAULO, 2014). O Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU é afirmativo quanto aos benefícios que os imigrantes internacionais trazem, tanto para os próprios imigrantes quanto para o país de destino, desde que o fenômeno da migração seja adequadamente administrado. É preciso ter uma política de migração, para que as necessidades de proteção trabalhista, de educação e de saúde constem na pauta da agenda governamental, quando se discute os direitos dos imigrantes. No Brasil, os imigrantes são regidos pelo Estatuto do Estrangeiro, criado por lei em 1980, considerado autoritário e discriminatório, fruto do período ditatorial. O Estatuto proíbe, por exemplo, a organização política, a participação em atos, passeatas e outras manifestações. Em abril de 2017, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2.516, que cria a Lei da Migração, aguardada por ativistas e por organizações de defesa dos direitos dos imigrantes. O texto, considerado inclusivo e humanitário, foi sancionado, com vetos pelo Presidente da República em exercício, como a Lei 13.445/2017, em maio de 2017. (BRASIL, 2017). Em São Paulo, imigrantes organizados conseguiram que a gestão municipal incluísse o tema na agenda: em 2014, foi criado o Centro de Referência e Acolhida do Imigrante (CRAI), vinculado à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, oportunidade em que foi realizada uma audiência pública sobre o tema e, em 2016, foi aprovada a Lei 16.478, que instituiu a Política Municipal para a População Imigrante. A lei garante aos imigrantes “acesso aos direitos sociais e serviços públicos”, enfatiza a necessidade do “respeito à diversidade e interculturalidade” e tem, entre os princípios, o “combate à xenofobia, ao racismo, ao preconceito e a quaisquer formas de discriminação”. (SÃO PAULO, 2016). A sanção da lei ocorreu na mesma semana em que o município sediou o VII Fórum Social Mundial das Migrações.

Atenção ao parto das mulheres imigrantes No que diz respeito à atenção às necessidades da saúde, no Brasil o direito universal à saúde é estabelecido constitucionalmente, o que garante a todos, 346


independentemente da nacionalidade ou da condição da documentação, o acesso às ações e aos serviços que são ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). As mulheres contam com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), que é baseada nos princípios do SUS e no respeito aos direitos sexuais e reprodutivos. A PNAISM oferece as diretrizes para atenção à saúde das mulheres nas três esferas da gestão – federal, estadual e municipal. É uma política pública de saúde que reconhece a diversidade das mulheres na população feminina e considera que gênero, raça/cor e classe social são elementos estruturantes da sociedade e como tais devem ser considerados nas ações e no cuidado à saúde. (BRASIL, 2011). No documento, a preocupação com as especificidades culturais está presente, mas é voltada para as mulheres indígenas e quilombolas. Ainda que a atenção à diversidade seja enfatizada, as mulheres imigrantes não são citadas no documento, o que nos leva a considerar que as mulheres residentes no país são tratadas como se todas elas fossem nacionais. Ser imigrante não é um fator de risco para a saúde, como indicam estudos que abordam o healthy migrant effect, baseados em dados que evidenciam melhores indicadores de saúde entre imigrantes. Quando se trata, porém, da migração feminina, outros estudos indicam que as mulheres imigrantes têm mais dificuldades, no que diz respeito ao planejamento reprodutivo, são mais vulneráveis na gravidez, parto e pós-parto e têm maior risco de morte materna. (ALMEIDA, CALDAS, 2012; ROCHA et al., 2010; TOPA et al., 2013). Estudo realizado no Canadá sugere impacto da migração na saúde dos recém-nascidos de mulheres imigrantes, pois apresentaram maior número de crianças nascidas com menor idade gestacional e baixo peso, quando comparadas às nativas do país. É importante destacar que a migração é tratada como um fenômeno masculino e os estudos sobre migração feminina são recentes. Os achados sugerem a importância de se considerar a dimensão de gênero e o impacto da desigualdade na vida e na saúde das mulheres. (ASSIS; KOSMINSKY, 2007). A ausência de diretrizes do Ministério da Saúde para a atenção às mulheres imigrantes, já apontada neste texto, parece ser permeada pela idéia de que todos e todas são nacionais e pode ser exemplificada com a Declaração de Nascido Vivo (DNV), utilizada para a obtenção da Certidão de Nascimento da criança e para alimentar o banco de dados do Sistema de Informação 347


sobre Nascidos Vivos (Sinasc). Apenas em 2011, a nova DNV passou a incluir no campo 20, que é destinado à naturalidade da mãe, a informação entre parênteses “se estrangeiro, informar País”. Mesmo quase invisíveis, as mulheres imigrantes buscam os serviços de saúde para o cuidado no pré-natal e os hospitais para a atenção ao parto. Estudo realizado por Waldman (2011) abordou mulheres que frequentam uma organização de apoio aos imigrantes, e 86% delas informaram acessar os serviços de saúde do município. No município de São Paulo, em 2014, 75% das internações de imigrantes foram por causas obstétricas. Entre os hospitais mais procurados pelas mulheres imigrantes, dois estão localizados em bairros próximos às regiões conhecidas pela concentração de oficinas de costura, confecções e lojas de roupas. Os dados indicam que o acesso aos serviços de saúde está assegurado para a população imigrante. Mas, acesso não é sinônimo de cuidado adequado à saúde. Cabe-nos indagar como é realizado o cuidado à saúde das mulheres imigrantes. Para uma aproximação, nos apoiamos em um estudo por nós realizado em um hospital maternidade do SUS, em que foram consultadas as Declarações de Nascidos Vivos e entrevistados profissionais de saúde que cotidianamente atendem mulheres imigrantes, principalmente bolivianas e que resultou no artigo Atenção ao parto de mulheres estrangeiras em uma maternidade pública de São Paulo. (CASTRO et al., 2015). A consulta às DNVs foi importante para caracterizar a busca da maternidade por mulheres imigrantes; para isso, coletamos os dados de um trimestre do ano de 2012 e obtivemos 1.248 DNVs, sendo 241 de mulheres imigrantes, o que correspondeu a 20% dos partos de nascidos vivos naquele hospital maternidade. Entre as nacionalidades, a boliviana respondeu por 85%, seguida da chinesa e paraguaia. Outras nacionalidades encontradas foram a peruana, a nigeriana, angolana, argentina, haitiana e a sul-africana. Tais dados são relevantes, por evidenciarem o trânsito de pessoas de diferentes culturas no cotidiano institucional. Outra importante informação diz respeito ao acesso ao pré-natal: os dados indicam que apenas 46,7% das mulheres realizaram sete ou mais consultas, enquanto, no mesmo ano no município de São Paulo, 74,5% das mulheres realizaram sete ou mais consultas de pré-natal. O baixo número de consultas pode estar associado à não dispensa da mulher para comparecer às consultas, uma vez que boa parte delas trabalha em oficinas de costura, em longas jornadas e sem direitos trabalhistas que assegurem 348


a frequência às unidades de saúde para acompanhamento da gestação; também pode estar relacionado ao não acolhimento, ou à discriminação sofrida nos serviços de saúde; ou ainda à não valorização das consultas de pré-natal pelo grupo de origem da mulher. É necessário analisar tais dados, para identificar os fatores que dificultam o acompanhamento das mulheres imigrantes durante a gravidez e elaborar estratégias que possam facilitar o acesso ao cuidado no período gestacional. Como visto acima, a presença de mulheres de diferentes nacionalidades faz parte do cotidiano da instituição de saúde do estudo. Entrevistamos 10 profissionais de saúde, entre assistentes sociais, enfermeiras, médicas e psicólogas, que trouxeram relatos sobre o próprio trabalho com as mulheres imigrantes e sobre a percepção do trabalho de outros profissionais da mesma instituição. Há nos relatos descrições de iniciativas institucionais para facilitar a comunicação com as imigrantes, como um evento realizado em parceria com o Consultado da Bolívia e a Pastoral dos Imigrantes e o oferecimento de cursos de Espanhol e Aimará para os funcionários interessados. Como a língua é um importante elemento da comunicação, adotar ou não atitudes que facilitam a comunicação verbal parece ser um indicador da disposição dos funcionários para o acolhimento da população imigrante. Zaíra, assistente social, conta que “até já teve casos que eu fui chamada pra fazer a tradução; agora tem outros [profissionais] que não, tipo, dá a orientação e entendeu, entendeu, não entendeu, o problema é dela”. A manutenção de barreiras de comunicação pode ser interpretada como uma forma de expressão do preconceito em relação ao imigrante, que se apresenta com contornos xenofóbicos, relacionados com a não aceitação do imigrante, por considerá-lo uma ameaça aos nacionais. Tal postura contraria a idéia de que o Brasil é um país onde todos são bem-vindos, onde não há discriminação. Alguns estudos, como a pesquisa divulgada em 2016 sobre a percepção em relação aos imigrantes e refugiados em 22 países, incluindo o Brasil, mostram que por aqui a percepção positiva dos imigrantes piorou, nos últimos cinco anos, embora, segundo o estudo em tela, o país seja um dos mais receptivos no que concerne à expectativa de integração cultural de pessoas vindas de outros países. (IPSOS, 2016). Nas instituições hospitalares, a hierarquia, as rotinas e procedimentos, que visam ao controle dos corpos, contribuem para sustentar o modelo obstétrico que adota práticas assistenciais biomédicas e tecnocráticas, 349


marcadas pela intervenção abusiva no corpo da mulher. (LEAL et al., 2014). O parto e o nascimento estão envoltos em dimensões emocionais, sociais e culturais desconsideradas, ou tratadas como algo marginal, que pode até ser incorporado nas práticas, desde que devidamente subordinado à tecnologia biomédica. Esta redução do parto ao aspecto biológico pode ser exemplificada com a fala de uma enfermeira entrevistada que, quando indagada sobre a preparação da instituição para atender às mulheres de outras nacionalidades, respondeu: “parto é parto; ela sabe que veio aqui para ter o nenê”. Mesmo supostamente escudadas pelo modelo biomédico, no encontro face a face entre usuárias e profissionais de saúde, as tensões se apresentam. Parece haver uma disputa entre as práticas hospitalares impostas às usuárias e a demanda pela adoção de práticas que são oriundas de outras culturas e diferentes das adotadas no cotidiano do hospital. Fonseca (2010), em estudo realizado numa maternidade francesa que atende a mulheres imigrantes, relata episódios de estranhamento entre a equipe que preconizava condutas e as usuárias que as recusavam, por não fazerem sentido em suas culturas. No hospital em que realizamos o estudo, há relatos de embates com contornos dramáticos e violentos, como o exemplificado pela descrição feita pela assistente social Zaíra: uma imigrante boliviana desejava ter o filho de cócoras e a médica que a assistia a pegou por trás e a deitou, contra a vontade, dizendo: “você vai ter o bebê deitada”, numa clara demonstração de força e poder. A parturiente então tentou em vão pegar o cesto para colocar o bebê, o que foi entendido como uma tentativa de jogar a criança no lixo. Como resultado, a equipe impediu que mãe e bebê fossem alojados juntos. Apenas no dia seguinte é que foi possível conversar com a usuária e entender que era costume de seu povo colocar o bebê num cesto após o nascimento. O episódio parece demonstrar que houve um esforço para impedir que a usuária manifestasse as práticas culturais relacionadas ao parto, comuns ao seu grupo de origem. Em uma relação extremamente desigual, temos de um lado a médica e os demais membros da equipe, que representam o poder institucional e hierarquizado, o poder do conhecimento biomédico, e de outro a mulher pobre, usuária do SUS, imigrante, com dificuldades de comunicação, sem domínio da língua, que foi submetida à força às práticas assistenciais. O episódio ilustra as considerações de Merhy, em texto sobre o cuidar em saúde, para quem o modelo biomédico promove a subordinação dos aspectos relacionais e um 350


empobrecimento da dimensão cuidadora; o autor, a propósito, afirma que “a ‘morte’ da ação cuidadora dos vários profissionais de saúde tem construído modelos de atenção irresponsáveis”. (MERHY, 1999, p.4). Quando chamamos a atenção dos profissionais de saúde para que resgatem a dimensão cuidadora, sabemos que estamos longe de encontrar uma definição consensual sobre o cuidado. Muitas vezes utilizado como sinônimo de assistência, em referência a um rol de procedimentos que objetivam o sucesso terapêutico, o cuidado apresenta-se como um termo polissêmico. As diferentes aproximações e interpretações do “Cuidado em Saúde” possibilitaram que Cruz (2009) se interessasse por estudálas. Em revisão bibliográfica, a autora organizou as mais de sete centenas de publicações encontradas na pesquisa, em três grandes eixos, que aqui apresentamos resumidamente: o primeiro diz respeito aos agentes do cuidado, incluindo os que o oferecem e os que o recebem; o segundo eixo abordou os aspectos da gestão da saúde, e o terceiro abarcou as dimensões científicas, subjetivas e teórico-políticas sobre o tema. Entre os autores que se situam no terceiro eixo e têm contribuído para o adensamento teórico das reflexões sobre saúde e cuidado, citamos Ayres (2004), que, ao discorrer sobre a fábula do Cuidado74, atribuída a Higino, destaca alguns aspectos que, segundo ele, dizem respeito à saúde, dentre os quais três nos parecem importantes para a discussão acerca do cuidado à saúde dos imigrantes: o movimento, a interação e a plasticidade. Sobre o movimento, o autor destaca o aspecto processual das nossas identidades, que se modificam, ao longo da existência; para ele, a identidade vai sendo construída no e pelo ato de viver, de pôr-se em movimento pelo mundo. (AYRES, 2004, p.75). Quando nos voltamos para os imigrantes, o pôr-se em movimento não se reduz aqui aos deslocamentos geográficos, que sem dúvida são elementos marcadores das biografias, mas é o movimentar-se por diferentes culturas que tem o potencial de provocar mudanças significativas na construção das identidades. O aspecto da interação nos leva a pensar no encontro entre profissionais de saúde e os imigrantes, quando os projetos que movem um e 74 Na alegoria, Cuidado (que foi traduzido como Cura) modelou a argila, deu-lhe forma. À criatura, que foi feita do húmus, foi dado o nome Homo. Júpiter deu-lhe o espírito; a Terra, a matéria; e o Cuidado, a forma. Assim Saturno decidiu “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi o Cuidado quem primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado enquanto viver”. (HEIDEGGER, 1995, p. 264, apud AYRES, 2004, p. 75).

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outro são negociados, como às vezes acontece na cena do parto, resultando na alteração dos lugares ocupados por ambos. E, por último, a plasticidade possibilita a contínua recriação dos viventes, as alterações das práticas e as interações que visam ao bem-estar dos agentes que recebem e de quem oferece o cuidado. Assim, mesmo em uma relação de poder marcadamente desigual e por vezes esvaziada da dimensão cuidadora, é na interação na cena do parto que agentes/atores alteram as práticas. Movidas pela potência da dimensão cultural, usuárias e profissionais rompem com o que é preconizado pelas condutas biomédicas, como ilustra o episódio relatado pela enfermeira Marta sobre como uma imigrante boliviana conseguiu ter o parto de cócoras: “eu lembro que teve uma que não queria de jeito nenhum na posição, na nossa tradicional, e ela pulou da cama [foi para o chão]; e aí eu corri e coloquei um campo bem rápido; era aquilo que ela queria”. Como já afirmado no texto, as práticas obstétricas no Brasil são marcadamente intervencionistas, e a realização abusiva de cesarianas, que coloca o país entre os que mais realizam parto cirúrgico no mundo, é um triste exemplo do uso inadequado das tecnologias. Contrariando as evidências divulgadas pela OMS, de que taxas seguras de cesárea devem manter-se em torno de 15%, chegamos a apresentar taxas de 90% de cesárea, em alguns hospitais privados75. No país das cesáreas, chama a atenção o fato de as mulheres bolivianas terem apresentado taxa de 84% de partos normais, no hospital em estudo. Priscila, enfermeira, afirma que “elas [bolivianas] preferem tá tendo o parto normal, o que as brasileiras já chegam pedindo cesárea; as bolivianas, não”. Conseguir ter a preferência pelo parto normal respeitada em um país como o Brasil, onde temos uma cultura da cesárea, nos remete à plasticidade do cuidado, que possibilita a mudança das práticas na saúde. As mulheres imigrantes, com sua presença nos serviços de saúde, provocam o rompimento das regularidades do modelo obstétrico utilizado nos hospitais. Ao apresentarem diferentes perspectivas culturais na cena do parto e nascimento, elas provocam alterações nas práticas obstétricas e o 75 Em 2012, no município de São Paulo, 46% dos partos foram normais, enquanto, no hospital em estudo, 69% dos partos foram normais, conforme dados disponíveis no DATASUS. Os dados sobre parto podem ser consultados no endereço www.datasus.gov.br.

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reposicionamento dos profissionais de saúde, que têm então a oportunidade de resgatar a dimensão cuidadora. Para Ayres (2004, p. 85), a potência reconstrutiva das práticas nos permite considerar que: existe uma potencialidade reconciliadora entre as práticas assistenciais e a vida, ou seja, a possibilidade de um diálogo aberto e produtivo entre a tecnologia médica e a construção livre e solidária de uma vida que quer ser feliz, a que estamos chamando Cuidado.

O cuidado na perspectiva intercultural Aqui apresentamos algumas experiências internacionais que propõem um cuidado à saúde atento às dimensões culturais. Inicialmente, como o nosso foco é saúde das gestantes e parturientes imigrantes, e considerando que muitas das imigrantes bolivianas e de outros países do Cone Sul pertencem a grupos populacionais que têm origem nos antigos povos andinos, convém que se discorra sobre algumas características de tais grupos. Muitas das imigrantes que chegam ao Brasil falam dialeto próprio, como o Aimará ou Quíchua, e partilham uma cosmovisão de mundo que é refletida na organização social. Para alguns povos indígenas, a saúde diz respeito à harmonia entre fatores que envolvem o mundo espiritual, os deuses, a natureza, a comunidade, e não apenas o corpo. (RODRIGUEZ, 2008). Para as mulheres Mapuches, um povo indígena que habita o Chile e também a Argentina, é importante contar com os conselhos da Papay, mulher que orienta sobre a alimentação, ervas medicinais, cuidados com o corpo e o espírito e também sobre os cuidados no pós-parto. Para as Mapuches, a placenta é um elemento importante para a conexão da criança com o espaço comum, e não deve ser simplesmente descartada, mas enterrada. No Chile, uma iniciativa do Unicef e do governo resultou na publicação Txür Txemuaiñ Creciendo Juntos, destinada às mulheres Mapuches. É um material educativo intercultural, sobre gestação e cuidados com o bebê, bilíngue e com ilustrações baseadas nos elementos da cultura Mapuche. No texto, a perspectiva de cuidado, baseada na cosmovisão daquele povo, e a perspectiva do cuidado obstétrico adotada pela OMS se complementam. (UNICEF, 2008). Reputamos ser esta uma importante ação governamental, que reconhece a um povo, que é parte da população do país, 353


que tenha práticas de cuidado em saúde que são diferentes das adotadas nos serviços de saúde e que devem ser igualmente valorizadas e respeitadas. É necessário que os profissionais de saúde reconheçam que existem diferentes concepções de saúde e diferentes práticas culturais de parto, não para que façam uma transposição de práticas, mas para que estas sejam consideradas como mais um elemento do cuidado, o que possibilita negociar mudanças e adequar as condutas para atender às necessidades das mulheres, bebês e famílias. Na França, uma experiência que parece ter surgido como resposta às situações vivenciadas em serviços de saúde, que atendem a imigrantes de várias nacionalidades, é a chamada “psicoterapia transcultural da migração”. Para Moro (2015), sejam quais forem as motivações para a migração, o evento tem um potencial traumático, o que por si já justifica a necessidade de se desenvolver estratégias de acolhimento para o imigrante. Soma-se a isso outras situações como o adoecimento, luto, nascimento de uma criança, enfim, situações em que é necessário dar sentido ao acontecido; e isso requer o acesso às teorias próprias de cada cultura, que oferecem os recursos que possibilitam àquele que padece dar sentido ao não sentido. Quando se trata de instituições de saúde, não raro as explicações ou reações do imigrante aos eventos, que classificamos como doença, são incompreendidas ou rapidamente diagnosticadas como algum transtorno. Conforme a autora, no Hospital Avicenne, localizado na periferia de Paris e no Hospital Cochin, a “terapia transcultural da migração” foi uma forma encontrada para oferecer acolhimento aos imigrantes. As consultas são realizadas em grupo e por um grupo de co-terapeutas, que compõem uma equipe formada por profissionais de saúde, com iniciação em Antropologia, Linguística e História, e que têm como formação inicial psicologia, medicina, enfermagem e serviço social. Para ser um terapeuta transcultural, é preciso ter familiaridade com a migração e com o descentramento cultural, e não necessariamente ser um imigrante. No encontro terapêutico, é possível que o imigrante passe de uma língua à outra, que use os repertórios linguísticos disponíveis, tanto na sua cultura de origem quanto na do país onde vive, possibilitando assim o acesso ao “conhecimento cultural compartilhado”, que o ajuda a dar sentido ao vivido. Quando tratamos com imigrantes, a necessidade de incorporar novos elementos ao cuidado é potencializada pela diferença da língua, ritos, práticas e concepções de saúde e doença. As experiências citadas provavelmente foram provocadas pelo (des)encontro entre diferentes perspectivas culturais nos 354


serviços de saúde que, ao mudar, alterar as regularidades, deram visibilidade à insuficiência do modelo biomédico e levaram à busca de alternativas que contribuíssem para o cuidado realizado nas diferentes instituições de saúde. Quando tais necessidades não são ignoradas por gestores e profissionais de saúde, o caráter processual do cuidado é resgatado e são abertas possibilidades de modificar e rever as práticas até então cristalizadas no cotidiano dos serviços.

Considerações finais As duas experiências citadas ocorreram em países em que a dimensão cultural parece ter sido incorporada na agenda da saúde. Quando nos voltamos para o Brasil, ainda que para o senso comum o país seja considerado um lugar acessível às diferentes culturas, onde não há discriminação e todos são recebidos de braços abertos, a idéia de que somos todos nacionais permanece e se manifesta no cotidiano, como pode ser visto nos sistemas de registros de dados em saúde e nos documentos que embasam as políticas de saúde no país. A invisibilidade da população imigrante, somada a outros fatores, tem impedido que políticas públicas para a população imigrante resultem no desenvolvimento de ações de acolhimento e cuidado voltados para os que aqui chegam e passam a integrar a sociedade. Na falta de políticas públicas e diretrizes nos diferentes níveis de gestão, resta às instituições de saúde, que recebem um grande número de imigrantes, dar respostas que quase sempre são frágeis, posto que reativas e sem retaguarda da rede do SUS. Possibilidades de mudança do cenário começam a ser delineadas, como a aprovação da Política Municipal para a População Imigrante, no município de São Paulo, em 2016, que é um exemplo de resposta construída coletivamente pela sociedade, e a recente aprovação da Lei da Imigração. Esperamos que as diretrizes contidas nos novos marcos legais possam ser transformadas em ações de saúde alicerçadas na perspectiva do cuidado intercultural.

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AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DA VONTADE E A RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA: CUIDAR DA VIDA, CUIDAR DA MORTE

Nicolle Feller76

Neste capítulo propõe-se discutir a aplicação das diretivas antecipadas de vontade, no Brasil, contextualizando-a na relação médico-paciente e na possível responsabilização civil do profissional frente ao direito do paciente à manifestação antecipada a respeito de sua vida ou de sua morte. O estudo tem uma interface com as questões que se vinculam ao cuidado da vida e da morte e tem como objetivo principal discutir aspectos da extensão da aplicabilidade concreta, no campo médico, das diretivas antecipadas de vontade, mediante análise dos preceitos emanados da doutrina como também do próprio ordenamento jurídico pátrio. A temática encontra suporte nas disposições da Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor, no Código Civil e, ainda, nas normas preconizadas pelo Conselho Federal de Medicina, entidade autárquica de âmbito nacional. Contemporaneamente, as pessoas têm a necessidade primordial de recorrer a atividades da área médica, com o fim de preservar, tratar, reduzir riscos e potencializar sua saúde. Estes aspectos fazem parte das novas condições tecnológicas, do acesso aos serviços e da vontade de viver com qualidade, ao mesmo tempo em que são processos exigidos, dentro do foro da autonomia e da vontade, relativos ao direito de viver bem. A ideia de bemestar, contudo, está sempre carregada de outros elementos, como os que se referem à dignidade da vida humana e ao sentimento de viver bem. A dignidade e o direito à vida são indissociáveis. A ausência de condições para interagir, protagonizar a vida e atuar frente à vida já é por si uma antecipação da morte. Portanto, a dignidade, como uma complexa teia que envolve autonomia, capacidade biopsíquica, desejo e vontade expressos 76 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-Graduada em Direito Civil pela Universidade Anhanguera – UNIDERP/SP. Assessora de Gabinete no Tribunal de Justiça de Santa Catarina entre fevereiro de 2014 e setembro de 2017. Juiza de Direito substituta do Estado do Rio Grande do Sul, desde novembro de 2017. nicollefeller@hotmail.com

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em ações, gestos, formas de sentir e de se comunicar, é uma condição do viver. Quando forem perdidas estas condições, seguramente interpõe-se – entre a dimensão física e o gozo dos direitos – o direto à antecipação da vontade sobre a morte para o momento em que tais condições de escolha já não mais forem possibilidades. Quando houver rupturas entre a manifestação biopsíquica e a expressão corporal – do corpo que anima o ser humano – já não haverá condições para que se fale em vida. A morte, nestas situações, segundo Pessini (1996), já não é o inimigo a ser derrotado, porque tal posição recai na luta para se manter a vida em qualquer que seja sua condição. Contudo, quando se trata da autonomia – sobre o próprio direito humano de morrer dignamente – as questões tornam-se complexas, pois o tema da vida e da morte tem diretivas culturais e sociais diversas e esbarra, particularmente, em questões religiosas e morais tais que, por vezes, fica atribuído a decisões atemporais, ahistóricas ou ligadas aos grandes princípios advindos de uma ética generalista, quando não atribuídas à vontade divina. Desta maneira, os impactos de qualquer normativa podem ser grandes, frente ao sofrimento e aos limites, ou à impossibilidade de continuar vivendo como experiência concreta de um ser humano e de sua vida, ou frente aos seus familiares e amigos. Socialmente e na prática cotidiana, tem-se sempre, em primeiro plano, que a medicina toma para si a missão de aliviar o sofrimento de quem está doente, por meio de usos adequados, em cada caso. Portanto, interromper o processo de morrer lentamente e com sofrimento, por meio do atendimento à vontade antecipada sobre a interrupção da vida, pode gerar muitos conflitos. Ao percebermos, sentirmos ou vivermos o sentido da morte, ou mesmo o sentimento de que ela se aproxima, experimentam-se ambivalências e muitos sentidos simbólicos de perdas e de significações que precisam ser preenchidos. Nossa temporalidade e nosso saber, sobre o que estamos vivendo, se conectam com a experiência que sentimos como conclusiva para este viver. Esta complexa teia de conteúdos envolve vida e envolve a morte, quando a mesma já está dada. Ela diz respeito aos valores e aos sentidos de se manter a vida e de se manter a prorrogação da presença de uma pessoa, quando ela já não responde, não tem autonomia alguma e nela já se desencadeou o processo de morrer. Os custos emocionais e psíquicos, para familiares e amigos e de quem precisa cuidar, ou a decisão por 360


um prolongamento, com acesso a tecnologias, pode ser um longo e sofrido processo de morrer para todos. Estas situações colocam o respeito que se tem pela vida como igualmente necessário em relação ao respeito pela morte e, sobretudo, o respeito por quem já antecipou livremente sua vontade de morrer, diante de certas circunstâncias. Frente a estes parâmetros do cuidado pela vida e pela morte, interpõe-se uma moral que se constitui como proclamação do direito de morrer como decorrente do direito fundamental a uma vivência digna. A possibilidade de dispor da própria vida, em determinadas circunstâncias, é um tema clássico da ética, da bioética e dos direitos humanos. Embora haja carências de conceituações precisas, sobretudo no caso da discussão dos direitos humanos, existe um amplo acordo a respeito de evitar o sofrimento desnecessário, indesejado. (CASADO, 2007). Para muitos contextos, esta decisão já é requerida ao Estado e está posta como moralmente aceita, frente ao fato de padecimentos irreversíveis e de condições de vida penosas. Estes posicionamentos, que exigem mudanças nas perspectivas culturais, também requerem a introdução de legislação específica para envolver-se com a prática do atendimento das vontades antecipadas e antepõem exigências de cuidados frente às fronteiras marcadoras da vida, da morte e das autonomias, frente às práticas de distanásia, ou ortotanásia. Estas ficam em suspeição. Exigem que a ação médica seja dialógica com o paciente e que a petição seja séria, com expressão inequívoca e reiterada da vontade pela pessoa afetada e que sua autonomia e tudo o que diz respeito à sua dignidade não seja ferido. Nas discussões internacionais, são apontados alguns pontos a partir dos quais as normativas são constituídas. A lei fundamenta-se na clareza a respeito de qual é o papel do médico, frente à petição de eutanásia, que reúna os requisitos que ela mesma estabelece, e que uma vez tendo sido posta em prática a mencionada petição, ela possa ser efetuada pelo mesmo médico e pelo mesmo paciente, ou por pessoas que lhe são próximas, sempre assessoradas por um médico. Levanta-se o direito, do médico ou de outro profissional, de alegar objeção de consciência, ainda que em qualquer caso a lei deva garantir o direito dos doentes a dispor de sua própria vida dentro dos dispositivos instituídos e da validez da participação ativa dos pacientes em sua decisão. 361


A validez deve ser aceita, se for apresentada por documento de vontade antecipada ou manifestada pela pessoa designada como representante no mesmo documento. A lei precisa respeitar a autonomia dos menores de idade, atendendo a seu grau de maturidade e às condições específicas da escuta dos pais, e será preciso que eles aceitem a decisão do menor. Os poderes públicos têm o dever de favorecer as atenções especializadas específicas, a fim de que todas as pessoas tenham acesso à expressão do direito de escolher morrer e a morte se desenrole com dignidade. Isto implica favorecer os cuidados paliativos e domiciliares de modo que sejam uma possibilidade real ao alcance da população como direito a sua saúde e que toda demanda por eutanásia, ou ortotanásia, uma vez expressa em petição, deva ser atendida.

O direito à vida e à morte digna como expressão de diretivas antecipadas da vontade O direito à vida e à morte digna, enquanto expressão de diretivas antecipadas da vontade, coloca o foco das decisões na necessidade de se adotar medidas prévias para facilitar o outorgamento das tomadas de decisão às pessoas e aos hospitais, ou centros de tratamento, para os quais é útil que existam modelos e disposições discutidas, bem como espaços de discussão abertos aos diferentes tipos de pedidos que as pessoas possam vir a fazer. A expressão da vontade sobre a morte pode se dar em circunstância muito diferente de pessoa para pessoa e pode trazer grande dificuldade à tomada de decisão. Está, portanto, envolta em cuidados legais e, particularmente, em princípios que precisam ser mantidos de forma aberta aos sujeitos e ao diálogo com a realidade empírica, para que se aperfeiçoem, na medida em que se tornem necessários. Portanto, nesse contexto, para além da livre escolha do paciente, acerca das medidas e tratamentos curativos (em clara ênfase ao direito à vida), ganha relevo, na atualidade, o próprio direito de morrer dignamente. No particular, importa registrar a tentativa, sobretudo por parte da bioética, de uma uniformização de certos conceitos atinentes ao final da existência humana, como as categorias inseridas dentro da denominada “morte com intervenção”, que abrangem, entre outras, a eutanásia, a ortotanásia e a distanásia, além de conceituações periféricas, conforme resumem Luís Roberto Barroso e Letícia Martel (2011, p. 105-106). De acordo com Barroso e Martel (2011, p. 107-108), o termo eutanásia, atualmente, restringe-se a uma forma ativa, compreendendo “a ação médica 362


intencional de apressar ou provocar a morte – com a exclusiva finalidade benevolente – de uma pessoa que se encontre em situação irreversível e incurável, consoante os padrões médicos vigentes”, padecendo de forte sofrimento físico e mental. Pode ser voluntária (se houver consentimento expresso e informado), não-voluntária (sem o conhecimento da vontade) e involuntária (contra a vontade do paciente), sendo consenso, nesta última hipótese, seu caráter criminoso. Já a distanásia é compreendida como a tentativa de protelar o falecimento o máximo possível, pelo emprego de todos os meios médicos disponíveis, mesmo que possam gerar sofrimentos à pessoa cuja morte se preveja ser inevitável e iminente. Prolonga-se, em realidade, o processo de morrer. Associados a ela estão a noção de obstinação terapêutica, que compreende o comportamento de se lutar contra a morte de todas as maneiras, sem levar em conta os padecimentos e os custos humanos desencadeados, e a de tratamento fútil, que consiste no uso de técnicas e métodos extraordinários e desproporcionais de tratamento, incapazes de trazer melhora ou cura e cujos benefícios previsíveis são inferiores às lesões causadas. Como categoria distinta, tem-se a ortotanásia, conceituada pelos autores Barroso e Martel (2011, p. 106-107) como a “morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos extraordinários e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como na eutanásia”, revelando verdadeira aceitação da morte. Esta está interligada ao cuidado paliativo, que consiste no uso de tecnologia disponível, com o fim de mitigar o sofrimento físico e psíquico do doente, mesmo que o emprego de determinadas substâncias possa reduzir o tempo de vida, como efeito previsível, mas não desejado. Segundo Barroso e Martel, (2011, p. 108), a recusa de tratamento médico traduz-se na negativa, por parte do paciente ou de seu responsável, de começar ou manter um ou mais tratamentos médicos, culminando na assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Tal recusa, esclarecem os autores, pode ser ampla ou estrita, conforme seja admitida em quaisquer circunstâncias (inclusive por enfermos que podem recuperarse com o tratamento rejeitado), “ou em situações bem determinadas de impossibilidade de recuperação da saúde com a intervenção” – hipótese 363


esta que possui afinidade com a ortotanásia, sendo também denominada de limitação consentida de tratamento. Por derradeiro, elucidam os autores: A retirada de suporte vital (RSV), a não-oferta de suporte vital (NSV) e as ordens de não-ressuscitação ou de não-reanimação (ONR) são partes integrantes da limitação consentida de tratamento. A RSV significa a suspensão de mecanismos artificiais de manutenção da vida, como sistemas de hidratação e de nutrição artificiais e/ou o sistema de ventilação mecânica; a NSV, por sua vez, significa o não emprego desses mecanismos. A ONR é uma determinação de não iniciar procedimentos para reanimar um paciente acometido de mal irreversível e incurável, quando ocorre parada cardiorrespiratória. (BARROSO; MARTEL 2011, p. 108)

Realizados os esclarecimentos conceituais, sob a ótica civilconstitucional, especialmente a partir da cláusula geral de dignidade humana, certo que “[...] ao direito de viver com dignidade haverá de corresponder como espelho invertido o direito de morrer dignamente [...]”, como decorrência natural de toda e qualquer vida digna. Trata-se, portanto, “[...] de permitir que a natureza siga o seu rumo, fazendo o seu inexorável papel, sem que isso atinja a dignidade da pessoa, em determinadas situações”. (CHAVES; ROSENVALD, 2013, p. 372). E ainda: [...] a possibilidade de escolha consciente por parte do paciente sobre a sua terminalidade deve ser entendida como direito fundamental que se incorpora ao direito fundamental à vida previsto na Constituição Federal e compreendido em seu amplo sentido – início, meio e fim – de forma que a liberdade e autonomia de escolha, nesse momento único, devem ser garantidas e respeitadas sem qualquer possibilidade de violação. (ALMEIDA, 2012, p. 483).

Neste âmbito, é estreme de dúvidas que a dignidade humana, erigida a fundamento da República (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), visa à preservação e proteção da vida em si, constituindo a própria acepção positiva deste direito, elencado logo no início do título destinado aos direitos e garantias fundamentais contemplados na Carta Cidadã. 364


A carga conceitual do princípio da dignidade humana ampara, ainda, duas visões antagônicas, nos casos em que envolve morte com intervenção. Segundo Luís Roberto Barroso e Letícia Martel (2011, p. 119-120), a dignidade como autonomia (poder individual – empoderamento) é a ideia atinente aos documentos de direitos humanos e às Constituições posteriores à Segunda Guerra Mundial. Ela possui quatro aspectos essenciais: (1) a capacidade de autodeterminação; (2) as condições para o seu exercício; (3) a universalidade; e (4) a inerência da dignidade ao ser humano. Trata-se, pois, do direito real e intrínseco do homem de decidir os rumos da própria vida, realizando escolhas morais e assumindo responsabilidades. De acordo com os referidos autores, a dignidade como heteronomia, por seu turno, relacionase a valores compartilhados pela comunidade, e não a opções individuais. Abarca os chamados conceitos jurídicos indeterminados, a exemplo do “bem comum”, “interesse público”, “moralidade” e “vida boa”, funcionando como freio externo à liberdade individual, de modo a “obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do próprio indivíduo cuja conduta se cerceia”. (BARROSO; MARTEL 2011, p. 122). Conforme arrematam os doutrinadores: Em suma, pode-se dizer que a ‘dignidade como heteronomia’ traduz uma ou algumas concepções de mundo e do ser humano que não dependem, necessariamente, da liberdade individual. No mais das vezes, ela atua exatamente como um freio à liberdade individual, em nome de valores e concepções de vida compartilhados. Por isso, a ‘dignidade como heteronomia’ é justificada na busca do bem para o sujeito, para a preservação da sociedade ou comunidade, para o aprimoramento moral do ser humano, dentre outros objetivos. Entretanto, assim como a ‘dignidade como autonomia’, a ‘dignidade como heteronomia’ também possui inconsistências teóricas e práticas. Como críticas principais, é possível compendiar: a) o emprego da expressão como um rótulo justificador de políticas paternalistas, jurídico-moralistas e perfeccionistas; b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da dignidade, especialmente em sociedades democrático-pluralistas; c) perda da força jurídico-política da locução ‘dignidade humana’; d) problemas práticos e institucionais na definição dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade política. (BARROSO; MARTEL, 2011, p. 126-127)

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Quanto ao ordenamento jurídico vigente, constatam os autores que é inegável o predomínio da dignidade como autonomia na Constituição de 1988 – marco inaugural da reconstrução da democracia no País. Tal característica não apaga, porém, a dimensão comunitarista de seu texto, destacando-se “os compromissos com o bem de todos, a erradicação da pobreza e a solidariedade social”, além do reconhecimento da importância de instituições “que são expressões coletivas do eu, como a família, os partidos políticos e os sindicatos”. (BARROSO; MARTEL, 2011, p. 128-129). Para os mesmos, também no âmbito infraconstitucional, é possível vislumbrar a prevalência da face autonomista da dignidade, notadamente na ligação entre a bioética e o Direito, a exemplo da Lei n. 9.434/1997 sobre transplantes de órgãos inter vivos e post mortem, centrada no consentimento, e da Lei n. 11.105/2005 (Biossegurança) que disciplina o uso de células tronco embrionárias em pesquisa ou processo terapêutico, cuja constitucionalidade fora chancelada pelo STF em sede de controle concentrado (ADI 3510/DF, em 29.05.2008). Quando se interseccionam aspectos jurídicos e possibilidades reflexivas, contudo, a realização de esclarecimentos conceituais e a interposição do ordenamento jurídico à expressão de diretivas antecipadas da vontade envolvem muito mais interfaces, tais como a doença, as famílias, os cônjuges, os médicos, os juristas e todos os atores sociais ligados ou não a religiões e a posições de decisão frente às políticas de saúde. É evidente que não se fala a mesma coisa, quando se trata de cada termo acima exposto, mas também nem sempre é tão evidente a confusão dos seus conteúdos, quando estes são interpostos nos processos de tomada de decisão e de acordo com as vozes que estejam em questão. Por exemplo, a figura do médico não pode ser a única a metrizar decisões, inclusive porque temos a concepção compartilhada de que um médico não tira a vida. Outras questões são de ordem afetiva e ética relativas às pessoas envolvidas emocionalmente com decisões sobre a manutenção da vida em grande sofrimento ou como levar para frente vidas que já não respondem à vida? Estas questões são inexoráveis e não passam apenas pelas definições conceituais. Os conteúdos destas decisões nem sempre são evidentes e são carregados de valores em choque; muitas vezes, as decisões se redefinem em cada situação e muitas decisões precisam ser tomadas frente aos impasses e às controvérsias. Existem, sem dúvida, espaços de silêncio e de conflitos, 366


entre as pessoas que precisam ou que sentem que precisam tomar decisões. Seguramente, a experiência envolvendo o fim da vida surpreende o legislador, o médico, a família e a todos nós, em níveis que não passam por conceitos juridicamente postos. Contudo, eles podem balizar práticas e instituir formas adequadas à moralidade do tempo em questão, para a tomada de decisões que envolvem uma cultura paliativa frente à morte. Isso significa ir ao encontro da experiência dos sujeitos que sofrem e que são cuidados, para colocar em marcha o processo de morte assistido. É um acompanhamento o menos doloroso possível e edificante para a ética do fim da vida, que envolve mais do que a doença. Envolve a morte da vontade, da autonomia, a dignidade frente a uma morte certa.

As diretivas antecipadas da vontade e a responsabilidade do médico A Resolução nº. 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina – CFM, autarquia supervisora da ética profissional em caráter nacional, dotada de competência para julgar e disciplinar a classe médica (art. 2º, Lei 3.268/1957), enaltece a autonomia do paciente no contexto da relação médica. Na sua exposição de motivos, extraem-se como justificativas à edição do ato: (1) a dificuldade de comunicação do paciente em fim da vida; (2) a receptividade dos médicos às diretivas antecipadas da vontade; (3) a receptividade dos pacientes; (4) a inserção, de forma simplificada, do dever de respeito às diretivas antecipadas, inclusive verbais, nos Códigos de Ética Médica da Espanha, Itália e Portugal; e (5) a possibilidade de envolvimento, embora sem caráter deliberativo, dos Comitês de Bioética, já presentes em grandes hospitais, em muitas decisões de fim de vida. O diploma normativo define as diretivas antecipadas nestes termos: “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber, no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade” (art. 1º). Ato contínuo, preconiza que “nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes, que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas” (art. 2º, caput). Prevê, ainda, 367


a possibilidade de designação, pelo enfermo, de representante para tal fim, cujas “informações serão levadas em consideração pelo médico” (art. 2º, §1º). Pondera, no entanto, que tal manifestação antecipada não será considerada pelo especialista quando, em sua análise, revelarem-se “em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica” (art. 2º, §2º). E explicita, por fim, que as diretivas prévias manifestadas pelo paciente “prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares” (art. 2º, §3º), sendo que o esculápio procederá ao registro, no prontuário, “das diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas” pelo enfermo (art. 2º, §4º). O diploma normativo da entidade autárquica explicita ainda que: Art. 2º [...] §3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhe foram diretamente comunicadas pelo paciente. § 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina, para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.

Segundo preconiza Miguel Kfouri Neto (2013, p. 307): Essas diretrizes prévias manifestam-se por meio do testamento do paciente ou testamento vital (living will), nas quais se indica que tipo de tratamento se aceita ou se recusa, em certos casos (doentes terminais, estados vegetativos persistentes) – e pelo estabelecimento de procuradores para cuidados de saúde

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(durable power of attorney for health care), caso em que o paciente nomeará uma pessoa para tomar as decisões médicas por ele, na hipótese de o enfermo se encontrar privado da capacidade de decidir por si.

Não obstante também chamadas de testamento vital (living will), as diretivas antecipadas não têm natureza testamentária, nos termos do art. 1.857 do Código Civil Brasileiro de 2002. Elas consistem em declaração de vontade de caráter extrapatrimonial e personalíssimo, cujos efeitos, em realidade, projetam-se para momento anterior ao falecimento, embora com este se relacionem. Tratando-se de disposição volitiva, aplicam-se como guias os preceitos do Código Civil de 2002 acerca da validade dos negócios jurídicos, os quais exigem: (1) capacidade da parte; (2) licitude, possibilidade e determinabilidade do objeto; (3) licitude de motivo; (4) observância à forma e à solenidade essencial exigidas em lei; (5) inexistência de finalidade fraudulenta; (6) ausência de proibição legal (art. 166). É o que preconiza o art. 166 do Código Civil Brasileiro de 2002, nos seguintes termos: Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV - não revestir a forma prescrita em lei; V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

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Estabelece ainda: Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir. Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes. Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.

A par da lacuna legislativa específica acerca da temática, entende-se que o ato regulamentar do CFM encontra-se em harmonia “[...] com o art. 15 do Estatuto Civil, que consagra a possibilidade de dispor do corpo para depois da morte, e com a própria autonomia privada, que rege as relações do Direito Civil”. (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 324). No âmbito da autonomia do paciente, Luís Roberto Barroso e Letícia Martel (2011, p. 133) assinalam que o consentimento deve ser aferido mediante parâmetros seguros, a fim de que se tenha certeza de que as escolhas foram eleitas com liberdade, consciência e esclarecimento. As condições para seu exercício devem ser propícias, compreendendo a ausência de privações materiais e o acesso a sistemas adequados de saúde. Sobre o tema, cabe a ponderação: Muitas vezes, o momento em que o indivíduo subscreve este documento é de muita tensão e pressão e, por isso, condicionada a assinar o testamento. Alguns deles talvez nem venham a ler tal declaração. As maiores vítimas serão os idosos, nesse momento em que os velhos são mais desvalorizados. Não será nenhuma surpresa que amanhã alguém seja obrigado ou pressionado a assinar um termo dessa natureza como condição necessária para o internamento de uma doença grave, ou até mesmo no momento em que venha a aderir a um seguro ou plano de saúde como condição obrigatória do benefício. (FRANÇA, 2013, p. 519)

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Embora a resolução exija (e não poderia ser diferente) a capacidade do agente no momento de expressar a manifestação, ela não explicita maiores detalhes acerca da forma do ato, além da determinação de consignação no prontuário médico. Por essa razão, há quem advogue não haver “[...] qualquer necessidade de registro em cartório da declaração de vontade”. (FARIAS, ROSENVALD, 2015, p. 323). Luciana Dadalto (2013, p. 64)77 (criadora de portal eletrônico diretamente voltado à discussão da temática, bem como à publicação de trabalhos, à coleta de dados e à divulgação para leigos, estudantes e profissionais do direito e da saúde), entrementes, defende a imprescindibilidade da lavratura das diretivas por escritura pública, perante um notário, a fim de garantir a segurança jurídica. Segundo a advogada, a criação de um registro nacional possibilita maior efetividade na observância da vontade do declarante, cujas disposições seriam encaminhadas pelo próprio cartório, dando-se publicidade e uniformidade ao ato. Especificamente, no que tange à extensão e à aplicação concreta das diretivas, sustenta Genival Veloso de França (2013, p. 518) que elas incidem “diante de doença grave e incurável” e quando o declarante “não estiver mais em condições de manifestar a sua vontade”. Centram-se, pois, em “autorizar a não utilização de tratamento fútil ou condutas desnecessárias”, assegurandolhe, no seu entender, uma morte digna. Alerta o doutrinador, no entanto, não se tratar de proposta de entendimento pacificado. De acordo com Genival (2013, p. 519), um dos itens insertos nessas diretivas é a sigla DNR-Order (ordem para não ressuscitar), ampliada para Do Not Attempt Resuscitation Order (ordem para não tentar ressuscitar). Em alguns testamentos encontrase, ainda, a vontade escrita de não alimentar os acometidos de estado vegetativo permanente. No mesmo sentido, parecem apontar as lições de Barroso e Martel (2011, p. 132-133), para quem a faceta da dignidade como autonomia deve prevalecer nos casos de “impossibilidade de cura, melhora ou reversão do quadro clínico, importando o tratamento em extensão da agonia e do sofrimento, sem qualquer perspectiva para o paciente”, quando houver “certeza do diagnóstico, do prognóstico e das alternativas existentes”, observado o consentimento livre e esclarecido.

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Disponível em: <www.testamentovital.com.br>. Acesso em: 12 jun.2017.

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Para Barroso e Martel (2011, p. 133-134), considerando-se que no Brasil não se tenha feito qualquer distinção jurídica entre a obstinação terapêutica e as condutas ativas e intencionais de abreviação da vida, justifica-se a legitimação de um modelo intermediário, que gira em torno da ortotanásia. Segundo eles, a limitação consentida de tratamento, o cuidado paliativo e o controle da dor são proposições plenamente compatíveis com a Constituição e com a legislação vigente. A respeito da limitação consentida de tratamento, preconizam os autores: [...] constitui uma das políticas públicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida. Pacientes terminais, em estado vegetativo persistente ou portadores de doenças incuráveis, dolorosas e debilitantes, devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensão e intensidade dos procedimentos que lhes serão aplicados. Têm direito de recusar a obstinação terapêutica. Nesse contexto, a omissão de atuação do profissional de saúde, em atendimento à vontade livre, esclarecida e razoável do paciente ou de seus responsáveis legais, não pode ser considerada crime. Não há, na hipótese, a intenção de provocar o evento morte, mas, sim, de impedir a agonia e o sofrimento inútil. (BARROSO; MARTEL, 2011, p. 134)

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor, a seu turno, baseiam-se na ideia de atenção e amparo, quando o diagnóstico e o prognóstico apontam que “[...] os esforços de cura serão poucos frutíferos e que haverá sofrimento no processo de morte”. O foco é elevar e manter a qualidade de vida do doente, da família e do cuidador, mediante o controle da dor, dos sintomas e outros problemas, “[...] sejam físicos, espirituais e até mesmo jurídicos”, como as questões testamentárias e a regularização de uniões. (BARROSO; MARTEL, 2011, p. 135). Dessa forma, tomando como norte a autonomia da vontade, centro fundamental da dignidade da pessoa humana, pode-se concluir que, pelo menos nas hipóteses de ortotanásia, cuidado paliativo e limitação consentida de tratamento, não há que se falar em conduta antijurídica do profissional médico, existindo manifestação voluntária do paciente, ou de seu representante, regularmente consignada em termo de consentimento 372


livre e esclarecido, após o adequado percurso informativo. (NOVELINO, 2014, p. 474). Segue no mesmo rumo a lição de Dary Cesar Fabriz, explicitada por Miguel Kfouri Neto: A recusa de um paciente de se expor a determinado procedimento terapêutico não significa que ele esteja recusando viver. O enfermo, com base em sua visão de mundo, fez uma opção, arcando com os possíveis e prováveis riscos. Cabe ao terapeuta adotar procedimentos alternativos que possam amenizar as manifestações deletérias da enfermidade, possibilitando o bem-estar possível, cabível ao caso. Sobrevindo o óbito, não há que se questionar, visto que a morte é inexorável e faz parte do próprio processo de vida. O paciente que assim decidiu, arcando com a possibilidade de sua própria morte, entendeu que, assim, alcançou uma morte digna, na medida em que esta se enquadra em seu conceito de vida digna. No caso, a vida digna é aceitar a própria morte como um fato inexorável da própria vida [...]. (KFOURI NETO, 2013, p. 320)

De acordo com esse cenário, pode-se afirmar que, nos casos de uma estrita observância às diretivas antecipadas manifestadas pelo paciente, após o devido processo informativo, nos quadros determinados em que não são vislumbradas a cura ou a reversão do estado clínico, afigura-se inapropriado o acionamento judicial do médico para fins de responsabilização civil pela morte do paciente. Parte-se, por certo, da premissa de que o dever de indenizar resultante do atuar médico implica o acolhimento da teoria clássica da responsabilidade civil (SANTOS, 2008, p. 160), tornando-se indispensável, para sua configuração, a conjugação dos pressupostos de conduta humana (intervenção médica), dano, liame de causalidade entre eles e, ainda, nexo de imputação consubstanciado na culpa (arts. 186, 927, caput, e 951 do Código Civil c/c art. 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor). Em tais situações, para além da inexistência de um ato médico culposo, à vista do respeito à vontade livre e esclarecida do enfermo, não se constata a ocorrência de verdadeiro dano, porquanto a morte representará, nessas circunstâncias, o próprio viver dignamente. 373


A temática, longe de alcançar o consenso necessário, requer aprofundamento do conjunto dos diversos setores e atores da sociedade organizada (bioeticistas, médicos, juristas, antropólogos, sociológicos, filósofos), a fim de que se possa estabelecer critérios mais sólidos de aplicação do instituído, que tem como ponto de partida a identificação do paciente, “[...] não apenas com a doença de que é portador, mas com a dignidade inarredável de ser humano”. (KFOURI NETO, 2013, p. 321). Seguramente, a morte exige discussão em nossa cultura e o seu cuidado é um tema aberto a múltiplas controvérsias. Talvez a principal de suas dimensões diga respeito à interdependência entre as pessoas e os profissionais frente à antecipação da vontade; a situação em cada sujeito demanda um cuidado específico e exige diferentes formas de decisão a respeito do exercício deste cuidado.

Considerações finais Antecipação de vontade é um tema, de fato, revestido de importância no âmbito jurídico, sobretudo por dois aspectos: possui relevância social e não é dotado de posicionamento consolidado entre os membros da coletividade. Com relação ao primeiro aspecto, fala-se que a temática é dotada de relevância na sociedade, porque é permanente e primordial a necessidade humana de recorrer a atividades da área médica, visando à preservação, tratamento e potencialização da saúde. Neste ponto, consta-se que tal tarefa, atualmente, é mais consciente e menos descrente; vale dizer, já não se associa mais o médico a uma figura paternalista, dotada de poderes divinos de cura, mas, sim, a um profissional capacitado pelos preceitos científicos da medicina. Também se pode dizer que a relevância social da questão é reforçada pelo fato de que, para além da livre escolha do paciente acerca das medidas e tratamentos curativos (em nítido realce ao direito à vida), ganha enfoque, na atualidade, o próprio direito de morrer dignamente, a partir dos ditames da autonomia de vontade. Ainda que este tema esbarre em muitas polêmicas, a despeito de todas as razões históricas e das pressões morais a favor ou contrárias à morte antecipada, permanece de fato grande a dificuldade para o exercício da liberdade de decidir sobre a própria morte. E este aspecto envolve a necessidade de reflexividade como construção coletiva, tanto da 374


medicina, quanto do direito, da bioética, das diferentes áreas humanas, da própria sociedade e pessoas em geral, a respeito do limite de tolerabilidade do sofrimento físico, mental e dos cuidados a se dispensar, para garantir dignidade a cada pessoa em situação de sofrimento. Inseridas neste âmbito, apura-se que as diretivas antecipadas constituem inequívoca expressão da autonomia do paciente, mediante consentimento prévio, alcançado a partir de condicionantes, materiais e mentais favoráveis, ainda que fazê-lo não elimine as controvérsias. À vista da inexistência de disciplina legal específica acerca da problemática e tomando em conta a generalidade das disposições constantes na Resolução n. 1995/2012, editada pelo Conselho Federal de Medicina, permanecem nebulosas questões fundamentais, tanto sobre eventuais formalidades da declaração quanto sobre as referentes à concretização do instituto. Atesta-se, entre outros aspectos, a possibilidade de utilização dos preceitos do diploma civilista atinentes à validade dos negócios jurídicos como referencial da declaração, devendo tal ser aferida mediante parâmetros seguros e condições propícias de exercício, após regular processo de esclarecimento. Especificamente quanto ao seu conteúdo, verificam-se posições convergentes no sentido da viabilidade de aplicação das diretivas, nas hipóteses em que a enfermidade seja incurável ou irreversível, podendo elas compreender limitações consentidas de tratamento em situações determinadas, cuidados paliativos e de aplacamento da dor e ordem de não reanimação – todos, aspectos relacionados, em maior ou menor grau, à ortotanásia, categoria inserida na denominada morte com intervenção. À luz da responsabilidade civil clássica, defende-se a impossibilidade de responsabilização do profissional médico, ao sobrevir o falecimento, nos casos de estrita observância às diretivas, manifestadas após o devido processo informativo, nos quadros determinados em que não se vislumbra a cura ou a reversão do estado clínico, diante da inexistência, em tais circunstâncias, de ato culposo, tampouco de dano propriamente dito – requisitos indispensáveis ao dever de indenizar. Por derradeiro, reconhece-se, inegavelmente, a necessidade de aprofundamento dos estudos a respeito da temática, envolvendo diversos setores da sociedade organizada, a fim de que se possa disciplinar de forma 375


mais sólida os contornos do instituto, conferindo, em última análise, segurança e conforto às relações humanas. É preciso valorizar positivamente as mudanças nas relações assistenciais e levar em conta que as mesmas têm grande envergadura, na medida em que os temas tabus começam a integrar a reflexividade humana. A concepção do direito à vida, que implica a manutenção da mesma e que, por vezes, está inclusa contra a vontade da pessoa, precisa ceder lugar a concepções mais acordes com o respeito ao direito de autodeterminação das pessoas e com o caráter laico do Estado. As garantias sempre devem ostentar a vida como valor e não ser contrárias a ela. Contudo, o cuidado com a vida não está ligado sempre a fazer viver contra a vontade e em condições penosas. Trata-se de cuidar como uma prática complexa que envolve diferentes axiologias de articulação de uns com os outros, que sejam dialógicas e que produzam posicionamento reflexivo sobre os valores. Igualmente, há necessidade de estruturar novas capacidades cognitivas pessoais, jurídicas, médicas e sociais, em torno de uma análise normativa objetiva dos fundamentos humanos que são centrais frente à morte e que sejam compatíveis com o respeito à vida, à relatividade cultural e à autonomia pessoal.

Referências ALMEIDA, Antonio Jackson Thomazella de. A ortotanásia e a lacuna legislativa. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça; LIGIERA, Wilson Ricardo (Coord.). Direitos do Paciente. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 447-487. BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro, n. 40, p. 103-139, 2011. CASADO, María. (Orga). Nuevos materiales de bioética y derecho. México: Fontamara, 2007. COUNCIL OF EUROPE. Convention for the protection of human rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine: convention on human rights and biomedicine. [Internet]. Oviedo; 1997. <Disponível: http:// 376


conventions.coe.>. int/treaty/en/Reports/Html/164.htm. Acesso em: 12 jun.2017. DADALTO, Luciana. Testamento Vital: Aspectos Registrais das Diretivas Antecipadas de Vontade. Revista Síntese Direito de Família. São Paulo, v. 15, n. 80, out./nov., p. 60-69, 2013. D’ÁVILA, Roberto Luiz. O ato médico e a relação médico-paciente. In: LUZ, Newton Wiethorn da; OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues de; THOMAZ, João Batista (Coord.). O Ato Médico: Aspectos éticos e legais. Rio de Janeiro: Rubio, 2002. p. 9-28. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. v. 1, 11, ed. Salvador: JusPodivm, 2013. ________. Curso de Direito Civil: Sucessões. v. 7. São Paulo: Atlas, 2015. FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. LOPES, Fabio Firmino. A relação médico-paciente: Entre a atenção e a incompreensão. In: PEREIRA, Hélio do Valle; ENZWEILER, Romano José (Coord.). Curso de Direito Médico. São Paulo: Conceito Editorial, 2011. p. 303-321. NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9 ed. São Paulo: Método, 2014. PESSINI, LÉO. Até quando investir sem agredir? Bioética, v. 4, n. 1, p. 36. Brasília, Conselho Federal de Medicina, 1996. SANTOS, Leonardo Vieira. Responsabilidade civil médico-hospitalar e a questão da culpa no direito brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2008. 377


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SOBRE AS ORGANIZADORAS E OS ORGANIZADORES Marlene Tamanini

Professora no Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná, Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Pós doutorado na Universidade de Barcelona, com bolsa oferecida pela Capes. Pesquisadora, Professora e Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero na UFPR/PR e Vice Coordenadora do Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPR. Ministra cursos nas áreas de Sociologia, Epistemologia e Metodologia da Pesquisa. Faz pesquisa e ministra disciplinas com foco em gênero, família, cuidado, trabalho, sexualidade e corpo. É autora de livros no campo da Reprodução Assistida. Suas publicações em revistas e em capítulos de livros retratam seus interesses de estudo e pesquisa no campo da reprodução humana assistida, maternidades, cuidado, na área de gênero e trabalho, de violência doméstica, direitos sexuais e reprodutivos, com transversalidades em bioética, em interdisciplinaridade e em tecnologias. tamaniniufpr@gmail.com

Francisco G. Heidemann

Professor universitário aposentado pela UFSC, obteve seu doutorado em Administração Pública pela University of Southern California, em Los Angeles, 1984. Iniciou a carreira profissional na área editorial, tendo passado por casas editoras no Rio de Janeiro (Vozes, Fundação Getúlio Vargas) e, como free lancer autônomo, em São Paulo (Banas, Atlas, Difel, E.P.U., McGraw-Hill). Também teve experiência em empresa pública, quando trabalhou por mais de três anos na área financeira da ELETROSUL. Mas foi a carreira de Professor Universitário que absorveu a quase totalidade de sua carreira profissional, tendo passado pela UFSC, FURB (Blumenau), PUC-PR (Curitiba) e a UDESC. Seu livro Políticas públicas e desenvolvimento: Bases epistemológicas e modelos de análise, publicado em coautoria com Jos é F. Salm, pela UnB (3ª edição, em 2015), é o principal resultado de suas pesquisas na área da administração e da política pública. Como aposentado, dedica-se a projetos como o livro que o leitor tem a oportunidade de manusear no momento desta consulta. heidex0@gmail.com

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Eliane Portes Vargas

Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social – IMS/UERJ, com área de concentração em Ciências Sociais e Humanas e de Saúde (2006). É pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, e Docente da Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde (IOC/ FIOCRUZ), Brasil. Suas pesquisas envolvem temas nas áreas de interesse de Corpo, Sexualidade, Reprodução, Tecnologias Reprodutivas e Relações Familiares e de Gênero, Alimentação e Cultura. epvargas@ioc.fiocruz.br

Sandro Marcos Castro de Araujo

Membro do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná. É Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Desenvolve pesquisas abordando as áreas do cuidado, gênero e suas interseccionalidades, especialmente no que concerne ao desenvolvimento de políticas públicas destinadas ao care e a suas trabalhadoras. Exerce atividades de pesquisa, ensino e extensão no Instituto Federal do Paraná, campus de Campo Largo. sandro.araujo@ifpr.edu.br

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As treze autoras e dois autores de O Cuidado em Cena nos remetem aos desafios contemporâneos para o cuidado como uma necessidade humana, social, política e pessoal. No livro os leitores se deparam com reflexões sobre os vários contextos da prática de cuidados e dos desafios interpostos à pesquisa e às políticas de atendimento em situações de vulnerabilidade. Compostos sob o olhar de múltiplas perspectivas teóricas, com exigências epistemológicas próprias, seus capítulos respondem a diversas interfaces dos processos de feminilização do care, diante da persistente ausência de políticas públicas que lhe digam respeito. Em seus textos estão expostos os desafios para a sociedade levar a sério as práticas do care e tomá-las como parte do debate necessário à vida pública e da interdependência constitutiva de uma sociedade de cuidado. Esta escolha diz respeito ao cuidar, ter solicitude, atenção, preocupar-se com o outro, estar atento às suas necessidades como parte dos sentidos do cuidado e das tensões que resultam da autonomia essencial às pessoas que necessitam, querem ou não querem ser cuidadas. E a democracia do cuidado decorre da interdependência dos envolvidos nele. Fazer da disponibilidade ao outro uma qualidade da relação de care, e não um suplemento da alma, exige deixar-se afetar pelo outro e por sua necessidade. Esta é uma posição necessária para se evitar a exploração de quem cuida e de quem é cuidado. No compêndio, mostra-se igualmente como as teorias utilizadas no trato com o tema e as práticas cotidianas não são assumidas com critérios de justiça, nos diferentes âmbitos, e como as mesmas não contemplam as realidades sociais, familiares e econômicas, fazendo parecer, muitas vezes, que o trabalho do cuidar está alicerçado em pressupostos de harmonia. O fato é, porém, que esse cuidado é, frequentemente, injusto, porque constitui enormes desigualdades de sexo, de gênero, classe, raça, nas relações pessoais, afetivas e na sua profissionalização.


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